Museu da Pessoa

Paixão pelo ofício

autoria: Museu da Pessoa personagem: Cristina Navarenho Santos Zanetti

Projeto Educação para o Mundo
Memória dos 30 Anos da Escola Cidade Jardim PlayPen
Depoimento de Cristina Navarenho Santos Zanetti
Entrevistada por Marina Galvanese e Isla Nakano
São Paulo 25/11/10
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MECJ_HV025
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por: Nataniel Torres

P/1 – Então, Kika. Posso te chamar de Kika, né?

R – É. Porque a Cristina ninguém conhece.

P/1 – Vou começar então primeiro agradecendo a sua vinda em nome do Museu e da PlayPen e pedindo para você falar de novo seu nome completo, local e data de nascimento.

R - Cristina Navarenho Santos Zanetti. Nasci em São Paulo no dia 24 de janeiro de 1969.

P/1 – E o nome dos seus pais?

R – Meu pai chama Fernando. Minha mãe chama Márcia.

P/1 – E a atividade profissional deles?

R – Meu pai é economista. Minha mãe é a famosa “do lar”, faz tudo (risos).

P/1 – Você sabe como eles se conheceram?

R – Nossa, muito legal a história deles. Era ano novo e minha mãe estava em casa com uma amiga, elas loucas para alguma festa, alguma agitação, mas só estava a família. Aquele marasmo total! Aí elas falaram: “Já sei, vamos passar um trote”. Aí discaram um número, tocou na casa do meu pai, meu pai atendeu e minha mãe falou: “Feliz ano novo!”. Aí meu pai falou: “Quem tá falando?” “Ah, você não me conhece, só estou ligando para desejar feliz ano novo”. Aí ele falou: “Eu não te conheço, mas eu preciso te conhecer, porque eu me encantei pela sua voz. Tô apaixonado pela sua voz, eu preciso te conhecer”. Bateram maior papo no telefone, desligaram marcando encontro. Minha mãe só falou a rua onde ela morava, ficou escondida atrás do muro com a amiga dela porque elas tinham medo de quem ia aparecer. Falaram: “Vamos ver a pinta do cara, conforme for a gente aparece para conversar ou não” (risos). E aí as duas ficaram lá escondidas atrás do muro, meu pai veio com um amigo dele procurando, descendo a rua umas sete vezes e elas só filmando, aí saíram para se conhecer, namoraram, casaram.

P/1 – Gente, que incrível.

R – Tudo por causa de um trote de telefone no ano novo (risos).

P/1 – Que ótimo.

R – Gostoso.

P/1 – E os seus avós, qual é o nome deles...

R – Então, da parte do meu pai é Geci Santos e Eglantina. E da parte da minha mãe, Pedro Lourenço e Lourdes.

P/1 – E qual a origem da família, você sabe de onde eles vieram?

R – Então, a parte do meu pai tem uma origem francesa misturada com holandês e com português. São bem brasileiros mesmo. Inclusive o meu bisavô era mulato e de olhos claros. Vieram lá do nordeste. E a família da minha mãe é português com espanhol. Então assim, super brasileiros mesmo (risos)! Essa mistura de colonização mesmo.

P/1 – E você tem irmãos. Fala para gente o nome deles.

R – Tenho dois irmãos. O André Luis e o Pedro Paulo.

P/1 – Certo. Qual é a ordem?

R – Eu sou a mais velha, Cristina. Aí veio o André Luis e o Pedro Paulo, raspinha do tacho.

P/1 – E me fala uma coisa, em que bairro que vocês cresceram?

R – Olha, a gente é uma família meio nômade, porque a gente nunca morou mais de seis anos no mesmo lugar, minha mãe adorava mudar. Quando eu nasci, morava na Alameda Itu. Depois a minha primeira infância foi Higienópolis. Daí, de Higienópolis, a gente mudou para Perdizes ali, Pompéia. Depois a gente mudou para o Itaim Bibi e do Itaim Bibi a gente foi para Campinas. Que meu pai morou uns anos lá. Depois a gente voltou para o Itaim Bibi e hoje eu moro na Vila Mascote.

P/1 – E conta um pouquinho dessa primeira infância que você falou que foi em Higienópolis. Como era esse bairro quando você era criança? Como era sua casa?

R – Uma delícia. Eu morava em apartamento e a gente morava no segundo andar. Eu morava na Albuquerque Lins, uma rua bem tranqüila, bem diferente do que é hoje. Eu estudava ali no Sion, eu ia a pé para escola. Então minha mãe me levava a pé, ia me buscar a pé. Era super gostoso. Aí comecei a fazer inglês ali no CCAA, também ia a pé, voltava a pé. Então, é uma infância completamente diferente de hoje. Estava comentando com a minha mãe que eu devia ter cinco anos, eu ia à padaria sozinha buscar pão para ela. Eu morava num prédio mais ou menos no meio do quarteirão e a padaria era na esquina. Eu ia sossegada e minha mãe me deixava ir porque não tinha nem que atravessar a rua, então ia lá. Já ia aprendendo a fazer troco com cinco anos. Imagina que hoje você manda alguma criança com cinco anos buscar alguma coisa (risos). Eu lembro que os meus irmãos sempre estudaram em períodos diferentes do que eu, porque três em casa minha mãe ficava louca. Então, geralmente, eu estudava de manhã e meus irmãos estudavam à tarde. E a tarde era um momento também que eu tinha especial com a minha mãe, só nós duas de mulheres. Então a gente ia fazer as unhas, ia visitar as tias. Ia tomar chá na casa das tias, essa coisa gostosa. Ou ia fazer compras. Desde supermercado até roupa para os meninos. Então, era bem gostoso.

P/1 – E com quem você brincava? Você tinha amiguinhos no prédio, na rua?

R – Muitos. Muitos. Nossa, o prédio tinha bastante criança! Tinha uma área de lazer bem legal. Não tinha piscina, mas tinha um espaço enorme para andar de bicicleta! Tinha parquinho também. Com gira-gira, com trepa-trepa, esses brinquedos. Tinha até uns cavalinhos de balanço. Era muito gostoso! E a gente brincava. Eu lembro que tinha árvore, bastante grama, passarinho. As minhas brincadeiras preferidas nessa época. Eu adorava fazer ninho para passarinho. Eu queria poupar o trabalho dos passarinhos! (risos) Então eu juntava um monte de gravetinho, um monte de coisinha. Eu tentava fazer um ninho bem redondinho e colocava numa árvore. Porque aí, para o passarinho, já estava pronto! (risos) E também brincava de fazer comidinha com panelinha, essas coisas. Colocava água com terra. Essa coisa bem lúdica mesmo. Picava folhinha. As flores, eu não era muito ecológica na época, não tinha tanto essa consciência. Eu pegava as flores, fazia uns buquezinhos, ia lá na frente do prédio, estendia um paninho, colocava os buquezinhos de flores e vendia. (risos) E um monte de gente comparava porque achava graça. Eu falava: “Você não quer levar um buquê de flores para sua esposa?”. Tinham três florzinhas, que eu tinha pegado no jardim. (risos) Aí eu vendia. Era a troco de moedinha, mas era muito gostoso.

P/1 – E os seus avós moravam perto de vocês? Como é que era essa relação?

R – Da parte do meu pai, sim. Moravam perto, ali na Angélica mesmo, e dava para ir para casa da minha avó a pé. Mas minha avó era super ocupada. Ela não tinha muito tempo para gente. Mas a avó da minha mãe... A mãe da minha mãe, minha avó por parte de mãe, já morava na Lapa. Então a gente precisava tirar um dia para visitar a vovó. Aí era longe porque tinha que entrar no carro. Então a minha avó paterna era mais próxima, mas só fisicamente. Não tanto emocionalmente.

P/1 – E quais eram as festas que eram comemoradas na sua casa? Aniversário, seu, dos seus irmãos, Natal?

R – Aniversario, batizado, primeira comunhão, Natal. Que a gente é católico apostólico romano. Não de freqüentar missa todos os domingos, mas tem essa cultura. E também nos casamentos, nos chás de panela. Os famosos chás de panela. Então todas essas festividades eu fazia muito com a minha mãe. E, porque não, que é uma festa também, apesar de que muitos hipócritas dizerem que não, os enterros. Eu sempre acompanhei minha mãe e eu achava ótimo, porque era no velório, no enterro que você encontrava um monte de gente da família. Aquela tia que você nunca viu. E sempre era com aquela emoção, porque todo mundo se encontrava, se abraçava, chorava junto a perda de um ente querido, mas aí era uma festa. De conversar: “Como é que tá?”, “Não sei o quê”, “Meu filho casou, minha filha foi estudar não sei aonde”. Então era um dia gostoso e eu não tinha medo, porque geralmente minha mãe perguntava: “Você quer ir? Eu preciso ir ao velório e no enterro, você quer ir?”. Minha mãe sempre foi muito companheira. E eu sempre quis ir! Até o que me marcou muito foi que o meu primo estava noivo, a noiva dele tinha asma. Ela sofreu um ataque e acabou falecendo. Ele tinha 21 anos, ela tinha 17. E aquilo foi um baque, porque eu só estava acostumada a ir a velório, em enterro das velhinhas, dos velhinhos, que já estava na hora mesmo de morrer. Ou de alguém que estava muito doente. E de repente, quando a Valéria morreu, foi assustador. Era dia da criança. Eu tinha acabado de ganhar uma boneca, meu último brinquedo do dia das crianças que eu ganhei. Porque aí eu já estava ficando mocinha. E eu queria mostrar para ela. Eu me lembro dela chegando com meu primo, foi a última vez que eu a vi viva. Ela falou: “Deixa-me ver sua boneca?”. E estava na caixa, falei: “Ai, acabei de guardar”. Ela falou: “Tá bom, depois você me mostra”. Ela foi embora e aí morreu, acho que logo naquele final de semana. Eu fiquei tão sentida dela não ter visto a minha boneca. Minha mãe falou: “Você vai querer ir ao velório dela?”. Falei: “Lógico!”. E ela foi a primeira pessoa que eu cheguei perto do caixão e consegui olhar. Porque eu ficava meio longe, eu não gostava. Mas a Valéria eu quis olhar perto e eu falei para ela: “Desculpa de eu não ter te mostrado a minha boneca” (risos). Porque aquilo ficou preocupante na minha cabecinha. Eu lembro que até queria ter levado a boneca para ela ver e minha mãe me explicou: “Mas ela não vai mais poder ver filha”. Então, foi um negócio que marcou bastante.

P/1 – E fala um pouquinho da sua escola. Você estudou no Sion. O Sion foi sua primeira escola? Como é que foi?

R – Foi. Sion foi minha primeira escola. Eu entrei no Sion com 3 anos de idade. Minha mãe chorou muito no primeiro dia de aula, porque eu fiquei encantada com a escola, com o hábito da freira. Eu dei a mãozinha para freira e entrei. Nem olhei para minha mãe e minha mãe foi para casa chorar. Então ela ficou muito mal, achou que eu nem sentia falta dela. E sempre amei escola. Eu sempre fui o tipo de criança que minha mãe falava: “Não pode ir para escola porque você tá com febre”. E eu chorava porque eu queria ir para escola.

P/1 – E como é que era o espaço no Sion? Era uma escola grande? Como é que era?

R – Enorme. Eu lembro que tinha um bosque com um monte de árvores. Enorme! Eu tinha três anos, talvez não fosse tão grande assim (risos). Mas, nossa! Eu me lembro de correr na terra. Era correr! Para mim o espaço que eu mais lembro era de correr no play. No play, no parque. O bilinguismo já tá invadindo a cabeça (risos). De correr no parque, brincar muito de pega-pega, de esconde-esconde. Brincadeira bem ativa. Não me lembro de ter brinquedos no parque como tem hoje. Pelo menos, no colégio não tinha trepa-trepa, gira-gira. Essas coisas eu não lembro! Talvez até devesse ter, não sei. Mas o que eu mais lembro é de correr no bosque. E de sala de aula, como era escola montessoriana, eu lembro muito das letrinhas de madeira, das letrinhas com lixa que tinha que passar o dedinho. E eu não esqueço a minha alegria o dia que eu consegui escrever uma palavra enorme que era: liquidificador. O dia que eu consegui escrever essa palavra com todas as letras, nossa! Eu lembro que eu soltei rojão! Cheguei super feliz, contei para minha mãe. Aí marcou. Se eu fechar os olhos eu consigo ver a palavra com as letrinhas no tapetinho, quando eu escrevi. E foi muito legal, porque aí acho que quando eu era criança, lá na escola que plantou a sementinha da professora, da educadora.

