Museu da Pessoa

Sonho de mãe: ver o filho bem

autoria: Museu da Pessoa personagem: Delmira Marques da Silva

Programa Conte Sua História
Depoimento de Delmira Marques
Entrevistada por Carolina Margiotte e Denise Cooke
São Paulo 11 de abril de 2018
Entrevista nº PCSH_HV647
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho

P1 - Dona Delmira, muito obrigada por você ter aceitado o nosso convite por nos receber na sua casa, e para começar, por gentileza, o seu nome completo, o local e a data de nascimento.

R - Delmira Marques da Silva, São Paulo, não, não, o local de nascimento.

P1 - O local e a data de nascimento, por favor.

R - Vamos recomeçar?

P1 - Claro, bem tranquilo, dona Delmira, eu posso perguntar de novo.

R - Agora eu me organizo.

P1 - Dona Delmira, obrigado por nos receber aqui e por aceitar o nosso convite para escutar a sua história de vida. E para começar, o seu nome completo, o local e a data de nascimento.

R - Meu nome completo, Delmira Marques da Silva, Remanso, Bahia.

P1 - E a data de nascimento?

R - 16 de novembro de 1954, e eu que agradeço, o agradecimento é só meu.

P1 - Dona Delmira, a senhora conhece a história do seu nascimento?

R - Pouquíssimo. Pelo o que a minha mãe conta, nasci lá no sertão do Piauí, a minha mãe fala que em uma fazenda, que está só ela e meu pai, quando ela começou a sentir os sinais do parto meu pai saiu correndo à busca de uma parteira, que veio no lombo de um cavalo ou jumento. E parece que não houve muito trabalho para o meu nascimento, a minha mãe conta que a cama era de palhas de carnaúba, não sei se vocês conhecem, carnaúba é uma palmeira, que só muito tempo depois eu fui saber o que era a carnaúba. E a minha infância foi praticamente nessas condições, fazenda, animais, e a minha mãe fala que tinha muitas cobras lá na região, cascavéis, e muitas vezes, meu pai tinha que sair correndo para matar o bicho, que ainda se tem essa cultura de eliminar as serpentes, porque quando elas se acasalam na época do acasalamento vem uma, vem a fêmea, não sei, vem uma, e logo em seguida vem outra. Então se extermina um, se elimina um, imediatamente outro aparece, então tinha que ficar muito esperto em relação a isso. Então fui criada nesse ambiente, eu falo que sou sobrevivente, e esses dias eu falei para a minha mãe, minha mãe estava falando sobre alguma coisa lá, falei: “Mãe, quem passou pelo o que nós passamos, nós só temos que agradecer, estarmos aqui hoje”. Então nós não temos motivo para reclamar, que o ser humano é muito egoísta, muito egocêntrico. Então eu costumo dizer que se nós formos pesar, colocar em uma balança, tem muito mais coisas boas do que ruins, mas o que prevalece as que não são tão boas, não vou utilizar a palavra ruim, que acho muito pesada, mas prevalecem as que não são tão boas. Daquele local, o que eu me lembro, um pouco? Eu lembro pouquíssimo da minha infância, meu pai veio logo para São Paulo, e eu lembro pouco daquele lugar, e ficamos com a minha avó materna, meus avós maternos, e extrema pobreza, em caráter de extrema pobreza, chegando às proximidades da miséria, só não passávamos fome literalmente, mas a alimentação muito rude, muito rudimentar. E sobrevivemos a isso. A parte de saneamento não existia, acho que hoje pouquíssimo, água só quando chovia, eu lembro que minha avó saía de madrugada para ir para aquelas minas esperar a água brotar da terra, pegar com uma canequinha, uma, vou falar um termo aqui, não sei se vocês conhecem, a cabaça, corta a cabaça, faz a cuia para encher a cabaça, então com uma pequena cuia, enchendo a cabaça, carregar aquela água de madrugada para termos água. Então foi uma infância assim muito sofrida, mas a gente não tinha essa noção, não tínhamos essa visão, nós não tínhamos isso. E foi isso.

P1 - Dona Delmira, ainda vou querer detalhar mais como é que foi essa vinda para São Paulo, mas antes a senhora sabe o porquê do nome Delmira?

R - Então, é o nome da minha bisa, da avó do meu pai. Ele tinha, assim, loucura pela avó, e aí ele deu o nome a mim em homenagem à bisa. Que eu lembro pouquíssimo, vagamente, depois morávamos um pouco distante, eu lembro uma única vez dela assim, cheguei lá, e aí ela era mãe do pai do meu pai, do meu avô. E eu desesperada para ver a bisa, fui correndo lá para a casa dela, lembro pouquíssimo. E aí quando cheguei lá ela estava com uma garota no colo, eu fiquei tão enciumada, fiquei no canto. Aí quando ela me viu, ela imediatamente esqueceu da outra garota: “Minha filha, vem aqui e não sei o que”. Eu lembro que ela fazia linha, coisa de algodão, desfiava algodão e fazia aquela linha, tinha um negócio que chamava, eu não vou lembrar, eu sei que ela fazia linha, e eu lembro daquele balaio de algodão todo desfiadinho, ela colocou a menina do lado, o algodão, me colocou no colo. Então o meu nome é homenagem à minha bisa, por parte do meu pai.

P1 - E falando dos seus pais, qual o nome deles?

R - Meu pai, Cesarino Lourenço Marques e a minha mãe, Geraldina da Silva Marques. Então era assim, meu pai era do Piauí e a minha mãe era da Bahia, mas assim, regiões próximas, divisas. E quando eu nasci, nós nascemos, enfim, tinha uma guerra lá, que o pessoal que morava naquela região do meu pai, que era Piauí, queria que fosse Bahia, não sei porque, também era guerra política. E o meu avô por parte do meu pai era meio Coronel lá da época, ele que determinava, e ele queria que fosse Bahia, mas no fim prevaleceu o Piauí. E nós fomos todos registrados, eu e os meus irmãos como se tivesse nascido na Bahia, porque eles não queriam os filhos do Piauí, tinha toda essa questão e podia fazer isso, tinha essa possibilidade, tanto é que, não sei se você vai me perguntar depois como que nós viemos parar aqui em São Paulo, toda a história de nordestino é igual, guerreiro. Aí meu pai veio, não sei se já tinha meus dois irmãos mais velhos, somos quatro, éramos em quatro. E não lembro muito bem disso, meu pai veio para cá para trabalhar, depois a minha mãe veio conosco, de pau de arara. Sabe o que é pau de arara, gente? Eu lembro um pouquinho, um caminhão cheio de carga, e a gente lá em cima, se segurando em cima daquela carga, e passando naquelas árvores, porque era tudo muito fechado, eu lembro que de vez em quando a gente tinha que agachar se não carregava. Então nós viemos para cá nessa condição. Foi assim a nossa vinda para São Paulo. E depois daqui a luta continua.

P1 - Antes então da vinda para São Paulo, ainda um pouco nessa origem da família, você sabe como seus pais se conheceram?

R - Olha, meu pai acho que estava trabalhando, a minha conta que ele estava trabalhando para abrir uma rodagem. O que é rodagem? É uma estrada que não é asfaltada, as estradas antigamente chamavam-se rodagem. Então meu pai estava trabalhando lá naquela obra, e chegou lá na vila da minha mãe, que era próximo, divisa, Bahia/Piauí, e se conheceram e se casaram e foi assim, não tinha muito conto de fadas, era bem prático.

P1 - E você lembra de quando o seu pai chegou em casa e avisou que ia se mudar para São Paulo?

R - Não, não, não, não lembro, eu só lembro da vinda, eu não lembro da história do meu pai aqui. Eu acho, lembro pouquíssimo que ele veio primeiro e depois parece que ele retornou e nos encontrou lá em uma situação de miséria plena. Tinha o meu irmãozinho, o Ari, e aí eu lembro de nós três, eu, o meu irmão Osvaldo e o meu irmão Ariovaldo, olha a coisa, tem que rimar, senão não é de lá. E aí meu pai chegou e a minha mãe, e quando chegava alguém de São Paulo, os paulistas, a família fazia festa para receber. E eu lembro que tinha duas canas assim no canto da casa, e aí a gente queria chupar a cana, a minha mãe: “Não, que seu pai vai chegar, tem que adoçar o café para a visita”. E adoçava o café, eu não sei como que fazia, com o caldo da cana, e não deixava a gente chupar a cana. Meu pai chegou com saco de farinha, saco de açúcar, e aquele monte de gente, eu lembro, aquela confusão toda, a casa, como é que fala, de pau a pique, que é de barro.

P1 - Sapé?

R - Eu não sei determinar, as paredes de barro, e aquilo de vez em quando seca, e cai aqueles barros, eu lembro daquelas aberturas na parede, e aquela gentarada entrando e saindo, meu irmãozinho ali no canto, tadinho, largado. Tem coisa que marca, é o que eu lembro, aquele chão, aquele moleque sujo, empoeirado. Aí todo mundo passava comendo açúcar com farinha, sei lá, o que aquele povo tudo comia. E aí o meu irmãozinho, coitadinho, ele esticava a mão, aí as pessoas, Deus abençoe, o bichinho estava querendo comer. Então acho que meu pai voltou e aí foi visitar, e veio, aí posteriormente que a minha mãe veio conosco.

P1 - Antes então dessa vinda para São Paulo, desculpa, antes, quantos anos você tinha nessa época da visita do seu pai?

R - Olha, eu devia ter por volta de uns cinco anos.

P1 - Era bem novinha.

R - Era novinha, porque eu nem lembro da minha irmãzinha.

P1 - Exato, isso que eu ia perguntar.

R - Tenho uma irmã mais nova, minha irmãzinha Maria.

P1 - Então pela ordem de nascimento?

R - Eu, meu irmão Osvaldo, meu irmão Ariovaldo e a minha irmã Maria.

P1 - O que você lembra do ambiente na casa? Eu sei que você ainda era muito novinha, mas tem esses flashs, se você conseguir detalhar para a gente como era a sua casa, o ambiente em torno.

R - Então, as casas lá eram, hoje mudou um pouco, mas eram essas casas de barro, eu lembro, parece que eu lembro assim meu pai amassando aquele barro com o pé.

P1 - É adobe, não é?

R - Não sei. Aí parece que passava, como é que chama, casca de madeira, que faz corda, passava, trançava tudo aquilo, ele amassava aquele barro, barro mesmo, não é argila, tirava, sei lá da onde, e aí enchia aquilo. Então a casa era feita daquele jeito. Eu lembro uma época ele amassando aquele barro, de vez em quando aquilo soltava, ficava os buracos, umas coisas horrorosas, a gente não achava que era feio, que era comum. E a casa era assim lá, no meio, aí tem um espaço enorme, tinha, que se chamavam terreiro, ali ficavam as galinhas, os cabritos, o jumento, vaca eu não lembro se nós tínhamos, não lembro, eu sei que tinha galinha, cabrito, porco, vivia tudo junto da gente, porto, galinha, cachorro, criança e era normal, e sobrevivemos aquilo. A minha mãe de manhã cuidava ali, varria aquele chão, era chão, não tinha piso, eu lembro que ela jogava uma água, acho que para abaixar a poeira, varria com as vassouras que ela fazia, colhia aquela vegetação, amarrava aquilo e fazia aquela vassoura. Junto com a minha avó, morava perto também, nós tínhamos mais contato com a família da minha mãe. E varria aquilo, depois ia lá buscar água naquelas minas, naquelas fontes, quando tinha, tinha a fonte, quando não tinha, tinha que esperar ela brotar a água. E foi assim, meu pai, o pouco que eu lembro do meu pai, o lembro lá, meu pai tinha roça, que quando chovia tinha lá, quando chovia, tinha os alimentos, mas quando não chovia não tinha e aí a gente ia sobrevivendo do que sobrou de muitos anos anteriores.

P1 - E você lembra do que você brincava nessa época?

R - Olha, a gente brincava de boneca de milho, pegava a espiga de milho do sabugo, fazia a roupinha, criança tinha aquela criatividade, pegava graveto, fazia a roupinha, a minha avó fazia a cabecinha da bonequinha, o cabelinho, e a gente brincava daquilo, e aí nós brincávamos do que tinha ali, da nossa realidade, da boneca brincar no cavalo, daquelas coisas, a gente fazia o cavalinho ali de madeira, aquelas brincadeiras muito simplórias, muito puras, sem maldade, não existia maldade, não existia crime, nós não conhecíamos isso. Eu falo que lá nós não conhecíamos maldade, assim, não, ninguém roubava galinha do outro, porco do outro, cavalo do outro, que hoje é comum. Meus pais saíam, eu não lembro muito, mas iam para a roça, ficávamos com alguém, alguém devia tomar conta, não sei também se ficava, não lembro muito bem. Eu não lembro na minha infância, de conhecer negro, negro, negro, como se conhece hoje, e nem obeso, as pessoas eram iguais a mim, assim, desse jeito, também não tinha loiro de olhos azuis, as pessoas tinham esse biótipo que eu tenho hoje. Eu tenho 63 anos, a minha mãe tem 85, os meus avós da parte materna, viveram bastante, acho que próximo ao 100, meu avô era índio, é que eu não tenho uma foto dele, era índio, e índio de verdade, e a minha avó já tinha essa origem assim meio misturada, porque ela tinha essa cor igual a mim, esse biótipo, mas tinha cabelo meio crespo. Então o que eu penso, deve ter passado ali uma origem escrava. Meu avô, eu posso contar?

P1 - Por favor.

R - Também se caçava muito, e aí eu estou contando o que eu ouvia contar, porque eu não presenciei isso. Os caçadores iam para o mato e ficavam uma semana, sei lá quanto tempo lá no mato caçando, caçavam tatu, onça, o que tinha lá, e traziam para alimentar, e acho que ainda era até um prazer, porque eles tinham o que comer, eles tinham as criações, mas iam caçar. E aí os cachorros pegaram a criança, e aí o que se fala, e aí vocês vão sair daqui com vocabulário riquíssimo, porque apesar de ter estudado aqui eu tenho vocabulário, eu conheço muito o vocabulário de lá do Nordeste. Acoa, o cachorro acoava a caça. Hoje eu entendo o que é acoar, colocava lá, acoar, está colocando ali em um canto segurando, está prendendo. Então o cachorro acoava a caça, o tatu, e aí tem várias espécies de tatu. O veado, a onça, e tinha onça preta, onça parda, pintada, e tem, ainda tem lá hoje, apesar de toda essa devassa que nós fizemos. E o cachorro acoou o garoto, por volta de dez anos tinha o menino, a tribo se dissipou, ia fazer o que com o garoto, ia largar lá? Não. Trouxeram o menino lá para a vilazinha. E aí ele foi ficando ali, e também não sei se conhecia a minha avó não era de lá, isso a gente nunca se aprofundou, e acabou se casando com a minha avó, e aí surgiu tudo isso daqui que vocês veem. E aí era muito legal, lembro assim, ele não comia tempero nenhum, e nós herdamos isso, tempero nenhum, nem cebola, nem alho, e a minha avó, coitadinha, ela gostava lá dos temperinhos dela. Eu lembro uma vez que ela tinha lá um alho, sei lá, escondido lá na casa, ele chegou lá na porteira do terreiro, o terreiro enorme, a casa lá, a casinha lá, naquele tempo, ele chegou lá na porteira e gritou: “Filipa, sua desgraçada, você joga essa porcaria que você tem aí, que eu já estou sentindo o fedor daqui”. Pois é, arrumava briga com a minha avó com temperinho, ela não podia nem ter em casa e nós herdamos isso. Hoje até hoje, até ainda consigo assim, alguma coisa, o alho eu tenho aversão. O Valter, eu posso falar do Valter?

P1 - Pode.

R - Falou para vocês do chá, e se falar para mim, olha, você precisa tomar um chá de alho, ou comer alguma coisa com muito alho, eu vou morrer, porque eu não vou conseguir, só se me dopar, e aí nós herdamos isso.

P1 - Você tem contato com outros elementos da cultura indígena do seu avô?

R - Não, porque foi muito restrito, eu conheço a história que eles contavam para nós, aí a tribo voltou para procurar o menino, não se sabe o que aconteceu.

P1 - Em que momento essas histórias eram compartilhadas?

R - Porque assim, à tarde, em um período, eu lembro pouco assim eu com meus avós, então eu lembro assim dessas conversas, depois que a minha mãe conta, a minha avó contava, meu avô, em alguns momentos eles começaram a compartilhar, e eu amava meu avô, uma paixão louca, eu achava o meu avô o homem mais lindo do mundo, ele era enorme, ele era diferente, aquele homem com a pele morena, eu achava o meu avô o homem mais lindo do mundo. E eu falava para ele: “Avô...”. Que eu chamava de avô, a minha avó era chata, ranzinza, resmunguenta, eu não gostava da minha avó não. Não é porque morreu que vira santo, eu não gostava, eu gostava do meu avô. E: “Avô se o senhor morrer primeiro que eu, se o senhor puder o senhor vem me contar como é que é?”. Olha a conversa da pequena com o adulto. Então não tem muito assim, eu conto o que eu ouvi.

P1 - Qual era o nome deles?

R - Marçal, meu avô, nome lindo, Marçal Mariano, e a minha avó, Felipa.

P1 - E que outras lembranças você tem do seu avô, o que vocês costumavam fazer juntos?

R - Olha, eu lembro assim, uma vez nós fomos lá na terra dele, da família dele, porque ele quando conheceu a minha avó, não sei muito como foi, ele veio de outro lugar morar na terra da minha avó, e aí eu fui com ele lá para a terra dele, eu lembro que nós fomos a cavalo, eu lembro pouco também, só lembro que eu estava com muita sede, a gente andando naquele cavalo, naquele sol, eu me lembro. E eu lembro que eu falava que eu estava com sede, e no caminho tinha maracujá, tinham frutas, antigamente tinha maracujá, ele parava toda hora: “Chupa aqui minha neta, que você vai melhorar, e daqui a pouco a gente vai chegar em algum lugar”. E ele parava toda hora e pegava um maracujá. Então eu lembro pouco, mas assim, o pouco que eu lembro eu lembro depois já mais adulta, que depois que nós viemos para cá, mas lá na infância a lembrança é pouca.

