Museu da Pessoa

Rodeado de lendas e tradições caiçaras

autoria: Museu da Pessoa personagem: Adriano Leite da Silva

P/1 – Adriano, bom dia.

R – Bom dia.

P/1 – Eu, primeiro, gostaria de agradecer de você ter aceitado o convite para essa entrevista. E pra gente começar, eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – Adriano Leite da Silva, eu nasci na cidade de Ilhabela.

P/1 – Em que dia?

R – Trinta de janeiro de 1968.

P/1 – A Adriano, fala pra gente o nome dos seus pais.

R – Nome da minha mãe é Elvira Tenório da Silva e o do meu pai é Joaquim Leite da Silva.

P/1 – Agora, eu vou querer que você fale pra gente também, o nome dos seus avós por parte da mãe e da parte do pai.

R – O nome da minha avó por parte de mãe é Maria Alexandria Bittencourt e o nome do meu avô é João Tenório dos Santos. Da minha avó da parte do meu pai é Madalena e o meu avô parte de pai João Benedito de Lara.

P/1 – Fala pra gente um pouco da origem dessa sua família.

R – Então, da família da minha mãe, na verdade, eles eram todos de Ubatuba (SP), inclusive lá em Ubatuba, tem a Praia dos Tenórios. E por volta de 1730, eles tiveram que vir pra cá assumir a fazenda da Praia da Fome, que era uma fazenda de engorda de negros, todos os escravos que vinham para Ilha, iam diretamente para baia de Castelhanos, né, lá eles eram vendidos, em Castelhanos tinham três fazendas super importantes de escravos nessa época, que era a Fazenda do Vicenzo, a Fazenda da… esqueço…

P/1 – Não tem problema, se lembrar, lembrou, se não lembrar…

R – Mas ele corta tudo, lá, né?

P/1 – É, depois, a gente corta, junta, não se preocupa. O importante é ir contando. Então, os escravos…

R – Espera aí, deixa eu lembrar o nome das fazendas que eu acho importante falar. Então, a Fazenda do Vicenzo, a Fazenda do Ribeirão e a Fazenda do Engenho Velho e lá, os escravos eram vendidos, os senhores de engenho da Ilha iam até a Praia de Castelhanos, no Ribeirão, comprar e os negros que vinham muito velhos ou doentes eram deportados de canoa a remo para Praia da Fome, porque lá era a fazenda de subsistência, onde eles iam se recuperar pra poder voltar para Castelhanos e serem vendidos. Então, nessa época, a família da minha mãe veio assumir, né, o meu bisavô, meu tataravô e aí, se formou a família da minha mãe na Praia da Fome. E a família do meu pai, a gente não sabe muito bem, mas são portugueses, né, a família do meu pai e gerou o Saco do Sombrio desde os primórdios, a família do meu pai. A família da minha mãe já veio, que a família da minha mãe tem uma mistura de português com francês, que a família do meu avô de João Tenório português e a família da minha avó, Maria Alexandrina Bittencourt era de origem francesa.



P/1 – E o que você sabe da origem desses nomes, né, então contraditório se a Praia da Fome ter o engenho de engorda, assim, para os escravos que vinham e o Saco do Sombrio, né? Você sabe como que chegaram a esses nomes?

R – Então, a Praia da Fome começaram a chamar de Praia da Fome exatamente por causa da fazenda de engorda, né, porque lá não era um lugar de sofrimento, eles iam pra lá com fome, eles iam pra lá se reestabelecer, daí, veio o nome, mas também tem toda uma pesquisa que a água da Praia da Fome, ela é adstringente, então as pessoas comem lá, almoçam, por exemplo e em seguida, tomam um cálice de água e já sentem fome de novo e diz que a água de lá é uma água muito pura, muito adstringente e assim que você bebe, você sente fome. Tem as duas histórias lá na Praia da Fome. E o Saco do Sombrio é por ser um lugar que tem muitas arvores, ter muitas sombras, né? Então, é sombrio por causa das sombras que as arvores fazem.

P/1 – E você sabe como que sua mãe conheceu seu pai, né, a gente vendo, eu não sei se dá para ver aí no mapa a Praia da Fome… dá pra ver? Lá em cima? A Praia da Fome é mais para cima ainda e o Saco do Sombrio tá ali, mais ou menos na altura do ombro dele. Como os seus pais, então, com essa distância considerável, se conheceram?

R – O local que os meus familiares moravam era um local de muitas festas. Tinha o casarão da praia na Praia da Fome que era o lugar onde os familiares da minha mãe moravam e que era o lugar que tinha muito baile, muita festa. Em Ilhabela era muito comemorado, principalmente, festas de santos, que como aqui foi uma colonização portuguesa, os portugueses trouxeram as suas origens católicas pra cidade. Ilhabela era o mês todo de festas, cada mês era festa de um santo e tinham bailes durante à noite toda e eles se conheceram ali, numa festa que teve no casarão da Praia da Fome e os meus pais se conheceram lá, se gostaram e se casaram. Então, tinha muita festa, o pessoal da Fome ia, do Sombrio para as festas que o meu avô, lá, Benedito de Lau também era muito festeiro, né? Meu avô tinha uma casa muito grande no Saco do Sombrio, inclusive, ele alojava pessoas que vinham de outras praias. Na Praia da Fome também, tinha uma casa, inclusive, que era só para visitantes, só para acolher os caiçaras que vinham de outras praias e foi assim que eles se conheceram, no meio de uma festa de São João.

P/1 – E como eram feitas essas viagens, né, para ir para uma dessas praias?

R – Canoa a motor, ou batera, que é o nome de um barquinho menor que tem só uma casariazinha pequena no meio, onde guarda o motor.

P/1 – E você falou então como seus pais se conheceram e conta pra gente da atividade deles, o que seus pais faziam?

R – Meu

pai era pescador, ele era dono de dois barcos, inclusive, ele tinha um barco que se chamava Nossa Senhora do Rosário, que era super bem conhecido na ilha. Ele pescava, tinha cerco junto com a família dele, com todos os irmãos, porque era uma família grande, a família do meu pai e o meu avô tinha um cerco, onde todos os irmãos trabalhavam, né? O cerco, ele chegou aqui na Ilha em 1920 com a migração dos japoneses, porque é de origem japonesa o cerco e ficou sendo uma origem tradicional da Ilha, o cerco, né? Porque a gente usou muito, o cerco foi muito importante na área econômica da ilha, inclusive, a pescaria artesanal, na época. E a minha mãe era do lar, a minha mãe trabalhava na roça.

P/1 – E o cerco é o quê?

R – O cerco é uma rede flutuante com uns bambus em volta, onde é jogada no mar e eles visitam umas três ou quatro vezes por dia pra ver se o peixe entrou lá, o peixe entra de uma forma dentro do cerco e depois, ele não consegue sair, é uma armadilha de rede.

P/1 – E como que é feito esse cerco?

R – O cerco é feito com linha de pesca normal, agulhas de madeira, é uma trança, é uma costura que eles fazem e depois, eles colocam os bambus em volta, que é para boiar uma parte e a outra, afundar. E tem uma abertura nela, onde o peixe entra por essa abertura e depois, ele não consegue sair.

P/1 – Aí você falou, então, da atividade dos seus pais, fala pra gente se você tem irmãos.

R – Eu tenho… somos em 12.

P/1 – E em que lugar que você tá nessa escadinha?

R – Eu sou o caçula, sou o último filho.

P/1 – Então, conta pra gente, como era a sua casa, do que você se lembra da sua casa de infância.

R – Então, a minha casa era do outro lado da Ilha, era uma casa de pau a pique, uma casa humilde, mas super linda, assim, super limpa, né? Minha vó, minha mãe... As louças eram muito brilhantes, penduradas nas paredes, o chão muito bem varrido, cada um tinha o seu lugar de dormir. Era uma casa humilde, de caiçara mesmo, mas era um lugar muito gostoso, muito aconchegante de ficar.

P/1 – E como era a agitação, né, com mais 11 irmãos, o quê que você lembra assim, dos momentos de estarem todos juntos?

R – A gente fazia tudo junto, né, a gente brincava junto. Eu era menor, então as minhas irmãs tomavam muito conta de mim, onde elas iam, eu ia muito junto com elas, eu ficava mais junto com as minhas irmãs, na verdade, os meus irmãos era um pouco maiores do que eu, então nessa época, já saiam pro mar pra ajudar o meu pai na pesca e tal e eu ficava, como eu era menor, mais dentro de casa, ia pra roça com a minha mãe e com as minhas irmãs. Mas a gente brincava muito, a gente ia muito pro mar, a gente andava de canoa, a gente brincava de taco, de bolinha de gude, a gente empinava pipa, a gente colocava as fatias do coco por baixo e descia os morros brincando e ia parar no caminho, né? Era muito divertido, era muito gostoso aquela época, assim, a gente era muito livre, porque o lugar que a gente morava atrás da Ilha não tinha nada, né, não tinha carro, não tinha… Era só a gente, mesmo e o mar e o céu e a mata.

