Museu da Pessoa

Simplicidade, afeto e música. Um retrato do Brasil

autoria: Museu da Pessoa personagem: José Rodrigues de Oliveira

Projeto: Aché

Depoimento de: José Rodrigues de Oliveira

Entrevistado por: Eliana Reis e Immaculada Lopez

Data: 15 de julho de 2002

Local: Guarulhos

Realização: Museu da Pessoa

Código: ACHE_HV025

Transcrito por: Maria da Conceição Amaral da Silva

Revisado por: Luíza Barboza Gomes


P/1 – Então, para começar, gostaria que você dissesse nome completo, local e data de nascimento.

R – Meu nome é José Rodrigues de Oliveira, nascido no dia 18 de junho de 1950, no município de Boa Viagem, no sertão do Ceará.

P/1 – Toda a família é da mesma cidade?

R – Os que não são da mesma cidade são vizinhos, mas meus irmãos mesmo são todos da mesma cidade... Nasceram na mesma casa.

P/1 - Pais? Avós?

R – Os pais e os avós, os pais dos maternos nasceram em Boa Viagem. E os pais dos paternos nasceram no município de Quixeramobim. Que é vizinho.

P/1 – Como se chamam os seus avós maternos?

R – Os maternos chamam Joaquim Rodrigues Carneiro e Maria Amélia Rodrigues Carneiro.

P/1 – Você os conheceu?

R – Graças a Deus.

P/1 – Conta um pouquinho como eles eram, a vida deles.

R – Você quer saber fisicamente, ou a forma como viviam?

P/1 – As duas coisas. [risos]

R – As duas coisas? Meu avô era um cidadão um tanto humorista. Ele observava e sempre fazia críticas gracejantes. Era uma forma dele. E era também reconhecido como conselheiro. Quando alguém estava com dificuldade em determinados problemas o procurava para obter dele um conselho para uma melhor solução do problema. Às vezes quando não conseguia resolver o problema, também não multiplicava. Antes, sempre amenizava. E, apenas um exemplo, lá no interior do Nordeste tem todas aquelas questões de terras. Para vocês pode até ser estranho. Você compra aquela determinada quantidade de terras, que lá chama léguas. Meia légua, uma légua, duzentas braças e assim por diante. Então você tem muito aqueles questionamentos. Que são aqueles piques tirados há tantos anos. Depois o mato crescia e escondia aqueles limites e, um mais esperto começava a explorar a terra do outro. Aí começava aquele atrito entre famílias. Aquela questão, aquela briga. Saía até morte muitas vezes por causa daquilo. E meu vô sempre foi convidado para esses fins. Aí quando chegava no censo surgia a intriga. Eu tenho uma cerca aqui. Nesse limite. É meu limite. Só que o vizinho aqui é meu adversário que questionou, que quis invadir a minha propriedade, eu não vou dar encosto a ele para ele vir com a cerca dele de lá encostado na minha, aqui. Ele vai ter que fazer uma outra cerca. E ficariam duas cercas paralelas com meio metro de distância uma da outra. Falta de caridade mesmo, né? Vocês imaginem ter que fazer meia légua de cerca se podemos fazer apenas dois metros? E nessas questões, eu vou dar um exemplo. Certa vez estava lá duas famílias com esse atrito e meu vô foi convidado para um conselho. Aí ele juntou os adversários separadamente. Conversou com um, depois conversou com o outro. Cada um fez os seus argumentos. Aí ele chegou em um e falou: “Me diga uma coisa: você diz que eu sou seu amigo. Se eu te pedir um pente de cerca – pra vocês é estranho essas palavras, mas lá é muito popular – um pente de cerca você me daria?” “Dou com todo gosto. Vou te negar um pente de cerca?” “Tudo bem. Então eu agradeço e quero.” Chegou no outro e falou a mesma coisa: “Se eu precisasse de um pente de cerca da sua propriedade você me daria?” “Dou.” Ele falou: “Então está resolvida a questão. Esse pente de cerca aqui é meu. Não é de Fulano. Você pega a sua cerca e emenda aqui nesse pente de cerca que é meu.” E resolveu a questão.

P/1 – Um pente de cerca era um pedacinho da cerca?

R – Era um pedacinho. Porque você corta as estacas mais ou menos de dois metros e meio. E faz trançada aqueles pentes de cerca. Aí então, sim, ele pediu esse aqui para o encosto. E pediu o outro que vinha de lá, então acabou a questão. Porque ambos tinham dado o pente de cerca para ele. Então o de lá era dele e o de cá também era dele. Então ele falou: “Pega o seu pente de cerca e emende no meu que eu emendo no outro aqui que é meu e pronto. Acabou a questão.” É um dos exemplos da forma que ele agia nos conselhos dele. E era muito humorista assim. Sempre que ele via alguém ele tinha um apelido para colocar. Era gracejante. Contava muita história de vaqueiro. Pega de boi que ele também foi vaqueiro, né? E ele era um cidadão de tamanho médio, branco dos olhos azuis. Cabelos finos. E muito meigo. Teve uma família maravilhosa. Parece que foram 13 filhos. 11 mulheres. Todas ficaram, as 11 moças dentro de casa.

P/1 – Sem casar?

R – Sem casar, não. Depois casaram todas, mas ficaram, se formaram todas dentro de casa. E graças a Deus nunca vi um atrito dele com a minha avó. Sempre viveram em paz. A vida deles como pobres, humildes, mas felizes e pacatos... E morreram velhinhos se gostando muito.

P/1 – Trabalhava com quê?

R – Agricultura.

P/1 – E a mãe dele? Aliás, a esposa dele também ajudando?

R – Isso, a esposa dele trabalhava na roça e em casa. As meninas também trabalhavam na roça. Ela tinha 11 filhas e o resto era homem, todos trabalhavam na roça.

P/1 – Trabalhavam com que produtos? Como era o trabalho na roça?

R – A produção da roça da região onde a gente foi criado, seria o básico mesmo: arroz, feijão, milho e algodão. E depois a palma, que plantavam para a ração dos animais.

P/1 – Esse trabalho era feito pela própria família? Como era?

R – Pela própria família. Desmatava, o que gente chamava brocar, um pedaço de mata virgem. Queimava, cercava, e ali plantava aqueles determinados cereais. Quando o ano tinha inverno, era milho, feijão, algodão e o arroz. Tudo plantado no mesmo espaço. E nas represas, nos açudes -aqui chamam de represa, lá chamam de açude-, quando a água ia diminuindo se descobria aquelas terras férteis, e plantavam batata e tomate. Mas só para o consumo de casa mesmo, nada para vendas.

P/1 – A propriedade era deles mesmo?

R – Era dele mesmo. Ele trabalhou para outros, mas quando teve condições, comprou a propriedade dele. Quando eu nasci, ele já tinha a propriedade dele. Eu fui o primeiro neto a nascer e o primeiro neto a morar na propriedade dele... Porque quando eu nasci, como ele tinha recentemente comprado, não tinha nem mudado da fazenda vizinha, onde morava para ir para aquela terra. Eu fui o primeiro morador da terra dele, juntamente com meus pais.

P/1 – Você lembra dessa casa?

R – Demais.

P/1 – Dessa propriedade? Como era?

R – Há três anos eu fui lá no local onde nasci, e vi a casinha. Eu nasci em uma casa de pau-a-pique. Eu não sei se é do conhecimento de vocês... Sabe como é?

P/1 – Como é? [risos]

R – É uma casa com estrutura simples. Se põe forquilhas nos cantos, invés de colunas, lá se coloca forquilhas de aroeira. Aroeira é uma madeira forte, resistente ao cupim e a terra. E se coloca as outras madeiras e se faz o fechamento das paredes com pau. Pau a pique e varas amarradas com cipó. E depois você maceta o barro, deixa como uma argila, e joga com a mão nas paredes passando assim, o acabamento é com os dedos. Você passa a marca dos dedos assim, acertando as paredes com o dedo, aquelas coisas riscadas. Depois com o tempo, ela racha. Aí, daquelas rachaduras vem a barata, vem o barbeiro... E esse tipo de inseto, lá a gente chama lacraia, aqui chama escorpião... O piolho-de-cobra que é aquele bicho que tem bastante perna, que anda rápido assim, tudo se aloja naquelas brechas daquelas paredes. E assim a gente convive com tudo isso. Parece comum...

P/1 – E coberta de que jeito?

R - ...normal, de telha. A telha é feita de argila queimada no forno. E em cima você faz o estilhaço de madeira. Põe a madeira com as quedas. Põe as madeiras finas, que se dá o nome de ripa... as médias são os caibros, e as grandes, as mais grossas e mais fortes, são as linhas, assim é pronunciado lá... E se faz a cobertura de telha normal.

P/1 – Então você viveu nessa casa, que foi onde você nasceu.

R – Eu vivi nessa casa até os meus 20 anos.

P/1 – Essa era a casa dos avós maternos?

R – Não, essa era a casa dos meus pais. Mas meus avós maternos moravam nas mesmas condições, a casa era da mesma forma, só que em outra fazenda vizinha. Depois ele construiu uma casa mais moderna, nesta fazenda que ele comprou. Aí já foi um casarão, feito de tijolos mais modernos, que teve reboco, que teve um piso... Não um piso de cerâmica como nós conhecemos, mas um piso de ladrilho. Ladrilho é um tijolo feito de argila queimado no forno, você espalha areia dentro de casa e senta ele na areia, fica como piso.

P/2 - Só para esclarecer: o avô do senhor compra essa propriedade, constrói essa casa mais moderna.

R – Sim.

P/2 - Ao mesmo tempo os pais do senhor se mudam para essa mesma propriedade?

R – Não. Meus pais vieram antes do meu avô.

P/2 – Ah, tá.

R – Nessa casa que eu falei, eu fui criado. Só depois foi que meu avô fez a casa mais moderna para morar com a família dele. Eu e meus pais continuamos morando na mesma casinha... depois de alguns anos, aos 20 anos de idade, meu pai fez uma outra casa mais moderna no estilo daquela do meu avô, e a gente passou a morar. Eu morei pouco tempo nessa casa.

P/1 – Tá certo. Mas ainda voltando para a história dos avós...

R – Sim.

P/1 – Eu queria saber um pouquinho agora dos avós paternos. Nome deles...

R – Não há muita diferença da história de maternos para paternos. Mas o nome do meu avô paterno era Francisco das Chagas Costa. E da minha avó, Maria da Conceição de Assis. Então...

P/1 – Não há diferença porque moravam na mesma região?

R – Isso, moravam em um outro município. A casa era semelhante, com os mesmos costumes de vida, que era a agricultura, da mesma forma. Também era uma família grande, parece que 12 irmãos... Todos trabalhavam na roça e minha avó levava a vida que eu te falei há pouco tempo, igual a outra, de cuidar do lar, fazer a comida, fazer o remendo da roupa, fazer o asseio da casa, cuidar da lenha, cuidar da água para a casa, e assim por diante.

P/2 – Como o senhor acha que era um dia típico da vida da avó do senhor?

R – Olha, por incrível que pareça, era um dia alegre e feliz. Ela tinha aquilo como uma responsabilidade, para ela não chegava nem um momento de: “Meu Deus, para que eu casei? Para que eu assumi uma família?” Sempre era motivo de reunir a família a noite, e em vez de assistir O Clone, pegava o terço e a família inteira rezava o terço ali reunida.

P/2 - Ela acordava cedo? Como era?

R – Acordava cedo. Lá, 5 horas da manhã estava todo mundo de pé. Também, em compensação, 8 horas da noite estava todo mundo na rede... Porque cama não existia, era rede mesmo.

P/2 – Aí, ela acordando 5 horas da manhã, o que fazia no decorrer do dia?

R – A primeira coisa, era catar lenha no mato, fazer o fogo naquela trempe de três pedras, colocar uma chaleira de lata com água para ferver, e fazer o café.

P/1 – E depois do café?

R – Depois do café vem o bolo ou a tapioca para comer com café, e depois, por aí vai. Enquanto ela, a vó, fazia o café... o vô estava no curral desleitando as vacas ou as cabras, conforme fosse. Todos tinham vacas, cabras e ovelhas, mas a ovelha ninguém desleita lá. Alguns usavam, mas praticamente era só a cabra e a vaca. Vinha o leite para quem quisesse, e quem não quisesse comia aquele bolo ou aquela tapioca com café, e ia para a roça para trabalhar. Tinha determinada época do inverno que se tinha uma quantidade maior de leite, aí vinha também a coalhada.



P/1 – Mas a avó não ia para a roça?

R – Ia.

P/1 – Ia também?

R – Depois que ela encaminhava o almoço, ela ainda ia lá dar uma ajuda, ou vice-versa... Ela ficava lá até a hora de levar o almoço, e enquanto a família almoçava e descansava, ela ia cultivando a roça, enquanto eles terminavam. Depois ela voltava para casa para cuidar da janta.

P/2 – E esse almoço o que era?