P1 - Você lembra de ter chegado?

R - Chegamos, chegamos em uma casinha, ele parou, porque o cavalo lá, e parece que eu estava de garupa, ele tinha muito cuidado comigo, e aí ele bateu palma, ou de casa, era assim, ou de casa, apareceu lá alguém, aí ele pediu água, a pessoa trouxe em uma caneca de alumínio assim, um alumínio brilhante, aquela água mais saborosa que eu já tomei na minha vida, e ele com maior cuidado, agradeceu, aí pediu para a moça se a moça podia encher a cabaça, era uma coisinha, uma moringuinha, mas era de cabaça, para a gente poder chegar no destino, que eu não sei se nós estávamos indo ou estávamos voltando, aí eu não sei, só lembro desse episódio da sede, e ele tirava um maracujá, cortava, e aquilo, para saciar um pouco a minha sede. Não sei também se ele saiu com a água, se acabou, isso eu não sei contar.

P1 - E dona Delmira, os avós por parte de pai se chamavam?

R - Meu avô, João Lourenço Marques, e a minha avó não conheci, o meu avô eu vi uma ou duas vezes, não tenho muita lembrança, e a avó Emília, Emília Marques, eu não conheci, acho que faleceu muito cedo, e não tive muito contato. E meu pai tinha madrasta, e tinha àquela questão dos maus tratamentos de madrasta, e a gente não teve contato não.

P1 - E falando já dessa vinda para São Paulo, teve algum momento em que vocês se organizaram para fazer a viagem, como que vocês ficaram sabendo que vocês iam se mudar?

R - A minha mãe parece que tinha vindo para cá e depois ela foi nos buscar, eu não lembro muito desses preparativo, eu lembro da gente naquele caminhão, aí foi um momento, que eu também não sei porque, trocou de caminhão por um transporte menor, e nós sentamos em alguma coisa, que tinha umas estopas forrada, ali dentro daquele transporte, dali a pouco e o comecei a reclamar que a minha poupança estava doendo, as minhas nádegas, e com medo de falar para a minha mãe, a minha mãe muito rude, como é que eu vou falar para a minha mãe que está doendo aqui. E aí sentava de um lado, sentava do outro, chegou uma hora que eu falei: “Mãe, estou com muita dor”. Aí ela foi ver se estava com bolhas nas nádegas, mas nós estávamos sentados em cima de quê? De latas de gasolina, olha que perigo, Deus protege, diz que Deus protege o pobre, os bêbados e crianças. E eu estava com bolhas de queimadura, eu também não sei o que ela fez, eu não lembro disso, não sei o que ela fez, só lembro da dor intensa e das queimaduras. Aí depois um certo momento pegamos um ônibus, viemos naquele ônibus, o que eu acabei de falar para vocês, o que é bom a gente não lembra, às vezes, não sei se aconteceu alguma coisa boa. Aí à noite, a minha janela do ônibus não fechava, lá vem alguém que fez xixi em um pinico, que foi jogar por onde? Pela minha janela. Advinha o que aconteceu? Eu tomei um banho de xixi. E eu não lembro quais eram as providências que a minha mãe tomava, acho que por isso que eu sou tão nojenta hoje, por isso, deve ter contribuído. Aí chegamos em um lugar que tinha uma escada rolante, eu não sei onde que era, e eu fiquei olhando para aquele negócio encantada. Alguém me perguntou: “Você quer andar?”. Eu falei que queria, aquela pessoa pegou na minha mão e me levou de escada rolante e trouxe.

P1 - Isso já tipo no começo dos anos 60?

R - Por aí, se eu nasci em 54, foi assim uma experiência incrível. Aí pegamos um trem, olha só, então eu lembro sim, dessas coisas, pegamos um trem, eu sei lá se eu estava com fome do que aconteceu, alguém comendo amendoim, tinha uma vargem de amendoim no chão, olha como as coisas marcam. Eu com essa herança indígena, sobreviver é fácil. Aí alguém deixou cair uma vargem de amendoim, eu desesperada, eu tinha vergonha, eu ficava inibida, dei um jeito de pegar aquela vargem, de aquele amendoim, que eu nem conhecia, nem sabia o que era, abri aquilo e comi, eu achei delicioso, eu saboreei aquilo. Alguém deixou cair uma vargem de amendoim e eu olhei para aquilo, por mais que eu tentasse resistir, porque eu tinha vergonha de pegar alguma coisa do chão, também não sei se era fome, não sei se por curiosidade, eu peguei aquele amendoim, abri e comi, foi a coisa mais deliciosa que eu já comi em toda a minha vida, que maravilha, mas eu comi escondido, porque senão a minha mãe ia ficar muito brava comigo, também não sei se ficaria, mas a gente tinha o receio de levar umas belas de umas broncas. Aí eu não lembro muito o que aconteceu, nós viemos parar aqui na periferia de Osasco.

P1 - Como foi essa chegada? As primeiras lembranças?

R - Não lembro, não lembro muito, eu lembro de uma casinha muito ruim, lá na periferia de Osasco, no bairro Rochidale, morávamos nós, eu não lembro muito da minha irmãzinha, mas ela já estava junto, acho que também não lembro muito que tamanho tinha aquela casa, mas era muito ruim a moradia. Ficamos um tempo lá, depois mudamos para uma outra casinha, no bairro de Osasco também, Presidente Altino, um cortiço, na verdade, tinha, sei lá, quantas famílias, muitas famílias. E ali nós passamos grande parte da nossa vida, eu e os meus irmãos, aí já maiorzinhos. Eu não sei se foi lá, acho que já morávamos lá, precisávamos estudar, não tínhamos documento, o que meu pai fez? Meu pai foi lá no cartório, casou e registrou os quatro filhos no mesmo dia. Com essa o que aconteceu? Ele registrou alguns filhos com data errada, porque eu, segundo a minha mãe, eu nasci no dia 26 de novembro, mas ele registrou no dia 16, a minha irmã eu não lembro, sei que ele deu um ano a mais para a minha irmã, um ano a menos, a menos. Aí fomos para a escola, lembro dos meus dois irmãos na escola, meu pai tinha um pouquinho mais de discernimento, porque ele queria que os filhos estudassem, matriculou lá na escola lá em Osasco, ainda tem, de vez em quando eu passo lá.

P1 - Que se chama?

R - Na época era Grupo Escolar Frei Gaspar da Madre de Deus, hoje eu acho que é Escola Estadual Madre de Deus, mas não prestei muita atenção, porque quando eu passo eu fico olhando os detalhes, olha, mudou, mudou.

P1 - Você lembra do primeiro dia na escola, como é que foi?

R - Lembro, eu toda acanhada, eu toda feia, gente, eu era o ser mais feio que tinha na face da terra, eu era muito feita. Aí toda envergonhada, chegamos lá na escola com aquele caderninho, brochura, brochuras. Eu aí eu fiz cobrinha, bolinha, coordenação motora, mas a gente lá sabia o que era isso. Aí quando cheguei de volta em casa meu pai queria ver a lição, mostrei para ele e falou: “Mas todo o sacrifício de mandar para a escola para você fazer isso? Isso você faz em qualquer lugar”. Mas assim, deu certo, porque daí eu sempre fui muito aplicada, os meus irmãos a mesma coisa, os dois menores, eu não lembro muito da minha irmã. E aí fomos, naquela época a gente concluía a quarta série. Aí eu não sei respondi do primeiro dia, eu não lembro muito, eu lembro da lição da Professora, e ensinando fazer aquelas cobrinhas, aquelas bolinhas, o uzinho, e por aí foi.

P1 - Nessa primeira época de escola, nesse começo, como que era a rotina de vocês, como que vocês iam para a escola, quando vocês voltavam, o que vocês faziam no tempo livre?

R - Então, eu já falei que nós morávamos em um cortiço, era horrível, eu achava horrível, eu tinha vergonha de morar naquele lugar, mas era o que tinha para o momento. O que é um cortiço? Muitas famílias morando no mesmo local, no mesmo terreno, casinhas. A nossa casa tinha um quarto, cozinha e só. Era de cimento preto, cimento queimado, ali nós vivíamos.

P1 - O banheiro era compartilhado?

R - O banheiro era compartilhado, um único banheiro para todas aquelas famílias, era horrível. Nem se pode determinar banheiro, era uma privada, um negócio lá que tinha um buraco, que tinha um odor, era insuportável. O tanque também era comunitário e as mulheres se organizavam, quem lavava roupa tal dia, quem usava o varal tal dia, tinha semana de limpar banheiro, de lavar. E ali tinha o banheiro das necessidades, e do lado seguinte tinha um quartinho que era para o banho, e aí nós tomávamos banho de bacia que não tinha chuveiro. E era isso, e aí nós íamos para a escola, se fosse de manhã à tarde nós ficávamos por ali, brincando, os meus irmãos moleque, iam brincar na rua, tinha mato, eles brincavam no mato lá com a molecada, mas quando estava perto do meu pai chegar, todo mundo dentro de casa, meu pai queria chegar e encontrar todos dentro de casa. E a minha mãe não podia trabalhar, porque meu pai falava: “Tem quatro filhos aí, você vai trabalhar e quem vai cuidar dessas crianças, vão ficar largadas, abandonadas, o que vai ser?”. Meu pai ele tinha a sabedoria dele.

P1 - Ele trabalhava em quê?

R - Ele trabalhava em fábrica, eu lembro dele trabalhando em fundição, e a gente não se inteirava muito dessa situação, eu sei que ele saía cedo para trabalhar de bicicleta, e voltava à noitinha. Mas muito difícil, passamos por necessidades diversas, de em todos os aspectos, desde necessidade alimentar, necessidade de vestimenta. Naquela época não se doava muito coisa, acho que não sobrava para todo mundo. Então era assim, mas o que dava para aproveitar. Era legal que a minha mãe, quando ia fazer um vestido para ela, ela já comprava a roupinha, o tecido lá, e já fazia para ela, para mim, e para a minha irmã, do mesmo, tudo igual, agora está na moda, na época que eu ficava, meu Deus, que vergonha. Acho que eu também tinha esse tino aí. E para os meus irmãos também, ela comprava, fazia o calçãozinho, ela teve que se virar, aprender a se virar, e a camisa, ela fazia aquelas camisas para eles, e lavava roupa, vinha muita gente de lá, muitos homens para trabalhar aqui, e ela lavava roupa para aqueles homens para ganhar um dinheirinho para ajudar no sustento de casa, que dificilmente dava, porque quatro crianças em casa, criança, nossa, devora tudo que acha pela frente, hoje não tanto porque a oferta é maior, mas naquela época não, não tinha grande oferta assim, de alimento. Íamos à feira de vez em quando, porque comprava o básico, banana, laranja e só, era o que dava. Maçã quando comprava uma dividia ali para os quatro, eu lembro a minha mãe cortando a maçã. O pão era uma bengala, cortava aquela bengala ali, dividia, um pedaço para levar para o lanche da escola, que não tinha lanche na escola, hoje tem, nós levávamos daquele jeito, quando tinha, quando não tinha não levava e pronto acabou. Mas era assim, foi uma infância sofrida, mas a gente não percebia aquele sofrimento.

P1 - Como é que era o dia a dia no cortiço, a relação entre as famílias, você lembra?

R - Sabe que era boa, não era ruim, quando a vizinha acaba o açúcar ia lá na porta da outra: “Você me empresta uma xícara de açúcar?”. “Você me empresta um negócio de arroz, uma coisinha de arroz, um café?”. Então era comum isso, era normal, mas aí quando no dia que fazia a compra, devolvia, eu lembro a minha mãe devolver a xicrinha de arroz, uma xicrinha de açúcar, era comum. Uma coisa que marcou muito, meu pai trabalhava nessa empresa, e era na Vila Anastácio, nós morávamos lá na Presidente Altino, eu já estava grandinha, que eu lembro muito bem disso, estava construindo a Castelo Branco, a Rodovia, e ele pegava aquela parte de bicicleta de madrugada, não tinha a violência que tem hoje. E tinha a cooperativa, a cooperativa vendia para o funcionário os alimentos, e acho que descontava no pagamento, no dia do pagamento descontava, e a gente não associava muito isso, aí meu pai: “Faz a listinha que amanhã nós vamos fazer a compra, amanhã nós vamos lá na cooperativa”. Fiz a listinha, eu que fazia, a listinha, e escrevia, nossa, que legal: “Pasta de dente grande”. Aí meu pai: “Pasta de dente grande? E para dente pequeno, tem pasta?”. Meu pai, nossa, ele tinha um senso de humor maravilhoso, eu amo os homens da minha família, e mulheres, é só a minha filha e a minha irmã. Eu gosto da minha mãe, mas comparado ao amor que eu tinha pelo meu pai, coitadinha, nem se comparava. E aí lá fomos nós fazer a compra, de madrugada, no trem, porque eu ia com ele, de trem, ele não ia de bicicleta. Pegávamos trem até Presidente Altino, até a Vila Anastácio, cedinho, que era para pegar a cooperativa antes de fechar, porque fechava para o almoço, meio dia e só abria às 14:00. Eu já maiorzinha, com as sacolas ali, sacola de feira. Aí fomos fazer a compra, quando chegou a nossa vez, quando a cooperativa fechou, aí o meu pai desesperado, coitada, a minha filha está com fome, mas ele não falou nada. Aí ele falou: “Filha, eu vou lá na empresa, sei lá porque era o dia de trabalhar aquele dia, e vou ver se eu consigo um lanche para você, fica aí na fila”. Lá foi, uma inocência só, não tinha receio de deixar a gente ali esperando, hoje a gente não deixa nunca uma criança. Aí ele ficou para lá, demorou, não sei o que, aí ele chegou e não falou nada, aí eu falei, acho que perguntei: “O pai não trouxe o lanche?”. Aí ele deu uma desculpa qualquer. Aí, nossa, isso foi horrível, aí eu vi ele contando para a minha mãe, dormíamos todos no mesmo quarto, os casais acho que era muito discretos, porque eu nunca percebi nada, ou nós éramos realmente inocentes, porque hoje não dá para compartilhar quarto com criança. Aí eu vi ele contando para a minha mãe. Aí quando antes, fizemos a compra, ele comprou lá um biscoito: “Abre, filha, para você comer”. Aí eu falei para ele: “Mas não é melhor chegar em casa para dividir com os meninos?”. “Não, esse eu comprei para você, para você ir comendo”. “Está bom”. Já devia ser de tarde, porque se a cooperativa ia abrir às 14:00. Aí eu vi ele contando para a minha mãe lá à noite, que ele tinha ido lá perto da empresa, encontrou um amigo, e o cara ofereceu uma pinga para ele, tomar uma aí, aí ele falou, não, bebida eu não quero não, se você puder me dar um pão com alguma coisa, o cara falou: “Eu vou ficar pagando lanche para marmanjo? Quiser tomar uma, toma, agora, eu não vou ficar pagando lanche para marmanjo não”. Ele contando para a minha mãe, nossa, eu ouvi aquilo, meu Deus que tristeza que meu pai deve ter sentido. E eu pensei comigo, se eu imaginasse que isso iria acontecer, eu nunca iria falar para ele trazer um lanche, nunca, eu sempre fui assim. E ele contou isso para a minha mãe, nossa, que horrível ouvir isso, eu preferia não ter ouvido.
P1 - E como você assimilava isso?
R - Eu me achava assim, horroroso, pobre em demasia, sem perspectiva, sem visão de crescimento, de sair daquela vida horrenda, feia fisicamente, eu achava que eu não devia nem ter nascido, no fundo eu me depreciava mais ainda, não sabia o que era isso. E aí aos dez anos eu arrumei um emprego em uma casa de família, dez anos, aí se eu trabalhasse de manhã, se eu estudasse de manhã à tarde eu ia para a escola, e vice-versa, dez anos. Então entrei na escola um pouco atrasada, dez anos, acho que eu estava na quarta seria, bom, enfim. Aí fiquei nessa casa de família, foi bom que eu aprendi um monte de coisa, aprendi como cuidar de uma casa, as pessoas me tratavam bem, não fazia diferenciação do alimento que eles iam me oferecer, se era diferente do deles.

P1 - Você fazia todo o serviço do lar?

R - Fazia, menor roupa, com roupa eu não mexia, mas aprendi a fazer tudo, lavar louça, limpar a casa, encerrar, limpar, tudo. E aí passou o tempo, estudávamos até à quarta série, depois para entrar no ginásio antigo, o ginásio tinha que fazer a provinha, tinha que fazer, eu não lembro porque eu não fui para o ginásio, acho que tinha que estudar à noite, eu não sei porque eu não fiz. Parei na quarta série e fiquei naquela casa até os 14 anos, aos 14 anos meu pai saiu comigo para arrumar emprego, existia muita fábrica, produção. Aí meu pai saiu comigo, no primeiro dia que ele saiu comigo eu arrumei emprego lá na Vila Anastácia, uma empresa de fósforos, chamada Fiat Lux. Aí fiquei lá até os 17 anos, lá na linha de produção. Aí eu já havia conhecido meu marido, muito jovem, conheci meu marido, nós noivamos, e aos 17 anos eu me casei, 17 anos. E casei 17 de junho de 1932, acho que foi isso.

P1 - E como vocês se conheceram?

R - Então, tinha muito aquelas festinhas de família, aqueles forrós dos nordestinos, hoje não é mais comum, mas era muito comum, final de semana, em uma casa, fazer lá umas festinhas, e aí rolava forró, e eu conheci meu marido. Eu não sei dançar nada, mas eu conheci ele, ali a gente começou aquele encantamento de criança, de adolescente, eu devia ter por volta de uns 13 anos, de 13 para 14 anos, e aos 17 anos nos casamos.

P1 - Vocês ainda moravam no cortiço?

R - Não, aí nós já tínhamos mudado para o Jaguará. Quando eu arrumei emprego eu já morava no Jaguaré, é um bairro, chamava Morro Continental, também não era diferente do cortiço, era igual, e ali morava todos aqueles conhecidos, parentes, que vem do Nordeste, que vinham, e aí teve a festinha lá, não, quando eu conheci ele ainda morava lá em Presidente Altino, aí depois que nós mudamos para cá. E aí nós nos casamos, e vim morar para cá na Zona Sul.