P/1 – E quais eram as comidas? O que vocês comiam que você se lembra?

R – A gente comia muito peixe, né, frutos do mar tinha sempre dentro da casa, caça, porque quando o mar ficava bravo, agitado que não dava para ir para o mar para pescar, tinha a caça. A gente se alimentava da caça da mata, também. E a mandioca que era plantada, farinha que a gente fazia e as plantações, a gente plantava feijão, plantava milho, tinha toda plantação, todos os tipos de tempero, tinha horta. A gente tinha as coisas lá, a gente era muito feliz atrás da Ilha. Era uma vida bem gostosa de viver assim, que eu lembro, bem… Muitas histórias, muito amor, muito aconchego, era muito lindo.

P/1 – E qual que era o momento das histórias?

R – Todo

momento era momento. Qualquer coisa que a gente perguntasse ou para minha mãe ou para minha avó, que elas fossem explicar, sempre tinha uma história por trás dessa explicação. Pra mim, todo momento era momento de história, os momentos mais gostosos das histórias era à noite, quando a gente ia dormir, né? Mas eu tava na roça, tinha uma história; se eu tava no mar, tinha uma história; se eu tava na costeira, tinha uma história, sempre tinha alguma coisa pra minha avó ou para o meu avô ou para os meus pais estarem contando pra gente e a gente ficava tudo assim, né, esperando a história acontecer e cada parte que eles contavam, a gente ficava muito prestando atenção intrigado com as coisas que eles contavam pra gente.

P/1 – E você falou da casa e das histórias da noite, mas não tinha luz, né, como é que vocês faziam pra fazer as coisas ou nesses momentos mais escuros, né?

R – Esses momentos mais escuros eram os momentos das lamparinas, das velas que a gente usava muito o querosene, fazia as lamparinas a querosene pra gente não ficar no escuro à noite e… Dava um medinho, assim, na gente, né? Porque as histórias da Ilha são muito picantes, né, a maior parte das lendas caiçaras são de entidades… As histórias que os meus avós e os meus pais contavam, as histórias da Ilha, elas falam muito sobre entidades do mar, entidades da floresta, entidades das pedras e dá medo na gente, porque são situações por exemplo, o pássaro com o bico de tesoura que vem pra pegar o menino que era malcriado e que não obedecia os pais, que era uma criança que não gostava de estudar, então, vinha o pássaro com o bico de tesoura pra levar, então tem toda uma história assim, que dá um medo na gente, também, né? Mas eles contavam com tanta convicção pra gente que ficou verdade pra gente. Hoje em dia, que eu moro na cidade, né, eu uso todas essas histórias dentro da minha formação, como eu me formei em Pedagogia, eu tô sempre com criança, o meu trabalho a vida inteira foi com criança, eu reproduzo essas histórias dentro da sala de aula e as crianças interpretam esses personagens dentro da área de artes cênicas e dentro da área da Língua Portuguesa também. É um trabalho bem interessante, isso as crianças gostam muito.

P/1 – Eu já vou querer saber mais desse trabalho. Eu queria continuar nessa sua infância lá no Sado do Sombrio. Eu queria que você contasse agora pra gente assim, fora essa lenda que você contou, uma que tenha ficado marcante, que você se lembra assim, do momento que sua vó ou sua mãe em volta do lampião, assim, vocês sentaram pra ouvir a história ou sei lá, uma no mar que o seu pai tenha contado.

R – Uma história que ficou bem marcante que a gente ficou bem com medo assim, foi uma vez que o meu tio, o irmão da minha mãe, Nelson Tenório que era da Fome e que ele também era pescador, tinha vários barcos de pesca e ele via coisas no mar, ele chegou desesperado na casa do meu pai, no Saco do Sombrio, porque ele tava sendo perseguido por mulheres vestidas de preto dentro de canoas enormes e bicudas, umas canoas diferentes assim, das nossas, que eles não estavam acostumados a ver e elas perseguiram ele, correram atrás dele, inclusive, no mar, elas de canoa, ele na dele e elas na delas, chegaram até a praia e foram seguindo o meu tio até a porta de casa. A gente achou que eram bruxas, porque elas riam, ele falava: “Para”, elas davam muita gargalhada e de dentro da canoa delas saía tipo, um cano branco para cima dele, assim, tentando afundar a canoa dele, mas não vinha, não chegava até a canoa, até ele chegar na praia. Foi uma coisa que marcou, assim, a gente ficou com bastante medo nessa noite. E ele chegou bem desesperado, assim, bem apavorado em casa.

P/1 – E conta como era sair com o seu pai para o mar?

R – Foram poucas vezes que eu saí com o meu pai pra ir para o mar. Muito poucas, eu era bem criança, ainda. Mas eu não gostava muito, não, porque era muito enjoativo, eu era muito criança, mas eu fui algumas vezes. É um trabalho pesado o trabalho da pesca, é um trabalho que tem que ter bastante coragem, tem que gostar muito. Eu era muito criança, na época, não tava muito acostumado. Eu gostava mais de pescar de linha, mas ele me levava pra ver como que puxava uma rede, como que era a estrutura deles no mar e eles passavam dias no mar, então a gente não ia num dia e voltava no mesmo, ficava muitos dias no mar, então eu ficava muito enjoado, eu não tava muito acostumado.

P/1 – E conta pra gente da escola, né, o que você se lembra de começar a estudar?

R – Então, eu sempre gostei muito da escola, né? E o meu avô, ele veio pra cidade, a primeira casa que a gente morou aqui na Ilha é onde hoje é o Ponto das Letras, sabe, aqui na vila e, na verdade, a minha maior parte da infância e da adolescência foi aqui na vila, eu ia muito para trás da Ilha, eu ia muito para o Sombrio, eu ia muito pra Fome, mas a minha vivência maior da minha infância, da minha adolescência foi aqui na vila, no centro da cidade, que o meu avô veio morar pra cá, o meu pai também, eu comecei a estudar no Gabriel Ribeiro dos Santos que é a escola mais antiga da Ilha que foi criada em 1902 e eu amava a escola, não queria mais sair de dentro da escola.

P/1 – E como é que era essa escola e a vila? Conta pra gente.

R – Era super pacata a vila, completamente diferente do que é hoje, né? A

gente brincava muito nas seringueiras que tinham aqui na frente da praia perto do píer, tinham muitos cipós, então a gente se balançava, a gente brincava de pique de árvore, ia para os jardins, brincava em cima dos canhões, muito na praia… Era muito pacato tudo, só tinha a gente, só tinha caiçara. Tinha alguns viajantes, turistas que vinham para conhecer a Ilha, algumas pouquíssimas casas de veraneio que já tinha um pessoal de São Paulo (SP) que vinha com frequência pra cá, mas era muito pouco. Então, a gente vivia na maior liberdade aqui na Ilha, né? Muitas vezes, a gente ia jogar picaré na praia, a gente ficava com os pais da gente até três, quatro horas da manhã brincando na praia e eles jogando picaré, né, na beira do mar. A gente tinha essa liberdade aqui na Ilha, que não tinha esse movimento todo que tem agora, né? E essa diferenciação toda que tem, muitos migrantes, muita gente diferente, era todo mundo muito conhecido aqui na ilha, né? Então, era uma coisa muito integrada, muito nós, todo mundo se conhecia, tinha uma festa, todo mundo ia. Era diferente, hoje em dia, a gente não tem mais esses encontros que a gente tinha antigamente, né, essa coisa aconchegante, da fogueira, dos pratos típicos, de cada um levar um prato da sua casa e sentar em volta da fogueira e ter aquelas conversas gostosas. Hoje em dia, já não nem mais essa conotação, né, é uma coisa mais dispersa, mais cada um para um lado.

P/1 – E como é que é essa brincadeira de picaré que você contou.

R – Não é uma brincadeira. É um trabalho, picaré, porque é uma forma de você pegar um peixe, né? É uma rede, na verdade, o picaré. Então, a gente ia jogar o picaré. O picaré é jogado na beira da praia, depois você puxa a rede e sempre vem peixe, moluscos, época de trovoada, por exemplo, que é uma coisa que eu não vejo mais aqui acontecer, começava a vir a trovoada, brotava os preguais na praia, então, roncou a trovoada, a gente descia pra pegar o preguai e subia com baldes, sacos de preguai, que são moluscos, umas conchas que tem os moluscos dentro e a gente fazia o fogo tacuruba no quintal da casa, que é uma palavra indígena, o tacuruba. Atrás da Ilha, a gente usava muito que é um fogo de quintal, né? Tacuruba significa três pedras soltas com umas lenhas em volta e você põe o tacho em cima pra fazer uma comida, ferventar um mexilhão, um saquaritá, um bermigão, alguma coisa que você queira fazer ali na hora.

