Museu da Pessoa

Seu João: a vida começa no amor que é dado por uma família

autoria: Museu da Pessoa personagem: João Fernandes Pessoa

Projeto Conte Sua História
Depoimento de João Fernandes Pessoa
Entrevistado por Lucas Lara e Mônica de Carvalho
São Paulo, 04/05/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV561_ João Fernandes Pessoa
Transcrito por Mariana Wolff
Revisão: Paulo Rodrigues Ferreira
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P/1 – Primeiramente, queria agradecer você ter vindo aqui para compartilhar a sua história com a gente e, para começar, eu queria que você me falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – Meu nome, eu já te falei, é João Fernandes Pessoa. Eu sou do dia 14 de maio de 1944.

P/1 – E onde você nasceu?

R – São Miguel, Rio Grande do Norte.

P/1 –

E os seus pais, quais os nomes deles?

R – Miguel Fernandes Pessoa e Raimunda Pessoa de Queiroz.

P/1 –

E fale para mim um pouquinho dos seus pais.

R – Você sabe bem… Se você não sabe, já deve ter escutado falar, que é o seguinte: aquelas pessoas, sabe, do Nordeste, naquela época, não tinham muito estudo, não é? Eram pessoas que, vamos supor, não tinham muito diálogo com os filhos, a conversa delas com o filho era na base da pancada, do cacete, não é? Como eu fui criado. E o meu pai e a minha mãe, que Deus a ponha em um lugar… eram pessoas muito humildes, nós éramos dezessete irmãos - eram dez mulheres e sete homens. O meu pai nunca chegou para conversar comigo numa boa, chegava gritando. Ele dizia que bastava a gente aprender o que ele aprendeu. E ele não sabia nem assinar o nome dele, era muito carrasco. Fui muito judiado na época. Meu pai, no dia em que ele não me dava uma surra, um cacete, não estava sossegado. Então, o diálogo dele, naquela época, conosco, principalmente comigo, era assim. Mas eu, hoje, penso diferente. Quando a pessoa não tem estudo, a pessoa, como se fala, não tem diálogo, não sabe como tratar os filhos, não sabe como ensinar, acha que está certa, então eu respeito. Hoje eu respeito. Naquela época não, eu era revoltado, entendeu? Inclusive, eu vim aqui para São Paulo - em 1965 eu estava com vinte e um anos - muito revoltado, fiquei dez anos sem dar notícia, comecei a namorar. Hoje, nós somos casados com essa senhora aí, que é a Marli, e ela fez com que eu escrevesse para os meus pais. E, depois de dez anos, escrevi, fui encontrar meus pais no Rio Grande. Não encontrei pai, nem encontrei mãe, os amigos, nunca tinha encontrado com o meu pai, nunca tinha dado um beijo no meu pai, cheguei lá e dei um beijo nele, um amigão, completamente diferente daquilo que ele era antes, não é? E eu também aprendi bastante depois que saí um “zé ruela à esquerda”…

P/1 – Como é que você se sentiu quando deu esse beijo no seu pai, depois de tanto tempo?

R – Cara, eu lembrei do passado. Eu senti que era outro, senti que aprendi muito, entendeu? E dali em diante, eu sempre lembrei dele, sempre pensava nele; no passado sim, também, mas sempre desejei o melhor para ele. Então, como você está falando, o que foi que eu pensei? Aquilo que eu não pensava, mas você sabe que tudo é passado, e a gente hoje está na memória. Aí eu saí, fiquei mais ou menos uns quinze dias lá com ele, encontrei um amigo, não um pai. E eles vieram para Goiás - ele morreu em Goiás, meu pai morreu novo, minha mãe…

P/1 – Qual era a profissão deles?

R – Meu pai trabalhava só na roça, não é? Era agricultor, trabalhava na fazenda do cunhado dele. O meu tio chamava Chico Rufino. Era Francisco, chamava-se Francisco Rufino. O cara não sabia onde pôr o cascalho e o meu pai não tinha onde cair morto - meu pai trabalhou trinta e cinco anos na fazenda dele. E o cara chegava em casa... Eu já tinha mais ou menos a idade dos meus dezenove para vinte anos... O meu pai chamava-se Miguel Fernandes Pessoa, mas chamavam ele de “senhor”. Ele chegava e falava: “Senhor, eu não tenho onde pôr tanto dinheiro, tem uma doida fazendo dinheiro para mim”. E o meu pai não tinha dinheiro nem para comprar um quilo de farinha, aquilo me matava por dentro, cara. Cara, era vaca, era cavalo, era criação de porcos, de galinha, de cabrito, de ovelha, e nós não tínhamos… Trabalhava para ele de graça. O cara nunca enfiou a mão no bolso para falar: “Tem uma doida fazendo dinheiro para mim, pega um real, Fernandes, para você”. Nunca. Aquilo me matava. Aí, quando eu ia falar com o meu pai, ele, podendo escutar, pegava o cabo de vassoura e quebrava a gente. Quando não era vassoura, era um pedaço do cabo de enxada, era uma palmatória desse tamanho, uma rodela. Aquilo me cortou e foi mais o que me fez deixá-lo - aquela revolta - e vir para São Paulo, foi que ele me pegou para bater. Houve uma discussão lá, estava jogando bola com a molecada, e ele veio me bater. Eu ia fazer dezenove para vinte anos, ele pegou uma corda lá e veio: “Vou te pegar”. Me chamava de corno: “Vou te pegar, corno”. Ele não falou por que ia bater. Eu levantei, na hora que ele foi me bater... “Dá licença, vai me bater, pai? Mate o teu filho, mate! Não deixa ele vivo. Se o senhor me bater, o senhor não me vê nunca mais na sua vida. Se nós formos lutar, pai, o senhor não ganha mais de mim. Mas o senhor é meu pai, eu não vou pôr a mão no senhor. Não me deixa vivo, pai”. Aí a corda caiu da mão do velho lá, que a garapa desceu - daquele dia em diante nós fomos amigos. Aí, antes de eu vir para cá para São Paulo, nós ficamos amigos, ele vinha conversar comigo numa boa, nós nos entendíamos, mas eu vim embora. Mas eu saí revoltado. Foi quando eu cheguei aqui que fiquei dez anos sem saber se era vivo ou se era morto.

P/1 – E a sua mãe?

R – A minha mãe (risos) ia do lado dele, não é? Quando ele me pegava para bater, que ele soltava, ela dizia: “Bata mais, velho, bata mais” (risos). Então, o que eu lembro dela, é isso aí, mas é minha mãe, entendeu? Eu nunca me lembro que minha mãe me deu um beijo. Naquele tempo não existia isso, você não sabe, que não existia mesmo. Nós éramos dezessete irmãos, então, o que eu lembro dos meus pais, o tempo que eu convivi com ele é isso aí, eu não tenho uma lembrança de nada, não tinha nada, não tinha nem um chinelo para pôr no pé, não tinha estudo, entendeu? Então, a recordação que eu tinha deles é isso aí. Mas hoje, daquela época, lógico que você… Você é que nem a árvore, você vai crescendo, vai brotando, soltando frutos, e depois você dá uma parada para brotar de novo. Eu mudei completamente. Se, naquela época, fosse hoje o meu pensar, talvez eu fosse diferente, e eles também, não é? Mas eu não tinha aquele estudo, ninguém me orientava, não tinha com quem conversar, ninguém me falava nada. Então, eu aprendi muito. Hoje eu respeito, eu sei o que é certo e o que é errado. Se vocês me desejarem um mal ou fizerem alguma coisa errada, que eu sinta que fez, eu não vou pagar com a mesma moeda. À noite, eu chego na cama, levanto a cabeça, peço para Deus iluminar vocês. É que hoje fico emocionado (choro/emoção), eu tenho uma família, essa senhora aí é uma mãe, é uma filha, é uma companheira. Eu tenho dois filhos maravilhosos hoje, graças a Deus, mas eu mudei, viu gente, hoje eu sou outro. Sou aposentado, tenho setenta e… Vou fazer setenta e três anos agora, dia 14 de maio, e sou um cara feliz. O que eu quero eu tenho, graças a Deus. E nós nos damos muito bem.

P/1 – E, “seu” João, antes da gente falar desse hoje, de toda essa mudança na sua vida, me conta um pouquinho da sua infância, como foi crescer em meio a tantos irmãos? Vocês brincavam muito? Como era?