P1 - Eu tenho uma dúvida que ficou aí, quando vocês chegavam em São Paulo, os seus avós maternos ficaram?

R - Ficaram lá.

P1 - E teve algum momento da vinda deles?

R - Vieram algumas vezes, meu avô veio, que daí vinha, de vez em quando visitar a gente.

P1 - Seu avô Marçal?

R - Meu avô Marçal, porque o meu avô pai do meu pai, acho que ele faleceu logo, eu não tenho muito essa história dele. Meu avô vinha, ficava com a gente um pouco e voltava. A minha avó eu não lembro aqui, eu não lembro, mas deve ter vindo também, como a minha ligação mais fonte era com meu avô eu lembro dele, e eu ficava tão feliz quando ele vinha.

P1 - Você lembra de algum momento especial de visita do seu avô?

R - Olha, eu ficava muito feliz quando ele vinha, eu ia trabalhar lá na fábrica, e eu vinha desesperada para chegar, para ficar perto do meu avô, e momentos especiais, não, era só mais ficar perto dele, ficar conversando, e passava uma novela, Nino Italianinho, que era com Juca de Oliveira, hoje eu sei que era o Juca de Oliveira, e ele ficava ali assistindo, e ele também não entendia como que àquelas pessoas estavam lá na TV, nós já tínhamos comprado uma TV nessa época, eu vou contar para vocês a história da TV, é muito legal. Então, quando nós morávamos lá no cortiço lá em Presidente Altino, nós não tínhamos televisão, e aí a vizinha, dona Irene, ela tinha três filhas, Sônia Maria, Maria Sônia e a Vera, e a dona Irene, eu não sei, ela era cozinheira em restaurante, também morava lá no cortiço e ela tinha televisão, e nós assistíamos a televisão dela, a luta livre que nós gostávamos, luta livre, e aí ela abria a janela para nós assistirmos a TV. No dia que a mulher chegava com o capeta no corpo, ela metia a janela na nossa cara, e era bem no dia do último campeonato da luta livre, a gente acreditava naquilo, nós acreditávamos nos personagens, e a gente ficava muito triste, porque a gente não via o final da luta. E aí quando nós mudamos de lá, que nós viemos para o Jaguaré, e eu já trabalhava, meu irmão trabalhava, nós começamos a trabalhar muito cedo, aí meu pai comprou uma televisão, e aí meu avô ficava bobo lá vendo a televisão, ele: “Como é que pode, onde que estão essas pessoas?”. E nós também não sabíamos explicar para ele. E eu vinha correndo para sentar com meu avô e assistir a novela, Lino Italianinho. E era muito bom, era bom, eu me sentia muito acolhida, e ele passava aquele amor dele por mim. Não sei se eu expliquei para você.

P1 - Não teve o momento de eles virem morar aqui?

R - Não, só visita.

P1 - E como foi o dia da chegada da televisão em casa?

R - Eu não lembro muito, sabe que eu não lembro, eu não lembro, era televisão preto e branco, mas eu não lembro. E antes disso nós ouvíamos uma novelinha, radionovela, e era assim, sagrado, meu pai chegava e ele queria ouvir a Voz do Brasil, e nós sentávamos ali para ouvir a Voz do Brasil. Aí a gente não entendia nada, mas tinha que ouvir, ouvia, e era com a porta fechada, a gente não sabia, porque era época da ditadura, porta trancada, baixinho, só nós. E aí depois passava, não sei se era antes, acho que era antes a Voz do Brasil que passava uma radionovela chamada Juvêncio, o Justiceiro do Sertão, era tão legal, gente, era espetacular, eu voltava às minha origens, o pouco que eu lembrava eu lembrava, porque tinha o som do cavalo andando, o som dos animais, era muito bom e nós acompanhávamos a novelinha, e depois a Voz do Brasil, acho que era isso.

P1 - E tinha alguma rotina desse fim do dia, de jantar e escutar todo mundo junto, como é que era essa rotina na família?

R - Então, quando estava perto do meu pai chegar, todo mundo entrava, lavava a mão e o pé, porque banho eu não tomava muito não, era água fria, a mão e o pé, na bacia, e ficava ali esperando meu pai chegar para jantarmos juntos, sempre jantávamos juntos, o que tivesse, e era interessante que a minha mãe e o meu pai comia no mesmo prato, ela tinha o talher dela e ele o dele, mas comiam no mesmo prato, era interessante. E nós sentados ali em volta da mesa, acabava ali, e vinha a novelinha e depois o Juvêncio, não, e depois vinha Voz do Brasil, ou era vice-versa, não lembro muito. E que nós tínhamos que fazer? A oração antes de dormir, todos, meu pai colocava todos nós lá, e o pai nosso, e a salve rainha, e ele não falava credo, eu creio em Deus pai, e bênção pai bênção mãe e cama, e tínhamos que dar bênção todos os dias, todas as noites.

P1 - E o que vocês faziam no fim de semana?

R - Às vezes, nós íamos para casa de parentes, ou os parentes vinham até em casa, e ali a gente almoçava, e conversava, nós almoçávamos e conversávamos sobre fatos da vida, e aí nós acabávamos nos inteirando dessas passagens.

P1 - Delmira, o que essa menina queria ser quando crescesse?

R - Essa menina queria ser quando crescesse, queria superar todos esses obstáculos que eu achava que era impossível, e uma maneira que eu achei de superar isso foi me casando muito cedo, eu me casei cedo. Eu gostava muito do meu marido, foi uma paixão assim de adolescente, e ele era uma pessoa, não é porque morreu, costumo dizer que não é porque morreu que virou santo, muito boa, e eu falava para ele: “Você é a melhor pessoa do mundo, melhor até do que meu pai que já morreu”. E eu tinha essa expectativa de um dia eu ia passar por aquela fase, de todos os obstáculos que eu ia conseguir ultrapassar, eu tinha essa expectativa, mas não sabia como, que caminho seguir. E aí eu já tinha uns três meninos, quando eu um dia falei para ele que eu queria voltar a estudar, porque eu só me dedicava à casa, era casa, era casa de manhã, tarde e noite. Ele trabalhava à noite, para ele não acordar durante o dia eu fazia faxina à noite, ficava à noite inteira faxinando, limpando janela, limpando não sei o que, limpando não sei o que, lavando banheiro, aquelas coisas de cuidar de casa. Deve ter acontecido uma coisa muito grave.

P1 - Eu entrei no G1 aqui, a matéria principal deles, a manchete, é falando da linha azul e lilás.

R - Então é linha lilás.

P1 - Que deram falhas no metrô.

R - Então é a linha lilás.

P1 - E tem linha de grande assalto na Marginal Tietê, Zona Norte.

R - Mas o Tietê está longe, nós estamos na Zona Sul. Mas a linha lilás tem um terminal, João Dias, bem aqui, que tem a estação do metrô, da linha lilás, bem aqui, e desde cedo que eles estão falando.

P1 - Então eles já devem ter até colocado como manchete, porque deve haver alguma coisa falando.

R - Está aqui no colo, não tem problema?

P1 - Não. Dona Delmira, então a última pergunta é como você chegou até a casa da dona Janete e do senhor Militão?

R - Então, não sei muito, não sei se foi por indicação, mas nós passávamos por necessidades das mais diversas, e alguém deve ter indicado, não sei muito bem. Sei que eu fui, acabei ficando, e eu estou chutando dez anos, mas pode ter sido um pouco menos ainda, porque eu não tinha terminado ainda a escola, e fiquei lá até conseguir um emprego na empresa de fósforos.

P1 - E onde era essa casa?

R - Lá em Presidente Altino, bairro de Osasco.

P1 - Como você fazia, como era a rotina, você acordava? Conta para a gente como é que era a sua rotina, e o que você pegava de transporte para chegar?

R - Não pegava, eu ia a pé, era perto, próximo da minha casa, eu ia a pé, se eu estudasse à tarde, que daí eu não lembro, aí nós invertíamos, ela invertia, não podia deixar de estudar, ela também nunca nem sugeriu, porque de repente pela falta de conhecimento, eu não sei se meu pai concordaria, que meu pai tinha um pouco de discernimento, não sei, mas acho que se houvesse a proposta devido a tudo que nós passávamos, meu pai abriria mão da escola para ir trabalhar, não sei se ele faria isso, nunca perguntei, nunca foi questionado, mas eu estou aqui supondo que, porque nós precisávamos sobreviver. E aí eu ganhava um dinheirinho, chegava lá com dinheirinho, e dava na mão dele, e aquilo ajudou bastante. Um fato assim bem interessante, ela tinha um armário bem bonito, azul, armário de cozinha azul, uma mesa azul, umas cadeiras azuis. E ela foi trocar os móveis, aí nós tínhamos tinha lá um armário velho, horroroso, de madeira, feio, e os bancos na minha casa, aí eu perguntei para ela, criei coragem, eu sempre fui muito envergonhada, muito contida, se ela venderia para mim os moveis, eu não lembro, eu sei que os móveis foram parar na minha casa, a minha cozinha ficou tão bonita com aquele armário azul, aquela mesa azul e aquelas cadeiras azuis, ficou tão bonita, ficou bem legal. Eu não sei quanto que ela cobrou, eu não lembro, eu sei que os móveis foram parar na minha casa. E sabe como que nós dormíamos lá na minha casa? Eu não falei isso para vocês, falei que era um quarto e cozinha, tinham duas camas, eu não sei se era cama ou se eram camas de casal as duas, sei que tinham duas camas, dormia meu pai e minha mãe em uma, e acho que a minha irmãzinha dormia com eles, e eu e os meus dois irmãos na outra cama, era assim que nós vivíamos. Roupa de cama, de banho, a minha mãe conseguia um saco, sabe saco de padaria que tinha, não sei se hoje ainda tem, e fazia, ela costurava um saco no outro e fazia os lençóis de cama, era aquilo. As nossas lingeries, se pode se dizer assim, ela fazia a minha e a dela, também de saco, e dos meus irmãos eu não lembro, das nossas calcinhas, eram feitas de saco, ela comprava aquilo, branqueava lá na água sanitária, aí fazia, colocava, era legal, colocava elástico na perna e o bumbum não caía. E foi assim, gente, não vamos chorar.

P1 - Quer tomar uma água?

R - Não, está bom.

P1 - E tinha alguma mania da família da dona Janete, que fazia, e que não gostava, ou até de serviço mesmo?

R - Não, não, a única coisa que eu achei assim, que ela abusava um pouco de mim, e começou a abusar, porque o sogro dela morava nos fundos da casa, esqueci o nome do homem, acho que era seu Antônio. E aí tinha dia que ela mandava limpar a casa do senhor Antônio, era uma bagunça, que seu Antônio morava sozinho lá. E eu nunca falei isso, eu só pensava eu ia falar isso para quem? Eu não fui contratada para limpar a casa do senhor Antônio, fui contratada para limpar a casa dela, e era casa grande, ela era, o marido e um bebê, Sérgio, aí depois ela teve um bebê, Marco Antônio, então eu fiquei bastante tempo lá. E o quinta era bastante grande, eu não lembro de lavar o quinta, eu lembro de varrer, não lembro de mangueira, eu lembro de varrer aquele quintal. E foi assim, aí eles tinham lá um pé de caqui, eu não como caqui por nada nesse mundo, e pobre, pobre tem que comer o que os outros não quer. Aí ela dava o caqui para a gente, eu levei o tal do caqui para casa, eu passei tão mal com aquele caqui, olha, tão mal, o meu irmãozinho lá, no Ari, coitadinho, meu Deus, passou tão mal. Eu não como caqui por nada desse mundo. Então quando tinha o tal do caqui lá na época eu levava o caqui para casa, mas não era assim de doar, está sobrando pão, está sobrando, nada, isso não, eu recebia meu salário. E as roupas dela, que ela conseguia lá com as irmãs, a minha mãe reformava para nós. Mas foi bom, daí ela me levou para Aparecida do Norte, passei mal, pobre é uma desgraça, nunca saí, passei tão mal naquele lugar, foi a primeira viagem assim, que eu fiquei, eu não sei se nós fomos de ônibus, teve uma história, eu não lembro, mas eu fui para Aparecida do Norte com eles, com a família.

P1 - E teve alguma lembrança dessa viagem, que você viu lá?

R - Eu me sentia, assim, uma intrusa, eu não fazia parte da família, mas eu estava junto, então era a empregadinha, mas a minha mãe fez um vestido bonitinho para mim, comprou um sapato novo, a irmã dela fez um penteado. Mas eu sabia que no fundo eu não fazia, e estava toda a família dela, eu não fazia parte da família. Aí fomos na hora da alimentação, eles levaram, fomos naquela área de piquenique, não sei se ainda tem, faz muito tempo que eu não vou para lá. E aí eu comi alguma coisa que não fiquei bem, passei muito mal.

P2 - Eles cuidaram bem de você?

R - Cuidaram, cuidaram, fizeram ali o que podia fazer, também não levaram em nenhum hospital, acharam que não era necessário, mas eu fiquei muito mal. Não sei se foi um daqueles frios, não tinha o hábito, não sobrava, porque eu não conhecia, pobre nunca come melado, eu tinha que comer aquela coisa.

P1 - Mas o convite para você ir para essa viagem era para quê?

R - Foi espontânea, não sei, não foi para cuidar do bebê, não foi para nada, eu não sei também, me convidaram.

P1 - Qual o nome do seu esposo?

R - Joaquim.

P1 - O Joaquim. Como foi levar o Joaquim para casa para apresentar para a família?

R - Na verdade, a coisa acabou acontecendo assim muito naturalmente, porque já fazia parte ali da convivência, não fazia parte. Nós fomos lá na festa de família, aí eu vi o Joaquim, achei ele assim impactante, e ele também, foi olhar, ele tinha uma camisa azul com uma golinha branca, e aí nós colocamos o nome dele de Golinha Branca, as meninas todas enlouquecidas por ele, porque ele era grandão, morenão, bonitão. E aí começou, ele começou a frequentar minha casa assim e conheceu meus primos, que era muito comum, aos finais de semana, aparecer lá e tal e tal. Aí eu não sei como que foi, meu pai ficou sabendo que nós estávamos, fofoca, vizinho fofoqueiro, que nós estávamos namorando. Aí meu pai chamou meu pai, que chamou e conversou, aí ele falou que ela tinha as melhores das intenções comigo. O que era as melhores das intenções? Um dia casar, meu pai falou que não era para demorar porque ele não tinha criado filha para ficar com o cara alisando banco, lá na casa dele, bem assim, curto e grosso. Mas tinha uma convivência boa, muito respeitosa, meu pai gostava muito dele, era um ser muito diferente.

P2 - Posso voltar só um pouquinho, conta para a gente como é que foi trabalhar na fábrica de fósforo? Eu estou curiosa. Como é que era?

R - Menina, era diferente, porque eu não conhecia a fábrica de fósforo de palitinho porque era dividida, então tinha a divisão dos fósforos de luxo, que eram aquelas carteirinhas que fechava, que tinha só aquela listinha, eu não fiquei na parte de fabricação, eu fiquei na parte de embalagem, de embalar, então eu tive um pouco de sorte, porque eu não conhecia a parte de fazer os palitinhos e a caixa assim, comum. Então eu já peguei aquela parte de só montar aquele que parecia um envelopinho, não sei se vocês conheceram. Grampear e montar nas caixinhas, que aquilo acho que era produção limitada, eu não sei como que era, que fazia para o Airton Senna, para o Pelé, para a Editora Abril. Então eu peguei mais aquela parte de luxo, mas foi bom, eu gostava, eu gostava bastante, não tinha outro conhecimento também, não conhecia nada mais.

P2 - E você saiu quando casou?

R - Saí quando casei, saí para casar, fiquei lá até casar.

P1 - E como foi esse pedido de casamento?

R - A coisa foi surgindo naturalmente, meu pai já tinha falado que não ia ficar muito tempo, mesmo assim nós ficamos algum tempo namorando, não tinha muita condição financeira, ele morava aqui em Santo Amaro porque ele trabalhava para cá na Zona Sul, e eu morava lá no Jaguaré, então ele ia só no final de semana, no sábado, que ficava lá, domingo, dormia na casa dos meus primos, depois vinha para cá, e aí em uma hora que, vamos casar. Aí alugamos aqui um quarto/cozinha aqui perto, próximo da João Dias, ficamos lá um tempo, e aí depois mudamos para cá para o bairro.

P1 - Onde o Joaquim trabalhava?

R - Ele trabalhava em empresa de material plástico, que fazia peças de plástico. Como é que fala aquilo? É injeção plástica, de injeção, ele fazia parte lá da supervisão, essas coisas, encarregado, da área de produção. Aí eu estava já esperando a Marlene, ele sofreu um acidente lá com a tal da injetora, ele foi abrir e a mão dele esmagou lá dentro, ele ficou muito tempo afastado do trabalho por conta desse acidente, e ele ficou com defeito físico, mas continuou trabalhando, e recebia lá, ele não foi indenizado, ele recebia o benefício, por conta do acidente da mão, mas ele continuou trabalhando.

P1 - E antes disso, o que era o namoro de vocês, como é que era o namoro?

R - Namorava com o pai e com a mãe, o irmão, meu pai não deixava a gente sair, aquelas bobeiras, que hoje é tão natural, mas ele tinha muito cuidado com isso, eu também morria de medo, eu tinha muito medo, gente, eu casei virgem, uma tragédia à noite de núpcias, não houve. Primeiro que tudo acontece comigo, no dia do casamento, nós casamos no civil de manhã e no religioso à noite, e indo lá para o cartório a pessoa bateu o carro, nós quase morremos, indo, na ida, quase morremos. Aí eu fiquei toda machucada, os demais menos, e à noite fomos casar no religioso toda arrebentada. E eu não tinha visto o Joaquim sem roupa. Aí ficamos lá para a minha casa, não viajamos, não tinha condição, não tinha, quando viemos para cá, quando eu vi aquilo eu custei, falei: “Meu Deus, é isso?”. Comecei a chorar, chorar, desesperada. Aí eu fiquei 15 dias com febre, então núpcias não houve, foi acontecendo, mas foi horrível, uma experiência ruim.

P2 - Ninguém tinha contato para você como é que seria?

R - Eu sabia porque as colegas contavam, pelo o que os outros falavam, mas eu não imaginava que na prática seria do jeito que foi.