P/2 – Você gostava de brincar de dar aula? Como você era a irmã mais velha...

R – Não. Porque eu sou mais professora artista. Sabe o que eu gostava? De fazer teatro, peça, novela. Era muito nessa área. De show! (risos) Bem de palco mesmo.

P/1 – E você falou que ela era montessoriana, que tinham essas letrinhas, tal. Que outros materiais vocês usavam na sala, você lembra?

R – Eu lembro que tinha umas fichas. Tinha um porta-fichário. Tinha um porta-fichário de português outro de matemática e as fichas eram plastificadas. Assim que você terminasse as atividades do livro, você podia se dirigir a uma dessas caixas, tanto fazia português quanto matemática, e você podia escolher a ficha que você queria fazer. As fichas eram numeradas, então você falava: “Ah, quero escolher a 22”. Aí eu pegava meu caderninho e marcava ficha 22. Na ficha eu lia o enunciado e só marcava as respostas no caderno. Eu adorava fazer isso! Eu queria terminar logo o ponto da aula, a lição lá do caderno, do livro, para poder fazer essas fichas. E tinha aquela competição saudável: “Que ficha você tá?”, “Você já fez a 13 de matemática? É super legal!”, “Você viu a dez de português?”. Então eu lembro dessas fichas, que eram bem gostosas de fazer. E o fato de você poder escolher para mim era tudo. Às vezes, eu pegava uma bem difícil, que era quanto mais alto o número era mais difícil. Mas como você podia tentar esse desafio eu achava ótimo. Então eu pegava a última, tentava fazer a última, não dava conta aí falava: “Deixa eu pegar então a décima segunda”. Aí, passava um tempo eu pegava de novo uma lá do fundão, aí dava conta de fazer. Então isso acho que estimulava muito, era bem legal.

P/1 – Tinha caderno de caligrafia, essas coisas?

R – Tinha. Tinha caderno de caligrafia. Eu sou do tempo também que a gente fazia aula de datilografia, (risos) que era muito legal! Vivia com o dedo luxado porque eram aquelas máquinas antigas, você tinha que ter a maior força para apertar. Mas aí já é outra fase. Então eu saí do Sion e fui para o Sagrado Coração de Jesus. E lá no Sagrado era uma escola de freiras, mas estava bem moderna, bem atualizada. Então, por exemplo, já tive aulas extras que acho que estavam na onda. Então eu tinha sapateado, natação, flauta doce. Um leque! E essas aulas todas faziam parte do currículo. Tinha natação na escola, tinha piscina. E era durante o período de aula. Então, no dia que tinha balé, tem até foto ali, a gente ia com a roupa de balé por baixo, a saia e chegava a hora do balé, como era colégio só de meninas, a gente já tirava a saia ali na sala mesmo. Botava a sapatilha no pé e ia para sala de balé. Voltava da aula, se fosse recreio ia para o recreio, se tivesse outra aula, de matemática, tal.

P/1 – Rapidinho. Voltando um pouquinho, tem alguma professora que tenha marcado a sua trajetória lá no Sion, que você lembra bem?

R – Deixa-me ver se lembro do nome dela, acho que era Marta. Tia Marta.

P/1 – De que série, você lembra?

R – Era do pré. A tia Marta que eu lembro bem. Eu lembro que ela casou e mudou no ano que a gente se formou. Ela casou e mudou. E foi triste, porque eu falei: “Nossa, nunca mais vou ver a tia Marta”. Porque ela casou e ia morar no interior. Eu tenho até uma foto com ela. Ela que eu tenho mais recordação.

P/1 – E no Sion ainda, vocês liam alguma coisa, tinha alguns livrinhos, alguma coisa assim? Vocês ouviam histórias? Tem alguma história que tenha marcado?

R – Não lembro. De história de livrinho assim não lembro.

P/1 – Aí você muda para o Sagrado em que momento?

R – Na realidade, eu fiz o pré ao mesmo tempo. Eu entrei no Sion com três anos. Minha mãe já estava pensando. Como a gente mudou de casa, eu estava morando lá nas Perdizes. Então ficava longe o Sion! Aí minha mãe ficou sabendo do Sagrado e eu fui fazer teste. Só que no Sagrado já tinha aula de inglês e a freira falou que não podia me aceitar já no pré, porque no Sagrado as crianças tinham inglês desde pequenininhos. Aí minha mãe falou: “Ah, mas a Cristina é muito esperta, ela é muito inteligente!” aquela coisa de mãe, “Tenho certeza que ela vai dar conta”. Aí a freira falou: “Bom, então vamos fazer um teste. Tem como ela frequentar seis meses da escola para aí a gente decidir?”. Porque minha mãe estava vendo vaga para o outro ano. Minha mãe falou: “Lógico!”. Então, que eu fiz? Eu fiz dois prés. Eu fazia o pré de manhã no Sion, minha mãe vinha me buscar, ela me dava comida no carro, trocava de uniforme e eu fazia o pré à tarde. Chegou ao final do ano eu era a melhor aluna de inglês. A freira falou: “A vaga dela já tá garantida”. E foi assim a passagem.

P/1 – E como é que foi mudar de casa, mudar de escola?

R – Bom, para uma aquariana com ascendente em aquário, amei! (risos) Adoro! Eu lembro que foi super gostoso. Conhecer gente nova no prédio. Porque também morava em prédio e mudei para outro prédio. O bairro todo novo, escola nova. Eu não fiquei com nenhum sentimento de perda, só de ganho. Eu achei o máximo! Adorei!

P/1 – E o que mudou do Sion para o Sagrado? Que diferenças?

R – O Sagrado era só de menina. E eu acho que eu só não senti tanto a saída do Sion porque eu tinha um melhor amigo, que era o Hiota. Ele era filho de um dos diretores da Honda, do Japão, e ele aprendeu a falar português comigo. (risos). Porque quando ele entrou no Sion, não falava uma palavra de português. E eu lembro que ensinei ele falar Cristina e piscina. (risos) Foram as duas palavras que ele aprendeu em português porque rimavam. E aí o Hiota estava indo embora para o Japão nesse ano, então eu não senti tanto a falta do Hiota, mas senti falta de brincadeira com menino, porque eu gostava muito de correr. Então no começo eu achava estranho só menina, mas depois fui me acostumando.

P/1 – E os espaços lá no Sagrado? Era uma escola grande também?

R – Enorme. Mas tinha menos verde, menos terra. Então era mais pátio com aquele ladrilho vermelhinho em caquinho, que dá até para vocês verem nas fotos. Tinham quadras poliesportivas, escadão para o pessoal assistir os jogos. A gente brincava muito no escadão. E o que eu me lembro de lá é que, colégio de freira é aquela coisa, você pode passar a língua no chão, de tão limpo. (risos) Era um brilho, tudo encerado! Ainda mais quando tinha balé, de meia calça, a gente descia as escadas de bumbum: Shiiiiii! No corredor você ia correndo e shiiiia, deslizava. Uma delícia! (risos)

P/1 – E lá quais eram os materiais?

R – O Sagrado também tinha um pouco de Montessori, mas aí já entrava mais o tradicional, de livro mesmo. Aí eu lembro um livro que me marcou muito. Acho que estava na terceira série. Era um livro de linguagem. Então só tinham textos que é para você interpretar e textos para você ou continuar o final ou escrever uma história. Então eu amava esse livro e acho que nesse ano que eu fiquei apaixonada por escrever. Eu percebi que eu podia ser escritora! Inventar história, inventar personagem. Então era um livro que você completava junto, mas não só as respostas. Eu lembro que isso me marcou muito. Porque os outros livros estavam tudo lá e você tinha que escrever a resposta certa. Esse não! Esse tinha espaços em branco, para você desenhar o que quisesse. Linhas em branco, para você escrever a história que quisesse. Então foi um livro que me marcou bastante! Um livro didático. Muito legal.

P/1 – E lá, você se lembra de, além desse livro, alguma outra história que vocês liam?

R – Olha, como era um colégio católico e a gente tinha muita aula de religião, a gente estudou as parábolas da Bíblia inteiras. E eu enxergava aquilo não como uma doutrinação, eram histórias mesmo! Então eu me lembro de todas as parábolas. Então: “Cristo estava andando não sei aonde. Aí faltou o vinho lá para o casamento e Ele transformou a água em vinho”. Isso para mim era como se fosse os contos de Grimm! (risos) Então foi um jeito legal de conhecer a Bíblia. Então acho que a Bíblia foi um livro que me marcou. Era um livro de história.

P/1 – E como que era o tempo nessa escola? Era só de manhã?

R – Um tempo eu estudava à tarde, mas era sempre meio período. Aí no outro tempo de manhã. Mas isso não impedia de eu ficar o dia inteiro na escola. Porque acabava que a gente fazia grupo de estudo ou a gente ficava para treinar voleibol, a gente ficava para o sapateado, a gente ficava para o teatro. E acabava que morava na escola. Ainda mais que estava pertinho de onde eu morava e eu já nem dependia da minha mãe, eu falava: “Mãe, eu estou indo para escola”. Fazer trabalho. Então a gente fazia os trabalhos na biblioteca. As reuniões de grupo para qualquer coisa. Seminário que tinha que preparar, a gente ia para biblioteca. E todo mundo morava ali perto, então era muito gostoso.

P/1 – E dessas atividades, teatro, sapateado, qual você gostava mais?

R – Nossa. Tinha o tal do American Show. Porque como lá tinha inglês desde pequenininho. No American Show quem tirasse as melhores notas e tivesse a melhor pronúncia ganhava os papéis principais nas peças. Então era o esforço, todo mundo queria ir bem no inglês para poder se dar bem também no teatro. E o pessoal lá, que cuidava do teatro, era muito cuidadoso. Então as produções eram produções mesmo! Tinha figurino, tinha cenário. Era uma coisa semi-profissional, eu diria. (risos) Então era um desafio. Eu amava fazer o teatro em inglês. E teve até uma ocasião, que como eu tinha boa pronúncia, quem dava aula de inglês era uma freira chamada irmã Eugênia. Até hoje ela mora nos Estados Unidos e a gente ainda tem contato. Quando ela vem para São Paulo, ela chama a gente. As alunas, ex-alunas dela e a gente se encontra. Eu a chamava de sister Eugênia. Aí a sister Eugênia precisava sair de São Paulo, ela tinha algum compromisso em Bauru, lá das freiras, e ela precisava aplicar a prova na turma. Um dia, domingo à noite, tocou o telefone na minha casa, para falar com a minha mãe. Era a sister Eugênia, pedindo se eu poderia substituí-la, eu estava no oitavo ano, para aplicar as provas de inglês porque ela não poderia estar na semana. Mas ela falou: “Mas eu vou querer que a Cristina venha me substituir, mas que ela venha de roupa. Eu quero que ela venha de meia-calça fina, que ela coloque um sapato com saltinho, porque ela precisa impor o respeito para as outras. Que são colegas dela”. Eu apliquei prova do quinto ano até o sétimo ano, não apliquei na minha própria série porque não ia dar certo. Então isso foi muito legal! Eu fiquei super orgulhosa de substituir! E eu não podia contar para ninguém. Então foi um segredo, minha mãe ficou: “Você aceita? Você não aceita?”. E foi um super desafio. Então naquela semana eu fui para escola e não assisti aula nenhuma. Mas eu era ótima! Eu sentava no fundo da sala, fazia bagunça e ainda tirava nota. Terceiro bimestre já estava tudo fechado. E eram as provas do último bimestre. Então a semana inteira eu não assisti aula nenhuma. Eu apliquei todas as provas da sister Eugênia e eu ia com uma roupa toda diferente. E as minhas amigas: “Nossa!”. Todo mundo me respeitou. Foi super legal! (risos)

P/1 – Você falou do inglês nessa escola, como que era? Quantas vezes por semana tinha inglês? Que atividades eram dadas ou feitas em inglês?

R – O inglês era duas vezes por semana e tinha esse tal do American Show. Mas na grade curricular eram só essas duas vezes por semana. Eu lembro que a professora tinha gravadorzinho, os livros eram do CCAA. Então eu lembro que ela colocava frase no gravador, aí ela voltava e a gente tinha que repetir: “Good morning, John. Good morning, John.”, “Good morning, Jane. Good morning, Jane.”, “What’s your name? What’s your name?”. Então era muito nesse repeteco, mas eu adorava. Eu lembro que a professora, a sister Eugênia, também punha muita letra dos Beatles para gente cantar e acompanhar. Aí estudava um pouco de gramática nas letras. E o American Show. O American Show a gente fez peças tipo a Cinderela. Agora eu tô lembrando só da Cinderela. Mas, cantávamos músicas também, porque tinha um coralzinho. A gente cantava músicas em inglês. E era isso em inglês, mas ocupava um espaço bem grandão. No auditório do colégio tinha cinema. Eu lembro que O campeão eu assisti no colégio e vários filmes em inglês. Hair, a gente assistiu no colégio. As freiras eram “prafrentex”.