R – Faz tanto tempo, não é? Faz tanto tempo. Como que nós brincávamos? O que era? Nós juntávamos... Brincávamos muito de peão. Você lembra aquele… Como é que fala aquilo lá? Tem um pião que você enrola e solta, não é? Com a capa não anda, sem a capa não pode andar. Para ele andar, você põe a capa, tira a capa para andar, que é o pião na hora que você joga, não é? E aquelas bolinhas de gude. A única… Ou então aquele cavalo... Porque tinha uns pés de coqueiro lá, tirava o talo e fazia a cabeça do cavalo. E saía correndo, de cavalo de pau. E também, depois, eu tinha os meus dezessete, dezoito anos, eu gostava muito de andar de... Como é que fala? Perna de pau, não é? Eu era bom nisso aí. Eu nunca fui de ir em bar, de frequentar bar, nunca fui de ir em festa, eu não tinha religião - que eu nem sabia o que era religião, meus pais não levavam a gente na… entendeu? Aí, depois, dos dezessete para dezoito anos, eu comecei a jogar bola, era ruim pra caramba, mas como eu… como, realmente, era eu quem levava a bola, eu sempre jogava, não é? (risos) Como eu me lembro disso aí, bicho. Mas não tive infância, e nem gosto de falar do meu tempo de infância, viu, cara? Foi só sofrimento. Eu não… minha vida começou depois que eu vim para cá, que eu conheci essa minha companheira, meus filhos; mudou um milhão de vezes. É tanto que eu falo para vocês: fiquei tão revoltado que eu já peguei... que eu tenho um túmulo aí no cemitério da Quarta Parada, que eu falei: “É aqui que eu vou ser enterrado”. Porque eu falei: “De repente, vão me levar lá para o Rio Grande”. Aí eu me associei aí no crematório da Vila Alpina, eu vou ser cremado aí - eu com a minha esposa, meus filhos e tudo - para não ser cremado lá no Rio Grande. Se me der de graça: “Fernandes, toma aí, é seu: Natal, Rio Grande do Norte”. Morro aqui em São Paulo, amo São Paulo, adoro. Aqui foi onde eu encontrei a felicidade e a paz, foi aqui. Quem fala mal daqui não é muito meu amigo. Eu amo São Paulo. É isso aí que eu tenho para falar para você.

P/1 – Antes da gente falar da vinda para São Paulo, eu queria só que o senhor me dissesse como era a cidade em que o senhor nasceu.

R – Era pacata. Uma pobreza total. Não tinha nada, nem uma bicicleta tinha. Era um povoado mais ou menos… Quantas casas mais ou menos? Eu vou chutar, vai, umas cinquenta casas que tinha no povoadozinho, entendeu? Era uma pobreza, uma desgraça total. O meu pai, mesmo assim do jeito que ele era carrasco, nunca faltou um pão dentro de casa, ele era trabalhador, era muito honesto. Nós somos dezessete irmãos da mesma mãe e do mesmo pai e, para isso aí, ele era pontual - nunca faltou o feijão para comer. Mas…

P/1 – E como é que foi essa vinda para São Paulo? Você já conhecia alguém aqui? Como você veio? Quanto tempo demorou para chegar?

R – Eu sempre quis sair de casa, eu lembrei, eu gostaria de ter ido para Brasília…

P/1 – Por quê?

R – Porque Brasília, na época, quando foi explorada lá, que começaram a fazer a cidade, a Capital, muitos colegas meus estavam indo para lá. E a maioria estava se sentindo bem nessa área, e eu não conhecia, não é? Mas eu não tinha estudo, não conhecia nada, tinha medo. Eu não saía de casa sozinho. Aí, por acaso, teve um colega meu, um primo meu, que se chamava Manuel, estava em Brasília. De Brasília veio para São Paulo, falou que ia vir para São Paulo. Eu falei: “Cara, eu acho que vou com você”. “Você vai falar com o seu pai? Seu pai vai deixar?” “Se ele não deixar, eu vou escondido. Eu tenho dinheiro já para ir”. Aí arrumei a mala, foi quando ele veio para cá, falei com os meus pais, arrumei a mala e vim com uma mão na frente e a outra atrás, só com o dinheirinho da passagem, e venci, cara. Cheguei em São Paulo em 1965.

P/1 – Qual foi a sensação de chegar em São Paulo? O que você achou da cidade?

R – Eu fiquei perdido. Sabe esses passarinhos que pousam no poste, na árvore, e você está perto e ele não sabe para onde voar? (risos) A mesma coisa. Na época, você comia o feijão com arroz, feijão com farinha, rapadura, um frango, nunca tinha comido um tomate, nunca tinha comido uma folha, aí ele me pôs numa pensão e a portuguesa lá só dava salada, bicho, foi muito sufoco!



P/1 – Você chegou de ônibus onde, exatamente?

R – Vim direto para o Tatuapé. Eu vim direto para a rodoviária, da rodoviária viemos direto para a Silvio Romero.

P/1 – E como é que era a praça Silvio Romero nessa época?

R – Ah, em vista do que é hoje, era bem diferente. Não tinha a rua Tuiuti, ali, você conhece, ali não era asfaltada, não é? Tinha a igreja no centro da praça ali, era uma capela, e tinha o cineminha do lado. Você se lembra que tinha um cinema do lado ali? Do lado da Tuiuti, hoje, eu não sei se é um banco, o que é que tem ali, tinha um posto de gasolina, aquele posto foi… puseram fogo, ou pegou fogo, eu não sei, pegou fogo, na praça Silvio Romero. Isso foi 1966 para… 1965 para 1966. Aí, depois, montaram... ali onde era o posto de gasolina, na praça Silvio Romero - era de frente para a igreja - montaram uma fábrica de bebidas. Até eu trabalhei nessa fábrica. Aí, depois, eu entrei... Trabalhei três meses na Celite, saí, entrei na De Maio Gallo, na praça Silvio Romero, onde é o banco Itaú, e assim por diante. Aí, fui criando asas, fui ficando mais civilizado. Dava uma fome danada, eu pegava e ia lá onde eu falei para você, na Alfredo Martins, comprava bengala desse tamanho, enfiava debaixo do braço e ia no banco lá, sentava, e o baiano lá comendo a bengala, matava a fome. Hoje não faria isso.

P/1 –

Me fala da pensão. Como é que foi essa pensão? Como é que você chegou, quem o levou? Como é que ela era?

R – A pensão era um ambiente na rua ____00:17:03____, as pessoas… parece que era Isaura o nome da senhora, dona da pensão, e o Daniel, que era o irmão dela, comandava. São pessoas excelentes, bacanas. Me receberam muito bem, não é? Fiquei três meses nessa pensão. Aí comecei a trabalhar na De Maio Gallo, já arrumei um quartinho para morar e um colega meu, daí para a frente foi quando eu fui aprendendo e…

P/1 – E como que você fez para conseguir esse primeiro emprego?

R – Tirei a carteira, que eu não tinha, e, por intermédio de algumas pessoas indicando, mandaram eu ir na empresa. Chegando lá... naquela época era bom de emprego, não é? A primeira vez que você ia trabalhar de ajudante, pegava um ajudante, e foi fácil. Eu entrei, punha o dedão lá, que eu não sabia, e tomei três anos, não é?

P/1 – E o que você fazia lá?

R – Trabalhava de ponteador. Até era profissão na época, mas tinha um cara lá que queria me dar suspensão e eu falei que ia matar ele lá dentro. Aí o cara me mandou embora e não pôs na carteira, pôs ajudante (risos).

P/2 – E o que era ponteador?