P1 - E como o Joaquim lidava com essa situação?

R - Ele também, acho que muito encabulado, os dois matutos, muito encabulado e também não abria, não falava, que era natural, que era daquela forma, e a coisa foi acontecendo, mas prazerosa não foi, foi horrível.

P1 - E como que vocês foram se constituindo como casal, esses primeiros anos de casamento?

R - Fui ruim, não foi bom não, a relação era bom, a relação diária era boa, era muito boa, ele era uma pessoa muito do bem, mas a parte íntima era ruim, eu não gostava, não era bom, então era tortura.

P1 - Mas isso mudou ao longo dos anos?

R - Não, não, não, aliás, não mudou, não sou uma pessoa muito adepta à parte sexual.

P1 - E Delmira, como que ficava a relação com a sua família, vocês se visitavam?

R - Sim, sim, frequentemente, íamos muito lá para a casa da minha família ou a minha família vinha para cá, acho que nós nunca ficamos uma semana sem nos visitar, por mais que, às vezes, eu quisesse me distanciar um pouco, eu só me distanciei um pouco mais quando o Joaquim adquiriu uma tuberculose, na época o cara ia morrer, quem pegasse tuberculose morreria, ele já tinha perdido um irmão de tuberculose, e ele se contaminou, contagiou, que é contágio. Eu tinha o Valter e a Marlene, eu não tinha o Juninho, essa tuberculose, e nós não sabíamos o que era, uma gripe forte e febre, não sei o que, tal e tal, e o médico, aí um dia o médico falou para ele fazer um exame de escarro, fomos lá na Lapa e fui com ele, aí constatou que era tuberculose. O médico olhou as possibilidades que ele poderia escolher os lugares de tratamento, e ele escolheu Campos do Jordão, muito sem conhecimento, muito sem nada, e lá fomos nós para Campos do Jordão de ônibus, eu, ele e meu pai, meu pai sempre muito presente, e se vocês perceberem eu falo do meu pai com muito carinho, não é porque morreu não. E fomos para Campos do Jordão próximo do natal, e lá o Joaquim ficou internado no hospital, não vou lembrar agora, mas depois eu vou lembrar.

P1 - Que era referência?

R - Era referência, era um hospital dirigido por freiras, ele ficou seis meses lá, e foi próximo ao natal, foi o primeiro natal que eu fiquei sozinha com meus filhos. E natal e ano novo a família vinha para cá, e ele ficou para alguém, e viemos, e aí acho que nas vésperas de natal meu pai veio em casa e falou: “Filha, vamos lá para casa com as crianças”. A minha mãe não falou isso, eu queria que a minha mãe falasse. Aí eu falei: “Não, pai, obrigada, vou ficar aqui com os meninos”. “Mas você vai ficar aqui sozinha com eles?”. “Vou, vou ficar aqui sozinha com eles”. E fiquei com eles, e aí comecei a perceber que as pessoas não nos amam o suficiente, não sei se é egoísmo, para nos abraçar, naquela hora precisava da família ali comigo, e eu não houve. E quando as pessoas iam visitar o Joaquim eu ficava com raiva, porque não iam visitar o Joaquim, iam para viajar, iam para conhecer, para fazer. Eu não gostava, eu preferia que não fosse. O Valter, devia ter por volta de uns três, quatro anos, muitas das vezes eu saía com eles daqui de madrugada, no colo, o Valter com essa crise de bronquite dele, ele não podia se cansar, se ele cansasse ia parar no hospital, ele no colo e eu arrastando a pequenininha, lá na rodoviária, era lá na Luz, como é que chamava, rodoviária, eu com os dois de madrugada, saía daqui, ia, carregava as coisas para ele, visitaram lá em Campos do Jordão e voltava no final do período, com aquelas duas crianças.

P2 - Com que frequência você fazia esse trajeto?

R - Eu ia toda semana, eu ia no meio da semana e eu ia no final de semana, raríssimas as vezes eu deixei as crianças.

P2 - E como que foram esses seis meses de ausência do Joaquim, como é que você lidou com essa situação com três crianças?

R - Duas, na época tinha os dois. Eu não lembro muito quando que foi, gente, tem algumas coisas que a gente faz questão de apagar. Eu me senti meio abandonada, sabe, porque fiquei com aquelas crianças, tudo bem que eu estava para cá, e raríssimas as vezes que deixava as crianças com uma vizinha, para poder visitar o Joaquim foi difícil, foram seis meses duros assim, e eu vou falar no aspecto humano, porque o financeiro ele recebia lá do INSS, ele já tinha o benefício, ele recebia o salário, a empresa continuou pagando o salário normalmente. Então a parte financeira estava bem. Ele tinha um Fusquinha, mas eu não dirigia.

P1 - Ele tinha um Fusquinha?

R - Ele tinha um Fusquinha, mas eu não dirigia, então o Fusca ficava lá na garagem e eu pegava as crianças e ia, e eu pensava: “Poxa, por que a minha mãe não está comigo nesse momento, para me ajudar?”. Precisava de ajuda. Mas eu sobrevivi, e aí eu comecei a me afastar, quer dizer, que não hora que eu posso oferecer o jantar, eu sou amada, e na hora que eu preciso, não? E foi assim, foram seis meses.

P2 - E os seus irmãos, também não te ajudaram? A sua irmã? Era nova?

R - Não, a minha irmã ela já tinha, não, ela estava morando já em Minas, já tinha se casado, já tinha ido para Minas. Então era muito difícil para ela vir para cá, se ela pudesse ela viria sim.

P1 - Como foi receber a notícia da alta?

R - Nós nos preparamos para isso, ele ficou lá e eu algumas vezes até dormi lá no hospital, as irmãs abriam esse espaço, porque acho que perceberam a necessidade, e abriram um espaço, eu dormia em um quarto sozinha, um frio, gente, vocês não tem noção, que lugar é aquele, que faz um frio daquele, dormia não, passava à noite, porque aquelas coisas não aquecem. E ele melhorou, ele foi respondendo ao tratamento muito positivamente. Ele fumava muito, os médicos lá não cortaram porque deveriam ter proibido, só pediram para diminuir. Mas a expectativa não houve, porque houve aquele progresso, da recuperação dele, foi positiva, o tratamento dele, o organismo dele aceitou muito bem o tratamento, e nós já sabemos que o prazo seria seis meses, mas a gente preparo para ele vir, foi muito bom, quando ele pode vir a primeira vez, ele não veio em casa para não ter o contato com as crianças, nós nos encontramos, porque ele precisava resolver alguma coisa de banco, e aí resolvemos o que tinha que resolver e ele foi embora. Mas aí na alta foi assim, superbacana e ele veio para casa.

P1 - Não tinha a permissão de passar o Natal com ele no hospital, ou uma outra comemoração?

R - Não precisou, porque ele foi no Natal e aí no meio do ano ele já veio, já teve alta.

P1 - E teve alguma comemoração que deixou de ser feita nesse período? Ou que foi feita no hospital?

R - Não, Natal e o Réveillon que ele ficou lá eu fiquei com as crianças, eu me recolhi, eu devo ter ido visitá-lo, não lembro muito bem, eu devo ter pego as crianças e ter ido. Mas aí se alguém foi eu ficava com raiva, minha brabeira, eu pensava comigo: “Precisa de alguma coisa?”. “Não preciso de nada”. Eu não precisava mesmo de nada, o que eu precisava era esse aconchego, e como não foi dado eu também não precisava. Aí eu comecei a bloquear, sabe. Meu pai não, meu pai sempre muito presente, muito, muito, muito, muito mesmo.

P2 - Então esse período mudou você?

R - Mudou, mudou.

P2 - Na sua relação com as pessoas que gostam de você?

R - Mudou, com as pessoas, sim, mudou,

P2 - Como é que foi depois disso?

R - Eu evito procurar as pessoas, eu evito, porque se eu não sou um ser agradável em alguns momentos eu não deva ser em todos. Mas continua a convivência, continua sim, eu vivo só e eu sou só.

P1 - Delmira, a gente avançou um pouquinho, eu queria saber da primeira gravidez, como foi descobrir que estava grávida?

R - Foi assustador, eu era criança. Eu detestei ficar grávida, eu odiei, eu sofri muito, eu passei muito mal, tem coisa que até hoje eu não posso nem olhar, um enjoo durante, a Marlene tem 45 anos, eu passei muito mal, foi horrível, eu sofri muito, um parto muito sofrido, um parto, como é que eu vou falar, eu fui para o hospital por volta de 05:00 da manhã, eu fiquei lá naquele hospital sofrendo dores horrendas, uma estupidez, até às 07:00 da manhã do dia seguinte. Gente, eu não tinha informação, esse conhecimento que nós temos hoje. Quando foi por volta de sei lá que horas, eu senti uma dor de barriga, eu falei: “Bom, agora seja o que for, essa coisa vai sair daqui”. Sentei lá no vazo sanitário, olha, quando eu fui levantar eu não conseguia fechar a perna, estava nascendo, e eu não gosto de falar isso, eu não falo isso para ela. Aí passou alguém assim, eu falei para enfermeira, está acontecendo alguma coisa aqui, que eu não consigo fechar a perna. Ela olhou, sobe na cama, deixa eu ver, mal conseguia uma movimentar. Que daí que ela falou, está nascendo, que daí foi rapidinho também. E quando me mostraram a menina eu não gostei não, porque eu tinha sofrido demais, demais, eu acho que eu tive uma depressão pós-parto, que nós não conhecíamos, eu sofri muito, demais.

P1 - Como foram os primeiros meses?

R - A minha pressão foi muito ruim, porque dava uns pontos na gente, na parte ginecológica, que aquilo inflamava, que o seio inflamava, que eu tinha febre, não foi fácil. Será que eu fui para a casa da minha mãe, ela veio para cá? Não lembro, não lembro, não sei se a minha irmã veio para cá. Gente, eu não lembro disso, foi muito sofrido.

P2 - Mas você superou isso?

R - Eu superei, eu superei, a minha filha é a melhor coisa, o melhor presente que Deus tinha me dado, se eu tivesse que passar por tudo de novo eu passaria.

P1 - Qual o nome dela, Delmira?
R - Marlene.

P1 - Por que Marlene?
R - Eu não sei, eu acho que Marlene tem a ver com mar, e ela é louca pelo mar, e o Lene eu não sei porque, mas eu queria alguma coisa que estivesse voltada para a natureza meio inconsciente.

P1 - Que bonito.
R - A princípio nós queríamos Joice por causa do pai, depois eu falei, não, porque era Joaquim, não, não, eu quero Marlene, e dos meninos, do Valter ele escolheu, e do Joaquim eu escolhi.

P1 - O Valter veio depois de quanto tempo?

R - Um ano e oito meses, eu acho que as duas vezes que eu fiquei com ele ia nascer o outro. E do Valter a gravidez já não foi tão sofrida, eu enjoei menos, apesar de ter a bebê que eu tinha que cuidar, eu tinha uma bebê esperando outro bebê, mas foi menos sofrido, e eu já sabia que eu ia passar por todo aquele sofrimento, mas foi mais rápido, foi bem mais rápido.

P2 - E o pós-parto?

R - O pós-parto também foi um pouco mais tranquilo, e eu tinha que cuidar ali das crianças e eu não podia me dar o luxo, a minha irmã veio para ficar comigo para me ajudar, e eu não podia me dar o luxo de ficar com febre e ficar doentinha, eu tive tudo, toda aquela informação, mas a minha irmã estava comigo e me ajudou bastante.

P1 - E você sabe por que o Joaquim escolheu Valter, o nome?

R - Não sei, nunca perguntei, eu nunca perguntei, mas ele escolheu e eu aceitei. Eu, na verdade, queria que fosse Rolando, do meu pai: “Mas minha filha, quem vive de pé já é difícil, imagina quem já nasce rolando?”. Ele tinha um senso de humor incrível. Aí quando ele falou Valter, ele falou: “Está bom, Valter, pelo menos, a gente pensa que a criança vai está de pé”.

P1 - E que tipo de pai o Joaquim foi?

R - O Joaquim foi espetacular.

P1 - Desde o começo?

R - Desde o começo, eu era durona, eu ficava com eles ali o tempo todo. Teve um episódio muito bom, eles brigando por conta de uma latinha de leite condensado, eu falei: “Está bom, agora cada um vai tomar uma lata de leite condensado”. Eu fui lá e abri uma lata de leite condensado para cada e eles tinham que tomar tudo, o pai chegou bem na hora, e os dois chorando: “O que foi, o que você fez com os meus filhos?”. Ele falava: “Eles querem tomar leite condensado, vão tomar, se uma lata for pouco eu vou abrir mais”. Aí os dois chorando: “Estão chorando por quê? Vocês não querem o leite condensado?”. “Pai, mas a gente só queria um pouco e a mãe quer que a gente tome a lata inteira”. “Você está doida, você vai matar meus filhos”. Falei assim: “Mas assim você está tirando a minha autoridade”.

P1 - Por quê? O que você queria passar para eles?

R - Passar para eles que tudo tem limite, não é daquele jeito, não é para brigar por comida, passei fome a minha vida inteira, mas eu sempre fui uma mãe muito rígida com eles, a Marlene fala que eu quebrei estojo na cabeça dela, foi para o seu bem, assim aprendeu.

P2 - Mas você curtiu a maternidade de um modo geral?

R - Não, assim, achar lindo, maravilhoso, não, porque não é fácil cuidar de criança, eu acho que é Síndrome de Poliana, ficar feliz com o bebê chorando dia e noite gritando no nosso ouvido, e que faz cocô, e tinha que lavar frauda, frauda de cocô, eu não gostei não. Aí eu quis ter o terceiro, depois que o Joaquim foi internado. Então o Juninho é de 82, o Juninho é de março de 82, então o Joaquim ficou internado 80, 81, por aí.

P2 - Por que você quis ter um terceiro se você se sentia desse jeito?

R - Pois é, porque eu fiquei com medo de perder o Joaquim, e não ter curtido essa maternidade, porque o irmão dele tinha falecido. Aí eu falei para ele que eu queria ter um terceiro filho, que tinha que ser menino, eu quis chamar Joaquim, e nós morávamos de aluguel, e eu queria ter meu filho na minha casa. Aí nós começamos a planejar isso. Porque até então o que nós fazíamos? Festa para a família, almoço, jantares, comemorações, e gastávamos tudo. E aí esse período que ele ficou internado, aí eu falei: “Opa, chega, vou concentrar meus esforços em outro foco”. E aí eu engravidei, depois que ele voltou do hospital, não sei quanto tempo, engravidei, tinha que ser menino para chamar Joaquim, e eu fiquei com medo de perder o Joaquim. E aí foi menos agressivo para mim, eu acho que eu já tinha amadurecido um pouco aquela ideia de sofrimento. E aí nós começamos a pensar em fazer uma cesariana para eu não ter aquele impacto das dores do parto. Fizemos um pré-natal, enfim, no último pré-natal a médica falou que contra indicavam a cesariana, eu quase morri, eu não vou aguentar, eu quase morri, eu vou morrer, eu não vou aguentar, é estúpida aquela dor, não adianta falar de cócoras, não sei o que, olha, tudo mentira, quem passou sabe que é mentira. Eu não sei se vocês têm filho, eu não perguntei, então não entre nessa que é mentira. Disse que tem umas injeções, eu não sei, mas ninguém me informou também. E aí quando a médica falou que contra indicava não dava mais tempo de correr e pediu a opinião de outro médico, eu estava com a pressão alta. Aí quando chegamos no hospital eu já sentindo as dores, não houve meio, aquelas dores horrorosas eu senti sim, mas foi mais rápido, e foi rápido, eu fui de manhã e ele nasceu à tarde. Então eu só pensava assim: “Meu Deus, me ajude”. Quando vinha aquela dor horrorosa me tinham umas barras lá, que eu segurava naquelas barras quando eu abria o olho eu estava lá do outro lado da sala, que aquela maca andava. E aí quando chegamos lá, a médica examinou e falou: “Olha, pelo jeito vai ser uma menina pequena”. Eu: “Puta vida, vou passar por essa dor horrorosa, ainda vai ser o que eu não quero?”. Então foi uma surpresa muito boa que veio o Joaquim, e foi o Joaquim que eu queria, e foi isso, foi o que eu curti um pouco mais, e aí os meninos, o Valter já tinha nove anos, e que ajudaram a gente, assim, cuidar dele.

P1 - E algum dos três exigia algum cuidado mais especial?

R - O Valter, por conta do problema de saúde dele, ele já tinha aquelas crises de bronquite frequentes, e aí não tinha essa dermatite, só depois que veio surgir assim com mais intensidade essa alergia, a questão da pele. E eu falei esses dias para o médico: “Doutor, acho que isso não é dermatite coisa nenhuma, o Valter adquiriu alguma alergia de algum medicamento”. E eu na minha santa ignorância, na busca de uma saída, eu ainda penso que foi isso. Então o Valter que exigia, até os nove anos de idade eu carreguei o Valter no colo, porque daí veio o Junior, porque daí eu não podia carregar o Junior e o Valter no colo, eu levava ele para a escola no colo, buscava no colo, a Marlene morre de ciúme dele.

P1 - Pode contar para a gente como é que foi perceber esses primeiros sinais de bronquite, como que o Valter era no dia a dia, e como vocês se posicionaram em relação a esse cuidado que ele precisava?

R - Então, ele tinha as crises, a gente não saiba o porquê, que ele começava a ficar com falta de ar, muitas vezes, muito intensa.

P2 - Desde muito cedo, já?