R - Basicamente arroz e feijão. (...) Não, basicamente feijão, cuscuz de milho e rapadura. Sempre...

P/1 – A alimentação é bem diferente.

R – Bem diferente e bem pesada. Aqueles mais possibilitados sempre tinham e criavam porcos. Engordavam lá no chiqueiro reservado, e matavam. Quando terminava um, matava outro. O tempero era a banha do porco, aí fazia, torrava toda aquela carne e guardava. Não em geladeira, não existia geladeira. Torrava e guardava em uma lata, então ao meio dia pegava aquela gordura fria, juntamente com aquela carne, aquecia, passava farinha, fazia aquela farofa e usava justamente para comer com feijão. O torresmo também era todo estocado, de manhã muitas vezes usavam, socando o pilão. Aquele torresmo com farinha de mandioca fazia a farofa, e comia com rapadura. Forte... [risos]

P/2 - Tá certo. Tinha mais tarefas domésticas que a avó do senhor fazia?

R – Ah, com certeza. Porque nunca faltava um bebê às mães. Aí então tinha que lavar todo dia os cueiros, não tinha a fraldinha descartável que nós usamos hoje, era um cueiro feito de chita de algodão. Então tinha que lavar aqueles cueiros com cuidado, separado das roupas dos adultos... E lavar não era em casa, era lá no rio ou no açude. Lá as mulheres lavavam roupa acocoradas em cima de uma pedra. Lá esfregava com a mão, batia com aquela roupa na pedra para desencardir, usavam o sabão de mamona ou de gordura, o sabão que era feito em casa... Não tinha essa história de comprar em pó, nem líquido, não. Era o sabão feito em casa. E como fazia esse sabão?! Olhem o detalhe: Vocês vão perguntando e eu vou lembrando... Não tem que usar soda?! Soda cáustica para fazer o sabão?! Para cortar as gorduras e se fazer o sabão?! Nem todos podiam comprar aquela soda... Então cortava-se angico, que é uma madeira da mata virgem, queimavam ele verde, que dava aquela cinza forte, colocava em uma lata, e colocava para estilar lá em um canto de parede. Então aquela decoada destilada -daquela cinza molhada pingando lá no fundo daquela lata- era tirada para fazer o sabão, para substituir a soda. Colocavam aquela decoada - como eles chamavam - naquela carne, naquela gordura, ou na mamona ou no pinhão... descascavam e macetavam no pilão. E lá se mexia no fogo até chegar ao ponto de ser o sabão. Colocavam para esfriar, cortavam os pedaços e usavam na lavagem. (...) Continuando a lavagem, tinha cuidado com os cueiros das crianças... Eram estendidos separado no varal. Mas não tinha varal mesmo, era cerca, sempre a cerca dos quintais. À tarde, a mãe ou a irmã mais velha, ou o irmão - o que eu mesmo fiz muito para meus irmãos - catava aqueles cueiros, juntava eles, pegava uma cadeira que chamava tamborete, deitava assim, colocava um flamo em baixo com brasas ardentes, e a gente raspava cedro – que é uma madeira cheirosa – e colocava aquela raspa naquelas brasas para a fumaça dar cheiro de madeira naqueles cueiros. Era a moda de esterilização. E depois a gente aquecia o ferro que eu falei, enchia de brasa, e soprava no fundo até esquentar. Colocava aqueles cueiros em uma mesa forrada e passava para usar na criança. E isso era uma coisa que tinha que ser feita diariamente, porque não tinha uma infinidade de cueiros, todos os dias era aquele repeteco, repetia as mesmas coisas. Além das demais coisas da casa, porque a mãe além de ter todo esse sacrifício, de socar milho no pilão, socar arroz, pisar milho de molho para fazer o pão, ou moer naquele moinho de madeira feito com dois braços, ainda tinha que cuidar das outras obrigações. Fazer trancinha para fazer o chapéu... Porque todos usavam chapéu na roça para trabalhar, e era ela que fazia também.

P/1 – Fazia esteira também?

R – Também, cama não existia. Fazia esteira para animal também, e aqueles mais ativos, muitas vezes faziam até esteira extra para guardar, para deitar quando chegava alguém... Ou para descansar um pouco no meio do dia, faziam aquela esteira grande para deitar, tipo um colchão, uma esteira feita de palha de bananeira ou de carnaúba.

P/1 – Em geral, como que era a mobília das casas?

R – [risos] Que engraçado você me perguntar. [risos]

P/1 – [risos]

R – A mobília da casa, minha filha... você quando ia se casar, você mandava, ia na louceira...

P/1 – Como?

R – A louceira era aquela mulher que fazia vasilhas de barro. Encomendava lá um tacho de torrar café - que não é nada mais do que um alguidar, assim meio comprido, pontudo, para torrar o café. Até o café era torrado, não era cafezinho de pó não, era socando no pilão para fazer o café - um outro tacho grande para fazer sabão, três ou quatro panelas de tamanhos diferentes - que era para o arroz, para o feijão, e para a carne, no dia que tivesse – e pratos de barro para comer o leite. Ia no carpinteiro, mandava-se fazer meia dúzia de tamboretes, e uma mesa. Ia-se no mato, cortava algumas forquilhas de três ganchos grandes, fincava lá em um canto da parede e a mesma louceira fazia os potes para se colocar água - que são os botijões grandes para se encher d’água pro consumo do dia a dia. Isto era a mobília.
Ia-se na tecelagem, na tecedeira lá, a própria noiva fiava o fio... Fazia aqueles novelos de fio de algodão, e levava até a tecelã para tecer redes para o casal dormir, e para ter uma ou duas de reserva pra quando chegasse uma visita. Isso era a mobília básica do começo de uma família, nessa época.

P/2 - O senhor descreveu o dia de trabalho. Aí quando chegava a noite tinha também o momento de brincadeira, de...

R – Tinha.

P/2 - Como era?

R – A gente não tinha televisão, não tinha rádio. A gente se reunia, rezava o terço, se contava histórias, se lia romances -romance é aquele livretinho de cordel feito pelos poetas, que era uma das maiores fontes de comunicação da época. O poeta é um andarilho, ele vai para a cidade, leva as informações do campo para a cidade e traz as informações da cidade para o campo nos seus repentes, nos seus versos, nos seus romances. Então muitas famílias costumavam se reunir à noite, e liam aqueles romances. Aqueles mais atirados até cantavam, decoravam aqueles romances e cantavam para os outros ouvirem, pegavam um violãozinho para bater. Então a família tinha diálogo, tinha aconchego, tinha um tempo de comunicação. Ao passo que infelizmente, hoje na modernidade, na avançada tecnologia, as famílias se reúnem, mas não se reúnem, cada um fica individual em um programa de televisão, em um computador, ouvindo um som com o aparelho nos ouvidos... E assim é o dia a dia. Quer dizer, a família está unida e não reunida, porque ela não tem diálogo.

P/2 - Na casa do senhor, quem é que lia?

R – Na minha casa quem se atirou mais para esse lado fui eu. Inclusive, aos 17 anos de repente comecei a profissão. Consegui uma violinha, incentivado pelo meu tio, e comecei a cantar repentes, a cantar poemas e canções. E assim eu era o mais procurado para fazer esse tipo de trabalho.



P/1 – E na casa daquele avô que gostava fazer graças?!

R – Ah, aquele contava mais história. Então se reunia mais às “bocas de noite”, para contar história... Do tempo da infância dele, história de boi valente, história de onça, história de caçador. Esse tipo assim, histórias folclóricas.

P/1 – Lembra de alguma história que ele contou, que tenha marcado?

R – Olha, uma das histórias que eu mais gravei, foi uma história triste, infelizmente. Nós estamos falando de coisas alegres, mas eu vou só contar rapidamente um grande acontecimento que ocorreu com ele. Ele, muito jovem, trabalhando na roça, foi vítima de uma picada de uma cobra venenosa, uma cascavel. Ele tinha apenas 19 anos de idade, e ele falou que naquela época tinha uma espécie de curandeiro, e uma espécie de pedra, que pode existir até hoje... Uma pedra com um imã forte, e quando alguém era picado pela cobra venenosa, era levado até a casa daquela pessoa para ele colocar a pedra na cicatriz, porque a pedra, com aquele imã, puxava o veneno da cobra, né? E amenizava a descarga que dava no corpo. Ele falou que foi em uma época de inverno, foi pra roça quebrar o milho -milho verde usavam muito para fazer a pamonha, a canjica, esses determinados tipos de comida que na época do inverno é muito comum - e sem menos esperar, passando perto de uma moita, ele foi picado pela cobra venenosa. De repente faltou a visão dele, alguém viu e socorreu... Levou ele, chegou lá e colocaram a pedra. Se a pedra não segurasse, era porque a pessoa não tinha mais jeito, então colocaram a pedra três vezes nele. Na segunda vez o homem falou: “Olha, se colocar mais uma vez e não der certo, ele não tem jeito.”Aí na terceira vez deu certo. Ele quase morreu, mas sobreviveu. Depois foi picado mais duas vezes, mas graças a Deus superou e viveu até toda essa idade. Só que ele pegou aquele problema, Mal de Parkinson, né? Que ele ficou trêmulo. Ele trabalhava, ele conversava e tudo, mas tremia. A cabeça dele era assim, toda vida tremendo, e as mãos também. Mesmo assim, ele ainda fazia tiro ao alvo... Porque lá, a gente cria aquela galinha d’angola que você só pega no tiro, e muitas vezes eu o vi matar aquilo lá de tiro, muitas vezes. Mesmo com a mão trêmula ele levava a espingarda até chegar ao ponto de encostar em uma madeira, em um pé de árvore... Ele encostava, firmava, atirava e lá ela ficava. [risos]

P/1 – Tá certo.

R – E ele além do trabalho da roça, fazia malas. Malas de couro, de couro cru. Que é para colocar em animais... Lá eles chamavam de mala mesmo, outros chamam de cassuá. Faziam aquela mala para carregar no animal. Ele fazia muito, e aquilo era costurado com correinha. Ele cortava aquelas correinhas fininhas, mesmo com aquela faca azuladinha, com aquele sacrifício. Eu cansei de ver, ele pisava assim, e ele com a mão tremendo até firmar, quando firmava ele puxava para fazer os cortes e as costuras bem feitinhas.


P/1 – E quanto ao seu pai e sua mãe, você sabe como eles se conheceram?

R – Sei.

P/1 – Como foi? [risos]

R – Meu pai e minha mãe são parentes, né? Como eu falei há pouco tempo. Era difícil a família sair totalmente da família. Sempre se casavam com parentes. Lá existe uma profissão, que é de agricultor, mas há uma determinada época do ano, entre julho e agosto, que são feitas as farinhadas. Farinhada é uma casa de farinha, uma casa de farinha é uma casa grande, é onde você faz a farinha de mandioca. São contratadas mulheres, especialmente moças, para raspar aquela mandioca. E os homens são contratados para puxar a roda, para cevar aquela mandioca, para prensa e para torrar, e para arrancar a mandioca lá no campo. Então meus pais se conheceram ali, minha mãe trabalhando lá, descascando mandioca, e meu pai puxando roda. É muito difícil explicar para vocês, mas a roda era o seguinte: tem uma roda grande feita de madeira com dois braços de ferro, dela era ligado um reio, como uma correia de “reitolina” lá para um banco, lá onde estava o caititu, chama tarisca. O caititu era uma bola de madeira com várias tirinhas de dente com uma serra, várias tirinhas de serras, e marretado naquela madeira com pontos amolados e agudos, para você encostar naquela mandioca e ela cortar. Ao lado tinha uma outra bola de madeira que era onde ligava a correia feita de couro cru de boi na roda grande. E dois homens tinham que manter aquela roda embalada. Você pegava assim, dava aquele soco e soltava, e a mesma coisa embalada para cevar aquela mandioca. E lá tinha alguém colocando aquela mandioca com o máximo de cuidado, porque quando você errava ou quebrava a mandioca e escapava, você metia a mão lá, e os dedos iam embora na hora, tinham vários aleijados.
Então meus pais se conheceram ali, e por aí vai. A paquera da casa de farinha era assim: nos intervalos você ia na rama de mandioca, começava a cortar a cabeça da mandioca para as meninas verem, ou botar capote – pra botar capote você raspa metade da batata e joga para o outro raspar a outra metade, para ver quem é o mais rápido. E ali começava, jogava um pedacinho de casca em um, jogava um pedacinho de casca no outro, e aí começavam as paqueras e saiam os casamentos. [risos]

E com meus pais não foi diferente, foi ali que começou.

P/2 - Tá certo.

P/1 – E você foi o primeiro filho?

R – Eu fui o primeiro filho.

P/1 – E muitos irmãos?

R – Primeiro filho e primeiro neto do meu avô também.

P/1 – E muitos irmãos?

