Museu da Pessoa

Se Brasília tem uma mãe, a mãe de Brasília é Fercal

autoria: Museu da Pessoa personagem: Salvio Humberto Safe de Matos

Votorantim Fercal-DF
Depoimento de Sálvio Humberto Safe de Matos
Entrevistado por Marcia Trezza e Tereza da Silva
Fercal 09/06/2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV008_Sálvio Humberto Safe de Matos
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições



P/1 – Sálvio, nós vamos começar, fala seu nome completo, por favor.

R – Sálvio Humberto Safe de Matos.

P/1 – Quando você nasceu? Em que data e onde?

R – Eu nasci em Patos de Minas, Minas Gerais, 19 de setembro de 1953.

P/1 – Qual o nome dos seus pais?

R – Meu pai se chamava Diomar de Matos, e minha mãe, Rashid Safe de Matos.

P/1 – Que lembrança você tem do seu pai?

R – Ah, tenho ótimas lembranças do meu pai, sempre de muito bom humor, sempre muito engraçado, muito participativo nas coisas da gente. Então uma lembrança muito boa. Meu pai faleceu em 2000, já tem 15 anos, já com 86 anos de idade. Inclusive, era muito comum vir aqui praticamente, depois que se aposentou, quase todos os dias, que ele gostava muito de conversar, bater papo, como mineiro do interior, de estar sempre aqui. Então quase todos os dias ele vinha aqui. Meu pai era advogado e também foi um dos primeiros advogados da fundação do Banco Regional de Brasília, hoje BRB, Banco de Brasília. Uma história de vida toda ligada, ficou mais de 30 anos no BRB. E foi diretor jurídico do banco, depois foi presidente da Regius, que é a seguradora do banco. Uma história toda voltada a Brasília, embora meu pai não tivesse nenhuma aptidão para negócios. Ele era um excelente advogado, mas se meu pai tivesse que vender um carro, esquece, ele com certeza ia ter prejuízo, porque não tinha nenhuma aptidão. A lembrança que eu tenho dele.

P/1 – Ele é mineiro?

R – Mineiro.

P/1 – Era mineiro? E assim, ele tinha alguma descendência?

R – Não. Nenhuma. Que eu saiba...

P/1 – Brasileiro.

R – Meus avós, bisavós, todos são da mesma região de Santana de Patos, é um lugarejo próximo de Patos de Minas. Daí talvez ele gostar tanto daqui, porque como ele era do interior, gostava muito do clima de interior que a Fercal tem.

P/1 – E a sua mãe, ela é de descendência árabe?

R – A minha mãe, o meu avô veio da Palestina, aquelas levas de imigrantes que vieram desde aquela época por causa de problemas religiosos. Meu avô era de família católica, então teve aquele êxodo de católicos, há cento e tantos anos, ele veio para o Brasil, embora minha mãe já tenha nascido no Brasil. Meu avô veio pra Conceição do Mato Dentro, no interior de Minas. Segundo a minha mãe, meu avô, como todo bom árabe, era comerciante, ele tinha um armazém, mas ele adorava mineração, então ele já mexia com garimpo. Eu herdei dele, inclusive até a lupa de examinar diamante, as primeiras ferramentas dele foram passando e acabaram chegando pra mim, que foi o neto que foi para o lado de mineração. E minha mãe sempre foi professora, veio pra Brasília muito no começo, em 61, fez concurso aqui pra professora, depois ela se formou em Psicologia e foi uma das fundadoras do ensino especial em Brasília e se especializou muito em trabalhar com deficientes visuais, trabalhou a vida toda com deficientes visuais. E também hoje é aposentada, tem 95 anos, uma saúde perfeita, uma lucidez perfeita, e graças a Deus tá muito bem.

P/1 – Que ótimo. Você conheceu o seu avô, o pai dela?

R – Não. O meu avô, ele faleceu, minha mãe... Ele faleceu em 1952, e eu nasci em 53. Não conheci.

P/1 – Porque como você herdou as coisas dele...

R – Na verdade, as coisas dele passaram a um irmão da minha mãe, tio Geraldo, que posteriormente me deu de presente.

P/1 – E quando você era criança, antes ainda de vir pra Brasília, você morava...

R – Em Patos de Minas.

P/1 – Em Patos. Que lembranças você tem dessa época da sua infância?

R – Bom eu vim pra cá com oito pra nove anos. Então a lembrança que tenho de Patos é uma lembrança de criança mesmo, de infância mesmo. E como meus avós por parte de pai não moravam em Patos, moravam um Santana de Patos, que é um lugarejo como a Fercal, que fica a 35, 40 quilômetros de Patos. Só que naquela época 40 quilômetros era uma viagem. Então, a minha lembrança mesmo que quase todos os fins de semana era Santana, é a casa do avô, quintais enormes, e coisas que se falar hoje, eu vou preso, caçar passarinho, pegar fruta, essas coisas. Entendeu? Minha infância foi uma infância muito rural. Quando nós viemos pra cá foi uma vida totalmente diferente, a gente mudou, foi morar em Taguatinga Sul. Aí era uma complicação enorme de uma cidade toda nova, você tinha que tomar dois ônibus pra ir para o colégio, era uma dificuldade. Telefone aqui era uma raridade, quem tinha era um privilegiado. Então aí já foi uma mudança tão brusca na minha vida, que praticamente até nove anos de idade eu não conhecia nem televisão. Geladeira em Patos eram poucas, ainda ficava... É uma época que nós estamos falando aí começo da década de 60. Carro brasileiro era Kombi e Fusca, não tinha... Depois que vieram as Brasílias, as Variantes, posteriormente Brasília, os Gordines, então era uma coisa muito, muito, muito distante do que eu vivia em Patos. Mudei pra Brasília, não, era uma agitação enorme, uma poeira vermelha, uma coisa incrível. Um frio que se fazia aqui que a gente congelava nos meses de junho e julho, uma vida totalmente diferente. Enquanto em Patos de Minas a gente andava na rua e conhecia absolutamente todo mundo, em Brasília você não conhecia ninguém, caiu no mundo. Eu sou de uma família muito grande, eu tenho sete irmãos, então foi uma mudança muito, muito, muito brusca. Em Patos, enquanto a gente tinha meu pai todos os dias almoçando e jantando, e minha mãe, embora lecionasse, era um período, tava sempre com... Aqui não, minha mãe começou a trabalhar três períodos, meu pai dois períodos, era uma coisa totalmente diferente. Então passei a viver uma vida muito diferente do que eu vivia. Nessa época, com dez anos de idade, eu vim conhecer a Fercal. Porque em Taguatinga eu tinha um vizinho que era de Conceição do Mato Dentro, a terra da mamãe, o Murilo e o Adair, e eles tinham um caminhão caçamba, então eles por serem muito conhecidos da minha mãe, tinha muito apego com a gente, embora fôssemos muito mais novos. Então vira e volta ele vinha buscar brita na Fercal e falava: “Vamos lá pra ajudar enlonar o caminhão”. Trazia um de nós pra ajudar enlonar o caminhão. Então na verdade eu conheci a Fercal com dez anos de idade, entendeu? Aí já vinha com o pessoal do Adair e do Murilo, que ainda... O seu Murilo já faleceu, o Adair tá vivo ainda.

P/1 – E você disse que tem quantos irmãos? Sete?

R – Eu tenho seis irmãos de pai e mãe, e uma irmã de criação, então somos oito irmãos, eu tenho sete irmãos.

P/1 – Vocês são oito. E você é o mais velho?

R – Não, eu sou o sexto, tem dois mais novos que eu, e cinco mais velhos. Eu sou aquele que ninguém considera, o pai já tá cansado de ter filho e não é o caçula, então eu sou aquele limbo ali, a metade.

P/1 – E como era a convivência com os seus irmãos ainda em Minas? Você lembra?

R – Não, em Minas, os mais velhos, já quando nós viemos pra cá, os dois mais velhos já tinham saído pra estudar fora. A minha irmã estudava em Sete Lagoas, e meu irmão em Juiz de Fora. Porque em Patos naquela época só tinha até o ensino médio, não tinha... E assim mesmo era curso tipo...

P/2 – O técnico, né?

R – Científico, Magistério, que hoje é curso normal. Então a partir daí tinha que sair. Essa foi a decisão que motivou a minha mãe a sair de Patos de Minas. Ela chegou a conclusão... Porque meu pai, por ele, não sairia nunca de Patos de Minas. Meu pai era vereador, advogado, todo mundo conhecia, um dos primeiros advogados de Patos. A gente tinha uma situação financeira muito favorável na cidade, porque morávamos numa das melhores casas da cidade, com quintal enorme, então era uma situação muito estável. Meu pai com os amigos dele, com o clube, aquele negócio todo dele, de repente vir pra Brasília ser um ilustre desconhecido. Então é complicado pra ele. Ele não queria sair de Brasília em hipótese alguma.

P/1 – De Minas.

R – Em 1960, a minha mãe foi a Belo Horizonte com o meu pai com intenção de comprar uma casa, para que mandasse os filhos indo todos pra Belo Horizonte pra estudar. Na volta, eu tinha um tio de uma família hoje muito conhecida em Brasília que são os Safe Carneiros, esse tio meu era dentista e tinha vindo pra Brasília com Juscelino em 1957, pra aquele Iapetec, aquele negócio de quem vinha pra cá tinha uma série de vantagem, dobradinho, tal. Então a minha mãe foi a Belo Horizonte em 1960, e de lá ela resolveu vir com o meu pai para a inauguração de Brasília. Então eles vieram os dois para a inauguração de Brasília a convite da minha tia, irmã da minha mãe, que tinha mudado pra Brasília e que dizia que aqui era o Eldorado dos Eldorados. Minha mãe veio e se encantou pela cidade. Ela voltou pra Patos dizendo que queria morar em Brasília. Meu pai não queria em hipótese alguma. Minha mãe deixou essa filharada toda em Patos, veio pra Brasília de ônibus, fez um concurso pra professora primária e foi classificada em primeiro lugar.

P/1 – Nossa!

R – Então ela falou: “Não, eu vou”. Meu pai disse: “Não tenho condição, eu não vou largar a minha vida aqui”. Minha mãe botou os filhos todos no baú e veio pra Brasília, morar lá em Taguatinga Sul. Antigamente ninguém morava em Taguatinga Sul, aquilo lá era Vila Dimas.

P/2 – É.

R – Então veio. Conseguiu alugar uma casa e veio. Meu pai demorou dois anos pra vir. No começo ele falou: “Você não vai aguentar muito tempo”. Aí ele vinha aqui uma vez por mês. Depois ele passou a vir uma vez de 15 em 15 dias. Ele viu que ela não ia voltar mesmo, veio de vez pra cá. Começou a advogar aqui, logo em seguida foi criada 1968, foi criado o Banco Regional de Brasília, era governador de Brasília o doutor Wadjô da Costa Gomide. Com a criação do banco, meu pai entrou no banco por concurso. A minha mãe inscreveu meu pai no concurso, meu pai jamais aceitaria fazer um concurso com 50 anos de idade, uma pessoa que era um advogado conceituadíssimo em Minas, interior. Mas minha inscreveu, obrigou, ele fez concurso, obviamente passou e no banco ele ficou até... Aposentou um ano antes de falecer.

P/1 – Nossa! E ele quando veio pra cá, você lembra assim da reação dele?

R – Não, ele veio à prestação.