P/1 – E aí, você falou de pratos típicos, né, também para as festas. Que pratos eram esses?

R – Então, tudo referente a frutos do mar, as lulas recheadas, as tainhas assadas, as ovas de tainha defumadas no fogo de lenha, o capitão de feijão, que era feito tipo um angu de feijão com farinha da terra e com um peixe triturado no meio, pedaços de lula e a gente fazia uns bolinhos desse feijão com farinha, parecia um quibe, sabe? Era muito gostoso pra tomar com café. As mandiocas, os bolos de mandioca e toda essa parte aí dos bermigões, dos mexilhões, dos frutos do mar, mesmo. É o que tinha na festa e os doces, né, tinha doce de gengibre, tinha doce de mamão, todos os tipos de doces de frutas típicas da ilha, né? Tinham esses doces que eles faziam em latas.

P/1 – Aí, você contou um pouquinho pra gente de quando você começou a

ir para a escola, que você gostava muito, né, o que tinha na escola que te fazia gostar daquele lugar ou de estar lá?

R – A escola sempre me encantou porque… [Tinha] todos os meus amigos lá, né, um monte de criança que eu adorava e a gente se divertia muito, tinha muitas brincadeiras, tinham muitas gincanas. Eu

sempre gostei muito da história da Ilha, na verdade, né, uma coisa que me prendia muito dentro da escola era a história da cidade, que desde pequeno eu estudo a história da cidade, já faz uns 30 e poucos anos que eu faço essa parte de estudar e de me interessar pela história da Ilha, uma das coisas que mais me focava dentro da escola era isso, porque a gente inventava muita coisa dentro da escola, muitas brincadeiras, a gente fazia muitas interpretações de caiçaras mesmo antigos, a gente imitava os mais velhos dentro da escola. E era muito engraçado, era muito divertido isso, entendeu? Era muito gostoso.

P/1 – E o que tem na história da Ilha que te encantava, assim? O que te fez ir a fundo pra conhecer mais e pra estar até hoje, de alguma forma, trabalhando com isso?

R – A história da minha família, mesmo, né, a história da minha mãe, a história do meu pai, o que os meus avós me contavam, o que os meus pais me contavam da história deles, da forma como eles viviam. Eu sempre gostei muito, eu sempre achei muito legal a forma como eles viviam na roça, no mar, na pesca. Essa forma humilde deles viverem e toda história em si, né, os piratas, a história dos piratas aqui na Ilha, uma coisa que ficou muito gravada, a história de Thomas Cavendish, que são histórias verídicas, mesmo, né? Esse pirata inglês teve aqui na ilha, ele realmente usava o Saco de Castelhanos pra fazer os mapas deles, pra pilhar as cidades. Em 1592, por exemplo, Thomas Cavendish, ele usou a baia de Castelhanos para se aportar, para pegar alimentos, fruta, água e para se preparar para atacar a vila de Santos e teve toda a história que agora tem o livro, né, que o Anthony Knivet que era o primo de Thomas Cavendish e que tava nessa embarcação nessa época, ele conseguiu sobreviver e depois de um temo… É que a história é longa pra eu te contar, né, então eu vou dar uma resumida aqui. Mas eles foram atacar a vila de Santos, de São Vicente, né, dia 25 de dezembro de 1592, tava tendo a Missa do Galo. A primeira coisa que os piratas ingleses fizeram foi trancar a porta da igreja e atear fogo e queimar todo mundo. Todo mundo morreu queimado, eles saquearam a vila toda e prenderam um português e esse português mentiu para eles, falou que na vila do Espirito Santo tinha muito ouro, tinha isso, tinha aquilo e eles foram pra essa vila e os índios estavam todos preparados lá já para atacá-los e feriu muito os tripulantes de Thomas Cavendish e o primo dele, Anthony Knivet, que tava na embarcação foi ferido gravemente e ele ficou com escorbuto e ele colocou um cara no porão do navio e quando voltou para Ilha de São Sebastião (SP), para o porto de Castelhanos, ele pôs todo mundo que tava doente dentro de um rapel e levou até a praia e tinha um monte de arvorezinhas na Praia de Castelhanos com umas ervilhas vermelhas, eles estavam mortos de fome e comeram essas ervilhas e eles morreram, porque era veneno. E o Anthony Knivet estava desacordado de tantas dores que ele tava sentindo na perna, ele só foi acordar de manhã cedo, com o sol forte pegando no rosto dele e aí, ele foi chamar os amigos que estavam [lá], percebeu que tavam mortos e ficou em Castelhanos por um tempo, até ele ser pego pelos portugueses, inclusive, ele ficou no Ribeirão se alimentando de uma baleia que tinha encalhado lá, mas os portugueses pegaram ele, ele ficou preso uns três anos no Rio de Janeiro, que a Ilha era província do Rio de Janeiro na época e depois, ele foi deportado para Inglaterra. Quando ele chegou na cidade dele, ele escreveu um livro, que nós temos esse livro aqui na Biblioteca Municipal e conta toda a vida dele, toda passagem que ele teve. Eles tiveram três passagens aqui na Ilha e é muito interessante essa história ficou na minha cabeça. Teve os piratas, no início da Ilha, imagina, foram os homens pré-históricos, os concheiros que moravam em tocas de pedras, se alimentavam só de peixe, de moluscos e de pequenas caças. Depois, teve uma evolução, veio os índios Itararé com a linguagem Jê, depois os tupinambás, depois os negos, os escravos, então a Ilhabela, ela tem uma história muito rica, né, a história da ilha, na verdade, corre em paralelo a história do Brasil. Na verdade, eu sinto que a história da Ilha é uma coisa que a gente já vem tentando há um tempo, ela tem que estar dentro do currículo das escolas de Ilhabela, porque tem que ser contada para as crianças, né, a história da Ilha é uma história muito importante, não só para a cidade, mas para o Brasil, mesmo. Muitas coisas importantes aconteceram aqui dentro da parte econômica, da parte política, da parte do desenvolvimento social, da forma como que ela foi descoberta e de tudo que passou historicamente aqui na Ilha e a gente tem. Tudo isso que eu te falo, a gente tem como provar, né, isso que é mais interessante, porque tem todo um estudo arqueológico que fala dos primeiros habitantes, que fala dos concheiros, que fala dos Itararé, que fala da linguagem Jê, que fala dos Tupinambás, que fala da existência dessas fazendas, da época dos negros e de todo folclore da ilha, né, de todas as danças tradicionais, de todas as comidas e do nosso linguajar que é um linguajar típico, único do litoral norte, né, que é um linguajar do português arcaico, mesmo, né, que a gente troca o B pelo V e vice-versa, a gente fala na segunda pessoa do plural e temos várias palavras, assim, como que eu posso te dizer, tipo, arrelar, aíaíaí, tem umas palavras chave assim que não são muito conhecidas, né, as pessoas não conhecem o significado da palavra, assim. Então, se vem uma pessoa de fora e vê um caiçara falando o mesmo linguajar dele: “Oia… que desgraceira mais grande é essa, esse menino”, sabe: “Onde o bos ires? O que o bos queres?”, então tem… É uma coisa diferente, né, as pessoas ficam meio assim: “Já visse na bocaina, bocaina tá ficando tirinhazinha roxinha”, “Olha, vai dar uma tribuzana grande, hein”, então bocana, tribuzana, roxinhazinha são palavras assim, que não são usadas por aí, naturalmente, né? São palavras únicas daqui da cidade, porque é o nosso linguajar.

P/1 – Eu queria aproveitar essa pegada assim e que você contasse um pouco dessas danças tradicionais, né, quais danças que são, quais são as indumentárias…