R – Muitos irmãos, 11. Praticamente 10, porque um foi aborto – que eu tenho conhecimento. Dois faleceram e oito se criaram, casal por casal. Sempre nascia um homem e uma mulher. Então, infelizmente, aos 21 de idade o meu irmão Antonio Jesuíta foi vítima de um bandido que atirou e tirou sua vida. Deixou uma viúva de 19 anos e uma menina com 3 meses.

P/2 - Então vivos, são?

R – Vivos são sete.

P/2 - Cresceram todos lá?

R – Cresceram todos lá, hoje estão todos aqui em São Paulo. Uns são empregados, outros são comerciantes, outros são do lar. Mas a gente vive aqui, entre Rio Claro e Itaim Paulista, está a família toda espalhada. [risos]

P/1 – [risos] E como era a infância? Essa casa cheia de crianças?

R – Maravilhosa. Naquele tempo as crianças, eu não sei por quê, se gostavam mais. Tinha uns atritos de criança, mas não tinha essa “brigaiada” danada que as crianças de hoje têm... não podem se juntar que se questionam. A gente brincava com as brincadeiras típicas da época. Que vocês...

P/1 – Quais eram?

R - ...nem imaginam. Olha, o carrinho que a gente usava naquela época era um pedaço de talo de milho. Com uma bola assim no meio, uma rodinha de cabaça... Vocês conhecem cabaça? Conhecem... Então, fazia aquela rodinha de cabaça, colocava no meio com um pau, e lá você empurrava aquele carrinho. Você brincava e se divertia o dia todo. Ou então fazia da mesma forma, mas com talinhos de taboca ou de carnaúba, um jeitinho mais sofisticado, mas tudo artesanal, tudo coisa grosseira. Mas a gente tinha o maior amor, zelava aquilo. Ainda hoje eu tenho brinquedinhos do tempo de criança. Eu ganhei um apito da minha tia, que até hoje eu tenho guardado, todo de metal... para você entender como era naquela época. Era tipo de uma corneta para você soprar, toda de metal. Eu ganhei um cachorrinho de uma outra tia minha, quando começou a aparecer a modernidade, um cachorrinho de plástico miudinho, uma miniatura. Até hoje ele está guardado lá em casa, não sei onde, mas ele está. Então a gente tinha amor àquilo, não era como hoje, que você compra um brinquedo para uma criança no Natal, e em janeiro já está no lixo. A gente tinha amor, a gente valorizava. Então a gente brincava de correr, de esconde-esconde, brincava de roda, de cirandinha, brincava com bolinha, pegava umas meias velhas e juntava, fazia aquela bolinha... Brincava com bola no terreiro de noite, brincava também de baladeira -uma brincadeira um tanto perversa, mas é atirar nos passarinhos para ver quem acertava mais, porque era muito comum na época. A gente valorizava a vida da gente, e como criança a gente não tinha rádio, não tinha informação, não sabia de nada ruim. O único susto que a gente tomava era quando sabia da morte de algum parente. Mas ninguém sabia, não ouvia falar em assalto, não ouvia falar em estupro, não ouvia falar em roubo, em nada, a gente era isolado do mundo. Passava avião lá no alto, não sei, de mês em mês. Todo mundo ficava de cabeça para cima, olhando... E assim a gente levava a vida, tranqüila.

P/1 – Morando na roça.

R – Morando na roça.

P/1 – E iam pra cidade de vez em quando?

R – Dificilmente. A primeira vez que eu fui na cidade já era rapazinho. A primeira vez. Um medo danado. Quando eu chego lá, vejo aquele movimento, passando carro, passando gente, aquele negócio... Soldado fardado, aquelas armas. Eu fiquei amarelo.

P/2 – Que cidade era?

R – Boa Viagem. [risos]

P/1 – Você foi fazer o quê, na cidade?

R – Era sempre com um tio meu... se tinha trabalho em banco, ele fazia empréstimo e ia pegar aquele dinheiro. Ele não gostava de andar sozinho, aí num determinado dia ele me convidou, para me levar. E eu fui conhecer, fiquei curioso. Depois eu voltei lá para tirar os documentos.

P/2 - Como era a cidade?

R – Pequenininha, simples, mas para mim era um fantasma. [risos] Algo que eu nunca tinha visto. Era uma cidadezinha pequena, com duas, três ruas só. Tinha uma delegacia, uma igreja, um cartório e o comércio, com uma feirinha.

P/1 – E mesmo sem sair muito da roça, tinha festa? Como era?

R – Sim, muitas festas. Mesmo na roça, distante, tem aqueles forrós... O pessoal fazia aqueles forrós. Eu não fui muito de forró, porque a minha família por parte de pai gostava muito, mas a família por parte de mãe não queria nem ouvir falar. E eu como sempre procurei ser um filho obediente, para não contrariar a minha mãe, não frequentava o forró. Dificilmente, depois de rapaz formado, fui a alguns, pedindo a permissão dela. Mas apenas assisti... Tanto que todos os meus irmãos dançam como pimenta.

P/1 – [Risos]

R – E eu não danço, nunca dancei.

P/2 – E não tinha igreja? Não ia?

R – Tinha igreja. Essa era uma coisa sagrada, todas as famílias iam. Era uma vez por mês a missa. Mas todos iam, se confessavam, comungavam, assistiam a missa e voltavam. E se caminhava duas, três léguas para isso.

P/1 – Essa igreja ficava onde?

R – Essa igreja ficava na fazenda Santa Terezinha. Era a mais próxima, que nesse tempo não era igreja ainda. Era na casa do fazendeiro onde eram celebradas as missas. E uma outra na fazenda Belmonte, que era a igreja mais antiga, que era perto do cemitério também. Ficava lá na Lembranças, o limite era o rio... Rio da Conceição, que fazia a divisão entre a fazenda Belmonte e a fazenda Lembranças.

P/2 - E a roupa de missa?

R – Eita. [risos]

P/2 - [risos]

R – A roupa de missa era sagrada. Aquela que você tinha guardada só para a missa. Na roça você tinha duas mudas apenas. Você tinha que tirar o ano, porque lá só comprava roupa de ano em ano. Na safra de algodão você comprava, vendia o algodão e comprava aquelas roupas. Você guardava. Aí você tinha que ir remendando aquelas roupas de serviço até chegar o próximo ano. E a roupa da missa era guardada. Você só a usava quando ia na missa ou quando ia em uma viagem determinada... Na casa de um parente distante. Você não via a hora de chegar uma novidade para usar aquela roupa. Não tinha aquele: “Ah, mas essa roupa eu já repeti duas vezes, três... Não quero mais.” Não, era para os homens e para as mulheres. Tinha uma roupa, não tinha aquele negócio. Chegou o dia da missa, coloca a sua roupa e vai. Daqui a um mês tem outra missa? Coloca aquela roupa e vai novamente com a mesma roupa. Não tinha esse negócio de dizer que a roupa é repetida, então não pode usar mais.

P/2 - E herdava de irmão para irmão?

R – A roupa?

P/2 - É.

R – Às vezes. Mas como nós tínhamos idades diferentes, e eram mais mulheres, na casa dos meus pais a gente não usava muito isso não, era difícil. Às vezes, para a roça, sim. Mas para sair, sempre você tinha a sua roupa e você saía com aquela mesma.

P/1 – Mas como é que era a roupa das meninas, dos rapazes?

R – Eita. Era aquela questão. A roupa do homem é como eu falei para vocês, a fazenda da época marca as pessoas pobres da roça, era o brim. A gente usava sempre aquela calça de brim roxo e uma camisa de tricoline. Mas e, como se diz? Mas é branca ou amarelinha. Ou esverdeada, um tonzinho verde bem claro. Era assim.
As meninas usavam sempre aquelas roupas mais floridas. Sempre tecidos com florzinhas miudinhas. Aquela saia um tanto mais longa. Depois com a modernidade que foi subindo um pouquinho. Depois que veio a saia justa foi um escândalo. Primeira vez que se viu uma mulher em saia justa, todo mundo ignorou. Todo mundo ficou... ainda lembro como hoje... a gente foi em uma missa na fazenda mais próxima, e lá tinham umas pessoas de Fortaleza, onde tinha uma senhora usando uma saia justa. Meu Deus. Eu acho que naquele dia a missa não prestou para ninguém, todo mundo teve o que falar da saia da mulher.

P/2 - Um escândalo.

R – Um escândalo. E assim foi quando surgiu a calça comprida para mulher também. Não foi diferente. Eu lembro a primeira vez que eu vi uma colega que estudou comigo usar uma calça comprida. Era uma calça, não era tão fina, calça grossa. Só que ela era um pouquinho cheinha e ela usou a calça um tanto apertada, e a gente viu a marca da calcinha aqui atrás. Isso foi um absurdo. E como eu era muito colega dela fiquei inquieto para avisá-la que o povo a estava criticando porque estava vendo a marca da calcinha. Não tive coragem de falar, não tive. Foi a primeira vez que eu vi. Ainda lembro, essa calça era cor-de-rosa. [risos]



P/2 - [risos]

P/1 – E os namoros da época, como eram?

R – Ah, filha, os namoros também eram... muito moleque. [risos]

P/1 – Ahn.

R – A gente paquerava como eu te falei lá na farinhada, mas era um namoro sincero. Só pegava na mão, beijo era muito difícil, muito difícil mesmo. Ai da moça que fosse pega beijando a boca de alguém... Aquela já ficava falada. “Ah, Fulana não serve para casar. O namoro dela é escandaloso.” Tinha tudo isso. Então você namorava, conversava aqueles assuntos modernos, simples, sem muito abraço. Na frente dos pais, nem pensar de pegar na mão. Ninguém tinha o direito de ficar sozinho em um espaço com a namorada. Sempre tinha a mãe, o pai, ou um irmão. Se ia numa viagem mais longa, vinha de uma missa, de uma caminhada, escuro? Você não se isolava para frente ou para trás. Você tinha que vir no meio do grupo. E quando muito fazia, pegava na mão. Beijinho na testa, roubado lá de vez em quando, e ainda levava uma bronca da noiva... Só os mais atirados. [risos]

P/1 – [risos] Tinha festa de padroeiro?

R – Isso, tinha bastante.

P/1 – Era momento de paquera também?

R – Também. Tinham as missões. Nessa época como era muito difícil ter padre lá nos interiores, tinham as missões. Eles vinham para aquelas fazendas e se instalavam por lá, por uma semana. Aí tinha toda noite um sermão do bispo, a celebração. Eles passavam aqueles slides, aquelas fotos bíblicas, aquelas explicações... E davam catequese. Faziam crisma da

população daquela região, e a gente tinha que ir. Mas o que acontece? Não tinha roupa pra você repetir todo dia, então a família se alternava. Um ia duas vezes, o outro ia duas vezes, e assim por diante... Porque você não tinha roupa para ir todo dia. E se você quisesse ir pelo menos um dia sim, dia não, você tinha que, se sujasse aquela roupa, lavar pra no outro dia ir com a mesma. Não tinha muita repetição não... E ai daquela população lá, enquanto o padre estava celebrando, ou o bispo estava fazendo uma pregação campal em cima de um palco, se acendesse um cigarro. Eu lembro uma vez o dom Antonio, que era um bispo bravo como um leão, desceu pinotando, pegando fogo em cima do palco porque viu alguém acender um cigarro na hora que ele estava falando. Falou que não ia falar mais... Aí foi o padre que veio com ele. O dono da fazenda foi conversar com ele, tentar convencer que não tinha sido, que tinha sido um anel, que o cara tinha levantado a planta da mão, tinha brilhado na luz e tal... Mas ele não voltou mais nesse dia, o padre que voltou lá e falou mais alguma coisa, mas o bispo não voltou.

P/1 – Bem severo, né?

R – Bem severo.

P/2 - E a escola era severa também?

R – A escola era e não era severa. Você fez uma boa pergunta. A escola essa época era mais para as mulheres. Não para os homens. Por quê? Tempos atrás do que vocês conhecem, as mulheres não estudavam, né? Que era para não se comunicar com os namorados através de escrita. Mas na minha época, na época dos meus pais, já era diferente, as mulheres estudavam. Era difícil a escola, mas as mulheres tinham mais facilidade que os homens, devido ao trabalho na agricultura. A minha primeira escola era a mais ou menos seis, oito quilômetros de distância. Em uma outra fazenda. Ficava a oito quilômetros de distância, uma casa simples. Não era grupo escolar, uma casa simples. A minha professora se chamava Júlia, Júlia Facundo Severo. Ela casou e instalou uma escola na sua casa, mas pela prefeitura mesmo, de Boa Viagem. Minha mãe foi lá, matriculou as meninas e eu não. porque meu pai não deixou. Eu era o mais velho, tinha que trabalhar na roça com ele. Quantas vezes eu acordei de madrugada e estava minha mãe lá questionando meu pai: “Aluízio, deixa eu colocar o menino na escola. Lembra que futuramente ele pode te ajudar mais, ele sabendo alguma coisa. Você não lamenta tanto que você é analfabeto porque seu pai não deixou você estudar? Como é que você vai proceder da mesma forma com seu filho?”, então ele: “Ai mas não dá mulher, que eu sou sozinho. Ele é o único que tem pra me ajudar. Se eu colocar ele na escola, o que é que vai ser feito de mim? Eu preciso trabalhar fora para manter a casa, e o meu serviço fica parado. A escola nessa distância vai

ser o dia todinho para ele estudar. O que é que ele vai me ajudar?”, e ela: “Mas não, eu te ajudo um pouco na parte da manhã. Ele te ajuda na parte da manhã. E deixa ele estudar.” Eu sei que ela questionou por vários dias, até que ele abriu mão, e ela fez a matrícula. Para mim foi um encanto.