R – Ponteador é que você… uma ponteadeira tem assim um pedal - ela é de bronze e o bico dela é de metal. Embaixo aqui é metal e a ponta é metal, então você põe a chapa aqui de baixo, o escapamento, você sabe, aí você pisa no pedal, ela bate em cima, no lugar de solda, ela ponteia, ela segura, ela derrete uma chapa na outra e segura, não é? Então, eu trabalhei três anos de ponteador. Aí, o cara caiu na bobeira… eu ia fazer três anos e pouco nessa empresa, houve um negócio lá que não podia ir ao banheiro, dava vontade de fazer número dois o cara segurava a chave lá e não deixava. Aí eu achava aquilo ridículo, não é? Eu estava louco para ir ao banheiro, fui e meti o pé na porta do banheiro, estava fechada com a chave, entrei, e aí peguei três dias de gancho. Aí falei: “Está bem, três dias de gancho, está bem, eu vou para casa”. Eu vim para casa, aí quando voltei para trabalhar, cheguei batendo no ombro dele: “Você está sabendo, não é? Esses três dias que você me deu, você não vai descontar”. “Já está lá, você vai perder os três dias para você respeitar o regulamento da empresa”. “Está bem, você vai respeitar o regulamento das pessoas e entender o lado das pessoas também. Tem uma delegacia aí embaixo, aqui, encostado aqui. Vai lá e fala para ele o que eu vou lhe falar: se você descontar um centavo, eu vou… posso ser o primeiro, mas um ou dois vai comigo, vou passar vinte e cinco ou trinta anos em quatro paredes, mas você vai comigo. Está bem assim, cara? Sou solteiro, não sou casado, estou sozinho, marca no papel aí. Eu estou te avisando, vou te mostrar como é que se faz”. Bicho, ele não descontou nada. Daí uma semana me mandaram embora, pagaram tudo direitinho para mim. Então, eu era ignorante. Hoje eu não faria isso, eu estava errado. Puxa, mas era escravo naquela época, bicho. Agora não, o cara não vai fazer isso para você, nenhuma empresa vai te chamar a atenção, porque o negócio mudou, na conversa. O peão que vai trabalhar hoje, é mais civilizado e sabe que ele tem que respeitar o limite da firma, respeitar o chefe, o que ele está fazendo, mas, antigamente, tinham essa mania. Antigamente... Você não era nascido, a porta da… Era fechada, só ia uma vez de manhã - até às onze horas - uma vez no banheiro. Para beber água, você tinha que pedir o copo para beber água, era duro onde eu trabalhava! Era assim. Hoje em dia não é mais assim, nem pode, não é? Então, era desse jeito.

P/1 – E como é que fazia com o almoço? Levava marmita, como era?

R – Eu fazia, porque já estava morando no cômodo, então fazia marmita para levar para esquentar, mas os caras… A maioria das vezes os caras passavam a mão na minha marmita, e eu ficava sem. Fiquei umas três ou quatro vezes sem comida, porque roubavam a marmita, somente lá na Celite. Aí o cara falou para mim: “Você é trouxa? Pega a primeira que tiver”. Aí, a primeira vez eu peguei, mas só tinha feijão naquela marmita e eu estava com uma fome danada, vai feijão mesmo, não é? Aí, riscava toda a tampa, se o cara viesse atrás… mas umas três ou quatro vezes fizeram isso. Aí, o que eu fiz? Eu fiz diferente, não é? Comprei uma marmita daquelas redondas e esperava por último. Quando tirava tudo, ia lá esquentar e ficava olhando, porque eu achava uma sacanagem. Mas, várias vezes, fizeram isso comigo. E a vez que eu peguei marmita do cara, só tinha feijão lá dentro.

P/2 – Deixa eu perguntar uma coisa, João: quando você era jovem, vivia lá na casa dos seus pais, você chegou a

trabalhar lá, não?

R – Na roça. Eu comecei a trabalhar tinha cinco anos, entrava para fazer o serviço às seis horas da manhã até às cinco e meia da tarde, direto. Chegava o almoço às onze e meia, meio-dia, você comia aquele feijão com farinha e só ia comer à noite - chamavam de xerengue mungunzá naquela época. Nem sei se ainda existe isso lá, acho que nem existe, mudou, não é? Aquele mungunzå à noite. Isso aí eu fiz dos meus cinco anos até os meus dezenove para vinte anos, quando vim para São Paulo. O ensino que eu tive é o que eu lhe falei. No dia em que o velho dava um cacete, uma pisa, então foi isso aí que…

P/1 –

E esse trabalho aqui em São Paulo foi o seu primeiro de carteira assinada?

R – Foi, na… primeiro na Celite, aí depois na De Maio Gallo, foram as primeiras. Acho que era De Maio Gallo, porque a Celite não sei nem se cheguei a ser registrado.

P/1 – E você lembra o que fez com o seu primeiro salário?

R – Eu lembro. Fui tão trouxa quando recebi o primeiro salário, aquele dinheirão que eu nunca tinha visto na mão, fui comprar roupa, que eu não tinha, não é? Roupa, eu andava com chinelo, eu vim de chinelo lá do Rio Grande, e fui comprar roupa. E fui numa tal de Pirani, não sei se ainda existe essa Pirani. Eu comprei, era conta, não sei quanto era naquela época, não me lembro, comprei tudo de roupa e tudo roupa amarela, dava até risada, aquelas roupas amarelas, cheias de babado, de negócio de ziguezague, não é? (risos) Aí quando eu fui pagar a pensão, não tinha dinheiro para pagar a pensão. Aí: “Mas cadê? O senhor recebeu o dinheiro, ‘seu’ João Fernandes!” “Mas olha o que eu comprei aqui”. Fui lá pagar as camisas e dei para ela fechar o mês o que eu comprei, não é? “Quando chegar o mês que vem, que você vai me pagar, eu devolvo a camisa”. “Está bem”. Aí chegou o mês, paguei dois meses adiantado, ela me devolveu as camisas. E daí por diante eu fui aprendendo, mas sempre boboca. Eu aprendi mesmo depois que eu casei, que a portuguesa aí me ajudou, senão… Mas eu era um “zé ruela à esquerda”, não tinha noção.

P/1 – E o que você fazia para se divertir em São Paulo, nessa época?

R – Cara, depois de um ano eu comecei a ficar esperto, já tinha três namoradas, conheci uns bailinhos aqui na… era ali, perto do CERET, não é? Nem me lembro o nome de onde eu frequentava; e depois, na Vila Formosa, que até hoje tem o baile lá. Eu ia todo sábado e domingo, eu frequentava lá. Aí, era menina adoidado, olhavam para mim, mentia para caramba, eram duas, três namoradas, entendeu? E era isso o que eu fazia.

P/1 – E o senhor jogava bola aqui em São Paulo também?

R – Às vezes jogava, às vezes jogava bola - futebol de salão eu joguei bastante. Joguei bola bastante aqui em São Paulo. Depois de casado também joguei.

P/1 –

E explica para mim como é que era essa paquera na praça, que o senhor comentou comigo lá fora.

R – Eu sempre fui metido, entendeu? Sempre gostei de andar bem arrumado, e se a mulher olhava, se a portuguesada passava lá na praça e olhava para mim, eu mexia com elas e, quando eu mexia e elas não davam atenção, eu acompanhava e começava a dar xaveco. Eu era desse jeito, entendeu? Inclusive, quando eu a conheci, ela estava com cinco colegas na praça. Eu cheguei primeiro, uma me jogou para escanteio, cheguei nela lá e ganhei - namoramos cinco anos. Mas eu era danado, bicho. mentia pra caramba. Aí, com essa daí, não pude mentir, não. Porque quando você percebe que é uma coisa que você tem que zelar, então você tem que ser… foi o que eu fiz, não é?

P/1 – E na época em que vocês se conheceram, você já estava trabalhando aonde?

R – Eu… parece que eu trabalhava numa empresa na Lapa, parece que… Eu não sei se eu era soldador na época, ou não era soldador. Não. Eu minto. Eu a conheci na época em que estudava na rua Tuiuti, na praça Silvio Romero, que é Congonhas do Campo - fazia terceiro ano primário. Porque eu falei assim: “Eu tenho que ter uma profissão. Porque, como é que eu vou casar um dia? Se eu tiver um negócio mais assim… eu tenho que ter uma profissão”. Aí foi quando eu fui no SENAI do Ipiranga, fiz a inscrição, fui reprovado no primeiro teste que fiz lá, aí, na segunda vez, passei - eu fiz um ano e seis meses de serralheria em ferro e alumínio. Aí já comecei a trabalhar de soldador; de soldador fui trabalhar de serralheiro, o salário foi aumentando. Foi quando eu falei para ela: “A gente já pode ter um futuro, nós podemos casar”. Aí eu fiz também caldeiraria, funilaria e serralheria em Santo André, numa escola particular. Foi quando nós casamos e, graças a Deus, ela trabalhava, que era na Philco, não é? Então, os dois… Só que o salário dela não participou em nada, eu que tive que… Aí, depois que nós casamos, sim, aí nós dois trabalhando, já com três anos de casados, compramos uma casa no Parque do Carmo, onde eu moro até hoje, uma casa humilde, mas, graças a Deus, é minha, eu que construí, eu que fiz.