P1 – (risos).

P/2 – Já tava.

R – Ele veio, um ano depois a gente mudou pra W3, aí ele vinha, a gente ia no Núcleo Bandeirante fazer compra. Não, não havia um clima de briga, ele apenas dizia que tinha que trabalhar, que o lugar de trabalhar dele era em Patos, onde ele ganhava o dinheiro, e ele vinha quando podia. Só que naquela época, esses 430 quilômetros eram também uma viagem muito estranha, porque desses 430, 200 era estrada de terra.

P/1 – Nossa!

R – Mas ele vinha sempre. E meu pai sempre gostou de carro muito grande, então ele tinha uma Bel Air, com aquele rabo de peixe enorme, ele vinha sempre que podia. No início ele pirraçou um pouco, mas depois ele viu que não tinha jeito, aí ele veio de mala e cuia pra cá.

P/1 – E você quando chegou aqui você disse que foi aquela mudança, aquela diferença.

R – Total.

P/1 – E você lembra assim do seu cotidiano?

R – Lembro, claro. Eu saía de Taguatinga eram cinco horas da manhã, aí eu caminhava até a Praça do Relógio que eu estudava no 206 Sul. Imagina, eu morava em Taguatinga, estudava no 206 Sul, que foi onde minha mãe conseguiu vaga, que era uma dificuldade naquela época. Por que minha mãe conseguiu vaga na 206 Sul? Porque ela lecionava na 206 Sul. Então ela conseguiu essa vaga lá, depois ela saiu da 206 Sul e eu continuei na 206 Sul. Então tomava um ônibus, descia em frente a 21 de Abril, a Praça 21 de Abril na W3, porque não tinha naquela época grande circular, não existia ligação entre as W3 Norte e Sul. Naquela época não existia a W3 Norte. Então descia a 21 de Abril, caminhava até a 206, assistia à aula, que ia de sete e meia até meio-dia, meio-dia eu subia, pegava o ônibus em frente a 21 de Abril, chegava a Taguatinga duas da tarde, duas e pouco, caminhava, ia chegar a casa duas e meia da tarde. Aí almoçava, tinha um tempinho pra descansar, depois fazia os deveres, naturalmente, e ia brincar na rua. Brincadeira daqui de Brasília era bets, pipa, soltar pipa e jogar bets, futebol.

P/1 – Bets é um tipo de taco?

R – É. Aquele que joga com a bolinha e com o taco. Aquilo era o esporte de Brasília, todo mundo jogava bets.

P/2 – Biloca não?

R – Hum?

P/2 – Biloquinha não?

R – Bolinha de gude. Bolinha de gude, bets, taco, tal. Aí ficava brincando até tarde, tarde que se diz é no máximo seis e meia, sete horas. Depois era hora de jantar e dormir porque tinha que acordar muito cedo pra vir pra aula. Isso foi o meu quarto ano primário, foi assim. No ano seguinte, nós já mudamos pra W3. Mudamos pra W3 Sul, fui estudar pertinho de casa, fui fazer o ginásio. Fiz o ginásio, terminei o ginásio em 1968, no Colégio do Caseb, que é um colégio muito tradicional, o colégio mais antigo de Brasília. Saí do Caseb, fui para o Elefante Branco, é outro colégio muito antigo aqui, tradicional. Saí do Elefante Branco, fui pra UNB, então foi uma sequência.

P/1 – Esses dois colégios eram públicos, ou particulares?

R – Públicos.

P/1 – Públicos.

R – Públicos.

P/1 – E quando você ia...

R – O ensino público era excelente. Os meus professores nesses colégios, todos depois viraram donos de cursinho, donos de outros colégios, porque o ensino público era muito bom. Muito bom. Eu fiz vestibular pra Geologia e me formei em 1976, então 40 anos de formado o ano que vem. Então me formei na UNB, e depois que saí da UNB, eu inicialmente fiz concurso pra Petrobras, mas nem cheguei a trabalhar na Petrobras, só cheguei a fazer os exames médicos, assinar e “desassinar’ o contrato.

P/1 – É mesmo?

R – Porque a Petrobras implicava em trabalhar em plataforma, e eu tinha horror à plataforma. Meu sonho era trabalhar na Amazônia, eu achava que era o máximo. Aí eu fui pra CPRM, fiquei na CPRM de 1976 até 81. Em 81, eu vim aqui pra Brasília trabalhar no Departamento Nacional da Produção Mineral.

P/1 – Então vamos voltar um pouco. É porque é importante você contar um pouco mais de detalhes, inclusive, da sua adolescência lá.

R – Aqui em Brasília quando eu era adolescente era um lugar assim fantástico. Fantástico pra adolescente.

R – É? Por quê? Conta.

R – Porque eu morava numa quadra, e as quadras eram casas geminadas. Então ali se criava um clima de amizade que até hoje as pessoas são extremamente amigas. Os meus filhos são amigos de amigos que são desde aquela época aqui em Brasília. Porque casa geminada é uma casa que tem parede com parede, então você praticamente tá dentro da sua casa e tá dentro da casa do seu vizinho. Então entre os meus dez anos, 11 anos de idade, até os 16, 17, que aí já estava estudando pra vestibular, outra coisa, a quadra é uma extensão, você entrava na casa de todo mundo, todo mundo entrava na sua casa, todo mundo jogava bola no gramado da frente, a gente podia ficar na rua até dez, 11 horas da noite brincando, fazendo qualquer coisa, namorando. Festinha todo dia tinha uma na casa de um, na casa de outro, na casa de outro. Então Brasília era muito, muito, muito diferente do que é hoje. E aqui naquela época você tinha alguns casos esporádicos de violência, principalmente como tinha muito trabalhador, então tinha alguns casos de violência sexual, porque muito pouca mulher para o tanto de homem que veio pra Brasília no início. Mas roubo praticamente não tinha, você deixava a casa aberta. Lá em casa, o portão da casa tinha uma cordinha pra você puxar o trinco. Então você chegava, puxava o trinco e entrava. Igual você entrava, entrava os seus amigos e tal. Eu tenho amigos aqui hoje, inclusive até o médico aqui da empresa, doutor Luciano, que é amigo nosso desde o início de Brasília, por quê? Porque ele estudava lá em casa, comia lá em casa. Por ser mineiro e do interior também, de Unaí, ele morava aqui sem família, adotou a casa até hoje, é amicíssimo da minha mãe. Então somos amigos desde aquela época. Então Brasília, o colégio era ótimo e não tinha nenhuma restrição à cidade. A cidade era uma cidade fantástica. O movimento, por exemplo, fim de semana podia deitar na rua, porque não passava um carro, foi uma época muito boa. Eu também tive um comprometimento em relação à relação muito cedo, porque eu comecei a namorar a mãe dos meus filhos, eu tinha 13 anos.

P/1 – Treze?

R – Treze ou 14. Quatorze, né? É. Foi no primeiro ano do científico, 14 anos.

P/1 – Como você conheceu a sua esposa?

R – Era minha vizinha, os pais são amigos dos meus pais, e ela morava na W3 também, então todo mundo se conhecia, não tinha isso. Começamos a namorar, a gente foi colega, a gente já era colega, começamos a namorar no primeiro ano do científico e casei com 22 anos, então muito novo. Tive a felicidade de ter filhos maravilhosos, então praticamente eu sou um privilegiado.

P/1 – Voltando ainda à escola pública, você falou que a escola pública era muito boa.

R - Ótima.

P/1 – Mas que lembrança você tem assim da escola?

R – Olha, especificamente... Aqui em Brasília?

P/1 – No ginásio.

R – No ginásio? No científico?

P/1 – Isso.

R – Nós tínhamos aula de francês, inglês, redação, dicção, literatura. Nós tínhamos, inclusive, aulas de práticas industriais. Você aprendia práticas, fazer bolsa de couro, trabalhos manuais, então era um curso fantástico. Porque as escolas em Brasília, elas tinham uma concepção moderna de Darcy Ribeiro... Era uma escola integral. Pra você ter uma ideia, no primário, um período era escola normal, e três vezes por semana, eu me esqueci de relatar isso, tinha a escola parque, que você ia pra uma escola só de atividades: teatro, redação, tudo isso. Então era uma escola fantástica. E todo mundo estudava em escola pública, porque as escolas particulares eram exclusivamente religiosas, que era os colégios Sacre Coeur. Então inclusive três anos no ginásio eu fiz como bolsista no Colégio Nossa Senhora do Rosário, que era uma escola de freiras dominicanas, uma escola top, mas uma escola considerada a melhor de ensino aqui. Então tudo aqui em termos de ensino... O Elefante Branco, ele mantinha convênios, por exemplo, com a Aliança Francesa. Então você tinha aula de francês na Aliança Francesa, aulas de inglês na Thomas Jefferson.

P/1 – Isso no seu científico já.

R – Era. E, por exemplo, você escolhia pra prática esportiva um esporte. Então você fazia uma escolha: “Ah, eu gosto de jogar futebol”. Então você tinha a parte física e toda recreação voltada para o futebol. Eu escolhi judô, então eu tinha a prática desportiva física, e depois aula de judô. Com quem? Com os melhores professores, que foram todos campeões, entendeu? Ninomiya, que é famosíssimo, o Miura, que foi campeão pan-americano. Esse era o pessoal que dava aula naquela época. Então o ensino em Brasília era de altíssimo nível. As escolas eram muito boas, muito boas. Todas em período integral, todas com atividades pelo menos três vezes por semana em período complementar.

P/1 – E o convívio das crianças ou dos adolescentes nas escolas?

R – Eu até hoje tenho amigos de época de ginásio e de científico em Brasília. Até hoje. Não é um convívio esporádico, são muito meus amigos, como tem o Carlão da Modelo Pré-Moldado, tinha o Hélio Lopes, que faleceu a pouco. Foram meus colegas de colégio, continuaram meus amigos, porque Brasília era uma cidade totalmente diferente. Eu sou suspeito pra falar, porque até muito pouco tempo atrás, eu acho que eu era o cara mais apaixonado que existia por Brasília.

P/1 – Até um pouco tempo atrás.

R – Até pouco tempo atrás, alguns anos atrás. Hoje eu ainda gosto muito de Brasília, mas Brasília mudou demais.

P/1 – O que mudou pra sua experiência? Mudou de modo geral a gente pode dizer, mas como você sentiu a mudança?

R – Brasília cresceu demais, cresceu muito, cresceu de uma maneira muito desorganizada. Brasília hoje pode-se dizer que é a capital brasileira da irregularidade, 70% das pessoas que vivem em Brasília sequer tem um título de escritura do imóvel que mora. Entendeu?

P/1 – Entendi.