P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Tinha mais ou menos uns 11, de 10 a 11 anos. Mais ou menos. Eu lembro do meu primeiro dia de escola. Escola simples, uma mesa no meio com a professora. Um banco de aroeira em cada lateral da sala, e nós éramos em torno de uns 10 ou 15 alunos. E ali no primeiro dia eu fui, mais minha tia, minhas irmãs e algumas vizinhas... E lá a professora começou a fazer entrevista, perguntar, e eu fui o que mais falei. No caminho, a minha tia me repreendeu, e minhas irmãs também. Disse que eu tinha falado demais, e eu: “Mas será que eu errei tanto assim?” Aí procurei me questionar e mudar alguma coisa que eu acho que eu não deveria ter falado e falei... E fui me questionando. Graças a Deus a gente teve um bom relacionamento e continuamos estudando. Eu sempre era bem ativo na escola. Eu levei a sorte, eu lembro da minha primeira prova no final de ano, ela marcava aquele dia especial, fazia a festinha com as provas. As provas eram naquelas folhas de papel almaço, mandava fazer um desenho lá em cima, contornar com lápis de cor, deixar bonitinho. E ela foi falando, falando... Ela começou de baixo para cima. Aí eu digo: “Puxa vida, fiquei por último. Certamente eu não fiz nada.” Olha a minha inocência quando ela falou: “O aluno José Rodrigues de Oliveira foi aprovado plenamente.” Aí eu entendi que aquela palavra de aprovado era reprovado. Vixe, eu amarelei na cadeira.

P/1 – [risos]

R – Aí depois é que ela explicou melhor que eu entendi que eu tinha tirado o primeiro lugar. E assim eu conservei esse padrão até o último ano que eu estudei com ela. Ela veio embora para São Paulo, nos passou para uma outra escola que a professora era irmã dela, Teresa Neuma Facundo, que já é falecida. E a minha primeira professora, Júlia Facundo Severo, vive até hoje e mora aqui em São Paulo, aqui na Cocaia.

P/1 – O senhor estudou até que série?

R – Com ela eu estudei até a quarta série.

P/2 – As primeiras letras o senhor lembra?

R – Lembro. As primeiras letras foram com a minha mãe. Era aquela briga na cartilha da ci, lá. Todo dia na hora do almoço a gente ia ler... Aí quando chegou naquela parte do c-a, cá. C-ó, có. C-u, cu. Ai eu não queria falar de forma nenhuma. [risos]

P/1 – [risos]

R – E minha mãe falava: “Tem que falar. Está aqui escrito, tem que falar.” E foi uma briga medonha. Mas eu lembro demais das primeiras letras, minha mãe pegando no meu punho, me ensinando. Ela fazia aquela letra, pegava no meu punho, me ensinava a contornar por cima daquelas letras. Eu lembro as primeiras vezes que eu assinei, as primeiras vezes que eu comecei a fazer meu nome. Foi uma alegria quando eu comecei a fazer o primeiro nome. Isso a gente começou bem na infância mesmo, porque minha mãe era bem severa. Com religião e estudo, ela era bem severa.

P/2 - Antes da escola então.

R – Antes da escola.

P/2 - Ah.

R – Quando eu fui pra escola, eu já fui na cartilha. Naquele tempo tinha carta de ABC e depois a cartilha. Então minha mãe me instruiu na carta de ABC. Quando eu fui para a escola, já fui na cartilha.

P/2 - Mesmo sem ela saber, na verdade? Porque ela não tinha...

R – Não, a minha mãe tinha um pouco de leitura.

P/2 - Tinha.

R – Muito pouco, mas sabia. Agora meu pai que só assinava o nome com dificuldade.

P/1 – Lembra dessa cartilha?

R – Olha, menina, eu ainda tenho alguns guardados em casa até. Ainda procurando a fotografia, essa semana, vi a carta de ABC, e a tabuada guardada lá em casa, amarelinha, se desmanchando. Mas ela está guardada ainda. [risos]



P/1 – E aí esse gosto pelos estudos continuou mais tarde?

R – Continuou sempre. Só que quando eu cheguei à idade de 20 anos, terminou a escola, lá onde eu estava, e não tinha mais para mim. Só na cidade. Aí a dificuldade continuou porque tinha que abandonar o serviço para ir para a cidade. Meu pai não tinha condições de manter uma casa alugada lá e escola para mim. E eu não tinha um rendimento fora da roça para me manter. Então parei de estudar também... Continuei lendo só, com dificuldade. Livros muito ruins, gaguejando... E romance, como eu falei para vocês. Quando foi em 72, começaram os trabalhos de Comunidade de Base. Aí o padre da paróquia me convidou para fazer parte de um grupo. Estava com medo, o padre bem evoluído, começou bem com a juventude... E ele convidou para formar um time de futebol com os jovens. Que era para atrair. Depois daquele time de futebol, ele começou a aplicar os trabalhos da comunidade... Nas celebrações dominicais, nas atividades de catequese, e assim por diante. Até nascer a comunidade. Do time eu quase não fiz parte, fui assistir algumas vezes. Como eu falei, nunca fui muito interessado em futebol. Agora, das celebrações, eu comecei a fazer parte. E foi onde eu fui desarmando minha leitura... Através da Bíblia. Fui melhorando, fui melhorando, passei por algumas dificuldades porque quando as pessoas da comunidade viram que eu estava sendo bem aceito, criaram um tipo de inveja. Que é uma coisa que não é louvável dentro da religião, mas você sabe que existe em todas as fontes. Todos os setores. Andaram me privando de alguns atos, de algumas práticas. Mas isso nunca me desanimou e nem me fez abandonar a fé, ou a minha caminhada de comunidade. Apenas voltei para o padre da paróquia, falei para ele o que estava acontecendo, e ele falou: “Não resta dúvida, você tem muito campo, e tem muita comunidade que precisa de você.” E me encaminhou para uma outra comunidade, onde eu fui bem aceito... Então, aí eu fui encaminhado para a comunidade de Nossa Senhora da Assunção em Cajazeiras. Ficava a uma distância de duas léguas mais ou menos, dessa outra comunidade. Um pouco ou até mais. “Se você se importa... é um pouco mais longe para você. Mas você se importa? E lá eles estão precisando de você.” Eu digo: “Não. Eu vou em qualquer lugar.” Graças a Deus era no final de semana mesmo. “A gente vai.” Aí eu comecei a freqüentar essa comunidade. Fui muito bem aceito, graças a Deus, e me evolui bastante. Lá eu assumi já como dirigente da comunidade, e comecei a fazer tudo, eu trabalhava na roça com meu pai durante a semana e aos finais de semana eu ia para lá celebrar. Aí eu já comecei fazer reunião com jovens, palestra para casais, cursos de batizado. O padre foi me fornecendo o material, os treinamentos e eu fui fazendo.

P/1 – Eu queria que você voltasse só um pouquinho para a época da agricultura para contar como era esse trabalho.

R – Como é que era?

P/1 – É.

R – De que forma você quer saber? A forma de cultivar?

P/1 – É, e o que cultivava, como era esse...

R – Ah, sim. Você quer...

P/1 - ...cotidiano.

R -

...que repita um pouco. Então, é o seguinte: eu faço de conta que agora eu deixei a escola e volto para a agricultura. Nessa época, já era um pouquinho mais moderno, já tinha chegado o cultivador. Você sabe o que é cultivador? Não? Cultivador é tipo uma maquineta manual com três enxadas. Que você amarra aquela máquina no animal, no boi, ou em um burro, ou em um cavalo, e você – antes já arrancou os tocos do quadro onde você vai planta,

que chamam campo – e você rasga aquela terra com a força do animal. Você vai segurando, vai controlando aquilo, o animal vai puxando e rasgando a terra para ficar mais fofa e mais fértil. Absorvendo a água para ficar mais fértil. Mas ali a gente continuou plantando a mesma coisa... O milho, o arroz, o feijão, o algodão, a fava, o jerimum, a melancia e assim por diante.

P/1 – Tinha problema de seca ou não?

R – Muito, muito. O maior problema. Por isso é que eu estou aqui hoje. Eu não sei se para o meu bem. [risos] Mas por isso que eu estou aqui hoje, por causa da seca. Algumas das secas da minha primeira história, voltando um pouco atrás, é a de 58. Eu tinha 8 anos de idade, quando vi minha mãe grávida com maior sacrifício, barrigão, ter que enfrentar todo o serviço de casa com a nossa pequena ajuda. Que o mais velho era eu, eu tinha 8 anos... Para que meu pai fosse para um trabalho do Governo distante e voltar em casa só de 15 em 15 dias. Trazendo aqueles mantimentos que ganhava no serviço, para a gente se manter. E a gente passou dificuldade. Fome mesmo. Não de passar o dia sem comer, mas de comer coisas limitadas, sem muita alternativa.

P/1 – Comia o quê?

R – Basicamente arroz e feijão. E um pouquinho de leite na parte da manhã. Basicamente arroz e feijão, e um pedaço de rapadura. E assim era o sustento. Por um desconto de pecado no final do ano, baixou um sarampo em toda a população. Primeiro foi meu pai, prostrou-se em casa 15 dias. Eu vi até ele desmaiar... Porque sarampo, eu não sei se vocês conhecem, é uma doença que dá uma febre muito alta. Ataca a garganta, você não consegue comer nada, tira todo o teu apetite, você não sente sabor nenhum. É uma tristeza, é um absurdo... E muito contagiante. Quando ele foi melhorando, pegou na minha mãe, grávida. Uma tosse... Uma tosse que ela tossia muito de noite. Eu via a hora daquela criança nascer antes da hora. Ela magra, sacrificada, fraca... Sabe que a mãe tira da boca para dar para os filhos, né? Quando ela foi melhorando, nós pegamos. Caiu em todos nós, geral. Eu lembro que o último recurso que nós tínhamos, era uma marrã de ovelha. A marrã é uma ovelhinha nova, sabe? Minha mãe mandou matar para dar, ela: “Dá o caldinho para eles.” Só que foi totalmente perdido. Além de os animais naquela época terem uma alimentação limitada, se limitava mais a folha de juazeiro, é o único verde que mantém na seca. É o juazeiro, a carnaúba, e assim por diante. Então a carne daquele animal fica com o sabor daquela folha. Vocês conhecem essa pasta Sorriso, que tem hoje? A maior parte é feita da casca do juá... Esse juazeiro que eu estou falando... Aquela pasta é extraída da casca. Então era aquilo lá que a gente cortava, era uma árvore grande e espinheira, com bastante espinho. Você cortava, e tirava aquelas folhas para manter aqueles animais vivos no período da seca. Então, ela mandou matar essa marrã, só que a carne da marrã tinha o mesmo gosto da folha. A gente com sarampo, minha filha, sem paladar, ninguém conseguia comer. Resumindo: a gente ultrapassou isso sem medicamento, só com o tempo, 15 dias para tomar o primeiro banho, 30 dias sem comer nada carregado - carne de porco, carne de seriema, carne de animais que tenham alta potência. Um amigo meu, com 40 dias que levantou do sarampo, comeu uma seriema, aí cegou. Caso comprovado que convivi e conheci, esse aí... E muitos outros casos aconteceram. Então assim era a vida que a gente levou. A gente superou isso aí. Quando a gente terminou, chegou 59 e um ótimo inverno. Eu lembro do dia 20 de janeiro, que é dia de São Sebastião. Minha mãe foi comigo plantar um lastro de feijão. Lá tem uma tradição: o dia 20 de janeiro é dia de São Sebastião, é dia de se plantar feijão. Para chegar rápido, se planta feijão de moito, que é um feijão que dá rápido. Com 60 dias ele está vingando, né? Quando chove... Então quando foi no dia 20/1/1959, a minha mãe me chamou para a gente plantar o lastrinho de feijão.. O meu pai estava no trabalho do Governo. Isso num sol, aquela terra seca que você batia com a enxada e ela pulava para cima. E estávamos lá, minha mãe cavando e eu plantando. Meu tio passou para Congado e ficou dando risada: “Eita, vai ter muita pipoca de feijão hoje.” Quer dizer que a terra estava tão quente que o feijão ia virar pipoca. Quando foi mais ou menos umas 2, 3 horas da tarde, começou a aparecer umas nuvenzinhas... Descondensaram-se e choveu torrencialmente. Esse feijão nasceu maravilhosamente. Com 60 dias nós o estávamos saboreando. Eu nunca vi produzir tanto, daquela forma. Chegava lá de manhã para colher ele estava amarelinho, você não via nem a folha. Só via a palha assim, trançadinha. Então é um dos motivos tradicionais da época e da agricultura, que eu estou contando como um exemplo concreto.