R – A

gente tem muitas danças tradicionais aqui na Ilha, né, eu trabalho com isso. Na verdade, hoje, eu estou como diretor pedagógico na Secretaria de Educação e faço o trabalho do resgate da história da Ilha, como eu sempre fiz. A minha vida toda eu trabalhei com isso, né, com crianças, dando aula, passei por várias instâncias da educação, hoje eu me encontro nessa posição e trabalho o resgate da história da Ilha e as danças são várias. A única dança que na verdade, ficou e se enraizou mesmo na Ilha é da festa de São Benedito, a congada, que eu também sou congueiro de São Benedito e participo muito dessa festa. É uma festa linda, é uma dança teatraliezada, com cantos, com falas, com fardas, é um teatro de rua, na verdade, né, a congada é uma coisa muito forte na Ilha, a festa de São Benedito, é um mês onde a Ilha fica muito alegre, muito colorida pelas fardas que os congueiros usam, né, devoção ao santo, são três dias de festa, tem todo um ritual do levantamento do mastro com bebidas típicas, que a gente chama de concertada e temos o caiapó que é uma coisa que eu tô tentando resgatar já faz muito tempo, é a única dança indígena que a gente tem aqui na Ilha, é uma coisa linda também, né, que antigamente eles saíam atrás das procissões, os índios dançando. É uma dança muito interessante também, todos vestidos de índio, eles representam a morte do curumim nessa dança e a ressureição dele também. Mas é complicado, muito complicado você fazer um resgate de uma coisa que já há 100, há 90, há 80 anos já não existe mais, né? E é uma dança cara, também, que para você produzir os instrumentos que são usados, as indumentárias, as vestimentas custam caro fazer essa dança do caiapó e as outras danças são todas danças de salão, danças de origens portuguesas, de origens francesas, porque as danças, na verdade, são uma mistura, né? Por exemplo, a dança do vilão em Portugal eram os palmiteiros de Miranda, né, na Inglaterra eram Morris Dance, então em vários países tinham essa dança e veio parar aqui na Ilha essa dança já no início do século 1630, 1640, 1700, o vilão já tinha aqui na ilha, o pau de fita já tinha aqui na Ilha, o saravalia, o quebra-chiquinha, a ciranda, cana verde, o balaio, e as danças negras que vieram junto, também, como a puxada de rede, o samba de roda, são muitas, são várias as danças. E a gente faz essas danças aqui na Ilha e essas danças são feitas com as crianças, com os adolescentes dentro das escolas e ela é trazida para a vila, a gente faz tipo um workshop de dança, a gente faz 11 escolas, 11 danças e as crianças vêm para vila, para o centro para se apresentar e aí, a gente conta toda a história da dança, a origem da dança, de onde a dança veio, onde era dançado aqui na Ilha, em que tipo de festa, naturalmente, essas danças, elas eram dançadas em festas de santo, festas de casamento, festas de aniversário, em volta das fogueiras. A Ilhabela era um paraíso muito grande (risos), com todo esse folclore lindo, né, que a Ilha sempre teve, além da história ser muito picante, né, a história da Ilha, com muitos acontecimentos, tem também esse lado da cultura tradicional, né, que também é muito enraizada, muito forte.

P/1 – O que significa pra você ser congueiro?

R – A fé, a devoção que eu tenho em São Benedito, assim, é muito forte isso na Ilha, essa história da fé e da devoção e de a gente acreditar piamente que esse homem, São Benedito, com toda a história que ele teve quando ele foi vivo, né, quando ele andava pelo mundo. A gente acredita, realmente, que ele é um ser diferenciado e que ajuda quem tá vivo e que ele faz milagres e que ele ajuda a gente, mesmo. Eu acho que isso me fez ser congueiro, porque minha mãe já era devota, no Saco do Sombrio, os parentes do meu pai, os meus bisavós, tataravós já faziam levantamento do mar, já tinha a festa de São Benedito lá, a gente não conhecia a congada ainda, né, a gente foi conhecer a congada quando a gente veio para a cidade, que a gente foi conhecer e a gente sabia da existência da congada, muitas vezes que a gente vinha pra cá para fazer uma compra, ou mesmo na festa do santo, a gente via a congada dançar e tal, mas como eu vim, também, bem pequeno pra cidade e eu fui uma criança que eu tive problemas de doença pequeno, entendeu, e a minha mãe teve essa história da devoção por São Benedito, ela praticamente me entregou no colo de São benedito, porque os médicos falaram pra minha mãe que eu não tinha mais muito como sobreviver, entendeu? Que eu era uma criança doente, que eles não sabiam se a minha vida ia ter uma continuidade ou se ia parar ali e aí, ela ficou desesperada e fez uma promessa para São Benedito, ela ficou muito mal, inclusive, minha mãe também, ela teve um derrame, teve que ir para Santos, fazer tratamento e tudo e eu fiquei bem, tem todo um misticismo, ela é toda muito mística, né, e teve uma história também que a minha irmã mais velha teve que correr atrás das sete Marias na Ilha e pegar o leite do peito de sete Marias pra poder me dar. Isso também iria fazer eu melhorar de saúde e essa simpatia também foi feita, né, além do pedido que a minha mãe fez pra São Benedito. São Benedito carrega o menino Jesus no colo, né, uma criança. Então, minha mãe também me colocou nos braços de São Benedito e eu nunca mais tive problema com doença, nunca mais fui pra hospital, eu já tô com 49 anos e eu nunca mais precisei de médico, graças a Deus.

P/1 – E a São Benedito.

R – São Benedito tá sempre junto comigo, né? Sempre, sempre, todos os dias.

P/1 – Certo. Eu queria voltar, então, para a sua mocidade. Então, você contou das brincadeiras de criança e como é que era a escola quando você era menino. Como é que foi quando chegou, assim, no período da adolescência, o que vocês faziam, quem era o seu grupo de amigos?

R – Tudo muito simples na minha adolescência. Eu era um adolescente livre, também Ilhabela era uma cidade bem tranquila, bem pacata. A gente ficava nos quebra mares conversando, escrevendo poesias, recitando. A gente brincava muito de pega-pega, tinha o pique de lata, que era uma delícia, que a gente fazia um círculo na terra, colocava uma lata no meio e a pessoa ia batendo a lata no chão e contando e a gente se escondia, entendeu, pelo meio do mato e aí, a pessoa ia procurar a gente e a lata ficava ali, então se a pessoa pegasse alguém, alguém ia ficar naquele círculo junto com a lata e aí, se eu, por exemplo, chegasse e chutasse a lata bem longe, até o cara ir pegar a lata e trazer de volta para o círculo, eu me escondia de novo e eu salvava as pessoas que estavam presas, entendeu? A gente brincava muito disso, também. E na minha adolescência era taco, a gente usava muito a quadra, a gente tinha muitas atividades físicas na Ilha, também, na adolescência, né, a gente nadava muito, a gente fazia brincadeiras de corrida de canoa, era assim, a minha adolescência… O único lugar que tinha era Barraca do Samba, que era uma coisa que tinha um samba, que o pessoal ia, mas a gente era adolescente, era mais adulto que ia lá na Barraca do Samba, os pais da gente não deixavam muito a gente ficar, também. A gente era livre por causa da natureza e tal, né, mas também na minha adolescência não tem grandes coisas assim, para falar e apesar de que é grande coisa, né, porque a gente vivia de uma forma muito bonita na ilha, uma amizade, uma união muito grande. Era isso que a gente prevalecia na época, né? A gente estava sempre junto.

P/1 – E o que aconteceu quando acabou a escola? Aí, acabou o colegial, o que fazer?