P/1 – E como é que foi esse curso de formação? Você estudava e trabalhava ao mesmo tempo? Como você conseguiu conciliar isso?

R – No SENAI?

P/1 – Isso.

R – Sim, eu trabalhava na empresa e, à noite, eu fazia o curso. O SENAI, eu fazia à noite.

P/1 – E era perto um do outro? Como você fazia para ir? Dava tempo?

R – Dava tempo. Eu explicava na empresa que eu... Realmente, naquela época, eles obrigavam a fazer hora extra. Aí eu mostrava que estava fazendo SENAI, então, no dia eu saía no horário e dava certo, o horário batia.

P/1 – E qual foi o primeiro curso que o senhor fez?

R – Foi serralheria. Apesar de que o primeiro que eu aprendi foi particular - foi soldagem. Fiz a soldagem, aí depois é que eu fui fazer serralheria. Serralheria em ferro e alumínio foi no SENAI Ipiranga, o curso era prática e teoria, ou seja, entrava direto já na área. E essa área, para mim, foi muito prática, porque esquadrilha, esse negócio, medição, eu sempre tive, aprendi fácil.

P/2 – Como é que você ficou sabendo desse primeiro curso que você fez, de soldador? Você estava trabalhando na…?

R – Eu nem conhecia isso aí. Eu, trabalhando… Foi na De Maio Gallo, eu vi o cara… Eu achava até gozado o cara fazer aquilo lá, não é? Eu ficava até olhando, que eu saía com a vista até queimada. Falei: “Eu vou fazer esse teste aí, vou aprender”. Aí, perguntando, a turma falou: “Olha, aqui na rua, aí perto da estação da Luz…”. Esqueço o nome da rua ali…Fica ali pertinho onde era a cracolândia ali “…tem uma escola que ensina a ser soldador”. Fui lá e fiz sem laser, solda elétrica ou com acetileno. Aí, depois que eu saí de lá é que fui fazer o SENAI, no Ipiranga. E tinha solda de acetileno e a solda elétrica. E tinha a Mig também, não é? Eu aprendi também lá a serralheria e aperfeiçoamento; como eu já tinha prática, me puseram e eu aperfeiçoei. Aí, dali em diante, eu tive a oportunidade de trabalhar em várias firmas, como a Tenenge. A Tenenge me deu um curso também, de prática, para eu trabalhar e, em Itaipu, fiquei seis meses. Na semana de viajar para lá, a minha esposa não quis ir por causa da mãe, que estava doente. Eu não fui, perdi a vaga de soldador, soldador alumínio e, naquela época, há mais ou menos… imagina, uns quarenta e três anos, quase quarenta anos atrás, eu ia ganhar 525 ‘paus’ em Itaipu; fui ganhar 125 aqui na Mooca, fazendo o mesmo serviço. Mas a vida é essa. Independente disso eu ia... Antes de acontecer isso comigo, tudo isso que eu estou falando para vocês, antes de eu conhecer a minha esposa, eu ia embora para o Iraque. Eu tive a maior sorte de não ter ido. Eu trabalhava na Camargo Corrêa, quando começou o Minhocão, não é? Onde tinha o Canal 9. Vocês não chegaram a conhecer, era o Canal 9, atrás da Igreja da Consolação. E eu vim trabalhar na Camargo Corrêa. E aí surgiu uma oportunidade de ir embora para o Iraque. Vários colegas meus: “Fernandes, vamos embora para o Iraque”. “Vamos”. Aí dei o meu nome, tudo, não é? Aí, foi quando eu comecei a namorar a minha esposa e, na semana de viajar, os colegas… Houve um tiroteio Iraque, Irã, Estados Unidos, a maioria dos meus colegas que foram para lá, ficaram lá - morreram na guerra; outros se perderam no deserto lá… aí eu peguei e saí fora. Foi quando eu comecei a namorar ela. Ela falou: “Você tem que ficar por aqui, se você gosta de mim, vamos casar e ficar por aqui, tem a minha família”, E eu peguei e brequei esse negócio. Mas se eu não tivesse conhecido ela, não sei se hoje eu estaria vivo, porque eu teria ido.

P/1 – E você ia lá trabalhar com o quê, exatamente?

R – Ajudante, não é? Acredito que ia trabalhar de ajudante de construção civil, porque logo na época que eu cheguei não tinha conhecimento nenhum. E eu não tinha os cursos que eu fiz, isso foi bem antes, logo quando eu cheguei. Então, aconteceu isso comigo. E depois, independente disso aí, já tinha feito curso, tudo, um colega meu, colega não, um primo meu… Eu estava fazendo SENAI, já também, e ele tinha um caminhão, uma carreta, carregava seis caminhões. Ele falou: “Fernandes, você vai trabalhar comigo dois anos, vou comprar uma carreta para você, você vai trabalhar três meses comigo, vou lhe ensinar toda a malandragem, todo o movimento da rua, do trânsito, vou comprar uma carreta e jogar ela na sua mão, vai ser de oito carros. Dois anos você vai trabalhar para mim, depois de dois anos o carro é seu”. Nossa, aquilo foi uma beleza. Tinha começado a namorar a minha companheira que aí está.

P/1 – Qual o nome dela?

R – Marli. “Escolhe: ou eu ou o caminhão!”. Aí eu escolhi ela. (risos) Eu tive oportunidade também, mas a minha maior oportunidade foi ela, porque ela é uma pessoa, Nossa, eu casaria com essa mulher aí umas três ou quatro vezes se fosse o caso, graças a Deus.

P/1 –

E, “seu” João, o senhor estava falando que teve a oportunidade de ir para Itaipu, acabou não indo e foi lá para a Mooca trabalhar, não é?

R – Isso.

P/1 – Como era a Mooca nessa época?

R – Era bem diferente de hoje, não é? Também a rua não era asfaltada, você sabe que nem lembro o nome da rua. Só se eu pegar a carteira para ver, porque não me lembro nem do nome mais. Era uma metalúrgica, trabalhava com o negócio de alumínio, entendeu? E como eu ia ser soldador de alumínio, voltei a trabalhar lá nessa empresa - era até de um turco - eu trabalhei com ele também um ano na Alvarenga, onde tem a faculdade, a favela, comunidade, trabalhei um ano lá, não é? E quando eu saí dali, eu fiquei um ano com ele nessa empresa, trabalhei de soldador no lugar em que eu ia para Itaipu e fiquei ganhando 125 por mês; onde eu ia ganhar 525, fui ganhar 125, trabalhei um ano nessa empresa.

P/1 – Mas como é que era o bairro? Tinha mais casas, mais fábricas?

R – Muita fábrica, uma atrás da outra. A Lorenzetti, ali na Presidente Wilson, onde era antigamente a Antártica, só tinha fábricas - uma fábrica maior do que a outra. Hoje, você está vendo que só é prédio, só é comércio, e a maioria das ruas não eram asfaltadas naquela época. Há cinquenta e lá vai cacetada, não era. Hoje… era bem diferente, uma rua bem pacata.

P/1 – E como o senhor ia para o trabalho?

R – Naquela época tinha bastante condução, tinha ônibus assim, você tinha um ônibus que ia direto para São Caetano, eu pegava ele ali na Celso Garcia, tinha outro que eu pegava no Belém, e assim por diante. Tinha condução, assim... a condução era boa. As pessoas reclamavam, eu nunca reclamei não.

P/1 –

E quando o senhor decidiu se casar?

R – Como assim, você fala?

P/1 – Quando que esse namoro virou um noivado e um casamento? Como é que foi?

R – Cara, na época em que virou noivado eu tinha três namoradas. A única que eu encontrei, que tinha juízo, que eu vi que dava para me aproximar, ser minha companheira, se tornar um lar, os dois juntos, os dois se tornar um só, foi quando nós nos conhecemos. Namoramos cinco anos e daí surgiu, conversa vai, conversa vem, e eu senti que estava na hora de ter um relacionamento mais próximo. Foi quando nós… Um foi conhecendo o jeito do outro, às vezes, eu dei muita mancada também, quase que eu perco ela, e casamos.