P/1 – Certo.

R – Agora eu gostaria que você fizesse perguntas para o seu interesse, para eu responder na altura do que você vai dizer, para aproveitarmos o tempo.

P/1 – Tá. Então vamos passar um pouquinho para o casamento.

R – Isso.

P/1 – Você disse que acabou saindo da agricultura, foi dar aulas durante três anos e pouco, não é isso?

R – Isso.

P/1 – E deixou de dar aulas para casar. Como conheceu a esposa?

R – A gente se conhecia desde menino. Porque ela morava em uma fazenda e eu em outra, mas meu tio casou com a irmã dela, inclusive uma irmã gêmea. E ela vinha sempre passar períodos, os períodos de resguardo da irmã, na casa do meu tio, que ficava próxima da minha casa. E a gente foi se conhecendo... Só que eu tinha outras namoradas e eu nunca pensei em me casar com ela. Para começar, a minha família sempre foi um pouco conservadora, e ela é de família mais morena. Eles não queriam de forma nenhuma que a gente namorasse para casar... Nem namorasse. Mas a malandragem de jovem sempre tem as curiosidades. Eu tinha outras namoradas, mas como ela ficava pertinho, sempre brincava, mantinha contato assim... Brincava, mas e proses levemente. Até que um dia a gente chegou à conclusão de se gostar de verdade. Ela até repugnou quando eu falei. Porque sabia que a gente ia ter atritos, porque a família não gostava, e tal. Mas aquele negócio, né?! Repugnou, mas querendo.

P/1 – [risos]

R – E quando tem que ser, não tem jeito. Depois que eu fui para esta fazenda, que eu trabalhava nesta outra comunidade e lecionava nesta escola, era justamente a fazenda que ela morava. Aí a gente teve uma afinidade mais próxima. Inclusive ela também estudou comigo. E aí a gente foi se apegando, criou amizade e resolveu casar.

P/1 – E o casamento, como foi?

R – O casamento foi na forma que você viu a foto lá. Eu mandei fazer uma casinha simples... Com aquelas mobílias que eu te falei antes. Muito embora, já um pouquinho mais moderno, porque a gente já estava um pouco mais moderno. Então quando eu tinha a casa, para aqueles quatro cômodos, eu comprei o básico. Nesse tempo já era panelinha de alumínio... O fogão não era fogão a gás, era um fogão a lenha. Mas queima chapinhas, moderno. Com lugarzinho moderno de por as panelas... E a mesa e os tamboretes, e já tinha uma cama. Que já era mais moderno. [risos]

P/1 – [risos]

R – E assim, quando a gente teve isso, a gente se casou. Eu ainda a convidei para atrasar o casamento mais 1 ano, para fazer um acabamento melhor na casa, mas ela não aceitou... Achou que ia demorar muito. Então a gente se casou assim mesmo. E nessa casa nasceram os filhos, não quero dizer todos, porque um nasceu aqui. A primeira nasceu no hospital, os outros dois nasceram no hospital. O Silvio e a Adma nasceram em casa com a ajuda da minha mãe, que também era parteira.

P/1 – Tá certo. Mas no casamento, teve festa?

R – Teve. A festa do casamento lá é diferente das daqui.

P/1 – Como é?

R – Aqui se faz um bolo, se faz salgadinho. Lá não, se mata um porco grande, se mata dois ou três carneiros... 10 ou 15 galinhas, 20 galinhas d’Angola. Convida todos os amigos, faz aquela festa com bastante comida, e a bebida é à parte, quem quiser beber, compra. Compra e bebe. [risos]

P/1 – [risos]

R – Assim foi o meu casamento.

P/1 – Que tipo de bebida tem na festa?

R – Cerveja e refrigerante. Só. Alguma bebida quente, muito pouco, só para os viciados mesmo. Mas o básico é a cerveja, e o refrigerante. Cerveja sem geladeira. Cerveja só no pó de serragem ou na areia molhada, para esfriar um pouquinho. [risos]

P/1 – E como o trabalho de repentista veio na sua vida? Por que você voltou para a agricultura?

R – Isso. Muito bem perguntado. Aos 17 anos de idade meu tio se casou com a irmã dessa minha esposa e foi morar na fazenda que eu morava. Porque antes ele morava com a irmã dele em uma outra fazenda... Inclusive a mesma fazenda pra onde eu fui depois, ensinar. Ele tocava viola e cantava repente, e eu sempre achei bonito porque a minha vocação nasceu aos 8, 9 anos de idade quando pela primeira vez vi uma dupla de repentista improvisando na casa de um vizinho que nos convidou para assistir. E eu falei para minha mãe no caminho: “Quando crescer eu quero uma viola para fazer igual aqueles homens estavam fazendo.” E ela falou: “Meu filho, não queira isso.” Porque na mente deles, naquela época o cantador era um vagabundo. Que não tinha coragem de trabalhar na roça e inventava aquilo para manter a vida, para não trabalhar na roça. Por outra, eles achavam que cantar era coisa diabólica, não era coisa vinda de Deus. Então ela falou: “Aquilo é coisa feita pelo demônio. Não quero que você entre nessa.” Mas quando a vocação vem, ninguém foge dela. Eu me acomodei, não frequentei. Mas o show de repente é muito difícil, por algumas vezes eu vi... E cada vez, me surgia mais o interesse. Aos 17 anos meu tio veio morar com a gente, trouxe uma viola e me convidou. “Você não quer experimentar? Aprender a bater viola? Aprender a fazer repente?” Eu digo: “Mas será que eu tenho capacidade?” e ele: “Tem, rapaz.” E foi me dando das instruções... Como armar os versos, como bater o baião da viola, e aí eu fui me dedicando. Cadê o dinheiro para comprar a viola? Não tinha. Eu tinha uma arma, uma garrucha, que é uma pequena arma. De caçador mesmo... E tinha um colega meu que tinha um violão velho quebrado, encostado. E ele gostava, era pior do que cigano para fazer rolos, trocas. Aí ele me convidou para trocar aquele violão, por aquela garrucha. Mas eu ainda tinha que ter mais dinheiro. Eu digo: “Puxa vida. Ficar devendo nunca gostei. Se eu falar para meu pai, ele não vai gostar e não vai querer. Mas o que é que eu faço?” Isso eu já tinha 18 anos... Já um ano depois. Eu digo: “Ah, vou fazer. Eu mesmo vou assumir, vou fazer.” Aí eu fiz aquele negócio a noite. Deixei para chegar em casa depois que meu pai estivesse dormindo para esconder o violão, para ele não ver. E o que aconteceu? Eu entrei no escuro, sem acender a luz. Fui esconder o violão debaixo da cama onde ele estava dormindo, que era o único lugar [risos] mais oculto, para ele não ver no outro dia logo cedo. O que acontece? Lá na roça a gente sempre criou gato... Aquele gato caseiro em casa... E o gato dormia debaixo da cama. [risos]

P/1 – E o gato estava debaixo da cama? [risos]



R – Debaixo da cama. Quando eu pego o violão e coloco debaixo da cama, bate no gato, o gato se assusta [risos] bate no violão e começa aqueles... [risos] Eu saio correndo para a minha rede e meu pai mete os pés. Acende a luz, fica procurando o que está acontecendo... E acha o violão. No outro dia ele vem conversar comigo... Eu expliquei para ele e não deu briga, foi só o susto. Eu tentei esconder e ficou pior, né? E aí eu fiquei esperando que o meu tio, que também era marceneiro, mas era muito lento, cauteloso com as coisas, consertar aquele violão para mim, enquanto isso eu ia treinando no dele. Aí até que ele treinou, e consertou o violão... E um dia foi na casa do sogro dele, marcou uma cantoria para mim, com um outro parceiro... Aí chegou e falou: “Olha, marquei tal dia.” Parece que era dia 20 de agosto. “Nós vamos fazer uma cantoria na casa do meu sogro e você é um dos titulares. Você vai cantar comigo e com o Pedro Pinheiro – que era o parceiro – nesse dia.” Eu digo: “Meu Deus! O que é que eu vou fazer lá se eu nunca cantei?” Ele: “Não, nós vamos treinando aqui. Vai dar certo. Não tenha medo.” Aí num determinado dia, ele falou: “hoje a noite eu vou na tua casa pra gente treinar um pouquinho.” Vixe Maria. Aí chegaram uns vizinhos lá em casa, meus pais, meus irmãos. E a gente com aquela vergonha. Aí ele chegou, afinou minha viola, que eu não sabia afinar, né? Afinou a dele... Igualou a minha com a dele. Aí fomos conversar. Ele falou: “Você pode sair primeiro.” Eu fui fazer o primeiro repente. Quando eu terminei, morto de vergonha de fazer o primeiro repente, pensei que ele ia continuar... Não. Ele parou a viola, deu uma gargalhada e falou: “Nem Santo Antonio do Cambique paga isso aqui, esse repentista.” [risos]

P/1 – [risos]

R – E aí a gente continuou treinando e fez essa cantoria. Aí eu continuei... Trabalhava na roça, nos finais de semana quando aparecia, a gente fazia as cantorias. Eu viajava sozinho às vezes, para a casa de parentes, conhecidos... Reunia o pessoal e cantava. Para você parece estranho, mas a cantoria é o seguinte: o poeta repentista cria na hora seus versos. Também tem os romances decorados, tem as canções e os poemas. E você dá aquele show. Você se senta lá com a sua viola, os convidados vêm e sentam... E você canta aquelas canções, você canta os seus repentes, você canta o romance. E ali é colocada uma bandeja para uma contribuição. Você vem, você pede uma canção e você contribui com aquilo que pode. Vem o outro e pede determinado trecho de cantoria, e contribui com aquilo que pode. Vem o outro, pede um romance. Olha, o romance tem 16 páginas, dos menores... Quatro, oito versos em cada página. Você decora aquilo lá todinho para cantar. Eu cantava, ainda decorei cinco romances, 150 canções. Isso eu estou falando só em decoro, né?

P/1 – Tá.

R – O improviso ninguém decora, você improvisa na hora. E assim a gente dava aqueles shows. Ou...

P/1 – Dava para ganhar alguma coisa?

R – Pouco, mas ganhava. Porque tem os especiais, tem os bons e os principiantes. Porque a gente ganha de acordo com a categoria... Eu era um dos principiantes. Mas comprava roupa, comprava calçado, comprava rede. Então valia a pena, era uma ajuda. Como na roça se ganhava muito pouquinho, era uma ajuda. E eu continuei. Nunca fui um profissional. Porque o bom repentista tem que se dedicar só a isso, tem que estudar e tem que se dedicar só a isso, é aquele que nunca chega a seu limite... Ele precisa saber de tudo, e conhecer de tudo e improvisar tudo. Eu nunca fiz isso. Por alguns períodos ainda fiz viagem de mês, Quixadá, Quixeramobim, Baturité, Canindé, Itapiruna, Iguatú, aquelas regiões por lá eu fiz. Duas, por duas vezes eu passei um mês viajando... Mas, final de ano. Uma época de quebradeira com pouco rendimento... Mas nunca abandonei.

P/1 – Você lembra um pedacinho para falar para a gente?

R – De verso?

P/1 – Porque eu sei que é cantado, né?

R – Verso, minha filha, repente a gente não lembra. A gente faz na hora.

P/1 – É?

R – A gente faz na hora. Alguns a gente guarda como destaque. Eu também tenho trabalhos rodados. Mas eu posso citar alguma coisa só para você ter conhecimento.

P/1 – É só para a gente fazer um registro.

R – Eu lembro um verso que eu fiz no dia da minha formatura aqui, no término da escola. Estava seu Victor, todos os convidados, uma multidão de gente. Então eu fui escolhido para fazer aquele comentário em nome da classe toda... E quando eu terminei, fiz um verso, não foi cantado, só recitei, porque eu não estava com viola, eu falei:

“Concluí a quinta série aos 50 anos de idade, e continuar meus estudos é a minha maior vontade. E se o Aché me ajudar, ainda farei faculdade.” Aí foi um trovão de risadas e palmas. [risos]

P/1 – Muito legal. Muito bom.

R – Então o repente é isso. Você de acordo com o assunto, com o momento, com o ambiente, inclui e vai falando. Agora, tem a fonte inspiradora, que é a viola. Que inspira a gente. [risos]

P/1 – Tá certo. E depois de casado, continuou a fazer repentes?