R – É uma quantidade enorme de condomínios, de loteamento. Se você for hoje ao Sol Nascente, tem mais de cem mil pessoas. O que virou o Vicente Pires, que era uma área de chácaras. Então houve um desvirtuamento muito grande da cidade. Por outro lado, a cidade não acompanhou esse crescimento enorme e associado a um crescimento muito maior ainda do entorno de Brasília. Que hoje se pegar Novo Gama, Pedregal, Valparaíso, Cidade Ocidental, Luziânia, Formosa, tudo isso aqui vive em função de Brasília. Usa o sistema hospitalar de Brasília, o sistema de saúde de Brasília, usa tudo de Brasília. Então somando tudo isso, você consegue hoje quatro milhões de pessoas com uma infraestrutura urbana extremamente carente. Então o que nós temos hoje? Temos esse problema seríssimo de hospitais. Você quer ver um quadro triste, vá a um hospital de Brasília, vá a um hospital de Sobradinho, que você vai ver só gente no chão, vá a qualquer hospital. Não acompanhou nunca e acredito que nem poderia acompanhar, porque não houve esse planejamento. O ensino acabou. Entendeu? Acabou. Nós temos caso aqui na Fercal mesmo de crianças que moram na Fercal e vão estudar em Sobradinho II, menino de seis anos pegando ônibus pra poder estudar em Sobradinho II. Como? Que tipo de ensino? Nenhum. Nenhum. As salas superlotadas, professores revoltados, então acabou a parte de educação. Segurança nem se fala, Brasília não acompanhou. Outro dia eu tava vendo o comandante da PM dizendo que o efetivo da PM cresceu X por cento, enquanto a população cresceu 10 X. Obviamente não tem como fazer. Além do mais, a infelicidade de Brasília ser sede do poder central, com isso gerou um clima brasileiro de que Brasília é o centro da corrupção, é o centro da picaretagem. Aonde você vai: “Ah, Brasília, hahahaha”. Pô, pelo amor de Deus, Brasília não tem nada com isso. Morador de Brasília não tem nada com isso. Se tem alguém aqui que tem algum problema, com certeza nem de Brasília é, veio de fora. Então isso aí gerou também um desgaste muito grande pra cidade, você deve saber disso, porque em todo lugar você fala como se Brasília fosse uma chacota, entendeu? E não é.

P/1 – Não, por isso que eu to perguntando como você, enquanto daqui, que chegou muito pequeno, como você sente essa mudança.

R – Eu sou daqui.

P/1 – É.

R – Entendeu? Eu sou cidadão honorário da cidade e adoro vir pra cá criança. Então isso gerou um desgaste que eu digo hoje eu já não tenho... Eu diria, não existe outro lugar no mundo onde eu moraria que não fosse Brasília. Porque Brasília é uma maravilha, Brasília é tranquilo, Brasília não tem congestionamento, Brasília não tem violência. Hoje Brasília tem tudo isso: tem congestionamento, tem violência, não comporta. É uma cidade onde nós temos funcionários públicos e prestadores de serviço. Cidade pouquíssimo industrializada, pouquíssima opção, a população tem pouquíssima opção de emprego que não seja na área pública ou na área de prestação de serviço, o que gera uma distorção enorme. A juventude tem que fazer o quê? Um concurso, um concurso público pra dependurar no Estado. Essa é a opção, não tem outra. Ou então tem que viver num cargo de confiança, pulando de cargo de confiança daqui, pra cargo de confiança dali, pra cargo de confiança daqui, ou pra trabalhar em algum tipo de prestação de serviço.

P/1 – Mesmo o pessoal que mora nas cidades...

R – O pessoal que mora nas cidades do entorno, todos trabalham em Brasília. As cidades do entorno não têm nem sequer... São quase cidades-dormitórios. Basta pegar e olhar o congestionamento que vem de Valparaíso de manhã cedo, todo mundo vem pra Brasília. Então falar que todas essas cidades goianas do entorno, que elas têm uma vida independente, não têm, elas dependem de Brasília. Com isso, a qualidade de vida em Brasília sofreu assim uma queda brutal. Então hoje Brasília não é mais aquela cidade tão tranquila, tão gostosa de se viver. Hoje, qualquer lugar que você vai em Brasília tá lotado. Qualquer lugar você não encontra estacionamento. Virou lugar comum como Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, tirou o diferencial que tinha de Brasília.

P/1 – Daquilo que você viveu?

R – Que eu vivi e que meus filhos viveram. Isso aconteceu de 20 anos pra cá. Brasília até 20 anos atrás era supertranquila. Essa queda, esse crescimento desordenado, isso tudo tem 20, pouco mais de 20 anos, 20, 25 anos. Brasília tinha no início de Brasília, não vou pra você que não tinha favela, tinha, tinha a favela do Ceub e do IAPI. Isso tudo foi feito um programa no primeiro governo, acho que foi no governo Hélio Prates da Silveira, que ele resolver erradicar essas invasões, aí ele juntou todo esse pessoal e criou Ceilândia. Você sabe o que é Ceilândia?

P/1 – Sei.

R – Ceilândia é Mundo da CEI. Sabe o que é CEI? Campanha de Erradicação de Invasões.

P/1 – Ah, isso eu não sabia.

R – Então ele pegou uma socióloga nova, que é a Maria de Lourdes Abadia, e deu a ela a presidência da CEI, Campanha de Erradicação. Cadastraram-se todos esses moradores de invasões do IAPI, de Ceub, e transferiram todos esses moradores pra Ceilândia, Mundo da CEI. E aí estabeleceram todos lá. Nessa época acabaram as invasões, praticamente, em Brasília. Ficaram algumas áreas que não eram invasões, como a Fercal. Era uma comunidade, mas não invasões de barraco como tinha. Transferiram pra lá. A grande invasão daqui era o IAPI perto do Núcleo Bandeirante, foi tudo pra CEI. Foi a primeira cidade criada projetada para absorver esse tipo de retirada de invasão. Posteriormente saímos de sete cidades satélites pra 31 RA. Trinta e uma regiões administrativas.

P/1 – E o que você, assim, acompanhou pra ter esse crescimento populacional tão grande assim? Você consegue precisar?

R – Claro. O que houve no Brasil? As sucessivas políticas de descuido com as populações interioranas criaram um fluxo migratório enorme, incialmente em direção a quê? São Paulo. São Paulo, São Paulo, São Paulo. Todo mundo que tinha o sonho de sair de qualquer lugar, do Nordeste, de onde não tinha condição, do interior de Goiás, do interior da Bahia, era pra São Paulo. Ora, criaram uma capital federal aqui.

P/2 – Bem aqui pertinho.

R – Então é óbvio. Aqui tinha uma saúde excelente, um sistema de saúde fantástico, um sistema de ensino fantástico, tudo isso gerou um atrativo, obviamente todo mundo veio pra cá. Não condeno ninguém, porque o motivo que trouxe todo mundo pra cá foi o mesmo que trouxe os meus pais: melhorar as condições de vida e ter mais estrutura. Só que o cara que veio pra Brasília no início e aqui ele fez a vida dele e de repente ficou rico, ele começa a falar: “Esses invasores, esses não sei o quê”. Ele esquece que ele também veio um dia. Ninguém veio pra cá que não fosse esperando uma melhoria de condição de vida. Todo mundo que veio posteriormente veio com a mesma filosofia. Aí dizem: “Ah, porque houve uma favelização de Brasília, uma troca de lotes por voto”. Conversa. Brasília já estava muito mais... Estaria muito mais favelizada hoje se não fosse a política de assentamento, fazer as novas cidades satélites. Porque hoje se você anda em Samambaia, anda em Ceilândia, você vai ver que são cidades, embora muito grandes, organizadas, com o mínimo de condição, com infraestrutura básica. Você entra dentro de um Sobradinho II, de um Recanto das Emas, Santa Maria, o próprio Riacho Fundo I e II, são cidades organizadas. São cidades, embora não sejam cidades de altíssimo padrão de vida, são cidades com rede de esgoto, com água, com luz, com infraestrutura básica. E isso se compara hoje... Simples, você conhece Salvador? É um cinturão de favela. Ali sim é favela. Com essas enchentes agora, não sei quantas mortes de desbarrancamento. Você conhece Rio de Janeiro? É um cinturão de favelas. Brasília tem pouquíssimas favelas. Tem assentamentos e regiões administrativas que foram criadas. Eu não acredito que ninguém em sã consciência tenha vindo pra Brasília porque aqui se dizia que ia ganhar um lote. Veio porque achava que aqui tinha muito melhores condições de vida. Inscreveu-se nos programas habitacionais, que sempre existiram, inicialmente era X, depois virou IDHAB, não sei o quê, e esses programas distribuíram lotes realmente em condições. E isso gerou popularidade ou não, os críticos desse tipo de programa adotaram o mesmo programa no futuro. Então não quer dizer absolutamente que tenha sido isso que motivou. Acredito que a vinda pra cá foi devido à migração enorme que houve da população de áreas rurais, principalmente de áreas menos favorecidas, em busca de uma melhoria de uma condição de vida em Brasília. Hoje esse fluxo com toda certeza diminuiu, inclusive porque diminuiu pra São Paulo, todo lugar, porque já não tem mais tantas oportunidades, a pessoa já não vislumbra tanta oportunidade. Aqui sempre tinha uma oportunidade de chegar, de receber um terreno, de construir uma casa, de arrumar um emprego. Então é por isso que veio tanta gente pra cá. E por isso que todo mundo veio pra cá. Isso aqui não existia. Todo mundo que veio pra cá é migrante. Então falar dos migrantes hoje é muito fácil, principalmente quando... Eu também sou migrante, também vim do interior de Minas.

P/1 – E, Sálvio, você tava dizendo, um pouco voltando ainda, quando você começou a namorar a sua esposa, como foi esse começo de namoro? Você casou tão novo.

R – Não, colega de escola, pais amigos, ali todo dia, normal. Começou a namorar muito criança, já ia para o colégio junto, já se criava... Antigamente os namoros criavam vínculos, vínculos familiares, e acabava-se todo... 99% terminavam em casamento. Entendeu?

P/1 – E você teve dois filhos.

R – Dois filhos. Dois filhos.

P/1 – Qual o nome deles?

R – Leonardo e Rogério. Leonardo é o caçula e Rogério é o mais velho.

P/1 – E tem uma menina?

R – Tenho uma filha adotiva do meu atual casamento. É filha da minha esposa.

P/1 – Qual o nome dela?

R – É Monique.

P/1 – Monique. E você começou a contar pra gente que fez vestibular pra Geologia, estudou, quando se formou...Você trabalhou... Começou a trabalhar quando? Em que época?



R – Comecei a trabalhar em início de 1976.

P/1 – Você já era formado?

R – Já formado.

P/1 – Como geólogo?

R – Como geólogo.

P/1 – E aí você disse que fez o concurso da Petrobras porque você tinha intenção de trabalhar em terra, não em...

R – Não, eu não tinha intenção, é porque a gente fazia mesmo. Quando eu me formei, tinha tanta opção de emprego, eu acho que eu tinha cinco convites de emprego na época. Porque Geologia era um curso relativamente novo, a gente vivia uma época do Brasil grande, das grandes pesquisas minerais, então o curso de Geologia te propiciava assim, sair da escola... Minha turma eram 23, nenhum ficou desempregado, todos tinham emprego. Quando eu fui pra seleção da Petrobras, eu já tinha proposta de trabalho da CPRM, da Nuclebrás, então foi uma conta simples, foi simplesmente deixar de ir pra uma e ir pra outra.

P/1 – Agora, por que você escolheu? O que te motivou escolher esse curso?

R – O curso de Geologia?

P/1 – É.

R – Ah, eu sempre gostei. Desde de criança eu adoro pedra. A minha vida inteira é ligada a aspectos minerais. Eu nunca fiz nada que não fosse ligado à mineração. Aliás, eu nem sei fazer nada.

P/1 – Explica um pouco. Conta um pouco isso. O que significa isso?