P/1 –

E o senhor lembra de ter conhecido a família? O dia que conheceu os pais?

R – Foi a maior vergonha da vida, principalmente naquela época. Quando ela falou: “Meus pais querem te conhecer”. Primeiro, eu conheci… eu vou contar até um negócio que aconteceu com o meu cunhado, não é? Quando eu a conheci, que eu fui conhecer os pais, que eles queriam me conhecer, que falava que eu era lá do Nordeste, bicho… hoje não, pessoal separa, hoje está bem diferente, não é? Não tem nada a ver, gente, eu gostaria de ser um baiano, porque tenho uns amigos baianos que são uns caras dez, são bacanas, não tem nada a ver. Aqui em São Paulo existem pessoas piores do que os caras que vêm de lá da Bahia. Hoje acabou esse negócio de nortista, baiano - é tudo igual. Acho que a linguagem, a teoria, o conhecimento, a tecnologia, a língua, tudo igual. Então... Caramba, eu esqueci o que estava falando.

P/2 – Do seu cunhado.

R – Falando do meu cunhado?

P/1 – Isso, ia conhecer os pais da Marli.

R – Ah, conhecer os pais. Então, aí eu encontrei ele subindo, entrando ali na praça Silvio Romero, ali na rua César Bragança. Aí: “Fernandes, é você! Você vai conhecer os meus pais, você pode ir, eles vão te receber bem. Qualquer coisa, você me procura que eu estou aí para te ajudar”. Ele era guarda civil, naquela época aquela farda vermelha que tinha, não é? Vermelha não, preta… azul, não é? Uma farda bem azul da guarda civil. E ele, na época, trabalhava na rua Piratininga. Vou contar o caso para vocês. Cara, quando eu cheguei lá a primeira vez, que eu vi o velho lá, o português, e a minha sogra - Deus que ponha ele em bom lugar - foram uns paizão para mim, que eu não tive na minha vida, foram eles. Me receberam muito bem. Aí, daquele dia em diante, sábado e domingo eu estava lá, sábado e domingo eu estava lá. Quando eram dez horas tinha que sair fora, mas eu estava lá. Namoramos cinco anos.

P/1 – Onde eles moravam?

R – Encostado ali na praça Silvio Romero, na rua Ipiguá. Eu morei vinte e três anos lá com eles, eles me arrumaram até um lugarzinho para eu ficar lá com eles. Morei vinte e três anos. E foram uns pais exemplares. E esse menino, na época, antes, ele morava nos fundos, esse pai dele... Quando ele

faleceu, eu fiquei morando no lugar dele. Esse meu cunhado… tinha um que se formou advogado, Ademar, esse morreu faz três anos, quatro anos, morreu novo, com quarenta e cinco anos. E esse Landinho, que tinha vinte e sete anos na época. Vocês já ouviram falar algum dia no Carlos Lamarca? Já? Foi Carlos Lamarca que matou o meu cunhado, na Rua Piratininga. Chamava-se Orlando Pinto Saraiva. Ele estava no banco, no Bradesco, na hora que veio um telefonema para ele. Ele estava substituindo outro lá, num armazém, num negócio, que eles fossem lá no banco, coitado, saiu correndo, quando chegou na esquina o Lamarca deu dois tiros na testa, em cima do nariz, e matou o meu cunhado. Ele tinha vinte e sete anos. Aquilo marcou muito. Aí foi quando eu namorava, logo depois de um ano eu casei. Meus pais, meu sogro e minha sogra, sentiram muito. Aí aconteceu tudo isso, casamos, e ele falou: “Você vai morar aqui onde morava o meu filho”. “Está bem”. E foi uma vida maravilhosa que eu tive, não é? Independente do que aconteceu. Até hoje, minha mulher, quando fala, ela chora. Que esse meu cunhado era um cara muito bacana.

P/2 – Que época era isso, mais ou menos?

R – Foi em 1967 que mataram ele, faz bastante tempo. E esse Carlos Lamarca era da época dessa Dilma, viu? Eu acho que os dois transavam na época, na mesma época dessa Dilma. Aí, ele sumiu lá para a Bahia, tal de Brotas de Macaúbas, e foram pegá-lo lá - e mataram ele lá no meio do mato, acabaram com ele, deram mais de quinhentos tiros, amigo do meu cunhado, mataram ele lá. É isso aí, bicho.

P/1 – “Seu” João, o senhor estava mostrando para a gente umas fotos lá fora e uma delas é da festa do seu casamento. E aí, na foto, tem o seu irmão. E havia outros irmãos do senhor aqui em São Paulo? Como é que foi?

R – Naquela época não tinha, só tinha ele. Tinha uma irmã, parece que era a Solange. Ela logo foi embora para Goiás, só tinha esse meu irmão, que era o José, naquela foto que eu te mostrei.

P/2 – Ele era mais velho?

R – Era o mais velho, mas eu cheguei primeiro aqui, depois que ele veio. Era mais velho, um irmão muito bacana aquele lá. Todos os meus irmãos, graças a Deus, são todos… todos eles são… estão bem de vida. Tem uma irmã mais velha, que é a Zilá, que mora em Brasília, e tem a Iolanda, que mora em Brasília. Essa minha irmã está muito bem de vida lá em Brasília.

P/2 –

E qual é essa ligação que vocês têm com Brasília?

R – Como?

P/2 – Porque o senhor queria ir para Brasília?

R – É como eu estava falando no começo, Brasília é o seguinte: você não era nem nascida, claro, eu já tinha na época meus doze para quinze anos quando foi explorado lá, que faz anos pra caramba, não é? Nem sei que ano que foi explorada Brasília, só sei que eu lembro até que o meu pai, na época, queria ir para lá, ele devia ter ido, mas não foi. Aí, eu tinha meus doze para treze anos, a turma estava indo para lá. Aí eu cheguei aos meus dezoito, falei: “Eu vou embora para Brasília”. Mas só que não tive coragem de ir sozinho. Foi quando surgiu esse meu primo, que estava em Brasília, veio para o Rio Grande e depois foi embora para São Paulo, eu fui com ele. Eu já estava com os meus dezenove para vinte anos, foi que… aí eu vim para cá e, depois de muitos anos, a minha irmã, que morava no Ceará, essa Zilá, veio embora para Brasília com o marido. Aí foi levando, foi na época em que todo mundo podia montar uma barraca, roupa, vender, esse negócio, ela se deu muito bem e hoje ela se deu muito bem com isso daí, está muito bem de vida lá, e tem um sobrinho também que é riquíssimo. E foi aí. Daí, foi a minha irmã, depois foram outros para lá, aí vieram para Goiás, outro lugar também onde eu me dei muito bem foi em Goiás, meus pais foram morar lá, morreram lá em Goiás, os dois, e em Goiás tem oito irmãos que moram lá, estão todos bem de vida também, e é isso.

P/1 – E, “seu” João, como é que foi? O senhor morou bastante tempo junto com os seus sogros, mas estava comentando que construiu a própria casa. Como é que foi isso?

R – Olha, a vida a dois, se você souber levar… em primeiro lugar, respeito, união e se dar bem, não é? Você se respeitando e sabendo levar a vida a dois, você consegue. E como eu morava já com o meu sogro, e depois o meu sogro faleceu, ficou a minha sogra, depois foi a minha sogra quem faleceu, e nós já vínhamos juntando dinheiro para comprar essa casinha no Parque do Carmo. É uma casinha muito sem vergonha, mas era uma casa. E nós dois trabalhando, nós nos ajustamos e demos entrada, compramos. O cara estava vendendo lá as duplicatas, que eu soube, eu fui lá, comprei as duplicatas do cara e foi... em três anos eu liquidei essa compra. Mas foi a gente lutando. E depois venderam a casa aí do Tatuapé - parece que eram sete herdeiros - nós queríamos ficar com a casa, nós tínhamos condições na época, eu ia vender... esperava um pouco, vender a casa que eu já tinha comprado, o carro que eu tinha, outros negócios, mas eles não quiseram vender a casa para nós, acharam melhor vender, tudo bem. Aí, eu fiquei lá, comprei lá, trabalhando, tenho a casinha até hoje.