R – Continuei, nunca parei. Parei durante o maior período quando vim para cá, eu passei dois anos mais isolado... Porque tinha colegas aqui, mas era longe. Então a gente se apega ao trabalho. Depois eu descobri lá em Osasco uma rádio que repentistas freqüentavam e faziam aqueles shows, eu comecei a ir lá também, depois surgiram alguns colegas repentistas aqui em Guarulhos. Teve um período, há um ano, que eu fiz bastante show de viola aqui mesmo em São Paulo, com um cantador conhecido por Totonho do Sertão. É um grande repentista paraibano que mora aqui em São Paulo há muitos anos, canta muito bem,

e é radialista, tem programa de rádio e faz os repentes. Mas depois ele virou crente e abandonou a viola, é difícil a gente se comunicar... Mas nas horas oportunas, quando surge, ele ainda faz. Surgiram mais outros colegas que moram aqui. Agora há 15 dias eu fui fazer uma apresentação na Casa de Cultura aqui em Guarulhos, que fica próxima ao Hospital Padre Bento, o Bosco que é responsável pela Secretaria de Cultura de Guarulhos me convidou. Eu, o Jocélio Costa e o Severino... Para fazer uma apresentação lá, sobre a vida do grande cego Aderaldo, que é cearense, Filho de Crato, criado em Quixadá - que foi um dos maiores divulgadores do repente da época. A gente foi cantar alguma coisa a respeito da história dele... “Foi na cidade de Crato, na Rua Pedra Lavrada/ não sei se de madrugada/ Maria Olinta sentiu dores de parto/ entrando em seu quarto/ com a ajuda de uma parteira/ entre a rede, a corda e a esteira/ e a presença do esposo seu/ de presente ela nos deu/ o grande Aderaldo Ferreira.” O nome dele é Aderaldo Ferreira. Agora você pergunta: o que significa isso que você falou entre a corda, a cama e a esteira?

P/1 – [risos]

R – Você sabia que naquela época, as mulheres usavam esses instrumentos para dar à luz?

P/1 – Ah, é?

R – A rede era o padrão que tinha, né? Ela se pendurava na corda para ter força para ajudar a nascer o filho, ou na esteira, porque não tinha a cama. A posição na rede era ruim para parir... Tentava na corda e se não dava certo, ia para a esteira.

P/1 – Ia para a esteira.

R – Ou então, até no cepo. Tinha o famoso cepo baixinho, para a mulher se sentar para fazer o trabalho de parto.

P/1 – Tempos difíceis. [risos]

R - Tempos difíceis. [risos]

P/1 – E como você veio para São Paulo, José?

R – Ô Eliana, boa pergunta. Eu sempre...

P/1 – Por que, e como, foi essa viagem?

R – Eu sempre fui muito amável a minha terra natal como todo nordestino é. Mas como pai responsável que eu sempre fui, percebi que tinha conseguido me criar com o sacrifício da seca, mas não tinha certeza se seria possível criar meus filhos, porque as coisas se agravavam cada vez mais. Aí eu me casei, em 1975, em 1976 nasce uma filha, em 1978 nasce outra, em 1979 nasce outra... São três. Eu digo: “Olha, com certeza pode vir mais um rápido. Aqui trabalhando da agricultura, na diária, sempre secas.” Então, se em 1975 eu casei e tive boa fartura, 1976 já foi ruim, 1977 foi mais ou menos, e 1978 teve seca. Aí eu digo: “Não, desse jeito eu sou obrigado a abandonar minha terra e me aventurar em outro lugar.” Eu deixei minha esposa e meus filhos na casa de meus pais, chorando. Viajei pela primeira vez sozinho, no mundo e com Deus. A única coisa que eu tinha, era o endereço da minha irmã em São Paulo, vim com a cara e a coragem, em uma época de muita chuva... Porque foi seco, seco, e quando eu comprei a passagem, que combinei a viagem, aí a chuva veio. Eu digo: “Mas eu vou assim mesmo.” Então eu me despedi de meus pais e da minha família, e vim, com dinheiro emprestado do meu irmão, justo esse que foi falecido aqui, Antonio Jesuíta... Viajei e cheguei, saí de lá no dia 22 de fevereiro de 1980. Cheguei aqui no dia 25 de fevereiro de 1980, às 7 horas da noite, na rodoviária do Glicério. Logo quando eu cheguei, vi aquela multidão, essa cidade infinita, e não tive coragem nem de descer do ônibus. Eu digo: “Eu só vou descer do ônibus quando vir a fisionomia de alguém conhecido.”

P/1 – E a sua irmã estava esperando?

R – Estava, com a família e a comunidade, que eu deixei toda chorando por mim. Não é como se diz, alarme... Mas realmente tenho comprovante disso. Eu tenho cartas e mais cartas relatando a falta, o sentimento e o amor que eles tinham por mim, e continua até hoje, graças a Deus. Aí, quando eu avistei meu irmão, avistei meu cunhado, minha irmã e outros primos. “Agora eu desço.” [risos]
Aí eu desci, cansado, faminto, massacrado de uma viagem em ônibus ruim. Eles falaram: “Vamos para casa.” E eu: “Está perto?” Eles: “Não, é mais uma hora de viagem.” E eu: “Meu Deus do céu.”

P/1 – Em que lugar eles moravam?

R – Moravam aqui em Guarulhos.

P/1 – Tá.

R - Mas do Glicério, tinha que pegar aquele ônibus do Parque Dom Pedro até aqui, era uma hora. Eu cheguei no Parque Dom Pedro, entrei naquele ônibus - Foi a primeira vez que eu entrei em um ônibus de catraca. Eu não sabia nem o que era aquilo. – cansado, o ônibus lotado... Você não tinha aonde se sentar, nem nada, e a gente veio. Quando eu cheguei aqui, estava uma festa. Eu digo: “Gente, a primeira coisa que eu quero, antes, é tomar um bom banho para ver se eu respiro mais fundo.” Aí lembro que tomei o banho e jantei... Aquela multidão de perguntas, os parentes todos em cima, todo mundo querendo saber. E eu respondendo às perguntas, e comecei a dormir. Porque eu tenho uma defesa muito ruim para dormir viajando... Eu sei que eu dormi sentado, depois fui para a cama e fiquei. Com 30 dias, graças a Deus, eu comecei a trabalhar na Olivetti do Brasil. E olha, tem certas mentiras que às vezes vale a pena, né? Eles não pegavam parentes, e trabalhava meu irmão e meu cunhado lá, mas estavam admitindo. Meu irmão pegou a senha, passou para um colega dele do Paraná, porque a gente tinha que apresentar quem apresentou, e ele me indicou lá. Então eu fui. Em determinado dia meu cunhado se levantou de madrugada, me levou, aí eu cheguei e fui para os testes. Lá tinha teste, conta de todo jeito, matemática de toda forma, e ali você fazia os testes e ela já ia conferindo e eliminando. Aqueles que iam mais ou menos, passava para outra etapa. Quando ela começou a fazer a primeira etapa, já eliminou seis. Digo: “Vixe, Maria.” Mas eu não fiquei nos seis eliminados. Eu digo: “Olha, já tem uma esperança.” Aí, vamos para o exame, um tipo de psicotécnico, uns negócios... Umas posições de tracinho, aqueles negócios. Eu fui, fiz aquilo, passei, já encaminhou para outro, eu digo: “Já é uma esperança.” Aí deu meio-dia, uma fome danada. Chegaram: “Agora você sai lá fora, você come algum lanche, alguma coisa... Uma hora você esteja aqui.” E eu não sabia voltar sozinho para casa, eu não conhecia nada. Eu saí na calçada, me sentei no cantinho e fiquei lá até dar uma hora, e voltei com a mesma fome. Quando cheguei lá, me chamou para fazer uma outra série de testes. Aí já era para formar desenho... Uns quebra-cabeças, umas coisas assim. E eu fui passando, fui passando... Quando chegou no final da tarde, ela falou: “Olha, você foi aprovado.” Graças a Deus. Não sei como, mas foi assim. [risos] Ela perguntou: “Olha, nós temos vaga na produção e temos vaga no restaurante. Você faz questão de trabalhar no restaurante?” Eu digo: “Minha filha, se for para trabalhar não importa onde, nem fazendo o quê. Você é que sabe onde precisa, onde quer me colocar.”

Era uma assistente social muito educada. Aí ela falou: “Então você vai ficar no restaurante. Os outros todos vão para a produção. Você vai para o restaurante.” E lá eu fui. Quando a mulher me passou os exames que tinha que fazer, os documentos que tinha que levar, fotografia e tudo. Aí eu esperei, terminei com ela às 4 horas da tarde. Voltei, me sentei com a mesma fome e esperei o meu cunhado sair, às 5 horas, para vir pra casa. A gente já passou em Guarulhos, fez as fotografias, e esperou revelar para levar pronta no outro dia. Eu sei que dentro de uma semana tudo começou a se encaminhar, e no dia 31 de março de 1980, eu comecei na cozinha. No primeiro dia lá, me entregaram para uma supervisora que era uma portuguesa. Inclusive até tem a fotografia dela naquelas fotos. E eu fiquei lá, naquela multidão... 3.500 refeições. Aquela multidão de gente trabalhando, aquela correria, eu nunca tinha nem visto aquilo, não sabia nem o que... “Olha, vai tomar um cafezinho. Vai comer um pão com manteiga.” Aquilo nem descia. Eu fiquei lá, e aí ela me chama, me leva em uma mesa, coloca uma bacia e me dá uma faca: “Vai picando esses tomates para mim.” Eu nunca tinha cortado nenhum tomate na minha vida... em condições de empresas, né?

P/1 – [risos]

R – Aí eu chego e começo a picar aquele tomate. Aquela faca cega, embolando no tomate... Aquele negócio, aquele sacrifício. Aquela bacia em cima do tamborete lá embaixo, e daqui a pouco a bacia “vrum”... Virou. Derramou aquele tomate todinho no chão. Aí veio um encarregado, juntou aquilo, jogou no lixo e explicou que tinha que ir espalhando dentro, para não virar... E assim foi. Quando deu 10h30, quase 11h, a encarregada veio e pegou o meu braço: “Vamos para a fila que você vai servir feijão na fila.” Lá não era que nem aqui, que cada um se servia, você

tinha que servir. Então eu fiquei no feijão... tei, tei, tei. 3.500 refeições. E ali você tinha que servir aquele feijão, não deixando ficar só caldo, nem deixando ficar só caroço, sempre controlando. Graças a Deus, fui bem, e fui indo, fui indo. Sempre nos setores de trabalho tem aqueles que não vão muito com a cara da gente, e tem aqueles que ajudam. Eu, graças a Deus, fiz amizade com quase todos. Mas tinham alguns que sempre eram meio “ralosos”, mas sempre com convivência, e assim o tempo foi passando, lá eu fiquei...

P/1 – Passou quantos anos?

R - ...16 anos e 8 meses. Graças a Deus eu entrei como ajudante de cozinha e saí como estoquista de restaurante industrial. Passei por duas chefias, fui muito bem aceito e desempenhei o meu trabalho. Infelizmente, saí de lá porque foi vendido, mas eu fiquei lá até fechar as portas. Eu...

P/1 – E a família veio para cá?

R – Sim. É sempre bom ter uma pergunta, porque ajuda a gente completar, né?

P/1 – [risos]

R – Sobre a família... eu acertei com a minha mulher assim: “Você fica um ano, quando eu me estabilizar lá, com um ano de emprego, alugo uma casa, compro as coisas de casa e venho te buscar... eu mando te buscar.” Mas você sabe, mulher nem sempre é paciente, né?

P/1 – [risos]

R – Umas mais impacientes do que as outras. Aí começou: carta e mais carta, pedindo para vir. Eu digo: “Olha, a situação aqui está assim, assim, assim, não dá ainda. Eu estou na experiência, estou morando com meu irmão em uma casa pequena, apertada. Você chegar com três crianças, não vai dar certo. Entre eu e ele, eu sei que não há nada... Mas você e a mulher dele, quem sabe se vai dar certo? Porque vocês são meio quentes, pode ser que haja atrito, e eu não quero isso.” “Não, mas não sei o quê, não sei o quê.” Com 5 meses eu já tinha pagado meu irmão. Tomei emprestado dinheiro com outro colega, para mandar buscá-la... Aí paguei a passagem dela, passagem para minha mãe e para um colega, pra trazer a família. Aí eu troquei o relógio por uma cama, uma estante e um fogão. [risos]

P/1 – [risos]

R – Comprei, comprei...

P/1 – Relógio valioso?