R – Não sei, eu desde criança sempre gostei de colecionar pedra, brincar com rochas. Na verdade, eu acho que eu sempre quis trabalhar com a área de mineração mesmo. Não me passa pela cabeça ter sido outra coisa que não fosse ou geólogo ou engenheiro de minas. Normalmente, a tendência é que eu fosse ser engenheiro de minas. Eu só não fui fazer Engenharia de Minas porque não existia esse curso em Brasília. Eu queria fazer fora, mas eu era muito novo e a minha mãe tinha um argumento muito forte, que ela dizia o seguinte: “Eu vim pra Brasília pra vocês não ficarem indo pra fora”. Então era um argumento decisivo. “E além do mais, Geologia é a mesma coisa de Engenharia.” Não é, mas tudo bem, acabou quase que sendo. Então eu sempre mexi com pedra, e a minha vida profissional sempre foi ligada à mineração. E depois que eu deixei de ser funcionário, que eu passei a ter empresa própria, que e foi em 1983, sempre foi ligada à mineração. Tive marmoraria, pedreira, sempre trabalhei com prospecção mineral.

P/1 – Então, mas você disse que sempre gostou muito de pedra. Isso foi alguém que te influenciou?

R – Não sei. A minha mãe diz que meu avô, a paixão dele era garimpo. E isso é verdade, porque eu tenho até fotos antiquíssimas dele secando rios, na época podia, não tinha Ibama, pra tirar o diamante no fundo do rio. Então talvez venha dessa genética lá do meu avô. Porque efetivamente eu mexo com outras coisas. Hoje a gente tem empresa de construção, a gente tem empresa de loteamento, mas não me atraem, eu prefiro mil vezes vir pra pedreira. O pessoal costuma dizer que eu trabalho muito. Eu costumo dizer que eu trabalho pouco, porque como eu faço o que eu gosto, eu to sempre de férias. Quem faz o que gosta tá sempre de férias.

P/1 – E essa sua história com as pedras, você tem algum episódio assim, alguma pedra especial, alguma situação que foi marcando a sua...

R – Não, eu trabalhei na CPRM, trabalhava basicamente com levantamento geológico. Levantamento geológico é porque... Hoje não tem mais. Naquela época, em 1976, não existiam mapas, então a gente ia criar os mapas geológicos das regiões, principalmente do Tocantins, da terra da Tereza, foi eu que mapeei a terra da Tereza, Projeto Natividade. E era um trabalho que você ia para o campo e em cima das fotografias aéreas você construía os mapas geológicos, que deram origem ao arcabouço da geologia do Brasil. Então eu trabalhei com isso de 76 até 1980. Em 81 eu vim trabalhar no Departamento Nacional da Produção Mineral, vim ser chefe de um projeto chamado Projeto Ouro, que era um projeto destinado a fazer um controle de todos os garimpos de ouro que existiam naquela época do boom do ouro no Brasil, Serra Pelada, Cumaru, não sei o quê, não sei o quê. Então coube a mim ser chefe do projeto na hora de desativar aquele universo de garimpo. Foi uma experiência muito boa, foram três anos de Amazônia. E é uma coisa muita intensa, uma coisa muito... Você vê aquela Babilônia de perto, ainda mais como chefe, aquilo era uma coisa terrível, enfim, foi um ano...

P/1 – Só que você disse que queria muito trabalhar na Amazônia, e foi essa experiência?

R – Sim. Na CPRM eu já trabalhava na Amazônia Legal.

P/1 – Ah, já.

R – Já trabalhava, porque a superintendência de Goiás pegava o Mato Grosso inteiro, que não tinha divisão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Norte, e Goiás inteiro, que não existia Tocantins. Acima do Paralelo 13 tudo é Amazônia Legal.

P/1 – Como é esse trabalho? Eu sei que a gente pode pesquisar em outras fontes, mas da sua experiência com esse trabalho de fazer esse mapa?

R – Fantástico.

P/1 – Descreve um pouco a atividade pra gente.

R – A gente ia para o campo no meio de transporte que existia na época, onde se atingia de jipe, era de jipe, onde se atingia de barco, era de barco, onde se ia de avião, era de monomotor, aviões pequenos, e ia fazer campanhas de campo. Essas campanhas podiam durar 25, 35, 45 dias. E depois o regime era o seguinte, por exemplo, se eu ficasse 45 dias no campo, eu teria 15 dias de folga na cidade. Então a infância dos meus filhos foi vendo o pai intensamente 15 dias, e não vendo o pai 45 dias. Então o período de folga você tava em casa, vinha pra casa e ficava praticamente chocando a família, e em seguida novamente outra campanha de campo. Essas campanhas de campo, normalmente elas duravam de março até novembro. Por que de março a novembro? Porque é o período mais seco, tanto na Amazônia, como no Centro-Oeste. Dezembro normalmente férias, e janeiro e fevereiro eram destinados a você preparar os relatórios dos trabalhos que você fechava no ano. Então eu comecei trabalhando num projeto chamada Pilar-Mara Rosa, depois fui para o Natividade, que pegava Natividade, Almas, Pindoramas, Novo Acordo, toda a região hoje do Tocantins. Depois passei a ser de geólogo de campo a cargo mais de supervisão, aí eu ficava em qualquer lugar, qualquer projeto, não era um projeto específico. Então ficava viajando bastante. Então praticamente de 1976, até 1988, eu passei viajando.

P/1 – Nossa!

R – Foram 12 anos onde eu realmente passei 70% do meu tempo fora de Brasília.

P/1 – E você ficava em mata fechada?

R – Às vezes mata fechada, às vezes não, dependia do lugar. Aqui, por exemplo, na região de Natividade, embora fosse terra, balsa pra passar nos rios, tinha várias cidadezinhas pequenas: Natividade, a própria Almas, Indianópolis, Pindorama. Tinha várias cidades. Aqui no Nordeste, Goiânia de Mara Rosa pra frente tinha várias cidades. Se tinha uma cidade com o mínimo de estrutura, você ficava ali; senão ficava acampado.

P/1 – Acampado.

R – Agora, da Amazônia pra cima só acampamento.

P/2 – Na época do garimpo em Chapada lá em Natividade, você estava lá?

R – Estive várias vezes lá.

P/1 – E como foi essa experiência de você? Você desativava o garimpo?

R – Não. Nós controlávamos o garimpo e não permitíamos a expansão do garimpo mais. Então controlava, o DNPM passou a controlar. Porque durante o governo Figueiredo, o controle de garimpo era todo feito pela SNI, tava aquele boom de cem mil toneladas de ouro, que vai pagar a dívida externa com ouro, aquela conversa fiada. Então houve uma massa enorme que se deslocou pra Cumaru, Serra Pelada, Rio Maria, Alta Floresta, Matupá. Então esse contingente garimpeiro, ele primeiro garimpou. O garimpo é finito. O que você extrai como garimpo é limitado. Você trabalha aluviões de córrego, aluviões de rios, concentrações enormes como Serra Pelada, e depois ele exaure. E aí existem técnicas mais sofisticadas de extração, que não são técnicas ao alcance dos garimpeiros. Além do mais, o garimpeiro trabalhava naquela época sem nenhum tipo de fiscalização ambiental, era mercúrio, envenenamento de mercúrio, assassinatos, o que podia ter, tinha no garimpo naquela época. Mas a Caixa Econômica comprava toda a produção de ouro, com isso comprou cem toneladas num ano, e aquilo era uma coisa muito bacana. Ao final do governo... Já quase na segunda metade do governo Figueiredo, resolveram dar um basta nisso, havia uma pressão muito grande com isso, então transferiram para o DNPM a coordenação que era antigamente do SNI. Essa coordenação que me foi dada em 1981. Eu era um geólogo novo, tinha 27 anos, mas tinha muita experiência de campo, aí vim trabalhar aqui e fiquei pulando de garimpo em garimpo e diminuindo isso.

P/1 – Em todos esses?

R – Todos eles. Era o Brasil inteiro...

P/1 – Como era esse trabalho assim? Você chegava lá...

R – A gente procurava fazer...

P/1 – Com uma equipe?

R – Tinha. Tinha as equipes de cada distrito, eu só era coordenador. Você procurava fazer um disciplinamento mais rigoroso, utilização de técnicas mais sofisticadas, não haver mais uso de mercúrio indiscriminado. Enfim, criar condições de... Criamos a figura da concessão garimpeira, que antigamente era só a carteira de garimpeiro, que o cara tirava em qualquer receita e com isso ele podia garimpar. Procuramos disciplinar e normatizar os garimpos. Isso foi gradativamente ocorrendo um declínio, até porque não foi mérito nosso, as jazidas é que estavam se exaurindo mesmo, e resultou praticamente no final do ciclo garimpeiro em 1983, que foi a época que eu optei por sair do DNPM.

P/1 – E você ficou dois anos nessa atividade.

R – Fiquei três anos.

P/1 – Três anos.

R – Três anos.

P/1 – E teve momentos assim mais de tensão?

R – Ah, muitos. Muitos. Momentos de muita tensão. Muitos. Muitos. Muitos. Dá um livro.

P/1 – Dá, né?

R – Dá. É uma coisa totalmente... Eu falo que eu... Eu costumo dizer que eu bloqueei. São coisas... Teve muito lado bom, mas teve tanta coisa ruim, que eu fiz um bloqueio de não querer, achar que aquilo não era uma coisa normal, que não era uma experiência muito salutar.

P/1 – O que vocês levavam, vocês tentavam fazer a formação daquelas pessoas, vamos dizer. Orientar as pessoas garimpeiras.

R – Mais era não deixar expandir o que tava. Quem ia saindo também não ia voltando. Procurando dar uma assistência técnica maior para o pessoal. Enfim, tentar levar, a gente trabalhava muito em conjunto com a Polícia Federal, com outros órgãos do governo, levar o mínimo de condição de trabalho para aquelas regiões, sabendo que aquilo iria acabar mesmo, que não tinha por que não acabar. Em 1983 já era praticamente... Acho que o Sarney entrou em 84, não foi?

P/2 – Foi.

R – Então era o finalzinho do governo Figueiredo, já praticamente não tinha mais nenhum crescimento na atividade garimpeira no Brasil. As empresas de mineração assumiram, deram no que deu. Também não produzem nada, porque não era um ouro “minerável”.

P/3 – Você andava armado, né, pai, no BNPM?

R – Se eu andava o quê?

P/3 – Armado?

R – O dia inteiro. Todo dia. Como você vai trabalhar na Amazônia desarmado?

P/3 – Você tinha porte de arma?

R – Sempre tive, durante séculos e séculos. Não gostava que ficasse perto de vocês, mas com certeza tinha.

P/2 – Mas nesses garimpos, nesses convívios que você teve, teve algum momento de pressão? Porque você tava mexendo com o interesse... Não era responsabilidade sua, e sim do departamento que você representava, mas teve alguma pressão de pessoas que fossem responsáveis por esses garimpos com a sua pessoa, te responsabilizando por estar mexendo com os interesses deles?