R – Então, aí eu

fui fazer faculdade, né? Sai um pouco da Ilha, fui conhecer outras situações com um pouco de medo, porque eu sempre vivi aqui, aí eu tive que sair da Ilha. Foi um pouco difícil pra mim, eu sentia muitas saudades daqui, muitas saudades, mas eu sai, estudei, voltei. Quando eu voltei para a Ilha, eu praticamente já fui direto para trás da Ilha, porque eu fui lecionar nas comunidades tradicionais e eu fiquei, praticamente, uns 20 anos lecionando atrás da Ilha, eu passei por todas as comunidades tradicionais, eu comecei trabalhando no Bonete e lá no Bonete… Todo esse trabalho que eu fiz atrás da Ilha, também, foi muito lindo, porque eu também adquiri muito conhecimento da história da cidade com essas pessoas mais antigas, que viviam lá. Então, a história do Bonete, que Bonete na verdade é Bonéte, é uma palavra espanhola que significa cone, chapéu de aniversário e esse nome é dado lá no Bonete porque o Bonete foi descoberto por espanhóis, então, o morro do Bonete é um cone, parece um chapéu de aniversário, então imagino eu que quando eles estivessem chegando lá, eles viram e falaram: “Bonete”, viram o morro e aí ficou Bonete. A gente chama de Bonete hoje, mas o significado é esse. [De lá,] fui pra Serraria, fui para Ilha de Búzios, passei por todas as comunidades tradicionais, dando aula, lecionando para os filhos, netos de pescadores. Muito lindo, assim, eu adoro atrás da Ilha e trabalhar lá. Aí depois disso, eu vim para a cidade, como eu te falei, eu passei por várias instâncias da educação, eu fui diretor de escola, da escola onde eu estudei, como eu também fui professor dessa escola, fui coordenador pedagógico da escola que eu estudei, Doutor Gabriel Ribeiro dos Santos e fui professor do magistério, então muitos diretores, professores hoje, diretores pedagógicos que estão trabalhando dentro do município foram pessoas que eu formei, né, professores que estudaram comigo no magistério e que hoje, estão aí trabalhando junto comigo, foram minhas alunas, foram meus alunos. Eu me sinto muito feliz por ter dado essa contribuição, eu continuo, ainda, contribuindo com toda a história da cidade, né? Fui diretor de escola, cuidei muito desses caiçarinhas aí, novos que vieram e que estão vindo ainda. Tive a oportunidade de formar professores aqui na Ilha e de estar vendo eles agora formados em sala de aula e trabalhando. Então isso também é uma coisa que me deixa grande, que eu fico bem feliz por isso e por todo esse trabalho que eu faço hoje, eu tenho um trabalho também que eu desenvolvo dentro do desenvolvimento social, porque tudo que eu fiz pela cidade de Ilhabela é dentro da cultura e da educação e do desenvolvimento social. Quando eu tava atrás da Ilha, eu fiz muito esse serviço do desenvolvimento social, mesmo, e da qualidade de vida, mexendo com isso, da sustentabilidade, dessa importância, principalmente, pras comunidades tradicionais. Então, muitos trabalhos incríveis assim, interessantes, a gente produziu lá e eu também entrava muito em contato com outros que eles faziam trabalhos extracurriculares dentro das comunidades que eram incríveis, que agitavam a comunidade, que faziam a comunidade aparecer na mídia e mostrar um pouco da história da Serraria, um pouco da história da Ilha de Búzios, um pouco da história do Bonete. Isso também pra mim era muito importante e, hoje, eu tô aí como diretor pedagógico dentro das escolas, incutindo na sala de aula a cultura tradicional da cidade e fazendo a cultura tradicional através do teatro, das artes cênicas, que eu também tenho formação em artes cênicas, né, eu fiz o teatro Célia Helena [Centro de Artes e Educação] e me formei em Psicologia, depois que eu fiz Pedagogia e é isso, eu continuo fazendo esse trabalho que eu adoro, que é gostoso, que as crianças curtem, que a comunidade gosta muito, principalmente das peças de teatro e das danças, quando a gente faz os espetáculos, assim, muito caiçara vem assistir, fica um público bem legal, que dá pra gente lembrar da Ilhabela antiga, onde formam os grupinhos e aí, todo mundo começa a conversar e a lembrar de como que era a cidade antigamente e muitas dessas danças, também, que eu te falo, como era o carnaval da Ilha, né, porque o pau de fitas era o carnaval também. Quando começou o carnaval, as brincadeiras de carnaval aqui na ilha, era o boi, era o vilão, o pau de fitas, o caiapó que se apresentava no carnaval, era todo mundo, um jogando água em cima do outro, tinham os mascarados que vinham com uns bambus grandes, batendo nos bares que tinham pra pedir as coisas e eles tinham que dar tudo de graça. Então era uma diferença muito grande, né, o carnaval da Ilha era assim. Então hoje a gente vê o carnaval de São Luiz [do Paraitinga] (SP), o carnaval de Olinda (PE), dá uma lembrança desse carnaval antigo da ilha, entendeu, que era um carnaval mais folclórico, que era um carnaval mais da origem, mesmo, da cidade, da história. Poxa, a Ilhabela é uma cidade turística, né, então eu acho que o bom turista, acredito eu que, goste de uma boa história, de vir na cidade e de querer conhecer a história da cidade. Eu acho que tem pouco ainda isso. Eu luto muito para que a história da Ilha floresça e aconteça nos quatro cantos da cidade, porque acredito eu que vai ser muito importante para o nosso turismo e para o bom turista, para o turista que vai vim aqui com o pensamento mais ecológico, mais cultural, né, um turista mais evoluído, tá, que olhe a nossa cidade com outros olhos e deixe aqui a sua contribuição, logico, porque se a gente é uma cidade turística, a gente precisa do turista, mas a gente precisa do turista, sabe, não assim.

P/1 – Eu queria, agora, que você contasse um pouco, né, como foi esse tempo fora da cidade, o processo de escola da profissão e aí, depois desse tempo longe, a sensação de voltar, de poder trazer coisas novas, de poder estar instrumentalizado e passar para as pessoas na sua forma de atividade de professor ou sendo de professor para professores, enfim…

R – Então, a Psicologia foi mais um estudo, assim, de mim mesmo, da minha pessoa, do meu ser, para eu poder me conhecer melhor, me encontrar melhor, me entender melhor dentro desse mundo, né? Dentro das pessoas, dessa comunicação que a gente tem, de ser humano com o ser humano e de toda essa estrutura que a gente vive no planeta, né, porque eu morava aqui numa cidade pacata, numa cidade tranquila, numa cidade que eu tinha toda liberdade do mundo, né, que não tinha nada, não tinha muitos carros, não tinha assalto, não tinha estupro, não tinha nada, não tinha essas coisas que a gente vê acontecendo, ladrões, pessoas matando que a gente vê na televisão em outras cidades. Aqui era uma cidade gostosa de viver, uma cidade que você tinha segurança, você não tinha medo de sair, a gente ia pra praia às três horas da manhã, naturalmente, descia, ia na rua e normal, não tinha essa preocupação. Então, eu comecei a estudar por isso, pra eu entender um pouco mais a cabeça das pessoas, do ser humano, mesmo e poder trabalhar com a criança, né, porque o meu foco sempre foi a criança e eu acho que a Psicologia é importante dentro da sala de aula, porque, hoje em dia, nós não somos mais professores, né? Professor, aquele que entra, pra mim, professor é o professor de faculdade, que vai lá, vai dar aula de Matemática, ele entra, dá aula de Matemática e vai embora e vira as costas. Nós que damos aula para crianças de Ensino Fundamental I, Ensino Fundamental II, Colegial [Ensino Médio], nós somos educadores, porque a gente não passa só o conhecimento da disciplina, a gente passa o conhecimento humano, o comportamento, a forma da pessoa agir, as atitudes, a cultura, a tradição ética tradicional que o ser humano tem dentro dele, que eu acho que isso é muito importante também. Eu acho que nós não podemos perder essa noção das nossas origens, né, porque uma pessoa sem origem, uma cidade sem história, é uma cidade esquecida, uma cidade que uma pessoa que não vai saber contar a sua história. Então, eu acho isso muito sério dentro da formação do processo do ensino-aprendizado e da formação como ser humano, mesmo, como cidadão, como patriota, sei lá, uma coisa assim, de amar a cidade que você nasceu, de lutar por um ideal, de ter uma formação, de ser alguém na vida, então a criança precisa disso, dessa estrutura, desse alicerce desde pequenininha, para depois não se perder mais pra frente ou não ter qualquer tipo de loucura, porque uma criança bem formada, com certeza, vai para um caminho interessante.

P/1 – E conta como é que foi a sua primeira entrada em sala de aula, né, você falou de trabalhar nas comunidades tradicionais, mas como é que foi a primeira experiência em sala de aula, né, o quê que você se lembra desse momento de estar à frente desses meninos e meninas como educador com toda essa importância?

R – Eu me senti grande, para te falar a verdade. Primeiro dia que eu entrei na sala de aula, eu me senti importante, me senti grande. Eu já queria passar tudo que eu sabia de uma vez só, entendeu? Eu enlouqueci, eu acho, um pouco a cabeça das crianças (risos), mas a gente se deu muito bem, eles gostaram muito de mim, eu também, a gente conhece a família toda, né, eu sabia cada criança que tava sentada ali de que família que era, filho de quem que era, neto de quem que era, então tem essa facilidade, também, né? Porque eu saía da sala de aula e ia tomar um café na casa de Benedito, de Sebastião, de Maria, de Beth, entendeu? E as crianças me viam, também, dentro da casa deles e me viam conversando com o pai, conversando com a mãe, então sempre teve essa coisa da união. Hoje é mais diferente, porque hoje a gente recebe um contingente de crianças de fora, com outras origens, crianças que vieram com a migração, porque hoje, aqui na ilha, a gente tem uma migração muito grande de mineiros, de baianos, de nordestinos que são muito bem-vindos, com certeza, né, pra nossa cidade, mas que é uma situação diferenciada de quem é caiçara, de quem viveu aqui, de quem teve essa vida quando Ilhabela era mais tranquila, mais pacata, mais nossa (risos).

P/1 – E qual que é a sensação de ver as crianças aprendendo essas lendas em contato com essa cultura tradicional, né, essa coisa de passar adiante toda essa…

R – É uma satisfação muito grande porque as crianças vibram, as crianças gostam muito das histórias que é o ponto, as crianças interpretam essas histórias com muita vontade, gostam de fazer essas interpretações. Cada história que eu conto, eles ilustram. As crianças da Ilha são grandes artistas, principalmente, as crianças das comunidades tradicionais, eles desenham muito bem, pintam muito bem e eles fazem muito artesanato, eles esculpem, fazem réplicas de canoas, de barcos, trançam cestarias. Muitas coisas interessantes dessas crianças, essas crianças são grandes artistas. Então, eu vibro, eu fico feliz porque eles gostam disso. Toda vez que eu chego dentro de qualquer escola daqui da ilha, é sempre uma alegria muito grande, as crianças vibram, vêm todas correndo para me abraçar, para me beijar, para perguntar que histórias que eu vou contar, se a gente vai dançar, se a gente vai fazer teatro, como que vai ser a nossa aula. Então é uma coisa bem que me incentiva cada vez mais a continuar fazendo isso, assim, porque é uma coisa gostosa, é uma coisa que eles curtem, que eles gostam, né?