R – Então, era, mas era usado, não era novo não. Falei com meu irmão: “Olha, a gente vai ficar aqui mesmo apertado, mas ela quer vir.” Então com 5 meses, eu mandei buscá-la e ficamos aqui, dentro de dois cômodos pequenininhos. E como eu trabalhava e ele trabalhava, com pouco tempo as duas começaram a se desentender. Usavam o mesmo fogão, e tudo com criança pequena é aquele negócio... Aí começou a complicação para alugar uma casa. Eu digo: “Olha, não está dando ainda. Eu te avisei. Tenha um pouco de paciência, de cautela.” Mas a gente foi passando. Meu cunhado construiu uma casa para ele e eu aluguei a outra casa, que era um pouquinho maior. Passamos para o outro lado, e lá a gente foi levando a vida. Depois ela quis sair da casa porque não tinha um quarto isolado para ficar. Queria uma outra que tivesse um quarto a mais, tivesse um conforto melhor. Já nessas alturas, tinha um primo morando comigo para ajudar nas despesas de casa. Veio de lá também, da mesma família... Eu não podia desprezar. Então ela queria um lugar mais reservado, com razão. E aí eu passei a alugar uma outra casa, e a gente foi morar nessa outra casa. Depois veio aquele tempo do Plano Cruzado, aquelas dificuldades do Sarney e tudo, aquela complicação. Congelou aluguel, congelou salário, congelou tudo... Os patrões começaram a brigar com os inquilinos, porque queriam aumentos particulares, e a gente não tinha condições, porque o salário também estava congelado. Aí começou aquele atrito. “E agora, nós vamos para a favela? Como é que vamos fazer?” (...) “Vamos continuar.”
Falei com o advogado da paróquia, que deu uma grande mão para mim, ele hoje é o deputado federal Orlando Fantazini... Graças a Deus me ajudou muito. Além do vereador José Carlos Darlan, o atual vereador da Câmara, um Paranaense que nem me conhecia. Me conheceu através da igreja, no trabalho de comunidade, e deu uma grande mão para mim. Então, eu estava nessa agonia, vendo a hora de eu precisar ir para uma favela, ou pra uma invasão de terra ou para uma família... Ele chegou e falou: “Olha, tem um terreno assim, assim. Se te servir, você vai para lá faz um barraco, depois que você estiver instalado, começa a me pagar da forma que puder.” E assim eu fiz. Eu pensei: “Como eu vou fazer?” Ele falou: “ Pede ajuda. Eu estou pronto para te ajudar. Já estou com o terreno a tua disposição. Tu vai me pagar quando tiver morando e ainda posso fazer mais alguma coisa. Pede aos amigos nas comunidades.” E assim eu fiz, sem vergonha nenhuma, pedi, pedi ajuda. Aí consegui construir com a ajuda dos amigos e um pouco da reserva que eu tinha, dois cômodos. A gente mudou-se apertadinho, para os dois cômodos. No ano seguinte a Olivetti criou a Astra, uma firma lá dentro. Que atingiu o restaurante, segurança e ambulatório médico e parte do departamento pessoal. Essas coisas assim. Aí nos convidou. “Olha, a gente quer fazer um acordo. Pagar todos os direitos de vocês, vocês continuam nessa outra firma, todos os direitos que a Olivetti oferecia continua oferecendo. Só que muda de nome, só muda o crachá. Vocês vão receber os direitos.” Ah que bom. Chegou na hora certa, 8 anos, né? Peguei o direito de 8 anos, tirei quatro mil reais na época... Quatro mil cruzeiros na época. E com esse dinheiro eu ampliei a minha casa que é a que eu moro até hoje. Não terminei, mas dá para morar e é grande, graças a Deus.

P/1 – Que bom. E como você chega no Aché?

R – Como eu chego no Aché, é uma outra história. Quando a Olivetti anunciou a venda, as pessoas do restaurante, que eram de boa reputação e confiança da chefe, foram colocadas em vagas que ela arrumou pra gente. Ela me perguntou: “Olha, a Rio Negro está precisando de alguém. O primeiro indicado é você. Se você não quiser agora, você pode indicar uma outra pessoa dos nossos, que eu...” Eu digo: “Olha, como eu ainda tenho uma estabilidade de quase um ano, o João Neto – que é um colega nosso – está precisando mais, manda ele.” Ele foi e está lá até hoje. E a Pfizer, pra onde eu fiz a ficha, nunca me chamou... Eu fiquei aguardando e nunca me chamaram.
Pro Aché faz tempo que veio o Grinaldo, a Idália, que é a portuguesa, a Creusa, a Linda, veio a Rute. E todos trabalhavam com a gente lá, na Olivetti.

P/1 – E que estão trabalhando no Aché?

R – E que estão trabalhando aqui até hoje, né? Aí eles continuaram lembrando a Iara, que me chamasse quando surgisse uma vaga. Aí meu filho veio e fez ficha aqui. Em um determinado dia, a Soraia ligou chamando meu filho... Eu digo: “Que bom, você nunca me chamou, mas chamando meu filho já é um grande passo.” Aí ela: “Não, mas eu nunca te chamei. Você fez ficha aqui?” E: “Eu fiz, tal, tal, tal e tal.” “Mas foi naquele tempo, daquelas enchentes, eu acho que a gente extraviou tudo. A gente ficou por apagado.” Aí um determinado dia, eu fui chamado. Surgiu a vaga. Aí eu vim, fiz a ficha e graças a Deus foi tudo encaminhado por intermédio deles, principalmente a Idália, que sempre foi uma portuguesa de boa vontade. Intercedendo com a Iara: “Ele é gente boa. Você vai ver e você vai gostar.” Então eu vim, fiz a ficha, me chamaram e eu fiz a entrevista com ela. Lá ela falou: “Olha, eu fui com a cara dele. Vou ficar com ele.”

P/1 – Isso foi quando?

R – Isso foi em junho de 1999. Nesse período entre a Olivetti, e entrar aqui no Aché, eu fiquei 4 anos trabalhando de balconista em um depósito de material de um colega meu, mas sem registro nem nada. Depois, quando ele vendou o depósito, 3 meses antes de entrar aqui, eu tinha entrado em uma firma de reciclagem da Diocese, são entidades filantrópicas, então são as Cáritas que fazem parte. Eu fiquei lá uns 2 meses e eles perguntaram: “Você quer registro ou quer aguardar mais um pouco?” Como interessava o convênio médico, fui me registrar. Então eu fiquei uns 2 meses registrado... Aí eu achei chato. E eu vim aqui para essas entrevistas, preenchi as fichas, fiz o teste prático, fui aceito e graças a Deus fui chamado. No dia 14 de junho de 1999 comecei a trabalhar e estou aqui até hoje.

P/1 – Tá. Trabalhar como?

R – Como auxiliar de cozinha... E depois de 3 meses a gente passa a ajudante de cozinha, tem um aumento no salário - porque aqui, todo ajudante de cozinha é igual, uma coisa muito bonita. Na Olivetti tinha diferenças, pessoas mais velhas que ganhavam mais, as mulheres ganhavam mais do que os homens... Era aquele negócio. Aqui não, aqui você chega aos 90 dias e se iguala. E logo depois surgiu o estudo... Perguntaram se eu queria, e era a minha vontade, eu quis. Eu não continuo estudando pelo horário de trabalho, alguns mudaram de horário para poder estudar, mas eu vi que ia me sacrificar, e olha a gente tem que ver o lado da empresa também. Eu digo: “Olha, eu não vou ficar parado aqui. Eu vou fazer uns cursos particulares para não ficar parado e vou continuar nesse horário. Se futuramente surgir um outro horário, posso voltar a estudar se Deus quiser. E eu...

P/1 – Eu só queria...

R – Pode perguntar.

P/1 – Desculpa te interromper. Mas, é que eu queria antes da gente chegar no estudo, que você contasse como é uma cozinha industrial?

R – A cozinha industrial Eliana, é muito, têm muito o que ver, muito o que fazer. E a gente só sabe explicar na vivência do dia a dia. Como era uma metalúrgica, tem os asseios básicos, as exigências. Tem Cipa, tem segurança... Mas não é um laboratório como o Aché, que já está em uma época mais evoluída, mais sofisticada, de mais fiscalização e de mais disputa no mundo comercial. Porque, você sabe que hoje, quem estabilizar morre... Faz que nem a Olivetti. Ela pensou que era uma potência mundial que nunca seria abalada, e

justamente foi abalada porque deixou de investir na hora certa. O Aché procura sempre evoluir e mostrar o seu conteúdo, a sua potência, a sua capacidade mundial na qualidade do que fabrica, e com especialidade. Porque quando se trata de remédio, são vidas e saúde, uma briga infinita, tem que continuar sempre lutando para ter o seu espaço no comércio... Então aqui é um restaurante que eu considero cinco estrelas. Nas exigências, na preocupação com a manipulação, na preocupação com os comensais, na preocupação com o nome e com a estabilidade, com aquilo que faz e representa. Então desde que você chega aqui, você já vem de casa preocupado com o seu asseio pessoal, com o seu bem-estar, com a sua postura e com a sua forma de tratar os colegas. Aqui você passa por uma série de esterilizações. Tem que lavar as mãos de hora em hora, ou até menos. Tem alertas para você lavar mãos, para você não esquecer pelo menos de hora em hora lavar as mãos com sabão especial. Você tem que ser responsável por aquilo que está fazendo. É muito corrido o trabalho. Toda empresa tem as suas exigências em produção, mas aqui tem mais evolução. Antes éramos 51, fomos reduzidos para 39. A quantidade de refeição também diminuiu, mas não foi tanta.

P/1 – Quantas são?

R – Refeição aqui está em torno, parece que de 1.300 a 1.800. Eu não sei muito bem, depois que a Método saiu, quantos diminuíram, não entrei em detalhes ainda. Porque quando eu entrei aqui, eram de 1.800 a 2.200, dependendo das visitas... Agora caiu um pouco. E no caso da cozinha também caiu. Eram 51 e agora baixou para 39... E sempre acontece ter um de férias, um afastado, adoece outro imprevisivelmente. E o serviço tem que sair, então é um serviço muito corrido. Você não tem tempo para nada, a não ser se dedicar a aquele serviço. Mas graças a Deus, temos uma chefia compreensiva, que entende e valoriza o trabalho da gente... E que se empenha totalmente no profissionalismo para que tudo saia com qualidade e segurança.

P/1 – Como é estabelecido o cardápio? Você sabe?

R – Eu não posso te dar detalhes porque eu não participo da equipe de cardápio. Mas eu sei que além das nutricionistas, tem uma equipe na empresa responsável pelo trabalho de cardápio. Elas se juntam mensalmente, se reúnem e discutem a procura, a preferência e o estilo da época. Você sabe que tem época de determinada fruta, verdura, legume... Então de acordo com as épocas do ano e das condições de oferta de mercado, é elaborado o cardápio. Sempre contendo variedades e nutricionais que não prejudiquem a vida do comensal.

P/1 – Tem algum prato que caiu mais no gosto das pessoas? O predileto?

R – Ah, com certeza. Aqueles que demoram mais a sair sempre ficam na lembrança das pessoas. Como a tradicional feijoada, que tem a sua origem escrava. Que era uma das comidas mais ridículas da época dos escravos, aquilo que sobrava dava para os escravos fazerem aquele tipo de comida. Tornou-se uma das comidas mais envolventes e incentivadoras do momento. A feijoada é a tradicional e inesquecível por todos. Há muita cobrança. O virado a paulista também, muitos gostam, esse foi ontem. Aqui tem muita variedade. O pessoal gosta de variedade e novidade. Aí vem a torta de camarão, que é muito preferenciada. Vem determinado tipo de peixe, que também têm as suas boas lógicas. Uns gostam muito do linguado, principalmente, é muito bom. Outros já gostam do cação ensopado, feito no estilo baiano. E assim por diante... E tem o tradicional do dia a dia que é o bife, ou o frango assado. Mas tudo aquilo que se repete mais constantemente, o pessoal começa a achar que é rotina, e começa a deixar de lado. E às vezes ouvimos um: “É, o Aché tem uma granja. Tem frango todo dia!” Mas ninguém consegue fazer os gostos de todo mundo. O importante é sabermos que nós temos um prato sofisticado com as qualidades nutritivas necessárias para manter a nossa saúde.

P/2 – Vocês têm um retorno? Logo depois?

R – De agradecimentos?

P/2 - É.

R – De algumas...

P/1 - Como isso acontece?

R - ...de algumas pessoas, e também temos as críticas, né? Que deveria ser dessa forma melhor, que não sei o quê... Mas eu nunca vi tanta fartura, e um lugar do povo comer tanto, como aqui no Aché. Porque você vê que aqui tudo é à vontade, e infelizmente a gente vê que ainda têm pessoas que comem com os olhos. Na semana passada, que era torta de camarão, saiu uma infinidade de torta e a gente viu na devolução, os indigestos, que muita gente não comeu a metade daquilo que pegou. Que deveria ter diminuído pela metade.

P/1 – Tem uma preocupação com as sobras?

R – Muita. Porque nós nos preocupamos com a preservação do meio ambiente... Aqui nada sai por acaso, tudo sai determinado, nos seus determinados lugares. E sempre com a preocupação pela vida e pelo meio ambiente. Então, quanto mais sobra indigesto, é mais volume para agredir o meio ambiente. Sabemos que aqui, temos tudo reciclado. Cada um tem o seu lugar, tem o seu ponto. Mas os indigestos, restos de comida, não têm jeito. Tem que ir para o aterro sanitário, né?