P/1 – E como era a relação entre os pais?

R – Jesus Cristo Superstar também.

P/1 – E como era a relação entre os pais e as professoras na escola?

R – Era muito legal! Tinha Associação de Pais e Mestres. E nessa Associação, além de todo trabalho social que as freiras faziam... Eu lembro que o leite era em saquinho, então a gente reunia os saquinhos de leite para fazer lençóis para mandar para o hospital de queimados. Porque aquele plástico do leite não grudava na pele de quem estava queimado. Então eu me lembro dessa promoção. Promoção. Tipo essas campanhas que tinham. A outra, que é péssima, que hoje não tem nada a ver, mas era o selinho do cigarro, do maço de cigarro. Você juntava não sei quantos mil selinhos e conseguia trocar por cadeiras de rodas. Então a gente juntava selinho para caramba. Então qualquer fumante na rua, falava: “Dá o selinho do seu cigarro? Dá o selinho? Dá o selinho?”. E a gente trocava. E também toda a preparação para festa junina. As barracas da festa junina, os pais geralmente que comandavam. Minha mãe sempre foi da barraca da pizza. (risos) Então era muito legal ver que a minha mãe ia à escola para as reuniões da festa junina, que minha mãe ia à escola para ajudar a decorar barraca da pizza e que no dia da festa junina minha mãe estava lá na barraca vendendo pizza! Isso era muito gostoso.

P/1 – Certo. E como era o controle de notas e faltas?

R – Não me lembro de ter caderneta de marcar presenças, essas coisas. Acho que era chamada mesmo. Era sempre chamada pelo nome, nunca pelo número. Isso era muito legal porque você acabava sabendo o nome de cor de todo mundo. Nome e sobrenome. Então não era só: “Renata”. Era: “Renata de Oliveira Pereira”, “Sônia Maria Pinha de Oliveira”, “Cristina Navarenho Santos”. Até hoje você encontra as pessoas e fala: “Favale! É você?”. Então você sabe nome e sobrenome. Isso era bem legal. E de notas eu lembro que eram transformadas em conceitos. Então tinha O para ótimo, MB para muito bom, B para bom, R para regular. E R era a pior nota, era a única nota vermelha. Acho que no quinto ano foi meu primeiro R, e era de Ciências.

P/1 – E como é que foi?

R – Ah, foi uma catástrofe. Chorei muito! Nunca imaginei que isso fosse acontecer comigo. Porque eu levava tudo tão “na flauta” e dava tão certo. A primeira vez que deu errado eu fiquei preocupada. (risos) Tive que sentar, estudar. Porque eu nunca fui muito de estudar. Eu só fazia lição e já estava bem. Mas aí eu precisei aprender a sentar, estudar, ler, reler, anotar dúvidas, esses “esqueminhas”.

P/1 – E que matérias você gostava mais nessa época?

R – Português, História, Geografia. Agora, tudo que entrava um pouquinho de matemática... Matemática sempre foi o meu fraco, foi mais difícil.

P/1 – E que professor que marcou assim essa trajetória no Sagrado.

P/1 – Tinha uma professora de História maravilhosa. Ela chamava dona Dulce. Ela falava assim para gente: “Vocês pensam que História é só passado, é só o que aconteceu lá em Roma, não sei quando. História é o tempo todo, daqui a um segundo é História. Ontem é História. Então História está acontecendo agora. Desde que o mundo é mundo ela vem acontecendo e está acontecendo agora”. A aula dela sempre era dupla. Eu lembro que uma aula ela chegou e falou: “Então vou ditar a prova.” “Ditar a prova?” “É, vou ditar a prova. Então peguem aí o caderno de vocês, comecem a anotar, prova de História. Eu vou dizendo as frases e vocês colocam três pontinhos porque vocês terão que completar a frase”. E caía Idade Média, Idade Moderna e atualidades. Então ela colocava: “No século XIX a Lei abolicionista, não sei o quê, a escravidão, o final da escravidão no Brasil foi...”. Três pontinhos. Daí: “Os colonizadores do Brasil foram...”. Três pontinhos. E ela ditou acho que umas 230 frases. Ela tinha aula “dobradinha”, eu lembro que a primeira aula inteira a gente só ela ditando e a gente escrevendo. Ela ditando, a gente escrevendo. E era tipo assim: “Semana passada o Presidente Figueiredo recebeu...”. Três pontinhos.

P/1 – Nossa!

R – E aí ela falou: “Pronto! A prova é essa. Agora vocês me dão licença que eu preciso ir ao toalete”. Aí ela saiu da sala. No começo todo mundo quieto. Aí a mulher não voltava e a gente: “Você sabe a primeira?” “Não” “A vigésima segunda, não sei o quê, nãnãnã”. E a gente compartilhando conhecimento! (risos) Colando adoidado! O pessoal: ”nãnãnã”. Aí, de repente, ela entrava na sala. Todo mundo voltava, falava: “Putz, agora vai tirar todo mundo zero” “Muito bem. Compartilharam conhecimento? Porque se uma pessoa dessa sala souber a resposta eu já tô feliz”. Então achei o máximo o jeito dela! E a gente não esquecia mesmo! A gente sabia a matéria na ponta da língua, porque se uma soubesse passava para todas outras. Todo mundo sabia! (risos) Isso que é multiplicar conhecimento. Então era fantástico. Ela chamava dona Dulce. Estava sempre de óculos escuros, era uma figura. E as aulas delas eram uma viagem. Só faltava carimbar o passaporte mesmo. Você viajava pelo mundo, pelas épocas, dava até para sentir o cheiro das situações que ela descrevia para gente, fantástico!

P/1 – E tinha passeios? Vocês saíam aulas fora da sala de aula, da escola, vocês viajavam?

R – Saíamos bastante. Desde para o centro de São Paulo, Pátio do Colégio, até Santa Catarina, Minas Gerais, para fazer estudos de Geografia, de História mesmo. Museus. O que mais? Nossa, o colégio era muito bom. E sempre nessas atividades sociais era uma competição. Então quem conseguisse mais cadeira de roda ou quem conseguisse mais lata de leite, não sei o quê, a turma sempre ganhava um prêmio e o prêmio era uma viagem. E a minha turma era expert em “rapar” todos os prêmios. (risos) Porque a gente saía batendo de porta em porta mesmo para conseguir. Não era miss caipirinha, mas tinha que vender convite? Então a sala que vendesse mais convites ganhava uma viagem. Então eu fui com a escola, eu lembro que eu fui para Blumenau, eu fui para Poços de Caldas. Várias viagens que a gente ganhava, a turma toda, e viajava no final de semana. E teve também uma vez: a dormida na escola. Porque isso foi só para as crianças. Porque não era uma coisa instituída que nem é hoje, que em muitas escolas acontece, o acantonamento. Foi numa reunião de Pais e Mestres que as freiras convidaram as crianças dos pais que faziam parte da equipe de Pais e Mestres para dormirem uma noite no colégio. E a gente alucinou! Foi muito legal! A gente dormiu na sala de aula e levamos colchão, colchonete, essas coisas. E a gente dormiu embaixo da lousa! (risos)

P/1 – Que legal.

R – Foi muito legal. E à noite, de lanterna, andando nos corredores da escola e uma freirinha sempre com a gente. Então foi muito legal!

P/2 – Kika, tinham algumas brincadeiras que vocês faziam quando dormiam na escola?

R – De zoar, assim?

P/1 – É.

R – Não.

P/1 – Alguma atividade?

R – Não. Acho que contação de história de terror, essas coisas. Porque à noite no escuro, no colégio vazio, a loira do banheiro sempre aparecia. (risos) Então acho era mais de contar história assim, mas não me lembro de uma atividade diferente disso não.

P/1 – E aí, depois você sai dessa escola? Você ficou lá até que série?

R – Eu fiquei lá até o primeiro ano de magistério. Porque o meu pai foi transferido para Campinas e a família toda se mudou para lá. Então eu fiz segundo e terceiro magistério em Campinas, no colégio Maria Imaculada. E eu só voltei para São Paulo quando entrei na faculdade Aí eu voltei a fazer o quarto magistério aqui em São Paulo, junto com o primeiro ano de Psicologia.

P/1 – Porque dessa escolha pelo magistério? Seus pais te incentivaram nisso? Tinha alguma expectativa? Como é que foi?

R – Não. Eu não sei. Eu acho que porque era muito forte lá no Sagrado o magistério... Ah não! É lógico que eu sei. As minhas primas todas eram professoras. (risos) Inclusive, uma delas era professora lá no Sagrado. E sempre me incentivaram: “Ah, faz magistério, porque mesmo se você não quiser, um ano a mais, é tão legal e tal”. Apesar de que tinha a turma do contra, que falava que era um curso do “espera marido”. (risos) E aí, resolvi fazer magistério mais por isso: porque é um ano a mais, você tem um diploma a mais. Como eu disse, eu não era muito de brincar de escolinha, mas aí fui pegando o gosto e acho que quando eu comecei a fazer estágio na área da educação mesmo que eu me apaixonei. Aí virei professora mesmo. Mesmo fazendo Psicologia, sou educadora.

P/1 – E como é que eram as matérias no magistério? Você se lembra de linhas pedagógicas que você entrou em contato nessa época?

R – As matérias eu lembro que tinha didática, então tinha desenvolvimento, Introdução à Literatura Infantil. Essas coisas, essas matérias me marcaram, eram bem gostosas. Os livros eu os tenho guardados até hoje, porque foram de referência e como eu fui me apaixonando eu não fui mais me desfazendo deles. Que eu sempre passava para frente quando não usava mais. Mas esses do magistério, fui guardando. Mas de linhas assim, ainda não tinha nada. Foi mais para frente só que eu fui conhecer Emília Ferreiro, essas coisas que estavam borbulhando na época.

P/1 – E como é que foi essa ida para Campinas? Foi tranquilo? Mudar a escola no magistério, como é que foi?

R – Foi muito difícil, porque deixar uma escola para trás, todas as minhas amigas, meu namorado que ficou em São Paulo. Mas como eu sou muito social, eu fiz amizade fácil em Campinas. Logo terminei com esse namorado. Logo que eu voltei para São Paulo terminei. Mas para você ver como é que são as coisas. Como é que foi a pergunta mesmo? Eu me perdi agora. (risos)

P/1 – Como foi essa ida para Campinas?

R – Então, na realidade foi uma fase mesmo. Eu não me encaixava muito. O Campineiro é muito fechado, muito tradicional. Mais, ao mesmo tempo, eu fazia o maior sucesso. Primeiro de eu namorar um cara de São Paulo. E todo mundo queria saber como é que era São Paulo e tal. Porque Campinas, apesar de ser uma cidade grande e estar pertinho de São Paulo, é bem provinciana. Então eu lembro que o que me chamou muita atenção quando eu entrei foi: “Qual é o seu nome?”. Assim, no corredor alguém: “Qual é o seu nome?” “Cristina.” “Não. De que família você é?”. Aí eu falei: “Ah, eu sou da minha família. Você é da sua? Eu não estou entendendo.” “Não, eu quero saber de que família você é, se você é de alguma família de renome”. Porque as famílias lá têm brasão, aquelas coisas do tempo do café. (risos)

P/1 – E nesse tempo de juventude e do magistério, primeiro aqui depois em Campinas, como é que você fazia para se divertir? Que lugares você frequentava?