P/1 – Qual que é uma história que você sempre conta para eles?

R – Uma história que eu sempre conto? São várias (risos), são muitas, quero lembrar aqui de uma bem legal pra eu te contar, mas são todas picantes as histórias. E todas as histórias têm uma moral, também muito forte que mexe, assim, com a índole da criança, sabe, a moral que tem o final da história, assim? É que as lendas são grandes, você quer que eu conte?

P/1 – Quero que você conte uma pra eu sair daqui e contar também: “Eu estive lá em Ilhabela e aprendi que… sei lá, isso”.

R – Tá. Eu vou te contar uma lá do Saco do Sombrio, então, que foi de lá que eu vim (risos), que assim, as mulheres, lá, elas desciam, tinha uma cachoeira grande, a gente morava numa baixada que lá é um morro grande, o Sombrio e a gente descia uma ladeira… As mulheres desciam uma ladeira para lavar roupa na cachoeira grande e, num belo dia, todas colocaram as bacias na cabeça e desceram e foram, como de costume, lavar as roupas, bater as roupas nas pedras e elas ficavam cantando na cachoeira, conversando, uma contando uma história para a outra da sua vida, era bem gostoso essa história. E tinha um senhorzinho, um velhinho, que o nome dele era seu Benedito e ele vivia sozinho lá no meio dessa comunidade, numa casinha de pau a pique e ele adorava, ele pulava as pedras e ficava bem no meio da cachoeira agachadinho de cócoras, ouvindo a cantoria delas e as conversações, as histórias que elas contavam. E de repente, elas começaram a entrar na cachoeira e estavam vendo uns brilhos e começaram a entrar na cachoeira: “Nossa, mas que brilho é esse? Nunca vi esse brilho no fundo da cachoeira. Nossa, mas tá brilhando muito”, aí começaram a entrar, entrar e eram objetos de ouro que estavam dentro da cachoeira, pratos, talheres, potes, copos, tudo brilhando, tudo de ouro com pedras preciosas, elas enlouqueceram: “Nossa, são peças de ouro, vamos ficar ricos, vamos pegar”, só que quando elas iam pegar as peças, as peças corriam delas, elas não conseguiam pegar as peças na mão, as peças iam embora e elas tentavam e as peças iam embora e elas ficaram desesperadas, falaram: “Nossa, será que é feitiço, isso? Coisa do diabo? Isso daqui é uma magia!”. Largaram as roupas, as bacias e subiram o morro correndo para avisar para os maridos, para os familiares o que estava acontecendo dentro da cachoeira. Nessa hora, vem um voz no ouvido do velho e fala: “Benedito, pode pegar uma peça de ouro dessa, só que você não conte pra ninguém como que você vai conseguir pegar essa peça de ouro”. E o velho: “Como que eu vou pegar, né?” Ele também ia tentar pegar e a peça fugia dele, ele não conseguia pegar, só que ele foi pular de um apedra pra outra, ele caiu, ele machucou o dedo, cortou o dedo e começou a pingar sangue e o sangue do dedo dele paralisou a peça e ele conseguiu pegar. Então, foi a forma que ele conseguiu pegar a peça foi a história do sangue. E quando eles descem, as lavadeiras descem com o pessoal da família, tá o seu Benedito lá num canto da cachoeira com um pote de ouro na mão e as peças todas já tinham desaparecido e os maridos falam: “Vocês são umas mentirosas, não tem nada aqui”, eles olham e veem o Benedito com a peça e aí, vai todo mundo pra cima do velho e aí: “Como que você conseguiu pegar? Como? Como?” “Não sei, não sei, de repente, eu tava aqui, a peça veio, pulou no meu colo. Eu não sei como que eu peguei, eu não sei, não sei”. E aí, ficou o dito pelo não dito, todo mundo foi cada um para a sua casa. E aí, o seu José que tinha vários filhos falou: “Mulher, eu não posso acreditar que o seu Benedito, tão velhinho, né, ele não precisa mais daquele pode de ouro, pra quê que ele quer esse pote de ouro? Ele tá velho, já, ele vai fazer o quê? Nós sim precisamos desse pote de ouro, temos um monte de criança, um monte de filhos pra criar. Eu tive uma ideia, eu tenho uma cabra lá no quintal, eu vou matar essa cabra, vou tirar o couro dela e tu vai fazer uma fantasia de diabo pra mim”, ela: “Aí credo José, não faz isso, pelo amor de Deus. Benedito vai morrer do coração se tu for lá…” “Eu vou fazer isso e eu vou conseguir, não vai acontecer nada, não”. Ela fez a fantasia, ele pôs a fantasia com chifre, tudo, da cabra, deu tarde da noite, ele foi lá na janelinha do… “Seu Benedito, eu quero o meu pote de ouro que o senhor pegou”, quando o Benedito abre a janelinha da casinha dele e vê aquele bicho, enlouquece. Pega o pote de ouro, joga pela janela e ele sai com o pote de ouro feliz, seu Benedito: “Leva, eu não quero esse pote, foi uma voz que veio no meu ouvido e me falou que eu tinha que pegar esse pote, mas ele não é meu, eu não quero, não tenho interesse. Pode levar”. Levou, chegou na casa dele todo feliz: “Consegui, estamos ricos, consegui!”, aí, ele começou a sentir uma coceira no corpo: “Tira logo essa roupa, essa fantasia, mulher, que eu tô com uma coceira no meu corpo”, aí ela foi tirar o zíper, quando ela abriu o zíper, ela abriu as costas dele, ela viu tudo o que tinha dentro, sangue, nervo, osso, fechou rapidinho e ficou assustada olhando para cara dele: “José, não sai a sua fantasia, virou a tua carne, virou a tua pele. Agora, você é o demônio”, e ela ficou desesperada: “Não quero ficar casada com o demônio, ficar com um homem horrível desse”, bom, foi uma briga horrível dentro da casa e aí, não tinha como tirar a fantasia e o cara desesperado, ela falou: “Só tem um jeito, vai lá na casa de Benedito e devolve, pede esculpas e fala que é você.”, ele foi fazer isso. Foi lá, bateu, devolveu, e o seu Benedito falou: “Poxa, você quase me matou de susto, não precisava você ter feito isso” “Pega o pote, o pote é seu”, voltou para a casa dele, mas a fantasia não saiu. Uns três meses depois, ele morreu esvaindo em sangue, o sangue saía pelos poros assim, sabe, da fantasia? E ele ficou estrebuchando no chão e a mulher dele gritando feito louco e assim termina uma das histórias que a minha avó me contava (risos). E as crianças gostam. E interpretam direitinho.

P/1 – Aí, tô até vendo. Mas é legal, mesmo.

R – E tem toda uma moral essa história, porque tem toda essa história e aí, o cara não conseguiu, né, quem age dessa forma, olha como que termina! Então tem uma moral forte aí também no fim dessa história é uma filosofia, mesmo, pra criança pensar muito antes de fazer alguma maldade ou de agir de uma forma que não tenha certeza daquilo que esteja fazendo.

P/1 – Tá certo. E bom, conta pra gente, assim, com toda essa história que você já vem contando, qual que é a sua relação hoje com a cidade, né, o quê que você sente morando aqui e tendo todas essas atividades com as crianças, com os jovens e com a história de Ilhabela, suas lendas e cultura tradicional?

R – Eu acho lindo, eu acho que é a minha vida, né, eu vou ter que continuar fazendo isso, porque é o que eu realmente gosto, foi o que eu escolhi pra mim, para a minha ida, mexer com cultura, mexer com educação, mexer com o desenvolvimento social da ilha. É importante porque é uma história completa. Hoje, por exemplo, o desenvolvimento social já é diferente, é uma outra situação, é uma outra história, é uma outra definição de situação, que antigamente, era uma situação, agora já é outra, né, Ilhabela cresceu muito, Ilhabela já tá com muito moradores, Ilhabela já tá com muita construção, Ilhabela precisa disso, que toda cidade precisa ser cuidada, toda cidade precisa do progresso, toda cidade precisa ser cuidada, mas eu não me sinto morando fora daqui, num outro lugar, eu não conseguiria. Gosto muito de viajar, já viajei para vários lugares, já tive oportunidade de conhecer alguns lugares, até alguns lugares no exterior, mas não me vejo fora da Ilha. Eu acho que a Ilha cresceu muito, mas ela ainda é aquela Ilha nossa, entendeu? Eu acho que a Ilha ainda tem essa energia pitoresca, essa energia acolhedora, essa energia da história, da antiguidade. Então eu acho que é assim, que a gente, que nós precisamos ter cuidado com isso, assim, com a história do crescimento, do progresso. Ilhabela precisa ser bem cuidada? Sim, ela precisa, mas a gente também tem que ter cuidado em cuidar da Ilha, né, porque a Ilha é uma ilha histórica, né? Eu acho que a gente tem que preservar a cultura tradicional da cidade por ser uma cidade turística e pela importância da história propriamente dita, também. Aqui nós temos prédios muito antigos, patrimônios mesmo, então eu acho que a gente tem que ter esse cuidado nesse momento do crescimento da cidade, das construções que estão sendo feitas, de toda a estrutura, né, propriamente dita da cidade, mas eu acredito que a cidade tá muito linda, a Ilha, muito bem preparada, muito bem cuidada, limpa, por onde a gente passa, a gente só vê coisas lindas na Ilha. Eu me sinto… Eu tenho orgulho de falar que eu sou caiçara e que eu nasci na Ilhabela e que eu sou da Ilhabela e que a minha Ilhabela é linda e vai continuar sendo linda pra sempre.