R - Não muito bebê, já um pouquinho maior, bebezinho ele não tinha, mas o Valter, assim, sempre teve, nossa, sempre exigiu cuidados. O Valter quando nasceu chorava tanto. Chorava dia e noite, dia e noite aquele moleque chorava. E às vezes, eu pedia para o pai: “fica com ele, porque eu não aguente mais”. Eu quando eu tive o Valter, eu acho que eu tive um pouco Síndrome do Pânico, que a gente não sabia também o que era, eu tinha medo de ficar só, eu tinha medo de tudo. E aí eu pedia para o Joaquim ficar acordado, ele tinha que ficar acordado olhando para o menino e para mim, para eu poder dormir, descansar um pouco. E aquele moleque chorava dia e noite, meu Deus do céu, não é normal, se eu ver ele vai me enlouquecer. Então ele sempre exigiu muitos cuidados, eu não sabia se ele tinha alguma dor, também não tinha o conhecimento de dar algum remedinho para aquela dor, levava ao pediatra, menino chora, examinava, não tinha nada, a gente não sabia muito o que tinha. Então ele sempre exigiu esses cuidados, mas a crise de falta de ar, só depois que o médico falou que era uma bronquite, e também a gente não sabe o porquê, foi surgindo ao longo do período, não foi muito jovem, não foi muito bebezinho não. E aí só depois, na adolescência, já mais na pré-adolescência começou a aparecer as questões da pele, por isso que eu associo ao uso de medicamentos por conta da falta de ar. E só te falando, quando fui descobrindo que tais fatos fazia desencadear falta de ar, se ele corresse, se ele jogasse bola. Então fui descobrindo que se ele ficasse muito cansado, se ele se exercitasse ele ia desencadear falta de ar, então carregava ele no colo para evitar, também não sei se era bom, eu que fui descobrindo isso, a descoberta de mãe.

P1 - E como foi ser mãe acompanhar o filho adolescente, que é um período difícil de descobertas, mas começar a ter essa coisa que ninguém entendia direito o que era, dessa parte física, como que você foi acompanhando isso?

R - Então, eu fui buscando alternativas, a primeira crise do Valter, dessa questão da dermatite, muito forte, ele coçava, saía junto a pele, e saía água, e a gente ali tinha que trocar aqueles lençóis constantemente. Aí eu comecei a cuidar. Aí foi quando que o médico falou esse diagnóstico, ele tinha feito tudo que era tratamento, da vacina, fez os testes, tudo nós tínhamos procurado. E aí nesse período, nós acabamos levando no HC, acho que foi nesse período. Mas o tratamento era tópico, nada para tomar, e muitos cuidados, cuidado com a higiene mesmo, nada de tapete, nada de cortina, nada de cobertor, nada. E eu muito da chata, então eu controlava, o Valter só começou a ficar muito ruim depois que eu saí de casa, porque não tem o cuidado com a higiene, ele tinha o problema, tinha, mas dessa forma, não, porque ele não tem o cuidado com a higiene que eu tinha. Então troca a cama aí, não sei o que, e cuidado com isso, cuidado com aquilo, então não tinha assim toda essa aparência.

P1 - E você se contentava com a opção de tratamento que os médicos indicavam?

R - Na verdade, eu queria achar alguma coisa que curasse, e eu até já tinha comentado com vocês, buscar tratamentos alternativos, levar em tudo quanto é lugar. Curandeiro e afins. Uma vez ele estava em uma crise assim, alguém me falou, tem uma benzedeira não sei aonde, leva lá, levei o moleque lá. O que a mulher fez? Deu banho nele de pinga com Arruda. Aí começou os gritos, saí de lá para o hospital. Ia falar para o médico que eu tinha feito isso? Não ia falar. E o meu marido queria me bater;“Você é louca, olha o que você fez com o menino”. “Não foi proposital, só queria que ele melhorasse”. Então eu busquei todas as alternativas possíveis e impossíveis, médicos de todos os lugares, médicos particulares, clínicas, tudo que alguém que me falasse, esse médico é um bom dermatologista, nunca medi esforços. Mesmo que tivesse que pagar uma consulta cara, tirasse de onde tirasse, ia atrás, sempre fui. Uma vez levei ele, nem fazia jus ao hospital, não faz, Hospital do Servidor, aí cheguei lá e contei a história, foi atendido. Então fiz tudo. Fui para igreja evangélica, os pastores ficarem pedindo as ofertas, eu falei, assim: “Gente, a cura se vende?”. Eu não podia falar isso para eles, eu pensava assim: “Se for curar o meu filho eu vou embora a pé”. Mas eu busquei tudo que vocês possam imaginar, até chegar lá, fui em um Dermatologista, todo mundo que eu chego eu peço ajuda: “Doutor, então eu tenho um filho que tem dermatite atópica, será que o senhor pode me ajudar?”. Médico particular. “Dermatite atópica, mas faz tratamento?”. Mostrei as fotos, quando ele viu as fotos ele falou: “olha, o me sócio aqui, o chefe da equipe de dermatologia lá da Fundação de Santo André, alguém tem ouvido falar, isso deve ter uns dois anos, um ano e pouco, está aqui o e-mail, telefone, lá senhora fala com a secretária dele, liga para marcar uma consulta. Liguei, passei e-mail, a menina me deu retorno, encaminhei as fotos, de imediato a menina me deu o retorno. Só que para ser atendido tem que ter o endereço de residência de lá de Santo André, meu Deus, agora eu vou fazer o quê? Todo mundo que eu conhecia, não é muita gente: “Você conhece alguém que mora em Santo André?”. “Não”. “Você conhece alguém que mora em Santo André?”. Para a minha filha: “Filha, arruma alguém que mora em Santo André”. Ninguém me ajudou. Aí a coordenadora lá da escola, contando para ela, que precisava, ela: “minha irmã tem consultório dentário lá em Santo André, vou ver se ela consegue, se ela te arruma o endereço”. Era a minha última chance, porque eu não tinha mais com quem falar, a moça quando deu o endereço, e aí nós conseguimos lá esse caminho, a moça deu o endereço nem nos conhece, esse caminho que ele está sendo atendido lá, e que eu acho que é onde ele está se sentindo melhor, melhor acolhido, quando ele está em crise, tirou as fotos, a última que eu mandei para a Dra. Maria Lúcia que atende lá, lá da equipe, como o Valter se encontra, traz o Valter aqui. Mas além da dermatite dele tem o aspecto psicológico, ele acabou entrando aí nessa de uso de entorpecente, que quando eu descobri quase morri, eu não consigo lidar com isso, porque se eu for falar com ele, eu não achei ainda um meio, ele sabe que eu sei, porque eu falei para ele, achei um negocinho lá no bolso dele, eu não sabia o que era, nunca tinha visto, eu quase enlouqueci. Porque você é usuário de droga, você me traiu, quem você pensa que é, não sei o que. E aí depois que eu descobri acho que ele falou: “Bom, agora minha mãe sabe mesmo, quer saber, eu não preciso mais esconder”. E eu não sei lidar com essa situação. Então o que eu penso? Que usando isso, piorou, é um produto químico, extremamente agressivo.

P1 - Desculpa, que entorpecente ele usa?
R - Eu acho que ele usa cocaína, eu não sei muito essas diferenciações. E aí quando eu fico lá na minha casa, quando eu morava lá, eu falava, se fosse o medicamento para colocar no nariz não ia colocar, agora, olha, uma porcaria, que eu falava, que deve ser, bicarbonato de sódio, deve ser farinha de trigo, deve ser fermento em pó, deve ser tudo, menos cocaína, porque quem usa cocaína não sobrevive para contar história. Eu cheguei a falar para ele muitas vezes, se você quiser usar cocaína, eu não sei onde tem não, mas eu vou deixar um meio, e eu sei que eu acho um meio, de falar, eu quero um quilo e você vai usar tudinho aqui na minha frente. Você vai usar tudo e eu vou virar as costas e vou embora. E eu não sei lidar com essa situação porque eu fico com raiva, é uma coisa que me tira totalmente o equilíbrio, tira, eu não preciso, eu não precisava disso.

P1 - Que nem a história do leite condensado?
R - Exatamente, a história do leite condensado, eu iria comprar, um quilo, sei lá o quanto, coisa assim que usasse, eu fosse usar só aquela vez.

P1 - E Delmira, você contou de uma história que é recente, de há dois anos, mas gente está falando de muitos anos, de procura de tratamento?
R - Isso.

P1 - Por que essa missão de encontrar um tratamento? O que você enxergava ali no Valter?
R - Eu quero que ele tenha uma aparência boa, que ele não fique se coçando, que as pessoas não se afastem dele, fiquem receosas, eu me afasto, eu sou a mãe, e eu fico brigando com ele o tempo todo, não se coça, não vai jogar casca no meu sofá, não vai jogar casca, não é para se coçar, eu não quero, eu quero que ele seja uma pessoa sã, ele tem essa condição, que ele tenha essa condição. Porque o que aconteceu com a vida dele? O Valter começou uma faculdade que parou no meio do caminho, não terminou, o Valter perdeu o emprego e não arruma emprego, é uma pessoa extremamente inteligente, nossa, ele tem de conhecimento gerais, um QI, extremamente elevado, mas não sabe fazer uso, não está usando. A doença interfere? Muito. O uso do entorpecente, não sei também, da droga, que se utiliza, da falta de vergonha, interfere. Mas essa autopiedade dele, como é que eu vou falar, ele é depressivo, uma depressão que está andando junto por ali, eu não sei lidar com essa situação, eu não sei, eu não consigo, porque eu penso que ele tem que reagir, e eu falo para ele: “Reage meu filho, vai à luta, você escolheu a parte mais fácil, entrar embaixo dos seus edredons e ficar aí, o difícil é encarar, é a luta pela sobrevivência, porque enquanto você tem aqui você não vai lá fora buscar, lutar por isso”. E aí por isso que vou buscando, eu estou falando do tratamento mais recente, que é esse, que é esse que ele está um pouquinho se dedicando, e que ele vai, e quando ele tem lá consulta que não vai eu já sei que não foi, porque quando ele chega lá ele manda para mim lá a senha de atendimento, quando ele não manda eu já sei, não foi, e acaba comigo.

P1 - E até quando você vai ficar buscando tratamento?
R - Olha, eu não sei, o quanto eu puder. Aí eu descobri também, não sei se vocês já ouviram falar, um médico aí milagroso, que faz milagre, o Dr. Toufik, que é em São José do Rio Preto, e que trata de todos os vícios, alcoolismo, uso de drogas, e todas as drogas ilícitas. E eu mandei mensagem para ele: “Valter, Dr. Toufik, lá em São José do Rio Preto, se você estiver disposto eu estou disposta. Liguei, quando eu liguei era 690 reais a consulta, era um monte de dinheiro para mim, eu sou funcionária estadual, é um monte de dinheiro, mas eu vou me sacrificar, e não é perto São José do Rio Preto, se você quiser eu estou disposta”. Ele não me respondeu até hoje, e eu também não toquei no assunto mais. Eu fico também, sabe, querendo que ele encare, que ele fale: “Mãe, eu estou muito a fim, vamos lá”. Se ele falar, eu vou fazer o que tiver que fazer, sabe, mas aí eu também tenho aqui e aí eu vou buscando as alternativas, os caminhos.

P2 - Não, voltando um pouco, como é que a doença do Valter afetou a família como um todo? Porque eu imagino que deve ter afetado todo mundo, a rotina e a vida da família, como é que os irmãos lidaram com isso, como é que o pai lidava com isso?

R - O pai também queria muito essa busca, igual eu, também buscou muito junto comigo, os irmãos já meio que não tem muito essa preocupação, eu queria muito que os meninos estivessem comigo nessa luta, mas eles acham também que o Valter fica se fazendo de vítima e eu sei que se ele pudesse, se dependesse dele, em sã consciência, ele quer sair dessa situação, mas é mais fácil se debruçar, e falar, eu sou um pobre coitado, eu estou doente, eu não consigo um auxílio por parte do INSS, ele parou de trabalhar, mas eu pago a contribuição dele. E os irmãos ficam por ali: “Mãe, mas se você ficar mantendo o Valter... Deixa ele”. Eu não posso deixar, eu já tirei o menino de casa, eu não posso deixar - “Você paga o aluguel do Valter? Você paga o aluguel do Valter? Ele pegou o dinheiro para combustível”. Falei para ele: “amanhã você vai fazer um bico e você vai me pagar”. Só que não: “Não é para dar dinheiro para o Valter, porque se você dá 50 para ele pôr combustível, dez ele vai comprar sei lá o que, que eu não sei o que é”. E os irmãos não querem muito tomar conhecimento disso, a minha filha, o meu genro tem condição de arrumar um emprego para ao Valter, mas não vão arrumar, não vão, eles têm condições, os dois, qualquer um dos dois tem condição. E eu já me humilhei: “Cristiana, arruma emprego para o Valter, qualquer coisa, de varrer lá, porque daí ele não tem preguiça, ele tem todos os defeitos ruins, mas não é um menino preguiçoso”. Mas eu acho que é por conta desse uso aí, que ele fala, o Valter fala que não é viciado, bom, também não sei. Aí eu falei para a minha filha esses dias: “Filha, por favor, arruma um emprego para o Valter, ajuda, eu não tenho a quem pedir”. E aí ele faz um bico com o menino que faz manutenção nas escolas quando vem aqui por perto, que eu pedi para o menino: “Ajuda o Valter, eu não sei se ele sabe fazer essas coisas de pintar, mas ele aprende”. E aí eu vou buscando, pedindo ajuda, eu sou assim, eu falei que eu preciso tomar cuidado, porque eu acabo me tornando uma pessoa chata pedindo ajuda, ajuda o Valter, ajuda, ajuda desse jeito, ajuda daquele, tudo bem, se ele pegar o dinheiro dele e for usar droga, vai se matar sozinho e vai morrer satisfeito, feliz da vida. E eu já falei para ele, eu vou chorar dois dias, Valter, no terceiro dia, meu filho, a vida continua. E sabe quem vai chorar? Só eu, ninguém mais. E isso eu já falei para ele, ele sabe disso.

P1 - E por que essa postura desse cuidado excessivo?

R - Será que é excessivo? Eu só mãe, eu faço isso por ele como eu faria pela Marlene e como eu faria pelo Joaquim, pelo Juninho. Eu sou a mãe, e mãe quer ver o filho bem. Você tem filho? Você falou agora há pouco? Você não faria isso pelo seu filho? Estou voltando aí a pergunta, devolvendo, eu sou mãe. Eu faria qualquer coisa para tirá-lo dessa situação, o que eu pudesse e o que eu não pudesse eu também ia procurar fazer. E é isso.

P1 - Quer tomar uma água antes?

R - Não, tudo bem.

P1 - Tudo bem se a gente ainda continuar um pouquinho na dermatite?

R - Tudo bem, tranquilo.

P1 - A próxima pergunta é, você como mãe, levando nesses lugares, ou não necessariamente pensando nessa agenda médica, mas festa de família ou escola, você presenciou alguma reação de alguém ou alguma situação de preconceito em relação ao Valter?

R - Não, na família nunca presenciei, mas porque a família está muito a par, e se eu presenciar, eu mesma o distancio e me distancio também. Agora no dia 18 teve o aniversário do Juninho, dia 18 passado, e não ia fazer nada, ele pediu para fazer um bolo que eu só sei fazer aquele bolo, eu não sei fazer mais nenhum: “Mãe, você faz aquele bolo?”. “Aí, Juninho, pelo amor de Deus, está bom, fazer o que, vou fazer o bolo. Quem você vai chamar para o seu aniversário?”. “Mãe, é só um bolo”. “Sim, mas é só um bolo, quem vem?”. “Você, a Marlene, o Cristiano”. “E quem mais?”. Eu queria que ele falasse o Valter. “Mãe, os pais da Gabriela”. “E quem mais?”. “Mãe, a irmã da Gabriela”. “E quem mais?”. “Só, mãe, a casa é pequena”. “E ninguém mais?”. “Mãe, quem mais?”. “O Valter, você não vai chamar o Valter?”. “Sim, mãe, é para chamar o Valter”. E foram passando os dias: “Juninho, você já chamou o Valter?”. “Mãe, eu vou chamar”. “Juninho?”. Aí eu comecei a cobrar. Aí ele acabou chamando o Valter, e aí já tinha preparado, eu já tinha me preparado psicologicamente, vou lá entregar o bolo e não vou ficar se ele não chamar o Valter. Então eu quero que o menino se socialize. Não sei se você viu aquela foto que eu falei que tem oito pessoas da família, ele está lá longe, muito distante, eu não faço parte, e eu não quero que ele seja excluído da família, se eu sentir qualquer sinal de que as pessoas não querem o Valter próximo, eu já tiro, eu mesma já faço questão de tirar. Eu sei que às vezes, ele é inconveniente, a gente sabe disso, mas é uma autodefesa até, ele fala, se eu não for inconveniente ninguém vai prestar atenção que eu estou aqui. Então faço muito questão que ele esteja junto. A gente não é muito assim de reunir uma família, mas se tem uma reunião familiar eu faço questão que ele esteja junto. Agora na Páscoa a minha filha fez o almoço lá, o Juninho ia para a casa dos pais da família dela, da esposa dele, e aí: “Mãe, você vem almoçar com a gente?”. “E quem mais vai?”. “Os pais do Cris”. “E quem mais?”. “Mãe, nós vamos fazer bacalhau, o Juninho vai para a casa da Gabriela, o Valter não come bacalhau”. “Mas ele não pode comer outra coisa?”. Era na casa dela, eu não posso convidar alguém para ir para a casa de outra pessoa: “Ele não pode comer outra coisa?”. “Mãe, mas vai ser assim”. “Não, porque se você o chamar eu faço o que ele come e levo”. Mas aí eu acho que ele entende um pouco essa questão, ele desligou o celular que ninguém conseguia falar com ele, ele hiberna, eu só consegui falar com depois do almoço, que eu fiquei aliviada, aí meu Deus, obrigada, porque o Valter não conseguimos falar, ia ficar uma situação constrangedora, porque ia levar a comida dele, e ele ia chegar junto comigo, e eu ia enfrentar a situação, ia levar um frango, sei lá o que ele quisesse.

P1 - Mas o que é que tem nesse meio que causa tudo isso?