R – Show. (risos) Eu adorava show. Eu lembro do show do Paralamas do Sucesso. Nossa! Que foi no Guarani, foi fantástico. Eu juntei um monte de amiga na minha casa e minha mãe deu uma carona para gente. Porque a gente morava pertinho do Guarani. Aliás, eu tinha 16 anos na época. E apesar de não poder, eu já dirigia. Eu tinha uma Brasília (risos) com ar condicionado, porque ela era toda furada embaixo do tapete. Então quando estava calor a gente tirava o tapetinho. Entrava um ventinho. (risos) Chamava Jurema esse meu carro. E eu falei: “Mãe, leva a gente até o Guarani depois você volta”. E era um carro que meu pai comprou para eu usar mesmo. Raramente minha mãe me deixava ir dirigindo até a escola, mas ali no bairro eu andava. Eu sei que hoje isso não é legal, ninguém faria isso hoje, mas na época era. Se eu tinha responsabilidade, minha mãe confiava em mim, tranqüilo. Tanto que eu nunca bati o carro até hoje. E lembro que a gente estava indo para o show do Paralamas e o carro quebrou. Foi muito engraçado porque a gente teve que descer e empurrar o carro. A gente super emocionada. Ver o Paralamas do Sucesso. Naquele ano eu comecei a usar óculos e a música que estava fazendo sucesso era Eu uso óculos. Então marcou para caramba! Eu de óculos, empurrando o carro lá, a Brasília branca Jurema, “Juju”, com minhas amigas, para conseguir chegar ao show do Paralamas. Foi demais! (risos)

P/1 – E nessa época que você morava em Campinas você vinha para cá de fim de semana para encontrar seu namorado, suas amigas daqui? Você saiu?

R – Eu só vinha para cá quando tinha festa de família e eu passava para ver minhas amigas. Aliás, no vestibular, quando eu vim fazer prova, eu ficava nas minhas casas de apoio, casas das minhas amigas. Mas geralmente meu namorado que ia para lá. Tinha muito bailinho, festinha de 15 anos. A gente ia muito ao clube de campo. Então passava o final de semana assim: piscina, churrasco com moçadinha. Era bem gostoso. Tinha já aquele burburinho no Camburi, os barzinhos. Então a gente já começava a ir para os barzinhos. Namorado à tira colo, aquela coisa. (risos) Carro de São Paulo parava!

P/1 – E como é que foi? Você resolveu fazer Psicologia por quê?

R – Então, eu acho que quando eu fui estudar educação, e tinha a psicologia da educação, eu fui me apaixonando, fui me interessando mais. E também o desenvolvimento, principalmente o desenvolvimento emocional. Eu fui me interessando mais por essa área da Psicologia. Mas eu lembro que na época, como eu sou muito comunicativa e gosto muito de artes também, desenvolvi bastante a criatividade. Eu fiquei muito em dúvida entre fazer Publicidade e Propaganda ou Psicologia. Então o que eu fiz? Eu vim para São Paulo com duas amigas e a gente veio assistir umas aulas de ouvinte na FAAP e na PUC. Então na FAAP eu assisti a umas aulas. E nem existia esse programa. Eu falei para as minhas amigas: “A gente se arruma bem, faz uma cara de universitaria e passa, mas ninguém vai barrar a gente. Vamos entrando”. A gente entrava, sentava, o pessoal falava: “O que vocês estão fazendo aqui?” “Só vou assistir a aula de ouvinte”. Eu nem pedia permissão para o professor. Tinha professor que percebia que não era da turma e falava: “Vocês são novas?” “Não. A gente é de Campinas. Viemos só para conhecer a universidade. Podemos assistir a essa aula de ouvinte?” “Lógico. Fiquem à vontade”. E aí a gente foi experienciando para sentir mesmo o que era uma faculdade. Eu fiquei bem balançada entre as duas, mais, por fim, acabei decidindo a Psicologia na PUC mesmo.

P/1 – E como é que foi a época do vestibular?

R – E era na PUC, porque a minha mãe falou: “Presta USP”. Prestei. “Presta...” “Eu presto mãe. Você quer que eu preste, eu presto. Mas eu não vou. Eu vou estudar na PUC”.

P/1- Por que isso da PUC?

R – Eu não sei se é o lugar, se é a energia. Eu sou apaixonada pela PUC até hoje. Ali na Monte Alegre, aquele Pátio da Cruz, aqueles corredores, aquela casa antiga. Não sei. Porque eu morava ali no bairro e era a faculdade mais conhecida. Fiz catequese ali na capela da PUC. Então era um lugar que eu sempre falava: “Quero estudar aqui. Quero fazer faculdade aqui”. Eu via os universitários passando, pegando ônibus cheios de livros tal. Achava lindo. Queria estudar na PUC. (risos)

P/1 – E como é que foi esse período de faculdade?

R – Ah, foi o máximo. Eu não sei se qualquer faculdade, porque hoje em dia tá complicado. Tem qualquer faculdade mesmo. Mas eu sempre digo que a PUC foi uma faculdade para vida, porque ela é um mini-mundo. E como eu vim toda protegidinha de escola particular, colégio só de menina, entrar na PUC foi me apresentar para o mundo. Tudo que ele tem de bom e tudo que ele tem de ruim. E a mãe interna, o pai interno e toda a minha educação, que deram esse limite. Porque na PUC era assim: “Pessoal, hoje não vai ter aula, vamos puxar fumo ali?”. Então eu tive acesso às drogas. Imagina, os hormônios a mil! Passava o dia todo na faculdade porque eu fazia tarde e noite. Então fazia magistério de manhã e fazia PUC tarde e noite. E depois os outros anos integrais da PUC eu sempre fiz tarde e noite, porque de manhã a gente fazia o estágio em hospital psiquiátrico, em escola. Mas sempre foi assim. Lá eu me sentia livre para fazer qualquer escolha: “O que eu quero ser? Eu quero ser bicho grilo? Eu quero me drogar? Eu quero me envolver com qualquer cara?”. Eu tive essa liberdade de lá poder escolher ser quem eu quisesse ser. E a gente estava saindo de uma ditadura. A PUC tinha todo aquele histórico do estudante da PUC estar sempre mobilizado. Então tinha os DCAs... Não. Como é que chamava? Esqueci o nome. As organizações estudantis todas. Então tinha a da Psicologia. Qualquer horariozinho que a gente tivesse livre, DA. Acho que era DA que chamava. A gente ia pro DA fazer reunião e qualquer coisa que quisesse mudar. Tinha aquela força política, aquela coisa da liberdade de ser quem você quiser ser, de poder falar o que você tem para falar. Eu lembro muito desses discursos. Até eu lembro de um amigo meu que falava: “Liberdade. Liberdade é você poder tranquilamente tirar uma caca do nariz, fazer a sua bolinha e jogá-la longe! Quem tá olhando que se dane!”. (risos) Eu lembro que fiquei impactada com essa frase. Uma frase horrorosa, mas é isso mesmo. De você poder ser humano. Ser quem você é. Falar a que veio sem pressão do outro: “Não. Todo mundo tem que ser assim. Tem que fazer assim”. A PUC, acho que fez isso na minha cabeça.

P/2 – Você falou que estava fazendo os estágios de manhã. Quais estágios que te chamaram mais atenção.

R – Olha, o que me agarrou assim pelo pé foi na antiga Febem. Eu fiz um estágio lá. As meninas grávidas que ficavam internadas na Febem tinham os bebês e os bebês ficavam lá na creche da Febem. E tinha uma época que a mãe podia ainda vir para amamentar. Mas depois decidiam se o bebê ia para adoção, se a família vinha buscar, o que ia acontecer. Porque, às vezes, a menina não tinha nem o apoio da família. Eu lembro que me marcou muito esse estágio com os bebês lá na creche da Febem. Foi muito legal. Eu lembro que o que mais me marcou foi um bebê que ninguém sabia o que a criança tinha. A criança tinha oito meses, ela não segurava a cabecinha, ela não sentava. Você a colocava sentada a cabeça ia parar no meio das pernas. Você colocava o neném no carrinho virado para a parede ele ficava quieto. Você virava ele para as outras crianças, ele chorava. Você virava para parede ele ficava quieto. O que é isso? E quem matou a charada, porque eu levei isso para faculdade, foi um professor meu, de psiquiatria, o doutor _______ falou: “Esse menino não tem nada. Isso é o mal do berço.” “Mal do berço?” “É. Tenho certeza que essa criança que tá aqui na Febem hoje ficou muito tempo jogada no berço. Esses oito meses jogada no berço e esse menino nem sabe que tem pé, nem sabe que tem mão”. Eu falei: “Mas não é possível! Será que não tem nenhum problema neurológico?”. Aí a gente mandou fazer exame neurológico. Nada. Então o doutor ______ falou: “Olha, você vai fazer o seguinte trabalho: você pega a mãozinha do bebê, o dedo tem três ossinhos? Você vai articular esse primeiro 20 vezes, esse segundo 20 vezes, esse terceiro 20 vezes. Perna, bracinho, tudo”. Comecei a fazer isso no menino. Eu ia lá direto no menino. Aí fiz um curso também de shantala. Fazia também a shantala. Porque eu falei: “Então vamos”. Nossa. Eu acho que durou seis meses o estágio. O menino já estava de cabecinha em pé, olhando para todo mundo, rindo, não tinha nada. Era falta de estímulo mesmo. Como ele ficava largado no berço sem estímulo nenhum, ele nem tinha descoberto a própria mão. E tinha essa fobia social, porque ele não estava acostumado com barulho, com criança, com luz. Porque a mãe que era uma adolescente drogada, largava a criança trancada no berço e saía o dia inteiro. Então isso foi me encantando.

P/1 – E as disciplinas na PUC que você gostava mais, que te marcaram mais?

R – A que me marcou mais foi Introdução ao Pensamento Oriental Através do Desenho. (risos) Só o nome você já baba, não é? A professora Cissa, que inclusive me entregou o canudo. Ela falava que através do desenho a gente vai conhecer o mundo e, para desenhar você tem que aprender a observar. Por isso que é Introdução ao Pensamento Oriental, porque é isso que os orientais melhor fazem, observam. Para observar você tem que ter tempo e paciência. Então ela falava: “No ônibus...”, porque eu tomava três conduções o dia todo, “No ônibus, vai olhando tudo. Então vai olhando as linhas dos prédios no horizonte. Vai olhando as linhas do rosto da pessoa que está sentada do seu lado”. Nossa! Um curso fantástico! Eu lembro que no fim estava todo mundo produzindo, desenhando. Eu lembro que eu desenhei minha jaqueta jeans. Joguei minha jaqueta jeans no chão. E daí a gente estudava tudo do desenvolvimento, tudo isso misturado. Do desenvolvimento emocional, da expressão do desenho. E foi uma matéria que me marcou muito. Amei.

P/1 – E o início da sua carreira profissional? Como que foi o seu primeiro trabalho?

R – Meu primeiro trabalho foi assim: logo que me formei, fui para Europa. Aí eu fiquei três meses na Espanha, porque a minha família por parte de minha mãe é de lá. Eu fiquei em Madri só conhecendo gente, passeando pelos museus, conhecendo meus primos. Só que eu estava lá e eu tive um problema de pulmão. Eu tive uns nódulos nos pulmões que ninguém sabe explicar direito até hoje o que eram. Só sei que lá, desmaiei no metrô. Tive um febrão. Então eu voltei. Acabei voltando antes do previsto. Eu fiquei 50 dias internada na Beneficência Portuguesa. O médico falou que eu andei no fio da navalha. (risos) Ele não sabia explicar o que eu tinha. Tentou um antibiótico, não funcionou. Tentou o segundo antibiótico. Não funcionou. No terceiro antibiótico, ele chamou os meus pais e falou: “É a última bala no revólver. Se não der certo, a gente perde a paciente”. Graças a Deus deu certo. (risos) Eles não sabem explicar até hoje o que eu tive, por que eu tive, como eu entrei nessa, como meu médico diz, e muito menos como eu saí. (risos) Então, quando eu saí, eu falei: “Bom, o que eu vou fazer agora?”. Porque a minha idéia, eu estava indo para Europa, além de passear e tudo, eu ia tentar uma bolsa. Acho que era em Sevilha, a universidade. Eu ia trabalhar com deficiência mental, porque eu estava interessada nessa área. Aí, como eu fiquei doente, voltei e tudo, eu falei: “Bom, agora eu preciso recomeçar devagarzinho”. A minha mãe falou: “Por que você não volta para o magistério? Por que você não vê uma escola aqui perto“ “Ah, tá bom”. Aí fiquei sabendo do Ofélia Fonseca, porque o meu pai estudou lá. Eu fui lá ver e a dona da pré-escola era a mesma que tinha, antigamente, uma pré-escola na frente do Sagrado Coração de Jesus, que uma das minhas primas que era professora deu aula. Então foi desse jeito que eu cheguei no Ofélia Fonseca. Comecei a trabalhar lá meio período, com os pequenininhos. Então precisava de muita psicologia nesse primeiro ano mesmo. Para a mãe desgrudar do filho, o filho desgrudar da mãe, a mãe ter segurança de deixar a criança na escola, criança ficar feliz na escola sem chorar, socializar. O controle dos esfíncteres, porque a gente tirava as fraldinhas porque eles entravam de fraldinha ainda. Depois tirava a chupeta. Então todo o estímulo motor, da fala, tudo isso eu estava super por dentro porque na Psicologia eu estudei bastante também. Todo o tempo que eu trabalhei no Ofélia Fonseca eu trabalhei no infantil, que era essa fase mesmo. Depois que eu melhorei bem de saúde, eu montei consultório. Eu fui fazer especialização no (SEDS?) de Psicodinâmica do pré-adolescente e adolescente. Era um curso de três anos, eu fiz um ano e meio só. Acabei abandonando. Montei consultório, fiquei dois anos com consultório, acabei abandonando. Porque eu fui cada vez mais me envolvendo com a área de educação. E eu era muito mocinha para consultório, não conseguia muito dividir. Eu levava todos os problemas do consultório para minha casa. Ficava mal e nem cinco dias de psicanálise davam conta. (risos) Eu falava: “Eu estou muito imatura mesmo. Estou pagando para trabalhar.” Para começar, ninguém te conhece. Olhavam para minha cara e falavam: “O quê? Você é a psicóloga? Não. Eu quero alguém de cabelo branco. Desculpa menina, mas eu não posso te contar metade dos meus problemas”. E quando contava, eu ficava mesmo. Então não teve jeito. Aí acabei fechando o consultório e fui procurar outra escola para trabalhar período integral. Porque eu falei: “Ah, então a psicologia eu vou usar mais tarde ou vou continuar usando na escola como eu estou usando”. Então fiquei só dois anos com consultório e aí que eu encontrei a PlayPen. Foi num anúncio de jornal. Fui lá, fiz a entrevista. No começo, eles disseram que não precisavam, qualquer coisa entravam em contato. Na semana seguinte, já me ligaram. Comecei e fiquei. Fiquei bons 15 anos na PlayPen.