P/1 – É verdade. E como é a sua rotina de trabalho? Um dia típico de trabalho?

R – Menina, é quase a mesma rotina. Eu entro 10h42 como já te falei. Quando eu entro, já começo a servir no balcão. Quando termina a fila, no período de uma hora, eu começo a recolher aquilo que foi espalhado pelo salão, para utilizar os comensais, como os talheres, bandeja de pães. Assim eu começo... Dá uma e meia e é meu horário de almoço. Eu vou almoçar, e descanso uma hora. Volto, aí vou fazer a limpeza nos balcões e do chão. Quando eu termino aquele trabalho, ajudo algum colega que está precisando de ajuda lá dentro. Às 5 horas, já deixo aquele balcão preparado para o jantar... E às 04h45 eu vou para a cantina. Lá eu assumo o lugar do caixa, onde o Alcides trabalha, porque ele sai às 04h50. Às 04h45 eu já estou lá para assumir o local dele, e lá eu fico até 06h30... Fecho, volto novamente para o restaurante, e lá eu faço limpeza de panelas, de balcões, de garrafas de café, para

deixar tudo encaminhado para o outro dia. Às 08h30 eu vou embora.

P/2 – E como surgiu essa história de você estudar aqui no Aché?

R – Aqui me foi oferecido. O Aché criou um convênio com a, com esta escola que é a... Meu Deus! Me fugiu no momento o nome da escola. É um nome interessante. Eu não me lembro no momento. Então, a escola veio até aqui ou o Aché foi até ela... Eu não tenho muita certeza da origem. Eu sei que ela percebeu que no quadro de funcionário, só tinham até o quarto ano, o segundo ano, o primeiro ano. Alguns até analfabetos totalmente. E ela viu a necessidade dela, como se diz, competir com o mercado lá fora. Para chegar a ponto de agir da forma que ela age, precisava de um conhecimento básico em seus funcionários, para facilitar. Mesmo as reciclagens, na manipulação do que precisa e assim por diante. Então ela sentiu a necessidade de realmente justificar um pouco mais o seu quadro de funcionários com um conhecimento mais ampliado. Além dos cursos particulares que ela mesma dá aqui dentro. Nós precisamos de conhecimento, e ela viu que se ela investisse em uma escola aqui dentro, facilitaria isso tudo. E ela viu os determinados horários... O nosso horário era o mais complicado, porque eram poucos alunos, encarecia. Mesmo assim ela enfrentou e a gente conseguiu, a gente sonhava com o segundo grau aqui dentro e a administração também sonhou e tentou muito... Mas viu que encarecia muito e começou a entrar essas crises de dificuldade, e acabou ficando para lá. Eu espero, quem sabe futuramente, oportunidade de a gente ter mais facilidade de fazer o segundo grau.

P/2 – Você concluiu até a oitava série?

R – Hum, hum.

P/2 - Quantas pessoas tinham na tua turma?

R – Sete pessoas.

P/2 -

Ahn. De onde eram essas pessoas?

R – As pessoas eram do restaurante, nós éramos em quatro ou cinco... cinco ou seis. E tinha gente da produção, a Benê e a Neuza. O resto era da cozinha.

P/1 - Tá.

R – Nesse horário.

P/1 - E as aulas eram em que horário? Onde eram?

R – Começavam às 07h30 e iam até as 10h30.

P/1 - Da manhã?

R – Sim. Eram aqui nessas salas mesmo, se tivesse ocupada a gente passava para uma outra. E as professoras que a gente teve... A gente teve a professora Valdair, que era de matemática, de ciências, biologia, essas coisas... Tivemos a professora Lurdes, que era de matemática. O professor Robson, que era de história e geografia. E tivemos a professora Ivone, que era de ciências... Quando a Valdair saiu ela assumiu o lugar dele também.

P/1 -

Você lembra como eram essas aulas? Como era o ambiente da sala de aula?

R – Lembro, lembro maravilhosamente. Era como uma forma de lavagem cerebral, a gente chegava fazia ginástica laboral e começava a aula. Então era muito confortável... Porque a gente ficava à vontade, nesse silêncio. As professoras eram todas muito dedicadas, e ensinavam muito bem. A gente aproveitava bastante. A gente recebia os livros, tinham os livros, os materiais, a gente tinha tudo que precisava... Então eram muito aproveitadas.

P/1 – Você estava me mostrando a foto de uma atividade que vocês fizeram fora do Aché...

R – Isso.

P/1 – Você pode contar um pouquinho? Se era comum?

R – Era comum. A gente tinha várias viagens... Nem todas a gente conseguia ir, mas para algumas a gente ia, e essa foi uma que foi todo mundo. Foi maravilhosa, para uma chácara aqui para o lado de Nazaré, dos parentes da Idália. Então lá a gente ficou à vontade, fez um churrasco... A Idália fez um pão caseiro de Portugal, um pão rei, que é um pão feito com frutas, essas coisas assim, assado na brasa. A gente quebrou uns troncos de lenha e fez o fogo, assou o pão. A gente levou refrigerante, cerveja, maionese, essas coisas assim... A gente passou o dia, foi um dia de ensino e um dia recreativo. Porque a gente aprendeu muito e ficou muito feliz em estar lá naquele dia também. Tiramos fotografias, que você viu aí, tivemos alguns conhecimentos, porque visitamos lagos, fizemos estudos em árvore, essas coisas assim, aprendemos sobre qualidade de solo, e assim por diante.

P/1 – Tá. Quanto tempo durou esse curso aqui no Aché?

R – Parece-me que foi no período de 5 a 6 meses, mais ou menos.

P/1 – E teve formatura?

R – Isso, teve a formatura, que foi uma grande festa.

P/1 – Você lembra da formatura?

R – Lembro. E jamais esquecerei, né? Foi muito bonito. Veio um bufê de fora, enfeitou todo o ambiente, teve uma fartura de comes e bebes... Salgadinhos maravilhosos. Tudo bem servido e com bebida.

P/1 – A família participou?

R – Isso. A gente tinha direito aos convites que a gente quisesse. A gente dava aquele número de convite que queria, aí trazia a família e quem a gente quisesse. A família veio toda... Todos participaram. Foi um dia muito feliz e inesquecível na vida de cada um de nós.



P/1 – Hoje, como é a tua vida?

R – Isso. A minha vida é, como eu já falei, o dia de trabalho já te expliquei... Então eu saio de casa, venho para o trabalho, chego em casa 9 horas da noite, assisto um pouco de televisão, vejo jornal com os filhos, depois vou dar uma estudada até às 11:00, e vou dormir.

P/1 – E nos finais de semana?

R – No final de semana é o corre-corre. Tem os trabalhos da comunidade... Eu dou curso para batizado, participo de reuniões de formações de liturgia, essas coisas. Então eu faço preparação de celebração, realizo celebrações de batizados... E nas horas que sobram, eu ainda faço alguma coisa em casa, de acabamento. Porque a minha casa não foi acabada até hoje.... Então juntamente com meu filho, a gente vai rebocando, vai modificando alguma coisa. Trocando uma porta para outro lugar, uma outra posição, fazendo reforma... Sempre vai criando coisas novas. Então é uma vida de corre-corre. Mas sempre me dedico duas horas de estudo, diariamente. Antes de vir para cá de manhã sempre estudo alguma coisa, e à noite estudo uma hora antes de dormir.

P/1 – O que você estuda?

R – O que eu mais estudo são livros religiosos. Eu gosto de todos, tenho uma infinidade de livros guardados. Infelizmente tem uns que eu não pude terminar de ler até hoje, por falta de tempo... Mas eu tenho todos guardados. A mulher às vezes até se enfeza: “Onde é que tu vai parar com tanto livro? Quando tu morrer, vou colocar tudo no caixão”. Eu digo: “Então faz meia dúzia de caixões, que não vai caber. [risos] Eu não sou de jogar nada fora. Eu li, se achei interessante, guardo. E assim é a minha rotina no dia-a-dia.

P/1 – Tá certo.

R – Então às vezes, nem sempre, no final de semana eu pego a viola, descontraio uma meia hora, uma hora. Às vezes vou na casa de um colega que também conhece a profissão. A gente assiste a uma fita de vídeo, assiste uma fita k-7. Ou ouve alguma coisa, um CD de repentista assim... São coisas para ir alimentando a alma no dia-a-dia daquela convivência.

P/1 – E ter trabalhado na cozinha do Aché mudou a tua vida? A tua rotina?

R – Não, não mudou. Eu sempre gostei de ajudar em casa também. Eu não me dediquei a isso, mas eu sempre gostei.

P/1 – Mas assim no gosto, no paladar? Naquilo que é feito em casa? Na exigência de limpeza?

R – Isso mudou bastante. Porque a gente na roça... Não que eu tenha desprezado o meu gênero cultural, as comidas que eu gostava na roça eu gosto até hoje. Agora no conhecimento de limpeza, como manipular e fazer, a gente evoluiu muito. Isso eu mantenho em casa e procuro passar. Muitas vezes a mulher fica enfezada comigo quando falo determinadas coisas que não estão corretas. Que não é daquela forma que guarda, que não é daquela forma que usa, que não pode usar aquilo. Ela às vezes fica até brava comigo. Por que ela nunca teve uma mudança? Ela nasceu lá, criou-se lá, conviveu lá. E aqui veio, sempre do lar, nunca trabalhou fora. Então aquilo que está na cabeça dela, é aquilo mesmo. E muitas vezes a gente fala de alguma mudança, de alguma renovação, e ela até acha que é exigência da gente. Mas não é... É para o melhor, né? E eu sempre ajudei, em casa quando tem visita sou eu quem faço o almoço. [risos]

P/1 – Ah. [risos]

R – Então assim, preparo de mistura, tempero de mistura, nos finais de semana sou eu quem faço. Dia que eu saio cedo, ela já fica reclamando. Hoje ela ficou: “Hoje vai ficar tudo para mim.” Porque eu vim para cá, saí de casa às 07:00 e vim para cá. E daqui eu vou para o curso, até às 04:00 da tarde, e quando chegar em casa, tem um casamento de uma sobrinha. [risos] Eu tenho que chegar, ir para o casamento dela e ficar até umas tantas da noite.

P/1 – A gente está acabando. Eu queria saber quais são teus sonhos para o futuro?

R – Olha, a gente nunca pode dizer que os sonhos da gente acabaram. E estou com meio século de idade, mas ainda tenho espírito jovem e ansiedade. O meu maior sonho foi realizar a minha carreira de repentista profissionalmente, que está sendo quase impossível, porque envolvido da forma que eu estou, é impossível. Só se quando eu me aposentar, me dedicar a isso... Só se for.
Sonhei muito em escrever um livro, ter alguma coisa renomada. E não realizei até hoje. Mas eu tenho alguns tops... Já tenho tops na revista Integração aqui. Hoje já estou fazendo esse trabalho que vai ser registrado em um livro. Então são coisas que eu não posso dizer que realizei por completo, mas tive um princípio. E sempre tenho uma fome muito grande de conhecimento. Eu estou fazendo informática, com muita dificuldade, estou pagando particular. Não ganho tão bem, mas também não ganho tão mal. Para minha família que é grande, pode ser pouco. Mas eu tenho a ajuda dos meus filhos, então procuramos dividir o pouco... E reconciliado nisso, estou pagando curso particular para não ficar tão ultrapassado. Até hoje não tive possibilidade de comprar um microcomputador, mas graças a Deus, meus filhos tiveram. Compraram e dizem que é meu presente de aniversário, então já está lá... Nem peguei ainda, por falta de tempo, mas já está lá ao meu dispor. Então já facilita para eu concretizar melhor meus sonhos, meus arquivos, que desejo fazer. Porque eu tenho uma infinidade de canções, trabalhos orados, escritos... Outros nem escritos foram ainda, está só na memória. O tempo pode levar o dia, e eu sabendo mexer no microcomputador, posso ter possibilidade de deixar um registro, né?

P/1 – Sem dúvida. A última pergunta... [risos]

R – [risos]

P/1 - ...eu queria que você respondesse em forma de repente, eu não sei se é possível. [risos]

R – Vamos lá. Vamos ver o assunto.

P/1 – O você achou de ter contado a sua história?

R – Eu achei muito importante, digo por conhecimento meu. Não estou agredindo seu trabalho, nem contrariando você... Mas fui entrevistado e hoje tornei-me peça de museu. [risos]

P/1 – Parabéns! Excelente. [risos] Muito obrigada. Desculpa se a gente tomou bastante do seu tempo, mas foi muito bom.

R – Não, fique à vontade, eu que agradeço por vocês terem me procurado. Quem foi que me indicou?

P/1 – Olha, várias pessoas, viu.