R - Porque ele fica se coçando, e acho que ela, a irmã, não quer muito que o marido, eu não sei se ele reclama, eu não sei o que acontece depois, para ela evitar esse contato, eu não sei o que acontece depois. Entendeu? E eu prefiro até nem saber, porque acontecerão outras ocasiões, e se eu souber eu vou ficar do lado do Valter, nesse aspecto eu vou ficar do lado dele, eu prefiro abdicar do que for. Aí ela fez aniversário, dia 04, é tudo muito próximo, aí liguei para o marido dela: “Você está pretendendo fazer alguma coisa no aniversário da Marlene?”. “Delmira, acho que só um jantar, ela chegar do serviço, eu te pego, e a gente vai jantar”. Como era uma questão muito simples, aí fomos só nós três, aí eu também não quis interferir muito. Aí o Valter perguntou, eu falei: “O Cristiano vai levar ela para jantar e me convidou também, só”. Eu também não escondo, porque uma hora ele vai ficar sabendo, eu também não escondo, mas eu fico muito triste, não poderia ter chamado o irmão, os irmãos? Se esse jantar era tão caro, não tem problema, eu pago, não tem problema, eu falo que o melhor que ter dinheiro é ter crédito, e crédito a gente tem ainda. Mas aí eu fico triste. Se nós formos pensar em termos de família, família, somos nós quatro, eu e eles, os três filhos, família é isso. E eu não gostaria que houvesse esse distanciamento, e eu acabo ficando entristecida. Essa questão, eu não posso falar, porque daí ela vai ver, vocês vão editar, eu vou ver antes. Eu pedi para ela: “Filha, eu precisava salvar umas fotos em um pen drive para a entrevista que nós vamos dar, você pode me ajudar?”. “Mãe, domingo eu vou estar muito ocupada, não sei o que, não sei o que, mas aí a gente combina, eu vou sair”. Eu falei: “Então você passa em casa e a gente faz, vou porque o note para carregar”. Aí no domingo de manhã ela ligou, de manhã não, passou mensagem: “Não vou sair, o Cristiano está arrumando o almoço, vem para almoçar aqui e a gente faz”. Eu não fui. Então eu acabo me afastando, sabe. Tem resistência para me ajudar em alguma coisa, não é porque faz uma coisa que essa vai cobrir o restante, eu sou meio orgulhosa aí eu acabo me excluindo também. Aí a consciência pesou, quando foi ontem ela ligou: “Mãe, por que não veio almoçar domingo?”. “Você ia fazer suas coisas, não quero mesmo atrapalhar de maneira nenhuma”. Eles estão certos, eu falo, se ela estiver bem lá com o marido dela, para mim está ótimo, se o Juninho estiver bem alguém com a esposa dele, maravilha, alguém fala para mim: “Você gosta da sua nora?”. “Eu amo a minha nora, ela trata bem do meu filho”. “Você gosta do seu genro?”. “Eu amo o meu genro, ele trata bem a minha filha”. Mas o Valter não tem quem trate bem dele, quem vai ter que tratar sou eu. E você queria saber mais alguma coisa?

P1 - Várias coisas. Até chegar no diagnóstico de dermatite atópica, quais outros diagnósticos vocês receberam?

R - Na verdade, a gente tratou muito com Dermatologista que era alergia, alergia, alergia, e essa dermatite chegou no dia que fez o teste de contato, que é aquela que faz com vários componentes, que daí o médico me chamou e falou: “Olha, o Valter ele tem dermatite atópica”. Eu falei: “O que é isso?”. Ele falou: “Olha, ele tem alergia a tudo que existe no universo”. Aí ele falou para mim na época: “Você já viu uma lista telefônica, quantos Silvas?”. Acho que por isso que eu tenho um pouquinho de aversão a Silva, a mente humana é uma coisa absurda: “Quantos Silvas têm na lista telefônica?”. Falei: “Não”. Ele falou: “Então dá uma olhada, porque ele tem alergia a mais componentes do que Silvas tem na lista telefônica”. Ele utilizou mais ou menos um termo parecido. Então foi aí que a gente tomou conhecimento, mas eu não tinha noção da gravidade, de que ele não vai ter cura, que ele tem que se tratar a vida inteira, cuidar a vida inteira, mas é cuidado, com muito cuidado, coisa que ele não tem. E eu não fiquei muito assustada porque eu imaginei, bom, se tem tratamento a gente vai tratar, se tem controle nós vamos controlar. E aí o que aconteceu? Nessa onda desses tratamentos aí, ele estava em crise, crise gravíssima, e aí surgiu uma injeção chamada, o médico deu uma injeção de corticoide, chamada Diprospan, então fez muito tratamento à base de corticoide. Essa Diprospan ele podia tomar uma a cada seis meses, uma vez por ano. O que o Valter descobriu? Que aquilo tirava ele da crise, começou a tomar uma atrás da outra, e a farmácia dá, e eu também não tinha muito esse controle, porque ele ganhava o dinheiro dele, ia lá tomar a injeção, aí vinham as consequências, as consequências que é um negócio chamado gota, que inflama todas as articulações que ele fica impossibilitado de andar, de movimentar qualquer membro, mas não sabia então. Agora, tem que desmamar, fazer o tratamento de desmame do corticoide, mas a gente sabe que o Valter não faz, na hora que ele está no desespero ele vai lá e toma uma overdose de corticoide, e aí as consequências vem depois. E aí nós já fizemos tudo, tudo, tudo. Com o uso desse corticoide foram surgindo verrugas na face, no rosto, e aí eu não sabia também, procura o Dermatologista, tinha que tirar aquelas verrugas, cauterizando. Meu Deus do céu, tinha cheiro, eu lembrava do cheiro lá, quando meu avô matava porco, tem umas coisas que são marcantes, que colocava o fogo no porco para tirar os pelos, o cheiro é o mesmo, meu Deus do céu, lembrava daquele cheiro, associava. Então nós já fizemos tudo, tudo, e eu ainda busco alternativa, caímos lá na Sanofi, foi maravilhoso o encontro, a Doutora lá da Fundação que acompanhou, que indicou o Valter para essa reunião. Foi maravilhoso, porque tinha lá todos os representantes de produtos dermatológicos, não sei, dermatológicos, médicos, quando nós saímos de lá, aquele povo todo chorando com o depoimento do Valter, tinha ele e uma menina. Só que a menina ela estava de manga cumprida, também muito triste o depoimento dela, chocante, mas o rosto dela é bom. O que a gente pode mostrar hoje, o nosso cartão de visita? O rosto, o sorriso. E na face dela não tinha marcas. Então eu olhava assim e pensava comigo, poxa, se o Valter ficasse pelo menos, assim, só que quando ela levantou a blusa era tanto o quanto, uma menina, e trabalho lá no laboratório. Mas foi assim espetacular. E estão surgindo oportunidades como essa, essa de vocês aqui, que eu espero que alguém ouça, veja, tome conhecimento para auxiliar essa busca desesperada dessa mãe, que tem essa angústia, e eu não vou desistir nunca, eu não vou falar para você que vou desisti um dia, eu não vou, não adianta, eu sei que Jesus Cristo não vai falar isso para mim, desista do seu filho, que eu não vou desistir, eu tenho meus momentos de raiva, que eu falo para ele: “Levanta daí, meu filho, porque você está aí na parte confortável, está na sua zona de conforto. Levanta daí”. Mas eu não vou desistir nunca. Então os caminhos vão surgindo, e quando eu falei para vocês que eu não acredito, porque nós nunca recebemos nada. E toda essa trajetória que eu já contei para vocês, não teve ninguém assim, eu não acho que as pessoas não têm que ajudar e me dar nada, só mostra o caminho, só mostra as possibilidades. Quando ao Valter falou, o medicamento é de alto custo, eu não vou ter condição de usar, não vai ter condição de usar de uma forma, mas vai ter de outra, porque eu vou buscar nem que seja, olha, nem que eu tenha que me desfazer de alguma coisa, não tenho, tenho pouca coisa, para ele ter essa assistência, ele terá. O que eu tenho e bem? Eu não tenho, eu tenho uma casa que eu vou voltar para lá. Aí quando o pai faleceu ele deixou aí um dinheiro, minha mãe fala que não é para falar dinheirinho não, porque nós estamos diminuindo as nossas posses, e que ela fala Deus, que Deus, nós temos que valorizar o que nós temos, então ele deixou um dinheiro e eu comprei um pequeno apartamento na praia, porque na época que nós morávamos juntos eles queriam muito ir para a praia, e eu não gosto muito dessa convivência, que eu sei que coisa boa não sai. Aí eu comprei o apartamento para eles poderem ter para onde ir, uma hora, e é o que eu tenho de patrimônio, que eu me desfaria para investir no tratamento dele, se necessário for. Se ele falar, mãe, achar um caminho, é nos Estados Unidos, vamos, vamos buscar meios. É o que eu falei para vocês, melhor que ter dinheiro é ter crédito, e a gente ainda tem, é um crédito reduzido, mas ajuda. E esse tratamento na Fundação deu essa possibilidade, desse atendimento lá na Sanofi, dessa reunião, onde as pessoas ficaram muito comovidas, quando acabou a reunião todo mundo chorando, emocionado, todos emocionados, a Thaís então, nossa, um ser iluminado, eu falei, não tinha conhecido aquela menina, e o contato, e a história, e contamos a nossa história, fui muito assim, recebida, com muita atenção como eu estou vendo vocês aqui, com os olhos brilhando, cheio de lágrima. E a gente chora, porque eu sei que vocês também pensam, poxa, que caminho que nós podemos buscar para ajudar essa família. Eu sei que não somos só nós que tem 500 mil casos aí que vocês ouvem todos os dias, cada um mais emocionante que o outro, e quem está do lado de cá também pedindo ajuda, socorro, nós não temos a quem pedir, eu não conheço nenhum político famoso, para ajudar. O Valter já passou por três perícias médicas, foi negada, negada a assistência dele, ele está prestes a ir preso, porque a família lá, a mãe do menino quer a pensão, ela não está errada, ela fica ameaçando todos os dias. Ele está prestes a ficar atrás de grades sem cometer nenhum crime, porque ele não paga pensão porque ele não quer, porque até o momento que o Valter estava trabalhando ele que foi atrás para pagar pensão, não foi ela que foi, ele que foi atrás. Então eu não conheço ninguém que ajude, se ajudasse também já teria ido atrás, eu já teria ido e falado, olha, meu filho precisa, se você arrumar um emprego ele vai trabalhar, desse jeito, com essa aparência aí. Se você achar que ele pode ser afastado lá pela Previdência, é um direito dele e ele contribui, é um menino que está doente, ele precisa de ajuda. Então eu preciso de um norte, a família precisa, família falo eu, a mãe, e ele. Ele está prestes, gente, ontem ela mandou uma mensagem que ela vai procurar um Advogado. Quase que eu falei para ela: “Você é burra?”. Eu só não falei, porque daí eu vou mostrar o caminho, também não posso mostraR - “Você é burra? Você não precisa procurar Advogado, vai direto no fórum, não precisa gastar mais, não precisa gastar, você já não tem, ainda vai gastar com Advogado? Vai ao fórum, não precisa”. Então ela fica ameaçando. O que ela quer? Que eu fale para ela, vou pagar, ao vou assumir, eu não tenho condição, eu já cuido do Valter, eu já cuido da minha casa, eu ajudo o menino, eu ajudo, todo mês eu mando um pouco de dinheiro para ajudar lá na despesa. E se o menino precisa de um medicamento, precisa de uma assistência, o que for a gente corre atrás, mas não é certo ela ficar ameaçando.

P1 - O que te move?

R - Eu quero proteger, eu quero evitar, primeiro que eu amo o moleque, ele é um ser assim, muito amado, eu sou uma avó durona, eu imponho limites, eu não sou aquela vó babona, eu sou babona, mas eu sou babona com limites, ele não pode fazer tudo que ele acha que possa, dentro dos limites, Luís Felipe, o que é não é não. Mas o que me move é que eu quero o bem-estar do eu filho, eu quero o bem-estar dele, eu quero que ele se veja como uma pessoa digna, o pouco que e contei da minha história eu sou uma sobrevivente. E muitas vezes, eu me olhei no espelho, lá na minha adolescência, sei lá, que a gente nem sabia o que era isso, nós tínhamos um espelhinho, não sei se vocês conhecem, quadradinho, era o que tinha, naquela borda laranjinha, olhava no espelho e falava: “Meu Deus do céu, o que vai ser de mim?”. Eu falava para mim: “Miserável, sem perspectiva nenhuma, feia desse jeito”. Eu era muito feia, eu melhorei um pouquinho. Feia desse jeito, o que vai ser de mim? Eu pensava, meu Deus, me mostra aí uma alternativa de vida. E eu ainda falava para mim: “Nem casar você vai, qual o louco que vai querer casar com uma moça feia desse jeito?”. Então um pouquinho da minha história eu já contei para vocês, e eu sou uma sobrevivente, mas meu filho não precisava passar por isso, eu não entendo, eu não entendo, eu fiz tudo para eles terem o espaço de vida digna, digna, é isso que me move, eu quero que eles se superem. E mesmo quando ele fala os palavrões dele, que eu detesto, que eu fico brava, também é uma dessa ele, é uma defesa, é quando ele está com o menino, que ele se altera um pouquinho com o menino, eu chamo atenção dele: “Você não vive com ele, você não tem o direito, trate com respeito, com carinho o qual ele merece”. Então acho que o que me move é isso, e o meu trabalho, eu gosto muito do que eu faço, apesar de ser assim insalubre, o que nós fazemos, o salário é vergonhoso, tanto é que eu poderia já ter me afastado, mas por tudo eu preciso ficar um pouco mais. O que acontece conosco, funcionário público? Nós recebemos muita gratificações, essas gratificações no momento que a gente se afasta elas são retiradas, não estão inclusas no salário, e aí não tem como sobreviver só com o salário, nesse momento não dá, e aí também é o que está me movendo, voltar para a minha casa, porque a minha quando ele propôs para eu morar aqui, eu falei para ele: “Filha, como que eu vou te pagar?”. Ela falou: “Mas você não vai pagar nada”. Eu falei: “Não, mas condomínio eu faço questão de pagar”. Então é um condomínio alto, é um valor alto, mensal, e eu também preciso reduzir esses custos para poder pensar em me afastar, em programar esse afastamento do trabalho, mas eu gosto do que eu faço, eu gosto, eu gosto, um povo sem educação, extremamente sem noção, uma comunidade sem noção nenhuma, mas eu gosto.

P1 - A gente vai chegar, eu acho que nessa parte do trabalho, eu só queria encerrar o bloco GDA, é GDA que você quer? Só para encerrar essa parte da dermatite atópica, são duas perguntas finais, a princípio. A primeira é, falando nessa coisa de mãe, qual que é a missão da mãe que tem um filho com dermatite atópica?

R - Eu vou falar da minha missão, é árdua, a busca por um tratamento eficaz, de curto prazo consome, porque esse tratamento eu acho que ele não existe. Profissionais dedicados são poucos, até que eu tenho sido agraciada por Deus, que tem aparecido assim, nessa minha busca incessante. Mas é uma missão árdua, eu penso que se todas as mães que tem um doente, não sei se o caso seria doente, portador, eu acho muito forte, de dermatite, for igual a minha, se a missão for igual a minha é muito árdua, muito difícil. Porque, gente, se me mandarem passar cocô de lagartixa no Valter eu vou passar. Me mandaram dar para ele uma vez o quê? Umas coisas dessas daí, eu dei, eu fiz tudo, tudo, tudo, e faço, e farei. Então a minha missão não acaba, não vai acabar, ela é incessante, a minha busca é incessante, será incessante enquanto Deus me permitir. Esses dias eu tive aí um mau súbito, sei lá o que foi, estava dirigindo e uma taquicardia, eu tive um insight de parar, meu cérebro, minha cabeça parece que estava pressionando, e eu vi a hora que eu estava perdendo o controle do carro, consegui atravessar a marginal e estacionar ali no acostamento e eu falar, Deus, me ajuda, eu mesma comecei a massagear, fazer uma massagem cardíaca, e tossir. Porque hoje nós temos essas informações, há tempos atrás nós não tínhamos, e eu falava, Deus eu não posso ir agora não, se eu for para lá eu vou deixar todo mundo doido, porque eu quero voltar que eu não acabei a minha missão aqui não. Então ela é árdua, é infinita, é incessante, ela é imensurável, acho que a palavra certa é essa, não tem medida.

P2 - E como mãe, como esposa, como mulher, você fez algum sacrifício ou você fez alguma concessão por causa da doença do Valter, você diria isso?

R - Eu não sei que aspecto seria sacrifício, tudo é sacrifício, porque nada nos possibilita para nós, como eu tenho falado, tudo é muito difícil, o Valter precisa. Eu sei que o pessoal aí tem atendimento do SUS, de não sei aonde, todo mundo consegue, eu não consigo nada, o Valter não consegue um exame de sangue no Posto de Saúde. Então da parte financeira eu sempre tenho que abdicar de alguma coisa para cobrir outra. Da parte emocional eu tenho minha consciência tranquila, porque eu sei que dentro das minhas possibilidades eu tenho feito o que me é possível. Da parte afetiva, que eu cobro, porque eu afastei o Valter de mim, ou eu me afastei do Valter, e também buscando, achando que quem sabe me afastando ele vai cuidar um pouco dele. Então eu me cobro em relação a isso. Mas por outro lado eu vou ser firme nessa minha posição de não querer trazê-lo para ficar muito próximo, porque daí nós vamos novamente viver em conflito, não é bom para ele e não é bom para mim. Não sei se eu respondi.

P2 - Sim.

P1 - E pensando em toda essa trajetória de busca, de tentativas, pode ser alguma coisa mais espiritual, o jeito que você achar melhor para responder essa questão. Teve algum aprendizado quanto mãe, quanto mulher?

R - Olha, espiritual eu falo a verdade para vocês, alguém fala, você precisa orar, eu não consigo, eu não sei. Como mulher, tem uma menina aí que ele e ela, ele fala que ele gosta dela, uma menina bonita, eu a chamo de Flor, ela chama Deise, e eu falo, o que essa mulher vê nesse menino? Feio desse jeito, casquento desse jeito, não tem um odor muito agradável, o que ela vê nesse neguinho? Então como mulher eu não iria querer uma pessoa com a característica física, apresentação pessoal do Valter. Mas não sei, o coração, mas como mãe eu jamais abandonaria meu filho, jamais, jamais. Não sei se eu respondi, se eu fugi.

P1 - Quer já fazer aquela pergunta que você queria, Dê?

P2 - Eu ia te perguntar o que te legou a estudar, e hoje em dia você se tornou uma Diretora de escola, eu queria saber dessa sua trajetória, uma mãe com três filhos, dona de casa?