P/1 – E como é que foi? Você chegou na PlayPen, quem que te entrevistou? Com quem você falou?

R – Na época a coordenadora era a Maria Laura. Vocês já conversaram com ela? A Maria Laura que me entrevistou e a conversa foi super ótima. Ela adorou e já me contratou. Ali na entrevista já falou: “Puxa, que bom! Então é você mesmo que a gente está procurando”. E deu super certo. Como eu tinha só o magistério eles acharam bom eu fazer um curso de alfabetização. Na época estava o boom da Emília Ferreiro e a Escola da Vila tinha acabado de montar um curso de professores alfabetizadores. Eu fui fazer o curso. Foi aí que eu me tornei professora alfabetizadora. E aí eu fiquei nesses 15 anos transitando entre o Pre School Five, onde começa cultura brasileira e começa a entrar um pouquinho português e o primeiro ano e segundo ano, que é o antigo pré e primeira série, que era o Alfa. Eu entrei no Alfa como professora de Alfa. Ainda fiquei seis meses, porque como eu entrei em agosto, ainda fiquei seis meses de auxiliar. Então eu conheci toda a dinâmica da escola. Eu era tipo Bombril, cobria onde precisasse. Eu lembro que nessa época também estava o boom das aulas de computação. Então tinha lá o laboratório de computadores, mas ainda o número não era suficiente para sala toda. Então enquanto um grupo ficava na aula de computação o outro grupo ficava comigo. Eu tinha um pouco de liberdade do que fazer com essa turminha, que é tudo que aquariano gosta. (risos) Eu dava aula de desenho, eu contava história ou a gente fazia mil coisas.

P/1 – E qual foi a sua primeira impressão quando você chegou à PlayPen para fazer a entrevista. Quando você conheceu a escola, qual foi a sua primeira impressão?

R – O que me encantou foi uma jabuticabeira que está lá até hoje. Era tipo uma pracinha. Então tinha essa jabuticabeira no meio e as salinhas em volta. Eu acho que o que me marcou foi primeiro a jabuticabeira, tanto que eu falei: “Adorei o espaço”. A Maria Laura falou: “Mas o espaço está tão inadequado. Porque está tudo adaptado. A PlayPen cresceu então essa parte aqui era uma casa. Construímos essas duas outras salas, mas ainda não está aquelas coisas”. “Não, mas eu adorei essa jabuticabeira”. E a jabuticabeira foi palco de muitos rituais na PlayPen. Tanto que ela tá lá até hoje. Ela foi transplantada. E eu gostei das pessoas. A Maria Laura simpaticíssima. E acho que essa oportunidade de poder crescer junto, de ter carta branca, de você poder fazer a diferença pelo que você é. Eu acho que esse discurso sempre me encantou na PlayPen, que não é assim: “Eu preciso de qualquer professora”. Não era isso, não. Eu preciso de você para isso. De poder olhar em você e ver as suas qualidades. Porque cada ser humano tem qualidades únicas. A

PlayPen poder olhar o professor e valorizar a capacidade única desse professor é que faz a diferença, que faz todo mundo compartilhar conhecimento e crescer junto. “Você é boa em desenhar? Que ótimo. Então você vai desenhar.”. “Você escreve super bem? Então você vai escrever.”. “Ah, você é criativa? Então você vai dar uma idéia”. Então pegar o melhor de todo mundo e, em grupo, fazer a melhor escola.

P/1 – E você se lembra do primeiro dia de aula?

R – Lembro. Eu entrei junto com a Márcia. Aliás, antes ainda do primeiro dia de aula, a Márcia me pediu ajuda para contratar as outras professoras. Então nós juntas bolamos como é que a gente ia fazer essa seleção. (risos)

P/1 – Como é que foi essa seleção?

R – Eu filmei. (risos) Eu filmava as entrevistas com as candidatas, ou as dinâmicas, eu não lembro, mas eu lembro que eu filmava e depois a gente assistia à fita e levantava justamente essas coisas: “Olha, essa Fulana respondeu legal essa questão. Aquela teve iniciativa. Aquela deu essa idéia”. Para ver mesmo o que aparecia na inteligência de cada uma. Das habilidades de cada uma e um pouco do coração também, porque a gente escolhe também por empatia, por energia. Então foi muito gostoso fazer esse processo junto com a Márcia. Eu me senti parte mesmo de tudo aquilo, mesmo não fazendo parte da direção, da coordenação, nada. A Márcia sempre deixou o caminho muito aberto para gente discutir as situações em que ela precisaria tomar a decisão. Mas poder ajudar nisso foi muito gostoso, foi muito edificante para mim como pessoa e acho que para escola também.

P/1 – E seu primeiro dia em sala de aula, você se lembra? Aquelas crianças falando em inglês e português.

R – Então, o inglês eu já tinha dominado. Eu me senti muito à vontade, achei o máximo poder falar em inglês com aquelas crianças e elas responderem. Mas o perfil das crianças era um pouco diferente, porque eu acho que na época ainda tinha muito filho de estrangeiro. Quando a PlayPen começou ela era escola preparatória mesmo, paras escolas internacionais, porque não tinha. Então só tinha a Graded o Saint Paul, sei lá. Que o pessoal já entrava com sete anos. Então, antes disso, da pré-escola, não tinha ninguém. A Guida teve esse clique e começou a organizar. Eu lembro, por exemplo, fiz também, logo que eu saí do Ofélia Fonseca para ficar integral na PlayPen, eu fui trabalhar no Toddlers One. Porque como eu tinha experiência no infantil do Ofélia, fui trabalhar no Toddlers One. Eu me lembro de pegar bebês, eu me lembro de bebezinha inglesa. Aquele sotaquezinho dela, uma gracinha de falar: “I'm afraid of the masters. I´m very afraid of the masters”. Ai, aquilo era encantador! Foi muito gostoso poder usar o meu inglês, usar a minha psicologia para estar ali com as crianças, para lidar com os pais. Como eu estive na Espanha também, três meses, eu também tinha o espanhol. Então às vezes o pessoal que vinha para São Paulo e que falava espanhol, sempre tinha a Silmara e eu. Eram as duas que falavam espanhol fluente, que dava para se comunicar. Foi muito fácil e muito gostoso, porque para mim era um prato cheio. Uma mãe que está ansiosa com o primeiro dia, num país novo que ninguém entende a língua dela. Eu fui me especializando tanto nisso que eu alfabetizei até coreano (risos) sem falar coreano. Então chegavam lá as famílias de coreanos, que agora estão voltando, mas teve uma época que, nossa! Tinha muito coreano na sala! De você se comunicar com a família, mímica que seja, e poder acolher essa família. Poder acolher essa criança para ela ficar emocionalmente estável para poder enfrentar o desafio de aprender uma língua completamente desconhecida, que é o português e o inglês. Então não foi um susto. Foi tão natural, foi tão gostoso. Eu sempre me senti em casa na PlayPen.

P/1 – Fala mais desse contato com os pais. Como é que se dava esse contato da PlayPen com os pais dos alunos?

R – A PlayPen era uma escola pequena. Então o contato era ali no portão. Era como se abrisse mesmo o portão do quintal da sua casa. Entravam os pais com as crianças. Geralmente, as mães. Era muito gostoso, mas esse cotidiano de: “Ah, Kika, ajuda. Olha, a gente derrubou todo o iogurte que estava tomando no carro. Tá toda molhada.” “Passa para mim, pode deixar. A gente troca a roupinha.” “Desculpa, estou atrasada, o trânsito. Não sei o quê.” “Não. Não tem problema”. Então sempre foi assim: muito espontâneo, muito gostoso, nunca foi uma coisa formal. Bem isso de dividir mesmo a educação com os filhos. Eu sempre enxerguei assim e sempre acho que os pais tiveram esse acesso comigo bem tranqüilo. Até para outras coisas. A mãe começa a chorar e fala: “Estou super mal, vou me separar do meu marido, ajuda-me porque é lógico que ele tá sentindo, mas eu não contei. Como é que eu faço?”. E aí eu tinha todo o background da Psicologia para lidar com isso. Ou mesmo com morte. Eu me lembro que várias vezes aconteceu: “Olha, acabou de falecer o meu pai, eu preciso cuidar de tudo, mas você fica com a Lilian para mim na escola e cuida dela. Não contei, não sei se eu vou contar, mas segura a onda aí”. Aí como contar, como ajudar essa mãe. Quer dizer: é muito mais do que só receber a criança na escola e ensinar ela a escrever.

P/1 – No período que você entrou na PlayPen, você teve algum treinamento sobre o bilinguismo? Você foi ler sobre isso? Como é que foi?

R – Não. Não teve. Na realidade, a gente começou a se organizar para que isso existisse. Porque eu lembro que era uma preocupação da Márcia. Inclusive, a gente foi criando o primeiro congresso de educação bilíngue. Surgiu nas mãos da Márcia. E a gente trazendo essa preocupação. No começo havia mesmo uma cisão: parecia que tinha um muro que separava a pré-escola, que era bilíngue, do fundamental que ainda era português, mas tinha aula de inglês à tarde. O inglês ainda era um apêndice. Aos poucos que ela foi ficando bilíngue verdadeiramente, a ponto das crianças poderem ter Educação Física em inglês ou, sei lá, Matemática em inglês. A ponto de tanto faz que língua você fale com a criança, ela vai te responder com a mesma qualidade. Então, a gente foi construindo isso junto, estudando. Eu costumo falar que eu fiz duas faculdades: uma foi a PUC a outra foi a PlayPen. (risos) Porque foi também. Isso tudo que me cativa, de ter espaço e carta branca para buscar conhecimento, para dividir, para ir atrás, para dizer: “Não sei. Isso não existe. Vamos fazer acontecer”. Não tinha já aquela coisa quadradinha: “Olha, bilinguismo é isso. A gente espera isso de você. Então você vai à sala de aula e faz isso”. Eu peguei uma fase que ainda era muito mais de criação, que tem muito mais a ver comigo. De poder sentir o que está faltando, o que está precisando. Vai, estuda, faz congresso daqui, palestra de lá, junta isso, tarara. Fazer acontecer.

P/1 – E como é que é? Você então trabalhou no Preschool Five com essas crianças que estão começando o português. Quais são as atividades para começar a dar esse português para criança na escola, essa cultura brasileira? Vocês lêem livros?