P/1 – E a sua esposa trabalhava com o quê na época?

R – Trabalhava na Philco. Ela trabalhou uns dez anos depois que nós casamos. Eu tirei ela do emprego e fiquei desempregado bastante tempo também - foi na época em que entrou o bendito Fernando Henrique, Fernando Henrique na época. Que a turma fala que foi o melhor presidente, tudo bem, eu até o respeito, que eu não posso falar o contrário. Para quem estava trabalhando, para quem trabalhava em comércio, foi um bom presidente. Mas para quem estava desempregado, para mim, foi o pior presidente que teve. Quando eu tinha… eu tenho até o diploma aí de soldador, serralheiro, caldeireiro, funilaria, tudo isso aí e não arrumava emprego em lugar nenhum. Foi quando eu falei que a minha mulher arregaçou as mangas e foi trabalhar, coitada. Eu, em casa, desempregado, sem arrumar trampo e ela trabalhando. Foi quando eu dei uma de doido: “Executa serviço de pedreiro”. Nunca tinha trabalhado nem de ajudante, nada! “Executa serviço de pedreiro”. Aí um idiota veio lá: “‘Seu’ Fernandes, o senhor trabalha de pedreiro, que bom! Tem um banheiro para fazer lá em casa”. “Jesus, e agora?”. Nunca tinha trabalhado, e ela era psicóloga e o marido dela advogado. Aí mostrou: “‘Seu’ Fernandes, tem que quebrar a parede, rebocar e pôr azulejo”. Como você trabalha na área em que eu já trabalhava, de esquadrilha, você pega, não é? Aí eu falei: “Está bem. Quando é que a senhora quer?”. “Amanhã,

se você quiser, já pode vir rebocar e tal”. Aí eu corri atrás de um maluco trabalhando na rua e comecei a pegar explicação para mim, para José, Antônio, Mané, bicho: “O quê que eu faço? E para eu jogar massa na parede?”. “Mas nem jogar massa, cara. É assim: pega a massa aqui e vai jogando, se você não tiver prática, pega uma colher, aqui no fundo da colher você vai esfregando na parede. “Compre luva”. “Está bem”. Aí fui fazer o reboco lá, cara. Olhei, a mulher não estava. Sempre gostei de limpeza, não é? Sempre com cuidado, levava um pano, levava a vassoura perto de mim, aí jogava a massa na parede, bicho, aí olhei para um lado, olhei para outro, falei… abri a massa lá e a massa chegava, bicho, mas estava comendo toda a luva a massa, não é? Eu fui devagarinho, esfregando toda a coisa de leve, aí fui devagarinho, jogando no bico. Um dia, bicho, tamanho dessa porta para fazer, eu consegui fazer aquela parede, mas a mulher não conhecia muito: “Você fez a parede, está bom”. Eu punha a régua, estava tudo certinho. Aí, no outro dia, eu conversei com o cara: “Fernandes, vai praticando, assim que você vai pegando”. Quando cheguei, não estava jogando a massa, não é? No outro dia, eu fiz as outras paredes, deixei já prontinhas. Falei: “E agora, para fazer o azulejo?”. Nunca coloquei, tinha um idiota lá, fui perguntar: “É assim, horizontal, depois essa vertical, essa você põe lá, primeira fiada você põe embaixo, ou senão você deixa mais da metade do azulejo para cima, estica a linha e vê a medida. Depois põe a régua e coloca o prumo”. Aí eu fiz, a primeira fiada eu fiz com o prumo - começa do canto da parede para cá, para não ficar folga, não é? Fiz o banheiro da mulher em três dias, bicho. Aí, dali para cá, já pus a placa: “Pedreiro em geral, encanador, eletricista”. Sem nunca ter feito encanamento e eletricista. Não é que o trabalho deu certo? Eu trabalhei quase vinte e cinco anos. Se eu tivesse começado isso aí logo quando eu comecei a fazer cursos de serralheria, hoje eu já teria umas quatro ou cinco casas alugadas. Porque, naquela época, quem sabia... na época, ganhava dinheiro. Como hoje, não é? O cara que é honesto hoje, ele consegue. E a área que dá mais dinheiro é a construção civil; dentro de São Paulo não existe área para dar mais dinheiro do que a construção civil. É só você ser honesto e saber trabalhar. Aí, foi na época em que todo mundo trabalhava, o Fernando Henrique, até a mulherada. Eu cheguei a ensinar quantas senhoras a trocar fusível, trocar borrachinha, queimava, ou trocar o negócio do chuveiro? Quantas e quantas que eu ensinei, não é? Porque não tinha, entendeu? Então, sei lá, foi onde eu aprendi muita coisa e hoje, na construção civil, o que você imaginar ou perguntar… eu esqueci já muita coisa, faz tempo que eu não estou trabalhando, mas na minha casa eu ainda faço. Eu faço. O que você imaginar de construção civil, de pedra, azulejo, granito, o que você imaginar, já fiz.

P/2 – Eu ia só perguntar para o senhor o seguinte: por que que o senhor dizia que não conseguia achar emprego de serralheiro nessa época que o senhor falou, do Fernando Henrique?

R – Não tinha emprego, filha, em lugar nenhum.

P/2 – As fábricas tinham fechado?

R – Não, é porque foi um… estava num… naquela época foi um contratempo tão grande na mudança de presidente, foi na época em que o Sarney... Que o real foi lá em cima, entendeu? Parou tudo, nada funcionava. Foi naquela época. Então, nem emprego, nem trabalho, nada, você não conseguia. Aí, depois, com o tempo, foi melhorando, mas foi na época que eu não quis mais saber, eu voltei da construção e fiquei, até me aposentar, trabalhando em construção civil. Mas foi difícil. O Fernando Henrique fez um negócio comigo... Aí eu fiquei pagando a minha aposentadoria, o meu INSS, por conta. E eu fiz as contas das empresas, eu tinha sete anos de insalubridade - um amigo falou para mim que foi o Lula, mas quem tirou a insalubridade, na realidade, foi o Fernando Henrique. Eu dancei. Eu, podendo ter dado continuidade, trabalhando, pagando o INSS para receber um salário digno, me apavorei. Ele me tirou os sete anos que, dos trinta e cinco anos, com os sete anos, passava de insalubridade que eu tinha, não é? Ele me tirou sete anos, eu me aposentei com setenta e cinco por cento, não era isso? Antigamente não era isso? Setenta e cinco ou oitenta e cinco por cento, um salário sem vergonha. Parece que foi com três salários e meio que eu me aposentei, não é? Hoje você vê... Aí foi tirando, tirando, hoje eu recebo um salário, que ele me tirou, foi tirando, tirando os três salários e meio com que eu me aposentei. E quando fala do Fernando Henrique, ele pode ter sido um presidente para quem estava trabalhando, para mim foi péssimo, ele me tirou o rebolado porque os sete anos que eu tinha de insalubridade, ele tirou fora. Aí, o Lula entrou e deu continuidade até hoje.

P/1 – “Seu” João, o senhor já tinha filhos nessa época? O senhor tem filhos?

R – Que época? Você fala…

P/1 – Quando o senhor começou a

trabalhar com construção…

R – Ah, sim! Logo… eu, quando casei - nós nos casamos em 1973 - nós ficamos, parece, uns quatro ou cinco anos, não, três anos para vir a primeira filha, que foi a Viviane, não é? Aí, depois de três anos, veio o Fábio. Foi logo em seguida eu já tive os filhos, não é?

P/1 – E, fale um pouquinho deles para mim. Como é que eles são?