R - Então, é aquilo, eu uma dona de casa exemplar, meus filhos podem falar qualquer coisa de mim, mamãe extremamente rígida, não gostava que eles brincassem, com os meninos a gente acaba até perdendo um pouquinho esse controle, de amiguinhos, na casa dos amiguinhos, os amiguinhos em casa, eu queria que eles ficassem ali em baixo da minha asa. Meu marido trabalhava muito de domingo a domingo, quando ele trabalhava de manhã nós íamos para a minha família e ele ia buscar a gente no final do período, ou ele levava, e então ele trabalhando muito e eu cuidando daquela casa assim doente, uma coisa absurda. Mas uma hora eu fiquei olhando para aquilo eu falei, meu Deus, eu mesmo questionando: “É isso, a vida é isso? O tempo está passando e eu estou construindo o que para mim? Essas crianças vão crescer, vão cuidar da vida deles e aí, eu vou fazer o que da minha vida?”. Aí um belo dia, eu tinha parado na quarta série que eu falei para vocês, eu falei para o marido, tinha surgido a história de suplência, que hoje se fala Escola de Jovens e Adultos, eu falei para o meu marido, eu quero estudaR - “Você é doida, não sei o que lá”. Mas eu vou estudar. E eu não falei para ele, eu posso, eu vou. E era particular, não tinha escola pública, era muito difícil. Aí morando perto, tem uma escola particular, fui lá, fiz a minha matrícula de suplência, fiz quinto e sexto, o outro ano sétimo e oitavo. Aí ensino médio, ensino médio, aí o primeiro ano de suplência era um ano, e para entrar no ensino médio tinha que fazer provinha, fui lá, fiz a inscrição no Estado, falei, bom, então não vou pagar um ano, meu marido pagava lá, pagou, eu não vou fazer um ano pago, já que vou fazer o primeiro ano, vou fazer um ano inteiro, do ensino médio, na época segundo grau, eu vou para a escola pública. Aí eu fui para a escola pública onde a minha filha já estava no primeiro ano. No primeiro? Sim, nós fizemos o primeiro ano juntas. Aí quando eu cheguei lá, aí mudou, não precisava fazer a provinha e não era mais o ano, aí ficou que a suplência seria um ano e meio, aí eu fiz a suplência na escola pública um ano e meio. Acabei então o tal e o ensino médio, o segundo grau. E naquela época pouco se falava em faculdade, pobre não tinha muito esse conhecimento, mas como eu falei para vocês que eu me questionava muito desde lá. Aí eu falei que ia fazer faculdade, a faculdade tinha que passar, não é igual hoje: “Vou fazer faculdade”. “Faculdade do quê?”. “Fazer Pedagogia”. Porque eu queria ser professora, então fui lá fazer a faculdade. Quando eu fui ver o resultado do vestibular, eu menosprezei um pouco, fui na lista dos reprovados, ainda fui com a minha filha, olhei lá a lista dos reprovados, falei para a minha filha: “não estou aqui”, ela falou: “mãe, você está aqui, você foi aprovada”. Aí, uma festa, aí o dinheiro para a matrícula e a mensalidade? Um absurdo de dinheiro. Na época eu já trabalhava, já tinha arrumado um emprego aqui na Semp Toshiba, na área de produção, não falei isso para vocês, já tinha arrumado um emprego, na área de produção, que tinha que fazer os componentes de TV, de rádio, soldar, tudo, aquelas plaquinhas. Meu marido me ajudou, eu fui lá e fui eu, fiz a matrícula e comecei a trabalhar o dia, e em casa correndo, fazer o jantar, para cuidar do Juninho, que eu já fiz a suplência com ele pequeno, os maiores ficavam com ele à noite para eu ir para escola. Preparava alguma coisa ali para jantar, correndo para a faculdade. No outro ano a Marlene entrou na mesma universidade, na Anhembi Morumbi. Nós tínhamos que escolher, ou comer um lanche ou pagar a mensalidade, não dava para fazer as duas coisas, eu vinha em casa, trabalhava o dia inteiro, preparava a marmitinha, encontra com a Marlene no caminho, levava a marmitinha, ela tremendo de fome. Nesse intermédio aí eu comprei um carrinho velho, tirei carta, e só aí que eu tirei carta, porque na época do Fusquinha eu não tinha tirado carta ainda. Aí eu comprei um chevetezinho dourado, lá ia eu com meu chevetizinho. Aí no primeiro dia eu levei a carninha dela inteira, coitada, como é que ela ia comer, tremendo, trabalhou o dia inteiro, tremendo. Aí eu comecei a levar a marmitinha já com as coisas picadinhas, ela tremendo, comendo no carro, eu já tinha comido em casa, rezando para não parar no caminho, porque aprendi a dirigir ali na Santo Amaro com ônibus, com tudo, via o farol, farol, pelo amor de Deus, não fecha, que eu tinha que chegar. Tinha que achar um lugar para estacionar de frente, porque até hoje eu sou ruim para estacionar. Então já trabalhava, e foi assim que eu cheguei na faculdade, fiz Pedagogia, mas aí quando eu trabalhava na empresa tinha oportunidade lá na área de treinamento, foi na época lá do Collor, perdi meus sonhos, então fiz a Pedagogia. Aí perdi o emprego, não tinha Professor, alguém me falou: “Olha, tal escola precisa de professor, vai lá”. “Mas eu posso dar aula?”. “Pode”. Caí lá na escola, fui dar aula e resolvi que eu ia realmente queria ser professora, aí eu fiz outra faculdade de história e geografia. Aí depois eu fiz faculdade para administração escolar e supervisão escolar. Então foi assim que eu cheguei lá, já com os três filhos, marido, cachorro, papagaio e o resto.

P1 - E como essa família enxergava essa figura que cada vez mais...?

R - Olha, direta ou indiretamente todo mundo me ajudou, porque todo mundo acabou se sacrificando, eu tinha que chegar e fazer qualquer coisa rapidinho para comer, para a família se alimentar, eu tinha que chegar no horário da faculdade, eu tinha que chegar em casa e fazer os trabalhos noturnos, o Valter, aí, quando eu virei, me tornei Professora, o Valter não tinha terminado ensino médio, aí eu falei para ele assim, termina o ensino médio, porque ele sempre foi muito ruim com esse negócio de escola, ele detesta disciplina: “Aí e como é que eu faço?”. “Você faz suplência, EJA”. Não sei se já tinha se transformado em EJA. Então o Valter começou a estudar lá naquela escola que eu dava aula, e aí eu tinha que dar conta, eu tinha terminado a faculdade já, eu tinha que dar conta da escola, dando aula para os meus alunos e os trabalhos do Valter, que ele chegava em casa e jogava assim na mesa. Trabalho de geografia para amanhã, e eu da área de humanas, eu já estava dando aula. Fazia os trabalhos dele de geografia de história, de português, e a Marlene fazia os trabalhos dele de química, física, da área de exatas, para ele terminar o ensino médio dele, e ele fez o ensino médio. Nesse intermédio é que eu fui fazer história e geografia, aí tinha a possibilidade de fazer só aos finais de semana, gente, aí foi louco, aí foi doido, aí, olha. Eu fui fazer lá em Machado, em Minas Gerais, que era só aos finais de semana, cada 15 dias. Então cada 15 dias, aí eu já tinha trocado de carro já, já tinha um golzinho, menos pior, eu ia dirigindo, eu acho que eu fui só uma vez de ônibus? Aí eu saí, eu dava aula na sexta-feira à noite, eu tinha que ter aula aos sábados, então sexta sim sexta não, às vezes, eu matava na sexta-feira para ter aula na sexta-feira à noite, eu não podia faltar toda sexta-feira à noite lá. E às vezes, na sexta-feira, eu trabalhava à noite, e aí eu só ia ter aula no sábado, porque falava para as meninas, assina para mim na sexta-feira, então tinha essa cumplicidade entre nós. Então fiz essa faculdade lá de história e geografia. E aí depois eu fiz aqui a parte de administração e supervisão. Prestei concurso, sou concursada, e eu falo, quem faz o aluno não é a escola, não é a escola que faz o aluno, o aluno que faz a escola, e foi assim a trajetória.

P1 - Eu tenho uma pergunta que você pode se sentir à vontade para querer responder ou não. Queria saber como é que foi com o Joaquim, como que ele acabou falecendo? Como foi esse período? O que aconteceu?

R - Foi horrível. Eu falei para vocês do cigarro do Joaquim, aí ele se recuperou e continuou fumando, fumando, fumando, fumando, trabalhava à noite, e fumando, e fumando, desesperadamente. Aí um belo dia, ele com uma super tosse, levamos ele lá no médico, esqueci o nome do médico, aí ele falou: “Rapaz, se tu não parar de fumar, você está com enfisema pulmonar, se tu não parar de fumar tu vai morrer”. Aí ele falou: “Mas, Doutor, se eu parar de fumar eu não morro?”. “Sim, todos nós vamos morrer, mas você vai ter um pouco mais de qualidade de vida”. O Joaquim não levou muito a sério e aquilo foi se agravando, eu já estava na Direção em uma escola aqui nas proximidades, e à noite ele passou muito mal, com muita tosse, muita tosse, e falta de ar, mas eu não sabia muito dessa questão de cardiopatia, depois que a gente vai estudando, primeiro acontece para depois a gente ir se informar. E aí ele à noite não passou bem, e de manhã eu falei para ele: “Hoje eu vou te levar ao médico”. Ele sempre falava, não precisa. Aquele dia ele falou que tudo bem, você vai me levar lá no servidor, vamos lá. Eu tinha reunião na diretoria, não, era da diretoria, mas era em uma escola, eu falei para ele: “Não posso ficar com você, eu vou te deixar lá, ver as orientações, você passa no pronto socorro, qualquer coisa você me liga, eu tinha celular, e a gente vai se falando”. Deixei ele lá, mas aquele dia foi diferente de tudo, nós estávamos preparando irmos para o Nordeste em julho. Aí eu falei para ele: “Você foi ver as passagens?”. Indo para o hospital. Ele falou: “Mas se eu compro as passagens e morro?”. Falei para ele: “Nossa, quanta bobagem, Joaquim, então se for assim a gente nunca vai fazer nada”. Aí chegamos lá no Hospital do Servidor, fiz tudo diferente, deixei ele na porta do Pronto Socorro, deu uma crise de calor nele, que eu acho que já era o efeito do infarto, já era ali um pré. Aí ele falou, era mês de junho: “Fica com minha jaqueta”. “Mas você não sabe quanto tempo você vai ficar nesse lugar, é super frio”. Aí ele pegou a jaqueta e eu fiquei parada ali olhando, falei, mas é muito agradecido, nem dá um tchau. Foi embora, aí eu vim correndo, que eu tinha uma reunião, quando foi umas 11:00 eu liguei e ele falou que tinha sido atendido, tinha feito radiografia, não sei o que, não sei o que, inalação, mas cuidaram da parte pulmonar, e não da parte cardíaca, ele já usava o marca-passo. E aí falei, olha, se ti liberarem você pega um taxi porque eu não posso ir buscar, não sei o que. Quando foi umas 14:00, 14 e pouca, eu sei porque depois eu olhei no celular, eu liguei, ele falou que já estava em casa, ia descansar um pouco. Tem remédio, tem que comprar remédio? Tem. Deixa que o primeiro que chegar vai buscar o medicamento. E aí ele falou, vou descansar um pouco, estava meio frio, mês de junho, frio, vou descansar um pouco, e eu dei as orientações, não vai sair, não sei o que. Aí 14 e pouco foi o horário que eu falei com ele. Chegamos na escola por volta de umas 20:00, e nós revezávamos, eu era Vice-Diretora na época, falei para a Diretora: “Olha, Sandra, meu marido não está muito bem, será que eu poderia ir embora?”. Ela falou: “Só vê aí se fica à noite, problema seu”. Mas aquele dia foi diferente, já tinha acontecido outras vezes, mas foi diferente aquele dia, sabe, aí eu falei para a outra Vice-Diretora: “Nari, será que você pode trocar comigo? Eu fico para você amanhã à noite, porque o Joaquim não está bem”. “Eu tenho compromisso”. Caramba, eu vou fazer o quê? Aí tudo bem, se eu que vou resolver, entrei e falei para uma Professora mais velha: “Tioco, você vê aí para mim, por favor, porque o Joaquim não está bem, eu vou ajudar a fazer a entrada do noturno, e aí você toma conta para mim que eu vou para casa que o Joaquim não estava muito bem, precisei deixá-lo tal e tal”. Aí o celular tocou, estava falando com a moça e meu celular tocou, aí era o celular do Juninho: “Filho”. “Não é Junior que está falando, aqui é o vizinho”. “Por que você está falando do celular do Junior, o que aconteceu com ele? Eu pensei no Juninho, ele andava de moto, trabalhava”. Aí ele falou: “Não, a senhora precisa vir para casa”. “Aconteceu alguma coisa com o Juninho”. “A senhora vem para casa”. Eu não associei, aí eu falei para ele: “É com o Joaquim?”. Ele falou: “A senhora precisa vir para casa”. Eu só falei: “Tioco, toma conta aí que eu vou embora”. Peguei o carro, e é perto, eu só vinha pensando, como é que eu vou chegar no servidor, meu Deus, essa hora não pensei em ambulância, não pensei em absolutamente nada, só pensava como que eu vou chegar o Joaquim com congestionamento. Tem 12 anos que o Joaquim faleceu, vai fazer 12 ou vai fazer 13, eu falei, isso, nossa, esqueci, eu acho que vai fazer 13 anos. Aí cheguei em casa, parei, já deixei a porta aberta, movimento estranho, meu portão aberto. Aí eu falei: “O que foi, filhos?”. “O papai está morto, mãe”. Gente, uma sensação horrível, assim, de parece que o chão se abre, eu fiz xixi na roupa, eu literalmente fiz xixi na roupa, eu fiquei toda encharcada, aí eu subi, olhei, ele estava quentinho, olhei, examinei se ele tinha feito xixi, ele não fez, eu pensei comigo, eu não sabia nem que eu tinha feito xixi, ele estava quentinho ainda. Aí logo chegou o Valter, não lembro também se eu liguei para o Valter, o Valter chegou, aí ele que ligou para a delegacia e tal, ele que acompanhou, a polícia foi, não pode, a senhora pode ser chamada para prestar depoimento, eu falei: “Não, eu quero, o que tiver que fazer a gente faz”. Aí foi aquela questão, o Valter que correu atrás, a Marlene eu não conseguia lembrar o número da Marlene, aí eu liguei na escola para alguém pegar o número da Marlene que tinha na agenda. Eu falei para ela: “Você precisa vir para casa”. E aí a gente organizou, o Valter que acompanhou para o IML, tinha que fazer autopsia, eu falei: “É bom que faça, a gente quer saber”. Porque ele foi atendido. Mas aí depois fui até o hospital, falei na superintendência, eu falei, eu não vou entrar com ação, ele foi atendido, não foi feito o atendimento adequado, mas por outro lado eu nem vou fazer nada porque não vai trazê-lo de volta, mas é bom que a equipe fica esperta para ficar acontecendo esse fato. E foi assim que aconteceu, mas assim, eu já tinha adquirido um jazigo, porque quando meu pai faleceu, eu não falei do meu pai, meu pai era um se espetacular. Quando meu pai faleceu ele foi sepultado em um cemitério municipal, isso estava um dia chuvoso assim, uma melação, uma meleca, eu fiquei olhando para aquilo, eu falei, Jesus, me ajude. E aí eu saí de lá falando que eu tinha que comprar um carro zero e ia comprar um jazigo, aí eu comprei o carro zero e depois eu comprei o jazigo, nada a ver, só para não dar atestado de pobreza. Eu saí de lá me sentindo, nossa, pedi perdão para o meu pai para ele ter sido enterrado naquela situação. Aí um belo dia, aqui já na minha casa, eu saí de manhã, um domingo de manhã, olha, uma chuva danada, um frio que Deus mandava, aí eu cheguei em casa, fui lá, aqui em Itapecerica da Serra, comprei um jazigo. Aí cheguei em casa, cheguei já com o pão, fazer o café da manhã, domingo nós tomávamos o café junto: “Comprei um imóvel”. “Uma casa na praia?”. “Não”. “Uma casa maior?”. “Não”. “Uma casa na praia?”. “Também não”. “Não”. “Uma chácara?”. “Não, um jazigo”. Ficou todo mundo assim, no café da manhã. Aí quando um ficava gripado ou qualquer coisa: “Eita, vai inaugurar”. Virou uma festa. Então já tinha comprado o jazigo quando o Joaquim faleceu, e foi tudo muito rápido, eu cheguei em casa umas 18:30, e já ligamos para lá, e já tem todo aquele acompanhamento, 02:00 o Joaquim já estava no velório, foi tudo muito rápido. Ninguém, mais uma vez eu estava só, eu e meus filhos, o pessoal veio. Que hoje eu não faria, eu acabei avisando a família, a família dele, mas exceto um irmão dele, que chegou em mim e falou assim: “Olha, cunhada, não tenho muita coisa não, mas se você precisar de uma ajuda aí eu posso te dar uma força”. Falei: “Não, está tudo sobre controle”. Mais ninguém. Falou: “Você está precisando de alguma coisa, você foi pega de surpresa?”. Ninguém me ofereceu ajuda nenhuma, quem ficou junto comigo foi a minha irmã, que acabou ficando uns dias aí comigo, e então eu não conto muito aí com a família. Por isso que eu falo que não acredito, eu sou Tomé elevada à enésima potência.

P1 - Nossa.


R - Tomé é santo, São Tomé elevada à enésima potência.

P1 - Dê, você quer perguntar alguma coisa antes da avaliação?

P2 - Não, você quer da voz avaliativa, pode.

P1 - Nossa, Delmira, que história, daria para a gente ficar muito tempo assim, muito.

R - Muito tempo. E eu nem falei do meu pai, posso só falar um pouquinho do meu pai?

P1 - Claro, fica à vontade, do seu pai e do seu irmão.

P2 - Do Ariovaldo, eu fiquei curiosa também.