R – Ah, brincar. Brincadeira. Jogos e brincadeiras. É parlenda, trava língua, trazer mesmo o tamborzinho. Vamos jogar peteca. Então você vai trazendo a cultura e esse brincar. Resgatando também esse brincar, o brincar da criança. As cantigas de roda, as musiquinhas lullaby. Como é que fala? As canções de ninar. O Saci-Pererê. Então daí começa a disputa do Saci-Pererê com o Halloween. (risos) Aí vêm todos os monstros da nossa terra, porque tem a mula sem cabeça, tem curupira. É uma mágica e a criança fica encantada dela poder falar. Não. De ver a professora falando português. Porque a criança, na PlayPen, está imersa no inglês, então as professoras só falam em inglês com elas. Elas até falam em português entre si, mas elas não escutam a professora falando português. Elas nem sabem que as professoras falam português. Às vezes, no corredor, dá uma escapadinha. Alguma criança escuta e fala: “Você fala português. Você fala português.” “Me? No. No. No I don´t. I can’t understand portuguese”. Então na hora que eles entram no Preschool Five e vem a cultura brasileira, eles vêm assim: “Ela fala português?”. Eles escutam português em casa, dos pais, na rua, mas é diferente. Na escola mudou completamente. Então eles falam: “Mas pode falar português?” “Pode.” “Pode cantar em português?” “Pode”. Então, é uma descoberta. Eles ficam eufóricos com o português, de poder se comunicar em português. Não que não possa, mas é uma coisa que é às claras, que a professora mesmo está pedindo isso. Anteriormente não, a professora quer que o inglês apareça, então ela só vai no inglês. Tem uma professora pedindo português: “Nossa!”. Eles amam.

P/1 – E como é que foi o processo de crescimento da escola, de sair daquela casinha e virar o prédio e ficar um tempo entre a casa? Conta para mim?

R – Olha, foi doloroso. Foi doloroso porque foi muito difícil a Guida conseguir as autorizações todas necessárias. Conseguir o prédio, o terreno. Desde a compra do terreno até tudo. E houve muita evasão, mas nunca foi pelo pedagógico, porque a gente estava bem afinadinho. Estava muito legal. Mas mesmo porque as instalações acabaram deixando a desejar. Quando a gente conseguiu tudo e precisou mudar para o outro lado da rua, numa casa adaptada que a gente cobriu uma piscina com tablado de madeira para as crianças poderem dançar na festa junina. Aí de repente tinha uma piscina no meio da casa. A gente: “Então vamos dar aula de natação”. A minha sala, por exemplo, nesse ano em que a gente estava provisório nessa casa da frente. Tinha uma lareira na minha sala, porque era uma parte da casa, então tinha lareira. As paredes eram fechadas. Essas coisas de escritório que não vão até o teto, sabe? Então quando o pessoal subia a escada para ir para outra turma eu escutava todo mundo. Professor dava aula de educação física na garagem. Então os pais que ficaram são os pais que acreditavam mesmo na PlayPen. Que compraram a briga junto com a gente. Os vizinhos não queriam a gente lá, então fomos de porta em porta pedindo assinatura. Fizemos um abaixo assinado. Tem toda uma política envolvida de: “Não. Vocês não vão conseguir tirar uma escola daqui. A gente não está falando de um barzinho que faz barulho à noite. A gente está falando de uma escola, gente. Uma escola bilíngue”. Então foram muito legais essas conquistas. Eu acho que o símbolo dessa mudança toda foi a jabuticabeira mesmo. Porque ela precisou ser transplantada, ela sofreu, ela deixou de dar frutos. Eu fiz até uma poesia para essa jabuticabeira.

P/1 – Você se lembra?

R – Ela é enorme. Eu procurei em casa e não achei, mas eu posso achar e mandar para vocês. Eu fiz uma poesia escrevendo como se eu fosse a jabuticabeira. Escutando as crianças brincando em volta, os rituais, ela dar fruta, ela é transportada, ela sofre. E agora ela está de novo lá no meio do play, com as crianças brincando de novo em volta e dando frutos de novo. Então foi uma fase difícil, mas que conseguimos.

P/1 – E como é que foi então voltar para o prédio novo?

R – É uma conquista. A gente fazia visitas na obra: “Então como é que vai ficar aqui?” “Ah, vai ser rampa. Vai ser assim”. A Guida fazia reuniões, sempre dividindo com a gente as alegrias, as angústias, as dificuldades de conquistar. Desde a grana que precisava para tocar a obra até aval da prefeitura para não sei o quê. Essas mínimas coisas. E saborear junto todas as conquistas. Poder ver como a escola ficou bonita, como a gente conseguiu encher a escola de alunos de novo. No começo quando a gente mudou para lá, nossa! Tinha um monte de sala vazia. A gente nem usava o segundo andar inteiro. Imaginem! (risos) Agora falta espaço porque não tem mais lugar. A biblioteca era enorme. Imagina: hoje não dá. Então é muito gostoso. É renascer das cinzas mesmo.

P/1 – E as mudanças?

P/2 – Eu só queria te perguntar, a PlayPen tinha um hino?

R – Tem.

P/2 – Você pode cantar para gente?

P/1 – Você se lembra?

R – Alguém já te contou isso? (risos)

P/2 – A gente ouviu dizer que você talvez soubesse cantar para gente.

R – Eu sei sim. Eu sei uma parte, mas não sei tudo. Talvez a Michele possa ajudar. É assim: (canta) “PlayPen Cidade Jardim, PlayPen Cidade Jardim. Vermelha, laranja, amarelo. Red, orange and yellow. As cores da nossa escola, as cores do nosso sol”. A escola fazia 18 anos nesse ano que foi escrito o hino, então tinha uma parte que era assim: “These year´s special, the school turns 18. We surely work as a team”. O resto eu não lembro. “Nanananana”. “For math, science and arts”. Aí terminava assim. Mas essa lacuninha que ficou no meio já tentei. Já sentei com a Michele, a gente já tentou, mas não sai. Não me lembro mais. E foi muito legal. Já cantei esse hino no microfone muitas vezes com as crianças. (risos) Mas imagina, esqueci. Ele ficou esquecido também. O dia-a-dia vai atropelando as coisas e no fim...

P/1 – E as mudanças pedagógicas que a escola sofreu nesse momento de ampliação, de voltar pro prédio, o que você sentiu? Mudou muito?

R – A Márcia criou um sistema pedagógico lá que foi onde eu cresci junto. Então eu sou filha da PUC e filha da Márcia ______ também. Na educação. Quando a gente mudou e a Márcia estava lá também, continuava tudo igual. Do jeitinho que eu ajudei a fazer crescer. Mas meu filhote teve um probleminha. Ele teve câncer e eu precisei me ausentar. Então quando eu descobri que ele estava com câncer ele estava com dois aninhos. Então eu pedi. Como eu já tinha dez anos de casa, eu me afastei por dois anos. Então nesses dois anos que eu fiquei fora foi que a Márcia saiu. Entrou a Célia e a Gabriela. Aí eu retorno depois do meu filho curado, se Deus quiser. Faz quatro anos já que ele está fora de terapia. É aí que eu retorno já com a Célia. A Márcia ainda estava fazendo a transição para Célia. Não. Mentira. Quando o João ficou doente, a Márcia já tinha feito a transição. Eu fiz a minha primeira reunião com a Célia que eu ia assumir sala. A gente fez uma primeira reunião em dezembro. Teve a festa de dezembro que a Célia foi apresentada e tudo. Eu lembro que no dia seguinte da festa, eu tive o diagnóstico do João Pedro. Que eu liguei, aos prantos, para a Dani Almeida e falei: “Dani, eu não vou poder assumir essa aula ano que vem. Eu preciso cuidar da saúde do meu filho”. E aí, eu fiquei dois anos fora. Quando eu voltei eu precisei reconhecer a PlayPen. Porque era outra escola. Ainda estava lá no fundo. Ainda tinha a identidade dela. A essência ainda estava lá, mas a identidade estava um pouco balançada. Eu acho que a PlayPen ainda está buscando essa identidade agora de balzaquiana.

P/1 – Mas qual foi a sua impressão ao voltar depois de dois anos afastada?

R – Primeiro, a presença dos livros. Porque antes a gente trabalhava com pedagogia de projetos e a gente praticamente não usava livro. Não sei muito dizer dos outros anos. Mas estou falando de alfabetização. A gente não usava livro, a não ser livro literário. Mas, não tinha um livro. Tanto que eu lembro que teve um ano que eu alfabetizei as crianças brincando de restaurante. Tenho até as fotos desse projeto. Foi fantástico. A gente fez assim, começou: “Ah, vamos brincar de restaurante?” “Vamos.” “Tá bom. Então eu sou cliente. Quem vai ser o garçom? Você é? Tá bom. Então pega aí o bloquinho e anota o meu pedido”. (risos) Porque era função social da escrita. A gente queria, a partir daí, desenvolver todo o trabalho. Então, no começo, as crianças desenhavam: “Um guaraná”. Ele desenhava lá a garrafinha de guaraná. Aí: “Um macarrão a bolonhesa”. Ele desenhava o macarrão. E acabou que a gente escolheu montar um restaurante na sala de aula. E fizemos tudo, eu com as crianças, desde desenvolver o tipo de restaurante. A gente escolheu uma cantina italiana. Estudamos todos os tipos de macarrão, escolhemos que macarrão que a gente ia servir. Montamos o cardápio, calculamos quanto de macarrão a gente precisava servir, porque convidamos a escola inteira para almoçar na nossa sala. Porque a PlayPen ainda era pequena, dava. Nas aulas de artes, a gente confeccionou as toalhas das mesas italianas. Então fizemos a seqüência: verde, vermelho, verde, vermelho. Confeccionamos o uniforme dos atendentes. O caixa manuseava o dinheirinho. Então estava tudo ali: a Matemática, o Português, o uso social. E no final, eu guardava o bloquinho das crianças. Então eu tinha, no começo, como que o menino escrevia um guaraná e, no final, ele escrevendo alfabeticamente: “Um guaraná sem gelo”. Foi muito legal. Foi fantástico. No dia, para entrar no restaurante, tinha que trazer um quilo de alimento não perecível, que foi doado. A Guida almoçou na nossa sala também. A Renata, que era na época a psicóloga da escola. A Márcia e todas as crianças. Foi fantástico. As crianças achavam o máximo servir os amigos. A gente cozinhou o macarrão em uma sala de aula e servimos, com dois tipos de molho. (risos) Tinha entrada até! Torradinha com alho e queijinho. Foi muito legal.

P/1 – E como é que foi sair dessa pedagogia de projeto, desse tipo de atividade, e entrar nos livros?

R – Para mim foi difícil. Sofrido. Porque eu sou educadora artista. (risos) Adoro uma tela branca para poder fazer do meu jeito, diferente. Isso de repetir igual do ano passado, não é comigo. É muito difícil. Eu sofri muito até para conseguir sistematizar todas essas coisas. Elas sempre estiveram bem sistematizadas na minha cabeça, porque com projetos eu sabia exatamente: “Aqui tem Ciências, aqui tem Estudos Sociais. Olha, aqui tem Geografia, aqui tem Alfabetização Cartográfica”. Então, naquela rede, montávamos as redes, os projetos. Nossa. Isso eu aprendi a fazer na PlayPen muito bem e até hoje eu sinto que sou expert nisso. Agora, sistematizar todas as coisas em um livro, calcular direitinho o tempo que eu preciso para essa aula, essa outra aula. Fico muito presa ao livro. Se eu fico muito presa ao livro, meu trabalho já não é tão legal, porque ele perde. É o tal do programa da escola que ia acabar engessando um pouco as pessoas. Agora, o que eu fui aprendendo depois que eu voltei da cura do João, o que eu fui aprendendo com mais maturidade mesmo, com mais história de vida, foi de dosar a dor e a delícia. (risos) Que é justamente: “Tá bom, eu tenho que fazer isso do livro?”. Eu tenho que fazer essa parte que, para mim, como professora, ainda considero chata. Mas aí o que eu fazia? Eu conseguia usar o livro como apoio ou como trampolim para eu continuar fazendo esses projetos. Então eu dou uma viajada na sala de aula. Por exemplo: se o livro é sobre cantigas de roda, uma hora eu vou abrir o livro, mas eu não vou começar a trabalhar cantigas de roda abrindo o livro. “Página um”. Entendeu? Eu não sou esse tipo de professora. Então, a gente vai para o pátio, a gente vai brincar: “Sua avó brincava. Sua tia brincava. Vamos fazer uma lista.”. “Quem conhece essa? Quem não conhece?”. “Vamos brincar agora, não sei o que nananana”. E nisso a coordenação ficava: “Kika, você não começou o livro.” “Não. Eu já comecei.” “Não. Você não começou.” “Mas calma, eu vou chegar lá”. Mas daí a hora que eu chego lá, sento, falo: “Gente, vamos abrir o livro?” “Cantigas de roda. Era tudo que a gente estudou! Olha isso. Essa aqui eu sei, não sei o quê”. A gente faz o livro rapidinho. Eu aprendi a dosar isso. E agora está tranquilo, porque aprendi também a entender a importância de um livro, ainda mais em uma escola grande com muitos professores, com maior rotatividade. Daí como é que faz? A professora que está entrando agora precisa saber. Então as coisas foram ficando um pouquinho mais quadradinhas para o meu gosto, mas eu acho que ainda tem um espaço para você criar em cima disso e poder ser diferente de todas as outras escolas. Porque várias outras adotam o mesmo livro, isso não torna as escolas iguais. Acho que cabe a cada professor poder usar o livro como apoio. Eu aprendi a fazer isso a meu critério também.