P/1 – Eu queria que você falasse pra gente o quê que significa ser caiçara pra você.

R – Ser

caiçara é ser gente boa, é andar de pé no chão, é entrar no mar, é pescar, é comer peixe seco, é comer farinha da terra, os nossos pratos típicos, né, o pirão de banana verde, é o azul-marinho, é ser feliz, é essa união que a gente sempre teve de caiçara, ser caiçara é ser acolhedor, receber bem as pessoas dentro de casa, é fazer uma boa festa, é tomar uma boa consertada na festa de São Benedito (risos), é ser livre ser caiçara. É isso que eu sinto de ser caiçara.

P/1 – E como é que é feita a concertada?

R – Concertada

é feita com rapadura, garapa, alguns pedaços de rapadura, você dissolve, na verdade, a rapadura, a hora que ela tiver em calda, você joga a garapa, aí vai transformar essa calda numa bala, aí você põe um pouco de água e deixa ferver bastante. A hora que… Junto com essa calda, você coloca cravo e canela socado no pano de prato, bem socado e você põe folhas de laranja, mexerica e de limão. E aí, deixa lá. A hora que você joga a garapa e um pouquinho de água, essa calda vai se transformar numa bala, aí, você deixa ferver até dissolver essa bala toda, a hora que tiver tudo dissolvido, você desliga e põe pinga, cachaça. E aí, tampa, deixa esfriar, coa, engarrafa e deixa enterrada por 40 dias. Depois de 40 dias, você tira e fica um licor e é servido na festa de São Benedito, no dia do levantamento do mastro. É uma bebida típica da Ilha feita com rapadura, garapa, cravo, canela, folha de laranja e limão e pinga.

P/1 – E pra gente ir encerrando assim, eu queria que você comentasse qual que você imagina que vai ser ou que é o seu legado pra ilha, sua contribuição para esse desenvolvimento daqui de Ilhabela.

R – A minha contribuição vai estar dentro dessa parte política, mesmo, né, dessa direção política, vai estar dentro das escolas, na formação de um cidadão crítico pensante para cada vez, a gente ter mais essa energia cultural, de origem, de não deixar morrer a história da cidade, né, de sempre continuar, ter essa continuidade do folclore, da cultura, da raiz da cidade e praticamente isso, assim, dentro do desenvolvimento social, como eu te falei, do desenvolvimento da formação do cidadão crítico pensante, né? Pra gente ter um povo verdadeiro, um povo que vá a luta, que vá atrás dos seus direitos, né? Eu acho que a minha contribuição tem sido essa desde o começo da minha história.

P/1 – E agora adulto assim, o que você gosta de fazer nas suas horas de lazer, né, a gente falou da sua infância, da juventude, e agora?

R – De

ir para atrás da Ilha, de ficar lá na minha casa na Praia da Fome, de ascender meu fogo de lenha, de fazer o meu fogo tacuruba no quintal, de ir plantar mandioca, de ir para a roça, de ir para o mar pescar, de entrar na cachoeira, de ficar atrás da Ilha. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer é de ir para lá, de assar os meus peixinhos nos moquém, sabe, de defumar, de fazer as coisas caiçaras e de pintar, de fazer os meus artesanatos, de fazer as coisas que eu gosto de fazer dentro da minha casa, de estar lá no meio dos caiçaras, no meio do meu povo. É uma das coisas que eu mais amo fazer agora. Inclusive, eu penso em me aposentar e ir morar atrás da Ilha, de terminar os meus dias lá.

P/1 – E você falou agora do artesanato, o quê que você faz?

R – Eu faço trancas de palha de banana, que foi uma história que foi deixada pela minha avó, né, faço réplicas de casinhas de pau a pique, faço algum tipo de cestaria com bambu fininho, tem algumas coisas que... E eu gosto muito de pintar, também, né? Eu gosto muito de pintar, de fazer quadro, de fazer reproduções, essas coisas que eu faço.

P/1 – Tá certo. E aí, pra gente encerrar, eu queria que você falasse pra gente o que você achou de estar aí desse lado contando um pouquinho das suas histórias com a cidade pra gente.

R – Eu achei legal, assim. Achei bem legal, mas é difícil estar do lado que eu tô (risos), sempre complicado você estar sendo filmado, você nunca sabe como que você vai sair, o que você tá falando e tem coisas, inclusive, que a gente quer falar e que não dá tempo da gente falar, né, na verdade, eu gostaria mais de estar falando, mesmo, sobre a história da cidade mas foi muito legal assim, eu estar falando sobre a minha história. Gostei muito, sobre a minha vida, sobre como é que foi, foram coisas super simples que eu vivi, imagina, mas de uma grandiosidade muito grande, muito importante para o meu caminhar, para o meu desenvolver como ser humano, né, porque eu vim de família simples, tive oportunidades na vida de estudar, de viajar, de ter outros conhecimentos e de ter essa coisa dentro de mim, de estar querendo sempre voltar e de colocar tudo que eu aprendi para os meus conterrâneos, entendeu? De se formar e vim trabalhar no lugar em que eu nasci, como a primeira coisa que eu fiz, né, foi dar aula para os caiçaras atrás da ilha, para os filhos de pescadores como eu fui, eu fui filho de pescador, né? Sou o filho de uma roceira, de uma mulher que trabalhou a vida toda na roça e de um homem que trabalhou a vida toda no mar, então eu sempre guardei essa importância, eu acho lindo isso, né, tudo muito a ver, assim, tudo muito simples o que eu vivi, mas com muito amor, com muita esperança, com muita devoção, com muita… e isso me tornou uma pessoa grande, uma pessoa grandiosa, uma pessoa que ama o ser humano, uma pessoa que adora fazer amizade, uma pessoa que adora cuidar das pessoas. É assim que eu me sinto.

P/1 – Adriano, se você quiser contar mais alguma história da cidade ou se quiser deixar alguma outra coisa registrada, pode ficar à vontade, se achar que ficou faltando alguma parte da história da…

R – Não, eu acho que tá tudo certo, tá tudo bem. A gente vai ter outras oportunidades (risos).

P/1 – Com certeza. Então tá joia, Adriano, em nome do Museu e também da prefeitura de Ilhabela, a gente agradece a sua entrevista. Muito obrigada.

R – Eu que te agradeço. Obrigado, eu.

P/1 – Então, ficaram faltando duas histórias, né, então pode contar pra gente, pode ser primeiro a história de Antônio Inácio.