R - Meu pai também não se cuidou muito, e acabou aí tendo complicações cardíacas, AVCs, ficou dez anos na cama e acabou falecendo, mas meu pai era uma pessoa sábia, não tinha muita instrução, mas a vida lhe deu muitas instruções, e ele criou quatro filho honestos, coisa muito difícil, que se fala que toda família tem que ter um Advogado, um Médico, um Dentista e afins, e uma prostituta, na nossa família não teve nem Advogado, nem Médico, mas também não teve prostituta, mas também não teve, não desfazendo, cada um escolhe, faz suas escolhas e nós respeitamos. Mas meu pai soube conduzir muito bem essa família com todas as adversidades, pessoas batalhadoras e lutadoras. A minha irmã, depois de mim, ela se formou, também é Professora, lutadora, eu falo que eu sou uma Professora nota mil, e ela é nota mil e dez, e minha irmã é uma dedicada por excelência. E o Ariovaldo era meu irmão do meio, de vez em quando ele tomava umas biritas, e a gente achava que ele estava bêbado, e ele não estava bêbado. Um belo dia eu fui na minha mãe e ele estava estranho, ele pegava umas moedinhas e ele não conhecia: “Ele bebeu?”. “Não, não bebeu”. Ele: “Não, não estou bem assim já faz alguns dias, esses dias eu me perdi dentro da empresa, eu não sabia o que estava fazendo. E eu fui ao banco e eu não consegui, não lembrava da senha”. E ele perguntava para a gente: “O que é isso, o que é isso?”. “Uma moeda”. “E para que serve essa moeda?”. “A gente vai lá no açougue, no mercado, complementa e compra alguma coisa”. Aí eu falei: “Mãe, ele não está bem? Leva ele ao médico amanhã”. Minha mãe levou, aí o médico falou que ia morrer. Aí tem um conhecido nosso da área da saúde eu liguei e falei: “Eu preciso de ajuda, eu preciso de um Neurologista urgente”. Aí levou no Neurologista, pediu alguns exames, ele estava com tumor do tamanho de uma manga no cérebro, metade do cérebro, um quarto do cérebro dele estava tomado por aquele tumor. Aí já ficou internado, ficou internado um mês lá, e assim, antes de descobrir as pessoas brigavam e achavam que ele tinha bebido, eu nunca briguei com meu irmão, eu tenho uma proximidade muito grande com os homens da família e eu já falei. E eu chegava lá, quando eu ia na minha mãe, ele vinha todo feliz: “Oi, minha cheirosa, oi minha irmã querida”. E nesse dia ele estava ouvindo uma música sertaneja lá, eu não sei de quem é, quem são os autores, Bruno e Marrone, Choram as Rosas. Aí ele tentava cantar, falei: “Que música bonita, Ari, não conheço”. Ele: “Você pode levar o CD então, minha cheirosa”. Ainda tinha CD. Aí então eu vou levar o CD. E aí ele ficou internado lá no hospital em Osasco, precisava aguardar uns exames, fez os exames, e aí essa parte eu vou contar para vocês, não sei se depois pode publicar, tinha que fazer um exame aqui no Incor, e demorava muito o resultado, gente, nós roubamos o resultado do exame lá no Incor, depois se vocês acharem melhor não pôr, alguém entrou lá e não roubou, extraiu o exame. Porque nós tínhamos pressa, meu irmão fez a cirurgia, e os médicos sempre falaram para nós que era muito grave, mas a gente não ouvia que ele não podia sair vivo desse procedimento, eu não ouvia isso, eu queria que o meu irmão sarasse. E ele fez a cirurgia, no dia 22 de dezembro, aí ele já teve várias paradas durante a cirurgia, no dia 25 de dezembro deu morte cerebral. Ele fez 46 anos lá no hospital. E aí quando nós chegamos lá para visita, a equipe de transplante estava lá próxima para autorizarmos a doação. Eu não autorizei, eu sou muito egoísta, e eu não me arrependo, eu falei: “Ninguém salvou a vida do meu irmão, também não vou salvar a vida de ninguém”. Eu não me arrependo não, sabia, que eu não me arrependo. Aí ficamos eu e a minha irmã lá, que eu falei, nós vamos virar as costas e eles vão desligar os aparelhos e vão abreviar. Aí nós ficamos lá à noite, foi horrível, cada um ali, tinha uma senhorinha que passava com aquele caderninho empurrando lá, e a gente saía correndo e falava: “É da UTI?”. Eu perguntava se era da parte. Ela falava, não, aí a gente sentava aliviada, eu e a minha irmã, as duas loucas dessa família. Aí veio alguém e falou assim: “Você está esperando a morte do seu irmão?”. “Não, estou esperando um milagre. Em toda a história da medicina já houve um milagre?”. A pessoa falou: “Não”. Eu falei: “Então estou esperando um milagre e não a morte do meu irmão”. Aí dali a pouco veio alguém de lá, a minha irmã que tinha ficado mais, ela falou, é de lá, é de lá do setor de neurologia, e ficamos as duas paralisadas, aí alguém chamou lá, vocês precisam providenciar os documentos do Ariovaldo, e aí meu irmão faleceu de manhã. Aí sofrimento, as coisas tudo acontecem assim perto de datas comemorativas, foi no natal, meu irmão faleceu no dia 26 então, no dia 25 foi constatada a morte cerebral, nós não sabíamos da questão dos testes, que daí depois que nós ficamos sabendo, faz primeiro um teste que dá lá a possibilidade, e confirma, e o médico falava isso para a gente, mas nós não queríamos saber dessas coisas, mas que meu irmão melhorasse da situação que ele estava. Mas aí ele não resistiu. E ele falava para a minha mãe: “Minhas irmãs são tão loucas, tão doidas”. Porque ele via a nossa angústia, o nosso desespero. Ele falava para a minha mãe: “Se elas pudessem elas enfiavam a mão dentro da minha cabeça e tirava esse troço que está aqui dentro”. Então ele tinha momentos de lucides, e ele tinha momentos de apagão. E na véspera da cirurgia, era o especial do Roberto Carlos, ele era louco pelo Roberto Carlos. O que eu levei para ele ver? Sei lá, levei alguma coisa lá, um material, alguma coisa para ele acompanhar o show do Roberto Carlos, aí eu liguei para ele: “Você está vendo o show?”. Aí ele falou para mim que ele estava vendo, e que ele estava muito contente, então eu me despedi do meu irmão. E a música do Bruno e Marrone, quando eu quero entrar em uma choração só, é que agora meu carro não toca CD e eu não tenho no pen driver, ninguém quer porque para mim e eu não sei pôr. Mas quando eu quero chorar um monte, eu vou lá e ouço Bruno e Marrone, choram as rosas. Aí lá no velório no enterro do meu irmão, aí eu comprei um jazigo lá na hora, porque eu tinha comprado aqui, voltando ao assunto do jazigo. Eu acho que eu já extrapolei meu tempo. Eu tinha comprado aqui, aí lá ia ficar meio difícil trazer meu irmão para cá, eu não queria sepultar meu irmão, eu estava no mesmo cemitério que meu pai estava. Aí eu falei: “Dá para sepultar no mesmo lugar que o meu pai?”. Não dava. Aí: “Tem algum cemitério particular aqui?”. Tem. Já entramos em contato aí eu comprei outro jazigo lá, aí enterrei meu irmão lá, depois eu levei meu pai para lá, eu levei os ossos do meu pai no meu carro, e sem contar que eu tinha pavor de morto, eu não podia nem ouvir falar, nem passar em frente ao cemitério que eu ficava meses sem dormir, apavorada. E quando tudo isso passou, claro que se eu puder evitar eu evito, eu penso que não é legal para a pessoa que está ali exposta, ficar sendo admirada, não é nem um troféu, um buquê de rosas, eu tenho o maior respeito pela pessoa que partiu, e eu penso, eu não gosto, eu não gosto. E é isso.

P1 - É isso, é tudo isso?

R - É só isso porque a gente não falou nem a terça parte, quando eu ouço aí a história do Zezé de Camargo e Luciano e Luís Gonzaga eu falo isso é fichinha, não é nada.

P2 - Pior é que é mesmo viu.

R - Isso é tudo draminha da Rede Globo, draminha do Paraguai, eu falo, draminha do Paraguai, que draminha falso.

P1 - Mas, Delmira, tem mais alguma história que você queira contar, que a gente não te perguntou.

R - Mas tem uma coisa legal, quando eu fiz 60 anos a minha filha me deu de presente uma viagem para os Estados Unidos, para Miami, Orlando, acho que ela pensou que eu tinha voltado a ser criança, e aí nós fomos para a Disney, então eu tenho que falar coisa boa, gente. Foi muito bacana, ela me deu esse presente, me presenteou: “Mãe, se você quiser tomar uma água é só falar porque está incluso no pacote”. E foi, nossa, muito bacana, e eu quero levar o Luís Felipe lá, meus planos era levar esse ano, infelizmente não deu por conta de uma série de mudanças na vida da gente. E organização de lá, eu vou falar, de Orlando, que nós ficamos mais lá, nós passamos o réveillon em um dos parques lá do complexo da Disney, disse que comportaria 45 mil pessoas, e tinha 45 mil pessoas, nenhum incidente, eu fiquei assim, maravilhada com a organização, pensa, e tinha muito brasileiro, muitos brasileiros, muitos. Tem uns espaços lá naqueles parques que as famílias deixam os carrinhos dos bebês, as mães deixam suas bolsas com as carteiras, ninguém mexe, ninguém pega. Que lugar é aquele? E enteada da minha filha perdeu o celular, para variar, lá no banheiro, esqueceu o celular. Cadê o celular? Eu não falo nada de inglês, aprendi falar my family e how much e nada mais. E eu perdi o celular, os dois estavam naquelas montanhas russas, eu falei: “Espera a sua tia e o seu pai descer, para ir atrás”. E foram lá, o celular estava intacto, gente, no achados e perdidos, ninguém pegou o celular da menina. Eu fiquei impressionado com a segurança. Miami é igual São Paulo, muito parecida. Então tenho que falar das coisas boas. Fui ao Paraguai também, a minha filha me levou no Paraguai e não comprei nem uma agulha.

P1 - Que divertido. Tem uma coisa boa que eu queria te perguntar também, que não podemos deixar de passar essa pergunta. Como foi ser avó?

R - Então, eu amei, eu gostei muito, eu curti demais, eu curti o bebê, eu ficava com ele para eles saírem, eu adorei, eu amei, eu amo, é uma experiência assim incrível, eu adoro o Luís Felipe. Independente da forma como foi, porque eu queria muito que os dois ficassem juntos para criar o bebê, mas não quiseram. Mas é diferente, apesar de ser uma avó durona, mas é diferente, é bem bom. Eu tenho uma expectativa muito grande em relação a ele, ele é uma criança extremamente inteligente, ele sabe de coisas assim, esses dias, um tempo desses daí eu estava contando que o carro caiu sobre um aluno e tinha moído o fêmur do aluno, ele falou: “Vovó, o fêmur é o maior osso do corpo humano”. Ele devia ter uns oito anos. Eu falei: “É meu amor? E qual é o maior órgão, se o fêmur é o maior osso?”. “É a pele, vovó”. Aí eu falei para ele: “Está bom, se você sabe tanto, uma pessoa adulta que tem a dentição completa, quantos dentes essa pessoa deverá ter?”. “32 dois, vovó, 16 superiores e 16 inferiores”. Então ele fala de coisas assim, ele me dá aula. Ele é diferente, ele sabe as capitais dos países. E ele sabe o que é América, ele sabe o que é Europa, ele sabe o que é Ásia, ele sabe o que é Oceania, é diferente, é uma criança diferente, é impressionante, eu não quero nunca me decepcionar, e ele gosta muito de futebol lá, ele está na escolinha de futebol. Eu falei para o Valter esses dias: “Precisa tomar cuidado para não colocar na cabecinha dele uma ilusão, o que tiver que ser será, o que ele tem que fazer é estudar, o futebol é uma consequência se vier”. Claro, que nós vamos fazer porque é esporte, eu sou uma preguiçosa e eu não gosto, você está falando de acadêmica, eu tenho acadêmica aqui, gente, eu não tenho essa coragem, essa determinação que eu penso que para ir para a acadêmica tem que ser determinado, e eu não sou, não tenho essa determinação, gostaria muito, sabe que alguém me empurrasse.

P1 - O Valter comentou com a gente que o Luís Felipe também tem um grau de dermatite atópica?

R - O Luís Felipe tem, e não pode deixar facilitar, ele tem os indícios, não pode facilitar muito com Luís Felipe não. Então aqui eu cuidava muito na questão dos medicamentos, são todos muito caros, os hidratantes muito caros e não pode facilitar, se facilitar o Luís Felipe vai desenvolver isso.

P1 - Mas isso já tinha talvez alguma suspeita, vocês imaginavam que podia ter essa possibilidade?

R - Nunca imaginei, como os médicos sempre falaram, que não é hereditário, não tem história, mas o menino tem essa pretensão sim. Se ele ficar no calor ele começa a se coçar, se coçar desesperadamente, então quando ele está comigo está brincando um pouquinho, já chega em casa, já corre e toma banho: “Não, mãe, estou quente”. Para evitar. Mas o menino tem sim.

P1 - A luta dobrou?

R - Eu não sei, eu tenho medo, eu não gostaria não, porque não é fácil não. Se preciso for eu tenho que me policiar para não sofre tanto, que o sofrimento já é muito grande.

P1 - Perguntas finais de verdade. A primeira é, como você sentiu contando a sua história hoje para a gente?

R - Eu achei incrível, porque ninguém nunca quer ouvir muito a história da gente, ninguém quer, a família de novo essa história já ouvi, de novo não sei o que, eu já ouvi. Então acho que ninguém nunca ouviu, e eu sempre falo, se eu fosse contar a minha história não daria um livro, daria uns dez, só que muita gente ia chorar, e chorar de emoção, é chorar por dó, e não dá para chorar por dó, é triste, chorar de emoção é bom, porque daí é um envolvimento, envolvimento da história, por dó, é muito difícil. E eu nem falei para você da blusa dos três irmãos. É muito legal essa história.

P1 - Pode contar a blusa dos três irmãos.

R - Estava vindo eu da escola lá, sujava tudo a roupa, porque só tinha chinelo gasto, uma desgraça, gente, que tristeza. Aí estava vindo da escola, São Paulo fazia muito frio, uma garoa, as ruas não eram asfaltadas, sujava toda a roupa, de chinelo, estava uma garoa. Encontrei uma senhora, uma mulher, uma menininha mais ou menos do meu tamanho, uma garotinha, falou para mim: “Você vem de onde, vai para onde?”. “Eu estou vindo da escola”. Ela falou para mim: “Mas sem blusa? Por que você não pôs uma blusa?”. “Mas eu não tenho uma blusa”. Eu falei para ele que não tinha, eu não tinha mesmo. Ela fez a menina tirar, a menina estava com algumas blusas, tirou a melhor blusa e me deu. Cheguei em casa, aí meu pai queria saber de quem era a blusa, contei a história para ele, e ele também era muito desconfiado, também não acreditava muito que esmolas caíssem do céu, mas não encontrou mais a mulher, ninguém foi reclamar pela blusa e eu falei a verdade. Aí eu estudava em um horário, quando eu chegava o outro tinha que ir para a escola, tirava a blusa para o outro ir para a escola. Quando o outro chegava tirava a blusa para o outro ir para a escola. A blusa dos três irmãos. Meu pai: “Cadê a blusa dos três irmãos?”.

P1 - Como era essa blusa?

R - Ela era cinza, então dava para os três irmãos, era uma espécie de casaquinho que abotoava aqui na frente, e aquecia, tirava um pouco, se não aquecia, pelo menos, nos deixava um pouquinho mais confortável de não ir para a escola sem blusa, porque se eu chamei atenção da moça lá, da senhora, todo mundo deveria olhar e falaR - “Poxa vida”. Então ia falar igual minha mãe: “Coro de jegue”.

P1 - No dia seguinte você chegou a encontrar de novo essa mulher?

R - Não, não encontrei mais porque foi um encontro casual, ela ia para algum lugar com a filha, e eu nem sei se eu agradeci, eu fiquei muito envergonhada. Mas dá, se você quiser fazer um outro dia, tem história.

P1 - Não, acho que agora a gente já está mesmo caminhando para o fim, Delmira, e a gente está realizando esse projeto, que é contar a história de vida daqueles que tem a dermatite atópica, e também quem faz parte da vida dessas pessoas, como você, mãe do Valter. Como que você avalia esse projeto, essa iniciativa?

R - Porque nessa caminhada do Valter não é só ele que tem a dermatite, eu por proximidade eu adquiro também por ser mãe. Eu só tenho que achar assim, extremamente positiva essa iniciativa, elogio, não tenho adjetivo, veio em um momento extremo das nossas necessidades, da minha, e acredito que para o Valter também. Só tenho que agradecer esse caminho, esse canal, que eu não sei qual foi, penso eu que foi tudo através lá da Fundação, que chegamos à Senofi, que chegou até vocês. É isso.

P1 - Última pergunta, pode pensar um pouquinho antes, quais são os seus sonhos?

R - Eu não tenho muitos sonhos, assim, em relação a mim, não, eu estarei realizada se eu ver os meus filhos realizados em todos os aspectos, profissional, financeiro, com essas necessidades supridas, em especial o Valter, que é o que mais está necessitando nesse momento. Para mim como pessoa, para mim satisfaze, eu acho que estou bem.

P1 - Mais alguma coisa? Dê?

R - Vou ficar satisfeita se esses sonhos forem realizados.

P1 - Então, Delmira, muitíssimo obrigada por compartilhar a sua história de vida, mesmo.

R - Eu que agradeço, agradeço pela oportunidade, agradeço pela paciência, pela dedicação. Penso eu aqui, que nem um valor financeiro supre essa dedicação de vocês. Eu sou totalmente contra trabalho voluntário, todas as pessoas, eu defendo a tese de que todos devem ganhar pelo seu trabalho, mas nenhum salário compensa essa dedicação. Eu penso aqui, e desde a hora que vocês chegaram, avaliando, o que leva à tanta dedicação a ficar ouvindo tantos lamentos, o que leva, eu não sei se é um dom, e se for, vamos agradecer, porque penso eu que é um dom. E eu é que agradeço, muito obrigada à vocês.

P1 - Então em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada mesmo.

R - Eu que agradeço.