P/1 – E as bienais?

R – Nossa! Tudo de bom! (risos) Nesses anos todos de PlayPen eu vi muito os professores comentando: “Nossa, já tenho tanta coisa para fazer, ainda mais a bienal”. Gente, não é assim. Pelo contrário: eu tenho tanta bienal para fazer e mais alguma coisinha do currículo. (risos) Como é que chama aquilo que cavalo usa para não olhar em volta?

P/1 – Nossa, eu sei. Espera aí.

R – Mas é isso. Eu acho isso fantástico, porque acho que a escola faz muito isso com a gente. Acho que bienal também você tira isso, porque teu cavalo usa sempre para não olhar do lado, não tirar o foco do caminho que ele tem que seguir. Mas tirar o foco é super importante. É o que a gente precisa. Eu acho que as artes estão aí para isso. Você descobrir seu potencial. Cada criança se descobrir artista. Cada criança poder olhar tudo que é produzido. Poder olhar a cultura do lugar onde ela vive, a cultura mundial. Então fantástico. Um prato cheio, um diferencial. Casa muito com o meu jeito de ser educadora e é um diferencial mesmo da PlayPen. Eu participei desde a primeira bienal, que a Tomie Ohtake foi lá e autografou os livrinhos com as crianças. As crianças fizeram releituras maravilhosas da Tomie Ohtake. Inclusive, eu tive uma aluna que a família era amicíssima da Tomie Ohtake e foram convidados para um aniversário da Tomie Ohtake. Estávamos em época de bienal e a Tomie Ohtake era homenageada, aí ela falou: “Eu vou ao aniversário da Tomie Ohtake a semana que vem”. Eu falei: “Não. Então nós vamos fazer um cartão de aniversário para Tomie Ohtake.”. Eu lembro que foi fantástico! As crianças, cada uma fez um desenho e falaram: “Tomie Ohtake eu adoro as suas pinturas, as cores que você usa”. Sabe? Umas coisas assim. E ela ficou contentíssima. Eu devo ter foto desse cartão também. Esse cartão foi entregue pessoalmente. Então é muito legal poder olhar para as artes desse jeito. Além de ser um artista contemporâneo vivo, que você pode fazer um cartão de aniversário para entregar em mãos. Então isso é muito legal, porque às vezes também fica essa coisa de que arte só está lá no passado. História só está no passado.

P/1 – E enquanto professora de alfabetização? Qual era a sua participação na bienal?

R – Total. Porque eu acho que bienal tem mais a ver com alfabetização emocional do que com qualquer outra coisa. Aliás, eu acho que toda alfabetização, mesmo na Matemática, na leitura, na escrita, ela passa pela veia do coração. Pelo emocional, pela pessoa, para você olhar a cultura, você olhar o ser humano. Eu acho que sempre foi nesse sentido. Acho que um desafio físico que tenha a ver com alfabetização emocional. Que aconteceu? O ano que eu voltei, que o João tinha acabado de vencer o câncer, a gente resolveu fazer um barco, uma dobradura de um barco gigante. E todo mundo falava para mim: “Você é louca. Não vai dar certo. Você é louca, isso não vai dar certo”. E eu queria fazer a dobradura junto com as crianças. Tipo: colocar 20 crianças pegando uma aba da folha e juntando com a outra lá do outro lado. Movimentos gigantes no ar. E todo mundo falando, jogando areia: “Não. Não vai dar certo. Imagina. Esse barco não vai ficar em pé”. E ver o barco pronto, as crianças entrarem no barco. A gente tirou foto dentro. Um barco de dobradura enorme que não cabe nessa sala. Então isso tem a ver com a história de vida de cada um. Com desafio, com a história em grupo. Com fazer a dobradura em grupo. Porque não adianta uma pessoa querer fazer um barco daquele, tem que ser um grupo todo. E a ajuda dos maiores, porque o quinto ano veio ajudar os pequenos para darem conta de fazer a dobradura. De segurar dali, de puxar daqui, de dobrar aqui. De poder fazer esse desafio de ser humano, de estar vivo, de estar produzindo arte. Poder colocar isso fisicamente em um barco de dobradura gigante, lúdico, com um monte de criança, e colocar lá na bienal. Fantástico. Bom demais.

P/1 – Você então é casada. Em que momento que você conheceu seu marido? Como é que foi isso?

R – Eu conheci o meu marido dando aula. (risos) Eu estava dando aula de inglês para um filho de uma amiga da minha mãe, que estava de recuperação em Inglês e Matemática. Então eu estava dando aula particular. Estou na casa dele. O meu marido era amigo do irmão mais velho dele. Eu estava dando aula na mesa da sala de jantar e o meu marido passava atrás de mim com esse amigo dele mais velho, o Alexandre. E eu dando aula para o Rodrigo. Mas eu não via, eu estava de costas dando aula e tal. E meu marido disse que já selecionou ali o material. (risos) Aí o que aconteceu? Esse meu amigo mais velho, o Alexandre, a gente se conheceu desde pequenos. A minha mãe e a mãe dele são amigas de porta de escola. O Alexandre estudou com o meu irmão André Luis, quando eles eram pequenos. E aí quando o Alexandre se formou no Liceu, que eles fizeram Liceu de Artes e Ofícios, ele me convidou para ser a madrinha dele. Para dançar valsa lá, não sei o quê. Eu fui. Estávamos na fila para entrar na formatura, na hora da valsa, aí vem o Sandro de smoking, todo bonitão, passando do lado. E eu cutuquei o Gordo, que é apelido Alexandre é gordo: “Gordo, quem é? Quem é?”. Ele falou: “É o Pézão”. (risos) Porque o apelido do meu marido era Pézão. “É o Pézão. Você o conhece.” “Imagina. Não conheço.” “Conhece sim. Ele já foi lá em casa mil vezes fazer trabalho quando você estava dando aula para o Rodrigo.” “Eu não conheço.” “Conhece sim.” “Para de discutir comigo. Eu não conheço. Vai, se eu conheço me apresenta de novo, então”. Aí o Sansão apresentou de novo. Tivemos um rolinho de uns três meses que saía a galera toda junta. O Gordo me ligava e falava: “Vamos sair com o pessoal tal”. Aí ficava aquele ããã. Aí ficamos de rolo uns três meses. Eu lembro que o Sandro tinha acabado de entrar na faculdade, porque ele é mais novo que eu. Ele tinha acabado de entrar na faculdade. Estava aquela coisa: “Faculdade. Não quero ficar preso com ninguém, não sei o que lá.” “Tá bom. Então fica aí, porque eu quero namorar sério. Se você não quer namorar, tchau. Eu vou encontrar outra pessoa”. Aí eu encontrei outra pessoa, comecei a namorar o Mário. Namorei dois anos o Mário e o Sandro só me filmando. E eu e o Mário já chegamos lá na encruzilhada: ou casa ou separa. (risos) Resolvemos nos separar e o Sandro veio com tudo. Ele falou: “Ah não. Não vou te perder de novo.”. Ficou passado quando me encontrou com o Mário. Falou: “Ai, perdi a mulher da minha vida”. E quando me encontrou de novo a gente nunca mais se separou. (risos) Fizemos dez anos de casados.

P/1 – E seus filhos nasceram quando você já estava na PlayPen? Como é que foi?

R – Já. Quando eu casei eu já estava na PlayPen. Meus filhos nasceram na PlayPen, começaram a andar e já foram para o Toddlers. Imagina, o João que fez agora oito anos. Ele tem sete anos de PlayPen. Precisa ver o inglês dele que maravilhoso. E do Luís Felipe também. Agora eu precisei mudá-los de escola. Eles estão em outra escola agora e, quando eles entraram em outra escola, falaram: “Mãe, você não sabe o que eu descobri.” “O quê?” “Os meus amigos não sabem falar em inglês”. (risos) Passados. Mas, nossa! A PlayPen foi assim: um quintal dos meus filhos. A segurança de poder trabalhar e estar com os seus filhos pertinho. Isso é muito bom. O seu horário de café você ficar lá no aquário vendo o seu filho na sala de aula (risos) com os amiguinhos, interagindo. É muito bom. Apesar de que agora, nos últimos anos, foi mais difícil para eles. Começou a ficar mais difícil, porque a gente passou a frequentar os mesmos corredores. Eles começaram a ter muito ciúmes de outras crianças comigo. Então falava: “Aqui que é a minha mãe.” “Ai, larga a mão de ser tonto. É nada. Sua mãe está na sua casa, trabalhando. Ela é professora da escola.” “Não. Mas ela é a minha mãe.” “Não. Não é”. Aí o menino vinha chorando: “Mãe, ele não acredita que você é a minha mãe.“; “Mas eu sou a mãe dele.” “É? Eu não acredito”. Então aí vem as crianças abraçar e não sei o quê. “Kika”. Kika para cá. Eu estava dando aula ano passado para o primeiro ano e meu filho estava no primeiro ano. Eu estava no primeiro A e ele estava no primeiro B. Não. Primeiro C. Aí, o que acontecia? A gente estava no Play juntos. Então ele vinha: “Mãe. Mãe”. E eu lá. “Mãe. Mãe”. E eu lá trabalhando. Daí ele: “Kika”. Aí eu olhei, ele: “Seu eu chamo Kika você olha, se eu chamo mãe você não olha.” “Filho, mas eu estou trabalhando.” “É. Mas eu tenho que chamar a minha própria mãe pelo nome. Não posso chamar de mãe que ela não olha”. Então comecei a ter uns problemas sérios. Ainda mais o João, que a gente ficou dois anos morando no hospital. E a gente ficou com uma relação muito mais estreita de dependência mesmo. Emocional. De segurança emocional. Nesse sentido, foi difícil a volta para o com o João, tanto que acabou não dando certo.

P/1 – E nesse tempo que você se afastou para cuidar do seu filho a PlayPen te deu alguma ajuda? Como é que foi isso?

R – Sempre me ligava perguntando como é que estava o João. Fizeram visitas. Porque é uma família. Quinze anos de convivência é muita coisa. A Guida mesmo fez visita, deu presente para o João. Ele tem até hoje um altarzinho lá em casa, com tudo que ele ganhou quando estava doente. A Guida deu um anjo lindo. Tem duas crianças atravessando uma ponte e a ponte está meio quebradinha. Tem um anjo com umas asas enormes atrás. Então ajuda emocional, torcida, as orações. Tudo isso fez parte da cura do João e todo mundo lá na PlayPen sempre me deu muito apoio.

P/1 – E como é que você decide sair da PlayPen? Como é que foi?