R –

São maravilhosos. Acredito que são como vocês. Minha filha, o que ela pode fazer pela gente ela faz, entendeu? Ensina, orienta, mostra, mostra… como tem que agir, como tem que ser, ela me ensinou a frequentar religião, que ela faz tal religião. Meu filho Fábio é um filho exemplar, ele é cabeça, não tinha juízo, eu tinha muito medo do meu filho fazer coisa errada. Eu participava de tudo do meu filho, eu nunca falei para meu filho assim: “Não

faz isso, filho, você não vai fazer isso, filho, está errado”. Eu sempre participei da seguinte maneira, por isso que ele é um filho exemplar, meu filho, que Deus ilumine ele cada vez mais. Eu nunca cheguei: “Você não vai fazer isso, você não vai andar com fulana, você não vai com o fulano que usa droga, você não vai no lugar onde os caras só fazem coisa errada”. Falei: “Filho, saiba com quem você anda, respeite para ser respeitado. Existem dois caminhos na sua vida: um cheio de espinhos e outro de flor, procure... Eu não vou lhe indicar que é aquele em que você vai entrar - o de flor, se é aquele de espinho, tente, aquele que você achar que é certo, você segue. Mas procure fazer as coisas certas. Eu não lhe proíbo de nada, filho, você faz aquilo que você quiser. Só que tem uma coisa: olhe bem para teu pai, quando você estiver nos piores momentos da sua vida, não procure ninguém, procure seu pai, filho, estou para lhe ajudar”. Meu filho é dez, é isso que ele é hoje. Ele falava para os colegas dele... os colegas dele vinham falar para mim. Quando eles falavam, eu chorava, cara. É assim que o pai e a mãe têm que ser para os filhos, entendeu? E outra: o pai e a mãe têm dois filhos, nunca você deve repreender o seu filho, a sua filha, e o seu marido ir contra você na frente dele. E nem você repreendê-la na frente do filho. Chame em particular, se está errado, chame num particular e conversem os dois, para o filho não ver. A filha, ou o filho. O homem, a mulher, a mesma coisa. Aí você vai ter uma família exemplar. Agora, se você for contra a mãe na frente do filho, porque ele fez coisa errada, pode acreditar que você vai criar um monstro dentro de casa. É por isso que 99% dos casais não se dão, e os filhos não respeitam por causa disso.

O exemplo vem de casa, que vê o pai e a mãe... O ensinamento, educação, moral, não existir palavrão, existir

conversa e diálogo, ser amigo dos filhos para ter umas pessoas boas. É assim.

P/1 – E o que eles fazem hoje?

R – A minha filha sempre trabalhou em banco, trabalhou no Bradesco, passou uns dez anos, pediu a conta, entrou no Banco Itaú, parece que onze anos, saiu da empresa, montou um negócio com a menina aí no Belém, um negócio de ginástica, de dança, enorme lá, e, graças a Deus, está indo muito bem. Ela e a dona, que as duas são sócias, não é? Ficou no lugar da mãe, a filha entrou no lugar da mãe. A mãe saiu, ela entrou no lugar da mãe, a minha filha, não é? No lugar da mãe da menina, que era sócia da empresa, não é? E, graças a Deus, está bem. O meu genro ganha muito bem também, graças a Deus, trabalha em negócio de Bolsa de Valores, muito inteligente o meu genro. E o meu filho trabalha no Bradesco, também está naquela canseira. Se mandar embora, ele não acha ruim; e se não mandar, ele está lá. Ele fala que está cansado de não fazer nada lá dentro, porque o cara que é gerente não faz nada mesmo lá dentro. E tem um bom salário. Agora, ele montou um barzinho, comprou um bar aí no Tatuapé, perto do Carrão, então andou fazendo alguma coisa para ele. O sogro dele fica lá durante a semana, ele sai de lá do banco, chega sete horas, das sete fica até às oito, nove horas no bar, e sábado e domingo ele abre, está lá. E, graças a Deus, ele é um filho exemplar. Minha filha me ajuda, tem um convênio aí que é do… como é que chama? Prevent Senior, ela paga metade, nós pagamos metade. E o meu filho, ele dá uma ajuda, ele tem um vale lá do banco, de mil reais. Faz anos isso aí, ele dá na minha mão para nós comprarmos o que a gente precisa. Então, eles ajudam, eles são uns filhos exemplares. Então, isso que eu falo para vocês: eu sou feliz por causa disso, não é? Porque, além da minha companheira... Porque não vai pensar que eu estou falando isso, entre um casal e outro não tem… Lógico que tem uma diferença: “Olha o pano no chão, olha a vassoura lá, olha o pano de prato, você não lavou o prato?”. Então isso é coisa de rotina, um dos problemas de casa você sabe que é isso mesmo, não é? Então, nós chegamos juntos, a diferença é isso aí, nós dois, graças a Deus, nós somos dez, eu tenho uma família maravilhosa.


P/1 – E como é que é a sua rotina hoje, “seu” João? O que o senhor gosta de fazer?

R – Você sabe que eu voltei a estudar, depois de tantos anos? Eu entro na escola, no Fragoso, aí na Patriarca, das sete às onze e meia. São quatro horas e meia de aula, meia hora de almoço - tem um almoço lá - as outras quatro horas são lá, eu tenho cinco professores, está judiando muito do velho isso aí, mas dá para chegar lá. Aí, quando eu venho da escola, chego em casa, vou fazer alguma matéria, que é cheio de matéria para fazer, aí tem algum servicinho lá, vou fazer na minha casa, não é? Sempre tem, serralheria, vou mexendo, fazendo, tem que fazer alguma soldinha, arrumo alguma coisa, ou primeiro, se eu não lavar os banheiros lá a mulher me cobre de cabo de vassoura, vou ajudar ela, ajudo, ela faz uma parte e eu faço outra. E é isso aí, a vida é essa. Meu filho, quando precisa, eu faço alguma coisa para ele; minha filha precisa, porque ela mora no parque São Domingos, ali encostado entre a Bandeirantes e a Anhanguera - abriram até um shopping novo - tem o Parque Toronto, ela mora ali. Onde só dá bicho d’água, ela mora ali. E quando precisa fazer alguma coisa eu vou lá fazer para ela, faço para o meu filho, e estou aí. Eu não paro não, cara.

P/1 – E como foi essa decisão de voltar a estudar? Como você decidiu voltar a estudar?

R – Cara, eu falei: “Se um dia eu morrer, eu tenho que assinar o caixote, então… (risos) é isso aí, voltei e os meus filhos, a minha companheira, muito: “Nossa, Fernandes, que bom”. Me incentivaram e eu estou lá até hoje. Tem alguns idiotas: “Voltou a estudar para quê?” Tudo bem, eu falo: “Sei lá”. Mas aquelas pessoas você deixa de lado, você nunca, nunca a pessoa tem que bater nessa tecla, não é verdade? Não tem. Para você fazer as coisas, está abrindo os olhos, você tem sua… pode ter uma atividade e somente estudar. E eu me sinto realizado, bicho, eu gostaria de ter voltado mais cedo, não é? E quem me incentivou mais foi uma vizinha ao lado: “Aí, Fernandes, você é tão inteligente, você não quer voltar a estudar lá comigo no CIEJA?” “Que ano você está fazendo lá?” “Estou fazendo o primeiro ano”. Falei: “Acho que eu vou voltar para lá”. Aí fui lá, fiz um teste, estudei três anos, fiz a oitava, estou aí fazendo o supletivo do primeiro colegial. Só que lá no CIEJA, são três professoras; normalmente é coisa simples. Lá, cara, o negócio pega, viu? Eu estou lá e vem com o negócio do Inglês, eu só dou risada, Inglês eu não manjo nada (risos). Qual é a aula que eu mais gosto? Eu gosto da Arte, eu gosto da aula de Química, não é? Por que eu gosto da aula de Química? Porque o professor - Antonoel o nome dele - eu gosto da aula dele porque ele me trouxe um balde, aquilo me incentivou muito, mostrando o que era Química, qual o produto, o que precisa, o que não precisa. Então eu peguei aquilo lá, para mim foi uma coisa boa, tanto da Química, quanto da Arte. A Arte, é você quem faz esse bagulho. O que eu falei para você - faz um negócio desses aí, faz uma mesinha, faz um triângulo. Isso aí é Arte. Uma boneca cheia de enfeite, isso aí que me pegou fácil. Agora, Biologia, Ciências e algumas coisas na Matemática, que eu te falei, as contas em si, porque as quatro contas qualquer um faz, quase - tem uns que não - aí você me complicou mais, entendeu? Mas eu estou indo bem, estou indo bem. O que dá para fazer eu faço; se não der, eu boto uma bala na boca e fico de lado (risos).