R – É, teve. Teve. Depois mesmo quando eu saí do Ministério teve comissões de inquérito, teve vários tipos de pressão, mas eu nunca me afetei, porque eu não tinha nenhum tipo de envolvimento que não fosse envolvimento do trabalho. Mas sempre tinha. Durante quatro, cinco anos, os garimpos que existiam no Brasil, Serra Pelada, Cumaru, os grandes garimpos, foram inteiramente loteados por políticos. Todo mundo que foi pra lá tinha alguma autorização de algum político. Dizem que isso é de hoje. Não. Naquela época, todo mundo ia por indicação de um político. O sujeito pedia uma carta ao José Sarney, que tinha sido governador do Maranhão, era presidente da Arena, ele mandava uma carta para o ministro indicando a pessoa e o ministro mandava dar aquela carta. Isso eu fiz inúmeras vezes, não foi uma, nem duas vezes, não. Fiz centenas de indicações por determinação ministerial. O ministro mandava dar e pronto, entendeu? Naquela época, com toda certeza o poder era muito, muito central, nós vivíamos um regime de exceção. Não havia questionamento disso, não. Todo mundo que... 90% das pessoas que foram trabalhar em algum garimpo foram com alguma indicação, ou então foram pra trabalhar de empregado. Que tinha aquele que foi de trabalhar de empregado para o dono da carta. Mas as cartas todas em Serra Pelada, Cumaru, Rio Maria, os bons garimpos eram loteados e determinados por política. Eu simplesmente nunca me envolvi, por quê? Eu acatava ordem. Se chegava uma determinação, eu encaminhava a determinação pra frente, entendeu? Então vinham, entregavam uma carta pra fulano de tal, entrega a carta pra fulano de tal, não fui eu, eu tive o cuidado de guardar durante anos e anos e anos isso, pra se falasse que eu dei alguma, eu dizer: “Não dei, não. Tá aqui, olha, eu não dei nada disso aí”. Mas houve sim, houve todo tipo de pressão. E eu tô falando de garimpo porque eu acabei na Fercal por causa de um garimpo, entendeu?

P/1 – Então conta pra gente essa história.

R – Quando eu saí do DMPM, eu abri uma empresa de prestação de serviço, depois essa empresa prosperou, veio o Plano Sarney. Vocês são muito novas, não sei se vocês se lembram do Plano Sarney, Plano Cruzado. Aí a empresa cresceu muito, depois voltou aquela inflação 90%, a empresa afundou novamente, e aí nessa época eu já não tinha mais prestação de serviço, fui trabalhar.... Resolvi ser garimpeiro. Então tive garimpo no Pará, tive garimpo de ametista, tive garimpo de ouro, e tive um garimpo de diamante aqui na Bahia, onde hoje não se garimpa mais, é o parque, hoje é tudo parque ali, mas na época eu fui montar um garimpo no Rio Santo Antônio e tal. E esse garimpo era um garimpo muito bem organizado, só que houve uma enchente muito grande em 1988... 88 não, 86. Depois do Plano Cruzado. Essa enchente muito grande e inundou todo o meu garimpo, eu perdi absolutamente tudo. E quando estava voltando pra Brasília, encontrei com um amigo que era engenheiro de minas, e que estava indo fazer uma prospecção de um granito azul lá em Oliveira dos Brejinhos, interior da Bahia. Aí encontrei com ele, conversando e tal, contando história, e ele falou: “Rapaz, vamos comigo lá, porque eu fui pago pra fazer esse serviço, mas não entendo nada disso. Eu sei que você entende e tal”. Aí eu fui com ele lá fazer esse serviço. E essa área, que depois viria a se tornar uma mina de... Esse granito azul, que é o quartzito dumortierítico, essa área pertencia ao doutor Rubens Rodrigues Viana e ao doutor José Mendes Neto. E aí eu... Quando eles chegaram lá, eu já tinha feito a delimitação da área, já tinha feito uma série de coisa. E eles chegaram na terça-feira seguinte lá de avião e gostaram muito do meu trabalho e me convidaram pra trabalhar com eles. Eu naquela situação, tava assim... Meu garimpo tinha ido para o buraco, eu diria trincado um pouco, quase rachado. Fiz um docezinho, mas doido pra aceitar. E aceitei trabalhar com eles e eles me levaram pra trabalhar exclusivamente com granitos e pedreiras.

P/1 – Olha!

R – Na empresa deles. O doutor José Mendes era da Mendes Júnior, e o doutor Rubens da Engeservice, depois Conservice. Eram grandes empresas na época. E eu passei a dar consultoria pra eles na área de mineração. Então fiquei dando consultoria pra eles no ano de 87 e 88.

P/1 – Então, antes de você continuar, eu queria voltar um pouco, quando você falou que resolveu você fazer. Primeiro a consultoria, como é essa consultoria? O que você fazia?

R – Quando eu abri a minha empresa, era uma empresa que fazia pesquisa pra terceiros.

P/1 – Entendi.

R – Então você tinha uma área, você queria uma área, contratava a minha empresa, chamava DMG Assessoria e Consultoria. Por que DMG? Era Direito, Mineração e Geologia. Porque eu tinha um sócio que fazia a parte legal de direito, tinha um sócio que fazia a parte de mineração, e a parte de geologia eu fazia. Então ficamos muitos anos como prestadores de serviço. A empresa, como eu disse, cresceu muito, porque houve uma demanda enorme de serviço no governo Sarney, depois acabou e com isso a gente praticamente voltou quase que à estaca zero. Então em 1986 que eu falei: “Bom...”. Meio sem opção, porque tava uma inflação maluca, não sei o quê, não sei o quê, a solução é trabalhar um pouco com o garimpo, que é o que eu sei mexer com isso.

P/1 – E como é o ser garimpeiro? Conta um pouco como funciona isso.

R – Eu era um garimpeiro um pouco diferente, porque eu trabalhava em áreas que eu fazia primeiro uma prospecção, via que a área era interessante, e sempre trabalhei mecanizado. Então trabalhei com o Pala em Pedro II, no Piauí, com tratores, com mesas seletoras, com um pouco mais de sofisticação que o garimpeiro normal. O próprio garimpo meu de Andaraí era com dragas, trator, não tinha... Era uma área toda recuperável posteriormente, com acordo com superficiário, tudo bonitinho, então era um garimpo um pouco diferente. Era quase que uma pequena mineração. E quando eu disse que fiquei com isso aí sobrevivendo aí dois, três anos, ganhava dinheiro aqui, perdia ali, ganhava aqui, perdia ali. E quando aconteceu de perder com essa enchente, com uma enchente muito grande que deu na Bahia, eu fui trabalhar com esse pessoal. Como eu fiquei prestando serviço pra eles durante quase três anos, em 1989 o doutor José Mendes resolveu sair da Mendes Júnior. Ele falou não... Que era diretor de operações, falou que não iria mais trabalhar na Mendes Júnior. Ele saiu, isso naquela época foi quando terminou o Iraque, aquela confusão enorme. E eu era muito ligado a ele e tal, ele falou: “O que você quer fazer na vida?”. Nós já éramos muito amigos, somos quase da mesma idade, embora ele fosse meu patrão, tá chegando aí amanhã, vem pra inauguração da terceira pedreira nossa, e aí ele falou: “O que você quer fazer?”. Eu falei: “Rapaz, eu gostaria de montar uma pedreira em Brasília”. Aí ele falou: “Então você tem a área?” “Tenho. Tenho a área pra montar”. Que era aquela área antiga da minha primeira pedreira ali em cima. É aqui em cima. Ele falou: “Bom, eu posso fazer o seguinte, eu entro de sócio seu nesse empreendimento aí”. Eu falei: “Tá bom. Você entra”. Porque eu não tinha absolutamente dinheiro nenhum, só tinha a boa vontade e a...

P/2 – O conhecimento, né?

R – Aí ele me deu o dinheiro pra comprar a fazenda aqui. Aí eu comprei a fazenda, que era do seu Geraldo ali, antiga Fazenda Cachoeira, cachoeira de mentira.

P/1 – E por que você achou que esse lugar seria um bom lugar?

R – Ah, eu já conhecia aqui. Porque eu sou formado aqui, já tinha feito... Essa área é uma área que era da Votorantim. E a Votorantim deixou cair, porque era pequena demais pra Votorantim, não interessava a Votorantim. Aí a gente já havia requerido essa área, fomos trabalhar lá. Compramos a fazenda e montamos primeira pedreira da gente ali, cinco quilômetros pra frente. Foi assim que eu vim parar na Fercal, em 1989. Então comprei a fazenda do seu Geraldo, comecei a montar a pedreira, que viria efetivamente a funcionar em outubro de 1990.

P/1 – O que é montar uma pedreira? Como é isso?

R – Hoje, pra mim, montar uma pedreira é uma brincadeira. Entendeu? Eu montei essa pedreira nova em 90 dias.

P/1 – Na época.

R – Naquela época era uma novela. Porque uma coisa é você trabalhar sem estrutura e sem conhecimento. Eu conhecia muito de pedra, conhecia muito de jazida, mas não conhecia nada de equipamento. Então é muito diferente você reconhecer... Eu sei identificar se uma jazida é boa, se é ruim, sei como fazer uma lavra, mas não entendo nada de máquina, de trator, de britador, de nada. Então eu tive que realmente começar do zero, zero, zero absoluto. E o doutor José Mendes me mandou um encarregado antigo da Mendes, seu João Veleda, e ele também se identificou muito com a Fercal, apesar de gaúcho, aí o seu João veio pra cá e efetivamente quem montou a instalação foi o seu João. Eu sabia que a pedra... Onde lavrar, onde tirar, tudo bem, mas britagem, não entendia nada.

P/1 – O que é lavrar?

R – Lavrar é você extrair o minério. Você tem um corpo de minério, você tem que lavrar. Lavrar é extrair o minério. O que faz daí pra frente é a operação de transformação, que é a britagem em si.

P/1 – Entendi.

R – Então hoje, por exemplo, eu falo, eu consigo fechar o olho e idealizar uma pedreira em qualquer situação, qual equipamento eu vou comprar, quanto custa. Naquela época era uma dificuldade enorme, até porque houve um aporte inicial de capital por parte do doutor José Mendes e doutor Rubens, que eram meus patrões, e eu fiquei com uma parte a troco do serviço. A partir daí eu tinha que por dinheiro que eu não tinha, então tinha que economizar bastante, era uma loucura. Eu vivia na Fercal, morava na Fercal. Eu me separei no final de 89, exatamente quando eu montei a pedreira, e aí eu passei praticamente... Agora eu tenho dez anos de casado, passei 15 anos na Fercal. Eu saía da Fercal todo dia muito tarde, chegava muito cedo. E quando eu vim pra cá, eu tive uma acolhida fantástica na Fercal. Fui falar com a dona Nildinha, dona Tereza, seu Nonô, que eram os líderes aqui da comunidade, fizemos uma opção por trabalhar sempre com o pessoal da Fercal. Então chegamos a ter na Rio do Sal e na Contagem, em certa época, 100% de funcionário da Fercal. Então fui me envolvendo. E tava aqui, porque eu tinha que ficar aqui, a gente rodava de dia, de noite, era uma loucura, trabalhava 24 horas, então era comum ficar a noite toda aqui na empresa. Acabou que fui me apegando muito à Fercal, e daí nasceu uma história de dizerem que... Como era? Embaixador da Fercal. Imperador da Fercal. Era tanta bobagem. Mas aí a Fercal não tinha nada... Pode continuar falando?

P/1 – Sim.

R – Chegamos à Fercal, que é o objetivo da história, a Fercal era uma comunidade extremamente carente. E aí a gente tinha, na verdade, uma série de pessoas que brigavam pela Fercal, que era a Tereza, a dona Nildinha, que não se pode tirar absolutamente o mérito dela nesse trabalho muito grande. Nós tínhamos o seu Belmiro, o seu Nonô, era o pessoal, mas todo mundo muito esparso. Nós resolvemos fazer uma associação das associações comunitárias.