R – Então, Antônio Inácio é um senhor caiçara, nativo da Praia da Figueira e ele tinha um dom de falar com as cobras… Ilhabela é muito mística, tudo que se reverte na história da Ilha é o misticismo puro. A gente teve muitas benzedeiras aqui que curavam vários tipos de doenças, como nas festas de teatro que eu faço, tem a Amélia que fala que tem doença que a gente cura que doutor não cura, a pessoa vai no médico, o médico não consegue encontrar a doença, mas aí você vai na casa de uma benzedeira, a benzedeira te faz uma reza e você sai de lá curado. Muito disso acontece aqui na cidade de Ilhabela. E a gente tinha esse senhor, o Antônio Inácio, que era um curandeiro, um homem místico, que vivia na Praia da Figueira no meio da floresta e tinha um conhecimento muito grande das ervas medicinais e ele tinha o dom de falar com as cobras, então quando alguém era mordido por cobra, por exemplo, lá, no Saco do Sombrio, o meu avô Benedito de Lau foi mordido, ele tava no alto do morro, na Pedra do Bem-te-vi, no caminho e ele foi mordido por uma cobra que ele nem percebeu, ele achou que fosse um espinho… Quando ele chegou em casa, ele já não estava mais aguentando nem segurar o saco de mandioca que estava nas costas dele. Aquela confusão toda, a minha avó começa a gritar: “Vai lá de canoa, vai lá, pega Antônio Inácio, traz Antônio Inácio pra cá”, porque a Figueira é do lado do Saco do Sombrio, é pertíssimo. Aí, a minha tia foi de canoa pegar o Antônio Inácio e trouxe. Ele sempre vinha com uma garrafinha já com um líquido preparado, uma garrafada, sabe, um remédio já de erva preparado. Chegou na porta da casa do meu avô, pôs o dedo na boca, deu um assobio e veio uma quantidade de cobra, cobra de todo tipo, ele ia pegando a cobra: “Fosse tu que mordesse a perna de Benedito de Lau? Fosse? Fosse vós que mordesse sua miserável?”, e a cobra que não era, ele jogava: “Vá se embora daqui, não me apareça mais aqui, eu já não disse que não é para tu descer no caminho? Caminho é pra gente passar”, e a cobra morria de medo dele, a cobra ia embora na hora que ele jogava e ele foi pegando de uma em uma, ele repreendia a cobra, ele batia na cara da cobra até encontrar a cobra que mordeu. Aí a cobra que mordeu, ele ia lá, a tampa da garrafa dele era uma cortiça de boia de pesca, ele enfiava o dente da cobra ali, pingava um veneninho lá dela, sacudia, deu para o meu avô tomar, meu avio levantou. Tava lá estilhaçado, quase morto no chão e levantou numa boa e ele é assim, o seu Antônio Inácio. Ele era um curador, ele curava de mordida de cobra, de mordida de aranha, de outros bichos, ele era o nosso médico de trás da ilha, o Antônio Inácio e ele tinha esse dom de conversar com as cobras, né? Nas festas que tinham, nos bailes antigos, quando a gente ia dançar uma quebra-chiquinha, uma ciranda, ele levava a mulher dele, a dona Benedita e o colar dela era uma cobra verdadeira, dessas mais perigosas, assim, super venenosas, uma coral legitima. Ficava se movendo, um colar vivo, sabe? Então, ele dançava com todas as mulheres da festa e com a mulher dele. A mulher dele ficava sentadinha, nem as outras moças, amigas, se aproximavam dela de medo da cobra, ela ficava sozinha a festa toda, porque ela tava com o colar de cobra no pescoço. Então, ele tinha essa facilidade de pegar a cobra, de bater na cobra, a cobra não mordia ele, a cobra tinha medo dele, ele conversava, ele ouvia o que a cobra dizia e ele curou muita gente de cobra na Ilhabela, não foi só o meu avô, o meu avô foi só uma história em que ele também foi curado, né? Hoje em dia, existem pessoas vivas que conhecem a história de Antônio Inácio, que já foram curadas por ele. É um homem super místico, assim, muito… é uma história muito interessante essa história da ilha.

P/1 – É mesmo, mas coitada da mulher que nenhum rapaz chamava ela pra dançar, né?

R – Só o marido dela, a dona Benedita, mas ela gostava disso, ela gostava de ser a mulher do colar de cobras, ela gostava. Ela entrava na festa toda se mostrando, toda imponente, toda mostrando a joia que ela tava cuidando (risos).

P/1 – Tá certo. E agora, ficou faltando também uma história com a fazenda Engenho D’água, que é essa aqui bem de frente para o canal de São Sebastião. Queria que você contasse uma história quer tivesse envolvesse ele de alguma forma.

R – A história da fazenda do Engenho D’água, né? É uma fazenda que começou a plantar açúcar, na verdade, as primeiras plantações da Ilha, 1608 com a chegada do Francisco Escobar Ortiz, a função foi a plantação de cana-de-açúcar pra produção do açúcar, né, e já na fazenda do Engenho D’água. Em seguida, o café, plantação de café, aí depois teve a libertação dos escravos, com a libertação dos escravos e a quebra da Bolsa de Valores nos Estados Unidos, Ilhabela teve uma decaída muito grande, muito grande, porque a maioria das pessoas que viviam aqui eram escravos e todos foram embora e aí, começou uma nova plantação de cana já para a feitura da cachaça, que foi a última plantação que teve. Aí, o branco já teve que ir para a lavoura também pra poder dar um reforço na economia da cidade, porque Ilhabela foi pro chão na libertação dos escravos, né? E a fazenda do Engenho D’água tinha um escravo de nome Estevão e ele era muito esperto esse negro e muito amado pela sinhá e a mãe dele era ama, trabalhava dentro… É muito interessante aquela casa grande, né, porque a senzala era no porão da casa dos escravos domésticos e, em cima, era a casa grande, então era uma coisa muito próxima ali, os escravos e a ama que era a mãe do Estevão. E ele tinha uma vontade de ler muito grande, de aprender a escrever muito grande e a sinhá começou a ensinar as escondidas esse escravo e os castigos para o escravo alfabético na época era muito torturante, o escravo realmente não podia saber ler e escrever, né, que naquela época, escravo não tinha alma, o bicho, animal era mais importante do que o escravo, né? Então, ela ensinou, ele era muito inteligente e o capataz da fazenda descobriu o que a sinhá tava fazendo e num belo dia, contou para o dono da fazenda e o dono da fazenda foi atrás desse negro pra poder judiar, né, praticamente matar. A sinhá e a ama ficaram muito preocupadas, foram atrás dele antes e pediram para que ele fugisse, para que ele: “Pelo amor de Deus, foge, foge, vai embora daqui. Meu marido descobriu que você sabe ler e escrever” e nessa hora que elas estavam conversando com ele, o senhor chegou e ele não sabia para onde correr. Aí, a ama levantou a saia dela que era enorme e falou: “Se esconde debaixo da minha saia, porque não tem outro jeito”, e aí, eles chegaram: “Vocês viram o Estevão?” “Não, a gente não viu” “Tem certeza que vocês não o viram?” “Não, a gente desde manhã, a gente não viu o Estevão, a gente não sabe para onde ele foi”, e ele tava ali embaixo da saia da mãe. Assim que o senhor e o capataz saíram, ele saiu dali e foi para o alto do morro e se escondeu numa toca em cima do alto do morro do Engenho D’água e essa toca é conhecida hoje como Toca do Estevão e que pessoas vão lá, encontraram coisa e todo mundo que vai para essa toca sempre ouve alguma coisa, alguma lamentação, alguma história referida à situação que o negro Estevão viveu, porque dentro da fazenda do Engenho D’água, na verdade, os negros eram sacrificados. Aqui na Ilhabela só tinha um pelourinho e o pelourinho era onde é a Praça Coronel Julião, hoje, tem um bebedouro lá, antigo, com uma pia antiga, lá, para os turistas, para o povo tomar uma água, é uma pia, um bebedouro que tem no meio da Praça Coronel Julião. Era ali, onde era esse bebedouro, o pelourinho, onde o negro era judiado a público, na frente de todo mundo da cidade, era o único lugar que eles massacravam os negros, como se fala? Pra todo mundo ver e não fazer o que aquele negro fez, olha, é errado fazer isso, se você fizer, vai acontecer a mesma coisa com você. Então, era uma coisa assim, entendeu? E era o único lugar que eles massacravam. Quando tinha que fazer alguma maldade com algum negro era dentro da fazenda, mesmo. O pelourinho, o único que tinha era ali. Inclusive, do lado, hoje eu acho que é uma imobiliária, mas é uma casa antiguíssima, porque ali foi o mercado de escravos, eles vendiam negros ali. Se vocês quiserem passar ali, depois, e dar uma filmada na casa, mas ali era um mercado de negros e hoje é uma imobiliária, [a casa] foi feita com óleo de baleia a construção, porque teve isso aqui na Ilha, também, né? Em 1732, o rei de Portugal pediu para fazer a armação das baleias aqui, porque o canal de São Sebastião sempre foi rota de baleia, é até hoje e em 1732, o rei pediu para montar, por isso que existe Praia da Armação, porque lá foi feita a armação das baleias. Então, eles capturavam as baleias lá, cortavam o rabo das baleias, retiravam o óleo, com esse óleo foram feitas as primeiras construções da Ilha com conchas moídas e óleo de baleia e a iluminação da cidade eles colocavam uns postes de madeira nos caminhos, as lamparinas em cima com o óleo de baleia, uma loucura, né, nessa época… Quantas baleias não morreram, né? E o rabo era largado ali no mar, a correnteza levava, parava os rabos numa praia vizinha, apodrecia, tinha um mal cheiro e aí, começaram a chamar Praia do Rabo Azedo, por causa dos rabos das baleias que encalhavam, lá. Então, tem três lugares na Ilha que se chamam por causa dessa situação, que é a Ponta do Rabo Azedo, a Praia do Rabo Azedo e a Praia da Armação, é tudo uma sequência uma da outra para o norte da Ilha. E histórias muito loucas da ilha, né?

P/1 – Mas já deu para ter uma ideia e com isso, mais uma vez, Adriano, a gente agradece a sua entrevista, viu, muito obrigada.

R – Eu também agradeço vocês. Eu gostei de fazer a entrevista.

P/1 – Aí, que bom. Obrigada.

R – Obrigado.