P/1 – Você comentou comigo lá fora, de uns churrascos que rolavam ali em Itaquera…

R – No estádio do Corinthians. Então, aquele churrasco… não lá dentro, vocês... Quando começou o estádio do Corinthians, ali na parte de cima, do lado, pegado dos prédios, acho que você viu, eu fui entrevistado ali várias vezes com pessoas lá, e nós fazíamos churrasco toda sexta e sábado. Eu era o cabeça ali e eu incentivava, aquilo para mim foi a maior alegria, o Corinthians ter feito aquele estádio - acompanhei do começo até o fim. Aí, quando terminaram, que eu fui ao primeiro jogo lá, teve uns ensaios lá dentro, eu fui. Aí, depois que o estádio estava pronto, vieram as Olimpíadas. Depois, você sabe, começou a vir essa tragédia, essa pouca vergonha… não, antes das Olimpíadas, foi já que o Brasil perdeu de sete a um. Aquilo me tirou do rebolado. Aí vieram as Olimpíadas, e depois o Brasil lá no Congresso, a pouca vergonha que está até hoje. Aquilo me tirou a sensação de... sei lá, de frequentar o Corinthians - que eu frequentava - de falar de futebol. Então me tirou a concentração, mas eu amava naquela época, naquela época era um tempo… mas fazer o quê? Está tudo mudando.

P/1 – Mas de onde veio a ideia, assim? O senhor combinava com alguns amigos, vocês iam onde, exatamente, fazer esse churrasco?

R – Ah já, cada um traz… um traz um quilo de asa, outro traz uma costela, outro traz a picanha, outro traz a linguiça, e foi assim, a gente combinava e, no dia seguinte, sábado seguinte, já estava lá. E fazia, aquela turminha fazia entrevista, comia um churrasco com a gente… aquilo lá foi um passatempo, foram quatro anos gostosos, cara. A única coisa foi o Brasil ter perdido de sete a um que acabou comigo, mas acabou comigo mesmo, entendeu? Você sabe que aquele jogo foi entregue, foi passado, e foi isso aí. Mas está lá, o estádio… diz que o que fizeram ali… inclusive o… esqueci o nome - Lucas, não é? Lucas, inclusive, ali onde nós estávamos, ali naquele viaduto ali do lado, que atravessa, vai para Aricanduva, ali que vai para o Metrô, eles gastaram mais dinheiro naquele viaduto - a turma fala que não - de que menos do que lá dentro do estádio. Eu não sei porque gastaram tanto dinheiro, eu acho que ali, quando o meu amigo, que eu votei para ele, o Lula e o Zé Dirceu, e outros mais, estavam… aquele estádio... hoje dava para fazer três estádios com o dinheiro que eles gastaram ali.

P/1 –

E o senhor acha que o bairro mudou muito antes do estádio e depois do estádio?

R – Na época mudou muito, cara. Na época valorizou demais em tudo ali, entendeu? Itaquera mudou completamente. Quem morava naqueles bairros ali, da Mooca, Tatuapé, Água Rasa, por aí, em vários lugares, foram morar em Itaquera. Lá no pedaço onde eu moro, tem muitas pessoas do Tatuapé, da Mooca, de outros lugares. Mudou bastante, montou muito bar, mudou o preço das coisas, mas voltou ao normal, recaiu tudo de novo, não é? Porque você está vendo que está, em geral, a decadência, não é? Casa que valia… como a minha. A minha, na época, o cara podia chegar com setecentos e cinquenta ‘paus’, eu não dava. Hoje, eu te falo, será que se eu for vender por quatrocentos ‘paus’, vendo? Vendo porque estão vendendo por quinhentos ‘paus’ pior do que a minha, entendeu? Naquela época. E casa que valia um terreno ali, que era cem, cento e cinquenta ‘paus’, passou a valer trezentos ‘paus’. Ali na Cohab mesmo, que com sessenta ‘paus’ você comprava na época - na Cohab, você comprava por sessenta, setenta mil reais, foi para duzentos e cinquenta, trezentos. Hoje, acredito que… hoje, se quiser vender por cem, não vende um. A situação está… não vende, por causa da situação, entendeu? Eu não sei quanto é que está, eu estou falando isso aí, mas não sei. Mas deve ser isso aí, porque eu falo: ali mesmo onde eu moro, casa que valia um milhão de reais, o cara está vendendo por quinhentos ‘paus’, e não vende. Não é só aí não, no geral. Não tem dinheiro, não tem dinheiro. Os caras de construção civil, a maioria que você estava fazendo um sobrado, ou aqueles caras fazendo três, quatro sobrados, quando começava a mexer na terra lá, a terra já tinha vendido. Hoje não, está lá, três, quatro anos lá, e ninguém compra. Um ou outro que dá certo de vender. Então, a crise… eles falam que está melhorando, mas não está melhorando, gente. Eu acredito que vai melhorar, mas vai demorar, gente, vai demorar.

P/1 – Mas indo para um encerramento, “seu” João, voltando para a sua família, o senhor tem netos?

R – Tenho o Cassiano, que eu te mostrei, maravilhoso, benção de Deus, vai fazer oito aninhos agora dia 26 deste mês. Inteligente. Meu neto é o xodó… essa daí, se ela não for… é que ele mora lá no Parque São Domingos, toda quinta-feira ela tem que ir lá ver o moleque, senão ela morre do coração. Porque a gente mora em Itaquera, não é? O Parque São Domingos, bicho, é uma caminhada. Quando estava fazendo... Arrumando a marginal, ai que foi uma bagunça danada, eu cheguei a gastar três horas da casa da minha filha em casa, e da minha casa para a casa da minha filha cheguei a gastar três horas. Hoje, quando está muito trânsito, eu gasto uma hora e vinte, não é? E quando não está trânsito, em uma hora eu vou e venho. Mas quando está trânsito, uma hora e vinte, uma hora e meia, depende. Mas, naquela época, quantas vezes eu fiquei até três horas no trânsito! Naquela época, o trânsito também andava…

P/1 – “Seu” João, agora, mais duas perguntinhas só. Uma delas é: qual o seu grande sonho de vida hoje?

R – Olha, eu não sei o dia de amanhã, cara. Eu peço sempre para Deus... porque a pior vida do mundo é melhor do que a morte, eu quero estar nessa. Não sei, estou com setenta e dois, vou fazer setenta e três dia quatorze deste mês que vem, se vou chegar aos cem, se vou passar, Deus é que sabe. Sou um cara feliz, sou. O que eu desejo na vida é ver os meus filhos vencer na vida, ter um neto exemplar e o Brasil mudar, ser outro Brasil, ver esses jovens de hoje num país em que você fale assim: “Eu sou um brasileiro”. O que eu mais gostaria, mas está bem difícil, viu? Ter uma mudança neste país, para nós levantarmos e falarmos: “Eu vou ao banco, eu vou à missa”. E ninguém vai tomar o que eu tenho. É o que eu mais desejo, só o que eu penso na minha vida, peço para Deus, sempre. E o mais que eu tive que ter, eu já tenho. Porque eu sou feliz, a companheira que tenho, eu falo: casaria com ela três ou quatro vezes. A família maravilhosa... Que Jesus olhe por nós todos. É o que eu desejo. E para vocês também, que nós nos encontremos muito por aí, cada um fazendo a sua parte, vamos chegar lá.

P/1 – “Seu” João, uma última pergunta: o que o senhor achou de contar a sua história aqui para a gente?

R – Cara, eu estou contando para você aquilo que aconteceu comigo e aquilo que eu penso, não é? Eu estou gostando de estar contando essa história para você, para alguém que não conhece ficar sabendo o que se passou comigo, aconteceu, o que eu sou, o que eu não sou. É isso aí, foi maravilhoso. Gostei. Vocês me receberam muito bem, principalmente ela, da primeira vez gostei do jeito dela, do seu jeito, que você é um cara simpático, de presença, bacana, está se vendo que você é um cara que tem tudo para vencer na vida, isso é muito bom, e continue assim que você vai chegar lá. É isso.

P/1 –

Muito obrigado, “seu” João. A gente adorou, foi muito bom. O Museu da Pessoa agradece a sua participação.

R – Obrigado.



FINAL DA ENTREVISTA



Dúvidas:

R – A pensão era um ambiente na rua ____00:17:03____, as pessoas… parece que era Isaura o nome da senhora, dona da pensão e o Daniel que era o irmão dela comandava, são pessoas muito excelentes, bacana. – Página 04