P/1 – Quem são... “Nós” quem?

R – Nós. Tereza, eu...

? – Ele era o idealizador.

R – Não, a gente ficava pensando o que fazer, a gente não tinha muita força.

P/1 – Você, Tereza...

R – Na verdade, eles fizeram essa Associação e me elegeram presidente. Então eu fiquei três anos. O que nós fizemos? A gente resolveu, pra ter força, juntar. Porque aí a gente passou a ter um pouco mais de força, um pouco mais de voto, um pouco mais de apoio e tal. E Tereza na época era muito amiga do governador Roriz, ele começou também a dar um apoio forte pra gente e se tornou muito meu amigo também. E aí a gente fez essa Associação com todos os moradores. A gente não interferia na eleição comunitária. A comunidade elegia o seu presidente de associação. E esse presidente da Associação passava a ser membro da... Como se fosse uma federaçãozinha de associações. E a gente fazia reuniões às segundas-feiras, sempre fim da tarde, até altas horas da noite. Nessa época, eu brinco que até briga de casal telefonavam para o Sálvio pra separar, era uma beleza. Brigava com o marido, não tinha pra onde ir, me ligava uma hora da manhã: “Tô na rua aqui, doutor Sálvio, o que eu faço?” “Espera aí que eu vou dar um jeito de ir aí pra arrumar uma pensão”. Então a gente formou essa Associação inicialmente com 12...

P/2 – Associações.

R – Associações, que depois, posteriormente foi a 14, porque entrou o... O Morro de Sansão e a Vila Rabelo, né?

P/2 – Era a Comissão Pró-melhoramento da Fercal.

R – Pró-melhoramento. Formamos o nome como Comissão Pró-melhoramento da Fercal. Aí a gente fazia uma lista das demandas e ia correr atrás. Então a gente marcava com o presidente da CEB, com o presidente da Caesb, e ia correr atrás daquelas demandas, que aqui não tinha absolutamente nada. Os primeiros poços de água que foram feitos, a comunidade pagava a energia, a Caesb fazia o poço. A comunidade pagava a energia, cotizava pra pagar a energia e distribuir a água. As primeiras redes de distribuição de água nós fizemos, e começamos a fazer esse sistema pra todos os lados, e aí isso foi crescendo, crescendo, crescendo, aí posteriormente Tereza sugeriu ao governador que fizesse uma gerência da Fercal. O que era uma gerência? Como antigamente as cidades satélites eram poucas, mas tinham várias regiões administrativas, pegavam essas áreas e criava uma gerência. A gerência era subordinada ao administrador, mas com uma independenciazinha em relação a não ter nada. E aí foi criada a primeira gerência da Fercal, foi quando a gerente assumiu, nós optamos por extinguir a Comissão Pró-melhoramentos. Porque se nós continuássemos com a Comissão Pró-melhoramentos, nós tiraríamos muita força da gerência. A última reunião da comissão foi justamente uma votação pra eleger quem seria o gerente que nós iríamos levar para o governador. Na época existia, como sempre existiu, uma vaidade muito grande de pessoas que achavam que poderiam ser, aí a Tereza sugeriu a diretora da escola da Fercal, que era uma moça muito bacana, Nemaura, um trabalho muito bacana na escola. E fizemos a eleição e ela ganhou com 12 votos, não é? Doze votos contra dois. Um ou dois.

P/2– Isso depois de se fazer uma política pró a Nemaura, porque na verdade...

P/1 – Uma campanha. Fizeram uma campanha.

R – Levamos o nome da Nemaura para o governador via a deputada na época.

P/2 – A deputada e o Filippelli.

R – É. Nomeou e o na época secretário de obras, o Tadeu Filippelli, que era o braço direito do governador, levamos o nome da Nemaura e ela foi eleita a primeira gerente da Fercal. Depois vieram vários outros gerentes, ainda na fase de gerência.

P/1 – Sempre eleitos? Sempre eleitos pela comunidade?

R – Não. Não.

P/1 – Só o primeiro.

R – Só foi a Nemaura que foi eleita pela comunidade. Porque foi uma coisa que o governador criou atendendo a uma solicitação que nasceu lá na Escola do Basevi, não foi? Na inauguração da Escola do Basevi, que nós fomos pedir a ele a gerência da Fercal, e aí essa primeira indicação da Nemaura foi eleita, a partir daí foram todas as indicações políticas. Depois, a segunda, quando a Nemaura saiu, entrou, se eu não me engano, foi a Ivonete, não foi?

P/2 – Foi o Rômulo.

R – Não, o Rômulo foi depois de Ivonete.

P/2 – Eu sei que o Rômulo entrou duas... Foi Virgílio.

R – Não, Virgílio foi depois de Ivonete, foi não?

P/2 – Não, foi Virgílio, que o Messias trabalhava com a...

R – Ah, é, foi o Virgílio, depois Ivonete, depois o Rômulo, depois Rômulo de novo, depois ficou um tempo sem ninguém, enfim, todos os outros foram indicação política. Culminou com a administração, que só teve um administrador, e agora tá nesse limbo aí, que o governador Rodrigo Rollemberg resolveu extinguir a administração da Fercal.

P/1 – Da gerência foi pra administração.

R – Virou administração.

P/1 – Que é mais abrangente.

R – É. E administração tem independência. É um RA, independente. A gerência era subordinada à administração de Sobradinho. Depois de Sobradinho II, primeiro Sobradinho I. Então virou RA, e agora o governador Rodrigo Rollemberg extinguiu, disse que extinguiu, mas a câmara não aprovou a extinção. Então a RA continua existindo, embora não tenha administrador, não tenha sede, não tenha nada. Entendeu?

P/1 – E nem recursos?

R – Nada. Então tá aí nesse... Existe a RA 31? Existe. Ela foi criada e nunca foi extinta, mas ela não tem autonomia nenhuma. Ela praticamente é uma RA fantasma.

P/1 – E por quê? Qual a alegação?

R – É porque houve uma contenção, ele queria fazer uma contenção, então ele extinguiu seis administrações. Ele extinguiu CIA, Fercal, Sudoeste... Seis administrações ele entendeu... Varjão. Seis. Só que como a câmara não aprovou essa extinção, a extinção na prática não existiu. E hoje ele alega que não pode nomear porque o DF tá nesse problema de responsabilidade fiscal, que não pode haver nomeações, o que é e não é fato. Porque na verdade poderia perfeitamente criar remoção de pessoas de outras administrações e dar sequência. Mas na verdade tá aí essa situação indefinida de não é nem nada uma paralização no que é. E a Fercal, ela necessitava e muito de uma administração, porque ela tem que ter uma regularização fundiária, ela tem que ter uma série de critérios. É uma região muito instável em termos de meio ambiente, porque ela é um vale com dois afluentes do Rio Maranhão, o Bananal e o Contagem, para os dois lados, ela não tem saneamento básico nenhum, entendeu? Então a beira dos córregos está totalmente degradada, estão poluídos, enfim, ela demandaria sim um estudo. É a região com maior arrecadação de ICMS de Brasília, porque as fábricas respondem por ICMS muito grande, e é uma região praticamente autossustentada, a maior parte das pessoas trabalha nessa mesma região. Enfim, tinha todas as condições pra se tornar uma RA. Mas alegam que a Fercal tem pouca gente, não sei por que, porque tem tantas RAs menores do que a Fercal. A Fercal ainda tem uma área enorme rural, dificuldades enormes de acesso, porque a maior parte das estradas rurais não são pavimentadas. Enfim, uma série enorme de dificuldades que não estão sendo levadas em conta pelas autoridades competentes, e a Fercal tá realmente numa situação de abandono hoje novamente.

P/1 – O que você queria perguntar?

P/2 – Bom, no início ele falou que o pai dele foi vereador lá em Minas Gerais, né? Então o que eu queria perguntar para o senhor, pra você, essa experiência de ter sido filho de vereador influenciou na sua vida atual e nessa trajetória toda aqui na Fercal, falando-se de Fercal? Porque às vezes você fala que outras pessoas que influenciaram a criação da gerência, inclusive a Tereza, outras pessoas, mas a gente sabe do peso que você tem na criação da gerência e na criação da administração, e na vida que você tem levado, na procura que se tem de vários políticos. Essa experiência de ser filho de vereador, ter visto e ter convivido com o seu pai na vida como vereador influenciou na sua vida atual e profissional até agora, até o presente momento?

R – Absolutamente. Na verdade, nunca fui político, você sabe disso. Eu até gosto de política, mas jamais eu tive qualquer intenção de me candidatar ou de assumir qualquer cargo. Eu posso dizer isso tranquilamente, porque você sabe que convites não faltaram. Você sabe que quantas vezes o governador Roriz me convidou pra ser administrador, pra ocupar um cargo no governo, e realmente nunca tive a menor vontade de ser político por mandato. Aqui na Fercal, desde que eu vim pra cá, no dia seguinte já corria esse boato que eu ia ser candidato a alguma coisa. É mentira? Então diziam: “Não, vai ser candidato. Com certeza. Ninguém faz isso de graça. Ele tá juntando gente porque ele quer base. Ah, ele vive em Sobradinho porque não sei o quê. Ah, ele ajuda Sobradinho porque ele quer ser político”. Entretanto, contra tudo e contra todos, tá aí, 25 anos passados e eu nunca me candidatei a coisíssima nenhuma e não tenho a menor intenção de me candidatar a nada. E o meu compromisso com os deputados que nós sempre elegemos, não perdemos eleição, né, Tereza? A gente sempre elegeu, a gente foi sempre esse: “Ajude aqui a região que a gente te ajuda. Nunca foi outro compromisso, nunca foi compromisso em termos de emprego, de colocação, de coisíssima nenhuma. Tivemos em duas eleições com a Nilcéia, uma eleição com o Radi e duas com o Michel, já são cinco eleições ganhando com candidatos altamente improváveis, exceto a Nilceia, que tinha uma tradição na cidade de até herdeira de um espólio político do padre Jonas, os outros todos eram de uma improbabilidade enorme de “não vão ganhar nunca a eleição”, entretanto ganhamos com todos eles. E se algum dia separamos politicamente das pessoas, não foi absolutamente por nada, continuamos amigos, foi exclusivamente visando quem nos apoiasse no sentido de trazer melhorias aqui pra região. Então eu falo assim de coração, eu adoro a Fercal, a Fercal pra mim, eu sempre falo isso, a Fercal me deu muito mais do que eu a Fercal. Por mais que eu tenha funcionários da Fercal, a Fercal me deu outra condição de vida, outra estabilidade financeira. A Fercal me deu tudo, porque o pessoal que trabalha aqui é da Fercal, já são filhos de pessoas que trabalharam aqui. A nossa empresa é uma empresa extremamente fechada, muito familiar, uma empresa com rotatividade baixíssima, uma empresa com duas ações trabalhistas em 25 anos. Então disso a gente se orgulha muito. E me orgulho muito da Fercal também, de todas as pessoas que passaram por aqui, todos os diretores de colégio, fui 11 vezes paraninfo de formandos da Escola da Fercal, já tava cansativo, a ponto de falar: “Dona Eulalina, não vou mais ser, não”. Porque todo ano eu paraninfava a turma de formandos. A gente andava essa Fercal inteira, né, Tereza? Não tinha um lugar que não fosse. Eu inclusive muitas vezes a pé andava o domingo inteiro pela Fercal, nunca sofri nenhum tipo de agressão, nenhum tipo de violência, nenhum tipo de discriminação, então eu gosto realmente muito da Fercal e lamento muito, muito, o descaso que hoje se vê em relação a Fercal. Lamento muito, porque não há nenhuma explicação lógica pra isso. Basta dizer o seguinte, a Tocantins e a Ciplan, ao longo dos últimos 20 anos, têm sido sistematicamente as maiores contribuintes de ICMS do Distrito Federal. Fábricas, hoje nós estamos passando por uma crise, nem sei um dado atual, mas fábricas com faturamento de 20, 25 milhões por mês, que daria 50 milhões, que daria aí a bagatela de 17% de 50, dão nove milhões, oito milhões e meio de ICMS por mês. Ora, basta dizer que se o governo destinasse um mês do ICMS recolhido na região para investimento da Fercal, nós teríamos uma cidade magnífica, com escola, com... Nós temos na Fercal um colégio, que é o Colégio da Fercal, que é o mesmo há 25 anos. É o mesmo colégio. A população da Fercal saiu de cinco mil pessoas pra 25, 30 mil pessoas, e continua com um único colégio. Um único colégio, que fica na Fercal Leste. As escolas, nós temos escola no Engenho Velho, tinha a do Queima Lençol, que acabou, a da Rua do Mato, são as mesmas. O investimento em educação na Fercal, zero. Investimento em lazer na Fercal, zero. “Ah, não, no governo Arruda fizeram quatro ou cinco quadras poliesportivas.” Quadra poliesportiva de cimento, feita sem nenhuma condição, não tem uma bola, não tem nada, é simplesmente uma quadra. Pra quê? Não temos nada. A Fercal nunca teve um cinema, nunca teve um teatro, nunca teve nada. Não tinha nem sequer asfalto. Até hoje não tem esgoto. Até muito pouco tempo atrás, metade das ligações elétricas eram gambiarras, a gente fez uma campanha enorme pra acabar com as gambiarras.

P/1 – Sálvio, então, quando você veio pra cá, o que tinha aqui de empresa?

R – As mesmas que tem hoje.

P/1 – Você disse que sempre gostou daqui. Alguma coisa te trouxe pra cá, além de ter um espaço.

R – Não, quando eu vim pra cá, eu tinha que trabalhar muito, e comecei a trabalhar com pessoas da Fercal. Naquela época, a Fercal muito pequena, o que acontecia? Você tá aqui, o seu funcionário te chama pra ir pra casa dele, te chama pra ir lá lanchar, chama pra ajudar na laje. Eu era novo, gostava, aí fui me apegando. Tenho uma fazenda aqui dentro da Fercal também, então vinha e fui fazendo muito amigos na Fercal, tenho esses amigos até hoje. Hoje essa geração mais nova é a maioria, a maior parte nem me conhece, mas o pessoal antigo, alguns já falecidos, todos eram muito amigos. Então a gente tinha desavenças, tinha, principalmente na época da eleição, né, Tereza? Que aí tem fulano que vai apoiar ciclano, e aí acha ruim, mas passava. Passava. E aqui dentro também tem umas desavenças históricas, fulana não gosta de beltrana e tal. Mas no fundo, quando era pra...

P/2 – Acaba se misturando todo mundo.

R – Quando era pra brigar pelos interesses da Fercal, nós vínhamos aqui instalar o primeiro telefone aqui na Fercal, a deputada ligou para o governador, falou: “Governador, estamos aqui”. Fizemos o primeiro centro comunitário, depois fizemos centro comunitário pra todo lado. Mas o primeiro, que foi do Centro da Fercal, a gente fez uma inauguração enorme, fez uma festa enorme. Nossas festas eram ótimas. Não tinha festa na Fercal pra reunir menos que 400 pessoas. E a inauguração dessa estrada aqui, nossa, a fila de caminhões tinha três quilômetros de comprimento. Mas fizemos churrasco no Queima Lençol pra 500 pessoas. Então era muito bacana. Sempre com a presença de governador, deputados. Então N vezes se vinha aqui, a Fercal era um lugar muito diferente, porque era uma vila dentro de uma cidade grande, então todo mundo muito amigo. Aí a gente foi se empolgando e aprendendo um pouquinho da história da Fercal e das comunidades da Fercal, e ficando amigo de todo mundo, e ajudando a construir o centro comunitário nas várias comunidades. Chegou uma época que nós tínhamos centro em todas as comunidades. Fizemos nos Pronafs, as casas de farinha, as máquinas de costura. Enfim, tinha uma motivação muito grande. Depois, com o passar do tempo também, as minhas atividades foram aumentando muito e acabou que fui me afastando, a Fercal foi crescendo muito. Hoje eu to muito distante da Fercal. Muito distante. Eu vou pouco à Fercal, eu não conheço mais as pessoas.

P/1 – A empresa tá dentro? A sua empresa tá dentro de Fercal?

R – É que antigamente eu tinha a Pedreiras Contagem, então era focado na Fercal. Hoje eu tenho a Pedreiras Contagem, a Mineração Rio do Sal, a Pedreiras Águas Lindas, a Construtora Contagem, e a Terra Nova Empreendimentos Imobiliários. Então estão todas fora da Fercal.

P/1 – Entendi.

R – Então o meu tempo hoje na Fercal é muito pouco. Hoje se eu ficar oito horas por semana na Fercal, enquanto eu ficava antigamente 80, cem, hoje eu fico oito horas na Fercal e já chego aqui cheio de problema, porque embora meus filhos estejam aqui, eles demandam: “Ah, tem que ver isso, tem que ver aquilo”. Acabou, to indo embora. Fico muito pouco na Fercal, passo às vezes uma semana, venho uma vez na Fercal.

P/1 – Entendi.

R – E também, como eu disse, meus amigos foram envelhecendo, foram se afastando, e hoje tem uma geração nova aí na Fercal, uns meninos ótimos também, mas outra geração. E a Fercal cresceu demais. Agora a Fercal vai passar por um momento muito difícil, muito difícil.

P/1 – Por quê?

R – Porque essa retração da economia, as fábricas demitiram mais de 200 pessoas.

P/1 – Aqui também?

R – Toda região. Aqui também na pedreira foram muitos, infelizmente. E o que acontece é que tinham “N” empresas satélites, que chamam popularmente gatas, que trabalham dentro das fábricas. Com o afastamento dessas gatas, a opção da própria Tocantins de diminuir as atividades, desligar um forno, então houve uma série de demissões em função da crise que nós estamos vivendo. E essas demissões, eu calculo que sejam da ordem de 300 a 350 pessoas diretas. Ora, quando se corta 300 empregos diretos numa comunidade muito pequena, tem os indiretos, aquela que lava roupa, aquele que aluga uma casa, aquele que vende carne, aquele que tem a borracharia, blá blá blá, e todos esses também demitem, porque diminui a atividade é num todo, a padaria, a mulher que faz marmita. Então, enfim, com isso você vai pra um contingente aí de 500 pessoas sem emprego, o que é uma enormidade dentro de uma comunidade de 20 e poucas mil pessoas. Você tem uma população ativa de seis mil pessoas, quase 10% disso vai perder o emprego nesse primeiro momento. E isso vai gerar o quê? Agora essas pessoas ainda estão vivendo com as multas de FGTS, com salário desemprego, com as férias, com os direitos que tinham adquirido nas empresas. Daqui a cinco, quatro, cinco meses, isso vai acabar. E ao acabar, se não houver uma retomada da economia, a dificuldade de se conseguir uma colocação é muito grande, então a Fercal vai passar por uma fase muito... Não é... O Brasil como um todo, mas a Fercal especialmente, que é muito ligada a essa atividade fabril, a população muito ligada à atividade local, vai sofrer muito, muito, muito, muito com isso aí.

P/1 – Sálvio, quando você chegou aqui para o seu empreendimento, tinha que empresas aqui?

R – Na época?

P/1 – É.

R – Tinha uma pedreira, que era a Pedreira Planalto, que depois virou Engexplo, tinha a Tocantins, a Ciplan, muito menor... A Tocantins já era quase do tamanho que é hoje, mas a Ciplan era muito menor, era uma empresa pequena na época, e praticamente só. O resto era alguns mercados, tinha fechado aquele pessoal do pré-moldado lá no centro, e atividade mais de apoio. Empresas mesmo, só nós mesmo.

P/1 – E você como geólogo, não sei se tem uma relação direta, mas como você vê essas empresas nessa região aqui de Fercal.

R – Por que elas vieram pra cá?

P/1 – Não o porquê vieram, mas o impacto das ações.

R – Bom, primeiro lugar, só tem calcária aqui dentro do DF, então elas tinham que se localizar aqui. E segundo lugar, esse impacto é relativo, porque na verdade, a empresa não impactou a comunidade, a empresa se instalou e a comunidade depois. Então houve a instalação da Tocantins e em seguida nasceu a Fercal Leste, dentro da expansão, tudo aquilo ali perto da Votorantim, porque eram os próprios funcionários da fábrica que tinham uma condição de conseguir um lote muito mais barato, aqui era tudo muito, muito barato, construir uma casinha e morar perto do serviço. Então o impacto é um pouco invertido: a comunidade impactou a empresa, que hoje impacta a comunidade. A Votorantim é uma empresa que sempre teve uma preocupação, embora seja uma empresa muito profissional, hoje eu nem sei como tá, mas o Grupo Votorantim sempre teve uma preocupação um pouco mais com o social do que o balaio de gato que se chama essa empresa que tem aqui na frente, que é a Ciplan. Essa empresa é uma empresa com participação zero. Zero em atividades comunitárias. Disse que hoje até tá mudando. Não posso te dizer por que hoje eu não tenho acompanhado. Mas o tempo que eu acompanhei foi dirigida de uma forma extremamente egoísta, uma forma totalitária, centralizada por pessoas com total despreparo pra lidar com os problemas da comunidade, que se achavam acima do bem e do mal. Então uma empresa extremamente nociva à comunidade como um todo, entendeu? Acredito que se houvesse uma participação maior dessas empresas desde o início, a Fercal seria outra coisa. Mas na verdade não houve nenhum interesse por parte da Ciplan, que hoje se tornou uma empresa muito grande, em dar qualquer tipo de apoio à comunidade. Estou falando de passado. Como eu to falando, tem cerca de dois anos que eu não to mais envolvido com esse dia a dia. Mas no período que eu estive envolvido, tudo que procuramos obter junto a Ciplan, a resposta foi não. Sempre não, não, não, não, “já pagamos impostos, não sei o quê”. Nem sei se pagavam, mas diziam que pagavam, então... Aí foi uma empresa que essa sim teve um impacto muito negativo na comunidade.

Não sei hoje, dizem que mudou, espero que tenha mudado. Mas na época que a gente estava ligado aos movimentos sociais, a resposta da Votorantim, embora burocrática, sempre foi muito mais salutar. Porque tinha o Programa Menor Aprendiz, o Bom Menino, tinha o suporte às vezes nas atividades comunitárias, patrocinava alguns campeonatos de esportes, financiava caminhões, ajudava com caminhões-pipa. Enfim, tínhamos uma resposta burocrática, mas sempre positiva. Enquanto que da Ciplan era sempre negativa.

Então pode se dividir aqui entre a nossa, que nós estamos um pouco longe da comunidade, então o impacto nosso enquanto pedreira na comunidade é muito baixo. Nós estamos a 14 quilômetros de distância, numa região que não tem praticamente moradores. Lá na Fercal, o principal impacto das fábricas é a qualidade do ar. A qualidade do ar é terrível, é péssima.

P/1 – Ainda é?

R – Ainda é. Ainda é. E não vamos negar, não, porque ainda é. Embora tenha havido uma melhora muito grande, quando a gente conseguiu na época que estabelecesse o primeiro posto de medição lá no Centro. A minha posição é uma posição delicada, porque na verdade, teoricamente eu sou empresário, então eu deveria estar do lado das empresas. E não é bem assim. Então nós tivemos a primeira unidade de medição de qualidade. Era terrível. O ar era terrível. Agora hoje já se tem um rigor maior com os filtros. Na época tinha... Eu vou ser sincero, eu visitei moradores que de o dia de hoje, pra amanhã, juntava meio centímetro de fuligem e pó em cima de um móvel. E aquilo era o que se respirava. Tivemos “N” casos aí de bronquite, bronquite alérgica. Tivemos um acidente com uma criança aqui no coque de petróleo na Ciplan. Enfim, era muito pior do que é hoje, entendeu?

TROCA DE CARTÃO

P/1 – Sálvio, duas perguntas: primeiro, você começou com a pedreira e hoje você tem todas essas empresas, o que você fez pra que isso acontecesse? Como foi esse processo?

R – Trabalhei demais (risos). Só isso. Trabalhei muito. Você trabalha muito e você também tem que dar um pouco de sorte nos momentos da vida. Então quando a gente começou com pedreira aqui, pedreira era uma atividade muito nobre em termos de Brasília, porque nós tínhamos uma demanda enorme e pouquíssimas pedreiras. Então praticamente acordava com aquela fila de caminhão na porta. E era produzir e vender. Nós sempre trabalhamos com preços muito baixos, muito baixos. O preço de brita em Brasília, o preço mais baixo do Brasil em função da existência das fábricas que comercializam brita como subproduto. Então a única solução era trabalhar muito, muito, muito e ir adiante. Também não temos nada de monstruoso, temos cinco pequenas empresas que vão aí sobrevivendo e crescendo devagarinho, mas nada de espetacular, nem de espetaculoso, nada não. A gente trabalha de uma maneira muito pé no chão, a empresa não se endivida, não cria endividamento, nunca usou das facilidades de crédito pra crescer, sempre dá um passo atrás de outro passo. Então tudo é muito pensado aqui, a gente nunca achou que pudesse virar uma grande empresa de uma hora para outra.

Então são coisas muito calculadas. E não é esse crescimento, são 25 anos de trabalho. O que facilita, por exemplo, montar outras pedreiras é que você já tendo a experiência e algum equipamento excedente, o pessoal qualificado, fica bem mais fácil de ir montando. Então como a gente faz parte de uma sociedade, na verdade não é uma... Todo mundo fala: “Pedreiras Contagem é do Sálvio”. O Sálvio é um sócio de quatro sócios que existem no grupo todo. Então é uma pequena parte. E todos os outros sócios têm outras atividades. Então acaba que como eu fico à frente, parece que sou eu. Eu conto com o apoio muito grande dos meninos hoje, o Leonardo praticamente cuida de toda área de transporte da empresa sem que eu precise nem olhar, nem ver nada, e me ajuda parte comercial também. Foi crescendo devagarinho e vai continuar crescendo devagarinho, um passo aqui, outro lá.

P/1 – Tem um termo que você diz que a Fercal é mãe de Brasília, fala disso pra gente.

R – Como eu gosto de dizer, que se Brasília tem uma mãe, a mãe de Brasília é Fercal. Porque da Fercal saiu toda a matéria-prima da qual Brasília foi construída. Todo mundo diz: “Brasília é um monumento de concreto e asfalto”. É. Brasília não tem grandes belezas naturais, exceto um céu maravilhoso. O que se tem aqui são muitos palácios, muitos prédios, muitas construções, muitas praças, e isso tudo foi feito com cimento, concreto e asfalto. E a matéria-prima para o asfalto e o concreto é a brita e o cimento, que saíram exclusivamente durante 50 anos da Fercal. Então o que eu falo? Da Fercal, das montanhas da Fercal que se construiu Brasília. Brasília, não tem nenhum pedaço de Brasília que não tenha uma parte de trabalho de um morador da Fercal. Então a Fercal realmente pode ter certeza que o título de “mãe de Brasília” é a Fercal. As outras são no máximo madrastas.

P/1 – Sálvio, a gente tá terminando, você já ganhou título, que título é?

P/2 – Cidadão honorário de Brasília por relevantes serviços prestados à comunidade brasiliense.

P/1 – Como é ser cidadão? O que significa isso, esse título?

R – Olha, na época que me escolheram pra ser cidadão honorário de Brasília, eu era muito novo, tinha menos de 50 anos, e eu me senti muito orgulhoso com isso e me senti muito feliz de poder levar, de ser indicado pelas comunidades da Fercal e poder levar uma mensagem em relação ao que era a Fercal. Foi uma festa bonita, com quase toda Fercal presente e tal, e coisa. Depois, posteriormente, quando eu fui cidadão honorário de Brasília, Brasília devia ter uns 30 cidadãos honorários, todos eles com serviços prestados à cidade. Então os cidadãos honorários eram ex-governadores, eram pessoas que tinham algum tipo de trabalho comunitário, o que me fez muito bem. Posteriormente eu já não tenho tanta certeza também, porque hoje eu vejo cada pessoa que não tem nada ver com Brasília recebendo título de cidadão honorário, então eu acho que virou um... O título de cidadão honorário, com todo respeito que eu tenho pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, virou uma espécie de moeda de troca de homenagem. Quero homenagear alguém, é meu amigo, indico para o título de cidadão honorário. Então hoje eu não sei quantos tem. Tereza, você sabe? Deve ter mais de mil. Alguém deu um título de cidadão honorário de Brasília pra Che Guevara (risos). Quer dizer, acho que foi sugestão, na época, do deputado Paulo Tadeu. Bom, de qualquer maneira, tem umas coisas assim malucas, pessoas que nunca pisaram aqui ganhou o título de cidadão honorário de Brasília. O Pelé, o não sei o quê, uma dupla de comediante. Não tem nada a ver. Então acho que hoje eu não sei se eu atribuiria, mas na época pra mim foi extremamente marcante receber um título de cidadão honorário, afinal de contas, virei cidadão da cidade que eu adoro por decreto.

P/2 – Mas você não acha que há diferença entre um governador, que por obrigação tem que fazer pela cidade, diferente de você, um empresário, um pouco distante do Centro de Brasília, embora morador aqui há muitos anos, receber esse título tanto do primeiro caso, como do segundo caso, a gente sabe que esse nome, quando é levado pra ser homenageado, ele é tramitado em várias comissões pra ser aprovado. O senhor não acha que há uma diferença entre quem tinha a obrigação de fazer e receber o título, como quem fez pelo coração e pela indicação?

R – Eu acho o máximo o meu título, acho que ele foi um título que pra mim foi um prêmio muito grande. Eu tenho acho que todas as medalhas que se pode dar em Brasília: da Polícia Civil, dos Bombeiros, do DR, da Ordem do Mérito de Brasília, da Comenda do Mérito de Brasília, todas as medalhas, a Dom Pedro II, que se podia ganhar nessa cidade, eu ganhei, e todas elas partiram de indicações por trabalhos prestados à comunidade. Então eu acho que pra mim todas me fazem muito bem e acho muito bacana. Como eu disse, acho muito legal ter ganhando todos esses títulos, que terminaram, culminaram, teve o mérito da própria Câmara Legislativa, e culminaram com este título de cidadão honorário, que pra mim foi muito importante, principalmente por ter partido de uma indicação da Fercal, entendeu? Foi uma coisa bacana, porque o título foi sugerido pela nossa deputada aqui de Sobradinho, referendado por todos os partidos, pelo Magela, que era o líder da esquerda, então todo mundo. Então achei muito bacana, achei uma oportunidade muito boa de fazer o marketing da Fercal, mas infelizmente eu acho que esse marketing da Fercal não foi bem feito, que a Fercal continua tão carente até hoje, que a gente talvez tenha errado em alguns pontos fundamentais aí de apoio à Fercal. Mas vamos continuar, né, aqui fercalense. E o título que eu realmente gosto é o título de cidadão fercalense. Esse aí é o que realmente me faz muito bem.



P/1 – E hoje, você como cidadão fercalense, como tem sido sua atividade na relação com a comunidade? Que você tava falando há pouco pra gente, antes de gravar.

R – Grande parte da Fercal continua muito próxima a mim, eu me sinto muito bem com isso, continua sendo a Pedreiras Contagem uma porta aberta pra qualquer pessoa que venha. Eu não tenho mais uma vida muito ligada à movimentação comunitária, à comunidade, eu mesmo vou muito pouco lá. Mas aqui todo mundo sabe meus horários e são todos muito bem-vindos. Ontem mesmo o Diego veio trazer o convite de casamento dele aí, vai se casar, e assim vai.

P/1 – As pessoas continuam vindo aqui?

R – Ah, continuam. É muito difícil eu estar aqui e não ter alguém da Fercal aqui. Então é muito difícil realmente não ter alguém aqui. E isso pra mim não me causa nenhum tipo de transtorno, muito pelo contrário, eu fico muito feliz e acabo sempre muito bem informado sobre o que acontece na Fercal. Eu acho graça porque às vezes a pessoa chega aqui, diz: “Ah, Sálvio...” “Se é isso, eu já sei” “Mas como você sabe?”. Aqui existe a Rádio Fercal, lá no Centro, entendeu? E a rádio de informações do Sálvio que chega aqui mais rápido que na Rádio Fercal. A Fercal, existe aqui um ditado, “quem bebe a água salobra da Fercal, da Fercal não se esquece”, entendeu?

P/1 – A gente já tá terminando. Você quer falar alguma coisa que a gente não perguntou, mas que você quer deixar registrado?

R – Não. Eu só queria agradecer muito a lembrança do meu nome pra falar alguma coisa nesse documentário sobre a história da Fercal. Espero que ele seja muito proveitoso pra levar o conhecimento do que é a Fercal, basta dizer que até cinco anos nem entregas eram feitas na Fercal, não tínhamos sequer serviço de correio. Então nós estamos falando de século XXI, estamos falando de cinco anos atrás. Então espero que sirva pra divulgar o que é a Fercal, uma área de inúmeras belezas naturais, a única área de Brasília com morros, com montanhas, com ciclismo, com cachoeiras.

P/2 – Com grutas.

R – Com empresas, com cavernas, grutas. Uma única área com condições de práticas de esportes como ciclismo de aventura, como o motociclismo. Então que sirva toda essa documentação pra trazer qualquer tipo de benefício ou melhoria pra região da Fercal. Fico extremamente agradecido por terem se lembrado do meu nome, e muito obrigado a todo mundo.

P/1 – Obrigada também.

P/2 – Nós que agradecemos.

P/1 – Foi muito prazeroso ouvir a sua história. Parabéns.

R – Ok.

FINAL DA ENTREVISTA