R – Foi a decisão mais difícil da minha vida. Foi muito difícil. Foi pensado, mas eu só consegui tomar a decisão num ímpeto. Porque eu falo para todo mundo: “É como terminar um casamento.”. Você imagina como é complicado, difícil. Vêm em cheque as dores e as delícias da intimidade. Porque eu lá há tanto tempo e as meninas que estão na coordenação, na direção hoje, a gente era de igual para igual, era todo mundo professora lá. Aí que foi mudando. Então eu passei a ficar muito insuportável. (risos) Por quê? Porque se eu via alguma coisa errada, mas que não era da minha alçada, eu ia lá e apontava. Porque que nem coisa do que você muito tem estima. A PlayPen é a minha casa, então se na cozinha tinha uma coisa que não estava rolando do jeito que eu achasse que estava certo, eu tinha intimidade de chegar para meninas e falar: “Gente, isso não pode acontecer”. Ou de chegar para Guida e falar: “Gente, isso não dá para acontecer”. Ou de chegar para Dani Almeida e falar: “Olha...”. Ou tanto para Gabriela. Isso até um ponto foi bom, mas aí acabou passando da medida. Porque eu comecei a meter os pés pelas mãos, no bom português. E começou a ficar chato. Porque, na realidade, eu tinha que ter conseguido ficar na minha sala de aula dando conta do que realmente eu precisava fazer. Não que eu não dei conta. Eu dei conta, mas... E tudo isso se juntou também com o fato do João Pedro começando a ficar muito à vontade. Eu acho que com o fato de eu ser professora lá, no mesmo ambiente que ele. Com o fato de eu ter que me dividir com as outras crianças, a apreensão, e num período longo. Às sete e meia, eu entrava. Das sete e meia da manhã até às três e meia da tarde. Então nossa relação começou a ficar muito em atrito. E o João é um carinha diferente. Depois de tudo que ele passou. Ele é um menino muito sensível, ele é muito inteligente. Então ele detesta bola. Ele prefere desenhar, ler um livro. Tinha uma turminha na sala dele que começou a pegar muito no pé dele, a chamá-lo de Joana, chamá-lo de pintor de rodapé. Porque ele, com o tratamento, não cresceu. Ele está fazendo um tratamento agora para crescer. Então ele é o mais velho e o mais baixinho da sala dele. E de João sem graça. E como nos skills dele ele sempre apareceu bem, então fala super bem em inglês, escreve super bem. Matemática, tudo super bem. Então o pessoal começou. Na realidade, não existe ser mais cruel do que uma criança, não é? Então eu diria que ele começou a sofrer um bullying psicológico. Nunca ninguém meteu a mão nele, mas ele era colocado contra a parede. Ele começou a chorar dizendo que não queria mais ir para escola, que era chato, que ele estava cansado, que ele queria ir para uma escola normal e voltar logo para casa. Ele queria que a mãe dele o levasse para escola e fosse buscá-lo na escola. Então ele foi dando sinais de que não estava dando conta de tudo isso. Isso pesou bastante na minha decisão. E teve um movimento. Porque a Guida sempre foi fantástica com a gente no sentido de pagar os professores o que é justo e de dividir os louros com a gente. Sempre foi. E ela havia prometido que assim que na PlayPen entrassem mais alunos, que conquistasse mais alunos, ela mexeria no nosso salário. Então nosso salário ficou muito tempo congelado. Quando eu cheguei, depois da cura do João, o grupo estava super ouriçado, querendo aumento salarial. E estavam se organizando para isso. Então eu chego assim: “Ah, a Kika é da velha guarda, ela tá aqui há anos e agora ela voltou”. Então a primeira coisa foi: “Mas como que ela voltou se tem auxiliar que tá aqui há dois anos e prometeram sala e a auxiliar não vai ter sala? E a Kika veio para assumir sala?”. Teve essa coisa do grupo não me receber muito bem. “Quem é essa Kika que eu nunca ouvi falar e está chegando aqui querendo ainda um pedaço, um bom naco da goiabada?”. (risos) Então eu acabei, para ser aceita pelo grupo, e também porque quando eu vi as justificativas do grupo eu achei que elas eram justas, eu acabei me envolvendo, politicamente, com esse grupo, nas várias questões que eles estavam colocando para Guida. Desde condições salariais, como condições de trabalho também, que são questões administrativas que qualquer empresa passa. Só que, no fim, o grupo acabou escolhendo o caminho que não foi legal e a Guida ficou muito chateada com o grupo. Com as opções que a gente fez, como grupo, para tentar esse diálogo e essas conquistas. Como conseqüência dessas atitudes do grupo houve algumas demissões, mas a Guida me chamou para conversar dizendo que tinha ficado muito decepcionada pelo fato de eu ter participado do grupo. E eu fiquei decepcionada de ela ter se sentido apunhalada pelas costas, porque falei para ela: “Guida, eu sou a pessoa que mais visto a camisa da escola porque eu já atendi pai na minha casa a meia noite desesperado com filho e eu falando: ‘Fica tranquila, amanhã a gente resolve e tá tudo bem’. Já fui para o Sítio do Carroção grávida, deixando o meu bebê de meses”. Então meu marido sempre falou, aliás, ele sempre soube quando ele casou comigo que estava casando com a PlayPen também. (risos) Porque eu sempre fui de me dedicar mesmo, de me envolver. Porque eu tenho paixão no que eu faço e não dá para ser diferente. E nessa conversa com a Guida a gente não conseguiu muito se acertar. Eu não sei se ela acabou dizendo coisas que eu acabei interpretando de outra maneira. Mas enfim, o resultado dessa nossa conversa foi a minha decisão que tinha acabado mesmo o casamento, estava na hora de eu sair fora até para deixar a PlayPen crescer e continuar o caminho dela. Eu também continuar o meu. Agora, é lógico que o João ajudou a decidir isso também. E na mesma semana, porque a gente faz exame de cinco em cinco meses. Na mesma semana, a gente descobriu que ele estava com uns nódulos no pulmão e podia ser uma reincidência do câncer. E eu também juntei tudo isso, porque eu falei: “Eu preciso cuidar do meu filho e está toda essa situação na PlayPen e toda essa conversa com a Guida que ficou atravessada. O João chorando me pedindo para sair da escola e ainda esse nódulo no pulmão.”. Eu puff. Fui lá e pedi demissão. E eles aceitaram. (risos) Porque eles podiam ter falado: “Não, Kika, você está louca. A gente não aceita a sua demissão, deixa tudo isso passar, depois a gente conversa”. Não. Eles aceitaram porque eu estava incomodando, internamente. Eu falo: “Intimidade é uma merda.”. É porque eu sabia quem tinha que fazer e o que não tinha feito. Então eu ia lá. E desse jeito que eu sou, eu falava: “Escuta, o que você está fazendo aqui? Por que você não foi fazer isso que você tinha que ter feito?”. Sabe? A pessoa falava: “Poxa, mas você não é a minha chefe. Por que você está falando assim comigo?”. Foi ficando insustentável, eu acho. Para todo mundo. Então foi, eu pedi demissão e eles aceitaram. Se eu me arrependi? Eu acho que em alguns momentos, até me arrependi. Como eu acho que a PlayPen também deve ter se arrependido em alguns momentos de ter aceitado a minha demissão. Mas acho que a troca não ia mais rolar tão legal do jeito que sempre rolou e é melhor parar antes do que estragar uma relação tão legal, tão bem construída e que teve tantos frutos. Então, ainda é dolorido. Eu não consigo ainda visitá-la. Eu tentei um dia e chorei. Nem consegui subir. Porque a minha história de vida está toda lá. É um casamento mesmo. Então estou agora tentando seguir meu caminho e desejo muito que a PlayPen acerte e que tome decisões... Desculpa. E tome as decisões certas e que cresça. Eu desejo tudo de bom para Guida. Para nossa escola, que sempre vai ser a escola do meu coração. Que a gente carrega as nossas escolas dentro da gente. Desde o prézinho, todos os colégios que eu passei, as faculdades, e a PlayPen também, vão estar sempre no meu coração. Eu jamais vou cuspir no prato que eu comi. Eu cresci muito lá dentro. Eu sou o que eu sou hoje por causa da PlayPen, de tudo que eu tive a oportunidade de fazer acontecer lá dentro. Deixar essa história bonita para quem quiser conhecer. E sei que muita gente de muito gabarito vai continuar essa história, que tem tudo para dar certo.

P/1 – E ficou faltando perguntar alguma coisa que você queria deixar registrada e a gente não te estimulou a falar?

R – Não. Acho que não. Fizemos uma bela limonada dessa situação. (risos)

P/1 – Não. Ficou faltando uma coisa que eu pulei. Como que você vê a PlayPen daqui a cinco anos?

R – Eu vejo com mais um andar, (risos) porque eu vejo que está precisando mesmo de espaço. Uma unidade nova, talvez. Dividir então a pré-escola em outro prédio, ou então o Fundamental II em outro prédio. Não sei. Porque eu vejo assim: muitas crianças precisando de muito espaço. Então, eu a vejo ampliada nesse sentido. Ou horizontalmente ou verticalmente. Mas vejo sempre uma bienal. Não dá para enxergar a PlayPen sem as artes. E a vejo lotada de alunos. Porque ela tem nome, ela sabe a que veio, ela tem equipes. Todas as equipes foram formadas na PlayPen. Equipes de primeira. Eu acho que a Guida tem essa preocupação e esse cuidado. Vejo-a cada vez mais aparecendo na mídia, como notícia, de boca em boca. Porque, para a minha vida, a PlayPen faz parte do meu currículo. Então qualquer lugar que eu for, se eu falar: “Professora da PlayPen.” “Ó”. Tem um ó. Isso é muito legal e eu tenho certeza que vai continuar nesse sucesso.

P/1 – E a sua atuação na educação pelos próximos anos?

R – Eu, na realidade, estou meio em uma encruzilhada, porque eu tenho vontade de aproveitar os meus cabelinhos brancos, voltar para Psicologia. Quem sabe fazer algum trabalho em consultório mesmo. Mas também tenho toda essa experiência com alfabetização, mesmo com orientação de pais, todas as reuniões que foram acontecendo. Então eu sinto que eu também estou apta a ir trabalhar com psicopedagogia, talvez. Não me vejo muito em outra escola, trabalhando em sala de aula. Na PlayPen, eu não sei. Eu até teria vontade de coordenar esse ciclo de alfabetização. Se me fosse oferecido, seria uma coisa que eu iria pensar. Porque eu acho que eu gostaria de ter uma equipe de professores para estar, trocar figurinha. Trazendo a minha bagagem com o pessoal novo que está começando. Eu acho que seria uma troca interessante. Mas, ainda não sei. Eu escolhi, nessa parada, ser mãe. Então, estou levando o João para escola e indo buscá-lo. Está sendo uma experiência importante e diferente para mim, e muito interessante porque eu nunca fui mãe em nenhuma outra escola. Estou podendo ver o outro lado. Eu fui mãe na PlayPen e estando dentro da PlayPen. Então, estou podendo olhar de fora. Isso me fez olhar também a PlayPen de um jeito diferente. Porque a gente nunca conhece ninguém completamente e uma instituição viva que está mudando o tempo todo. Eu olho para PlayPen já com outros olhos, sendo mãe em outra escola. Depois, você fala: “Puxa, mas isso na PlayPen é assim. Que saudade. Aquilo está faltando.”.

“Olha. Não, isso aqui é diferente, na PlayPen não tem desse jeito.”. “Puxa, se eu estivesse lá. Ah, mas eu ainda vou falar para Gabriela”. Sabe? Então, tem essa relação bem legal ainda.

P/1 – E quais as diferenças? O que você vê dessas escolas todas que você estudou para PlayPen? Se fosse traçar um paralelo.

R – Nossa. As diferenças são assim, inúmeras. Inúmeras. Eu acho que eu prefiro falar das semelhanças, porque acho que é a essência que a gente está buscando. Se tratando de qualquer escola e que seja a PlayPen que a gente está falando. Que é valorizar o ser humano. É valorizar a capacidade e a habilidade de cada um, e que cada um possa se conhecer e descobrir as suas dificuldades, saber lidar com elas e principalmente reconhecer o seu potencial. Poder investir nele para conquistar o que você quiser. O mundo inteiro está aí para você poder atuar na área que quiser, do jeito que você quiser, com o seu melhor. Então eu acho que educação existe para isso, para você descobrir o melhor das pessoas, para que elas possam compartilhar o melhor. Para ver se a gente melhora um pouco esse mundão.

P/1 – E o que mudou na educação como um todo, da sua infância para agora?

R – Eu lembro assim, da minha infância e até quando eu estudei na faculdade aquelas matérias básicas. Eu me lembro do tal do bom selvagem, que todo mundo nasce bom selvagem e a gente vai aos poucos sendo corrompido pela sociedade. Então eu acho que tanto na ditadura quando agora nessa democracia, ou falsa democracia, que seja, eu primo para que esse bom selvagem não seja corrompido. O bom selvagem está dentro de cada um de nós e a gente pode sim evoluir, sem se prostituir politicamente, ecologicamente, sei lá. Educacionalmente. Eu acho que é por aí.

P/1 – E como você avalia a passagem da PlayPen na sua vida profissional, pessoal? O impacto que isso teve.

R – Nossa. Faz parte de mim. Faz parte do que eu sou. A Kika que existe hoje, não existiria se não houvesse a PlayPen. De verdade. Existiria outra Kika. Eu sou muito feliz e estou muito contente do jeito que eu sou, do jeito que eu escolhi para formar família. O jeito que eu escolho para criar os meus filhos. Tudo isso tem a ver com ética, com moral, com educação. E não dá para PlayPen não estar nisso. Ela faz parte da minha identidade, do que eu sou.

P/1 – E quais os maiores aprendizados que você obteve trabalhando na PlayPen?

R – Essa frase eu adoro soltar pelos corredores da PlayPen. Aliás, por qualquer corredor. Que é a matemática inversa que eu aprendi na PlayPen: Dividir é multiplicar.

P/1 – E agora o que você acha da PlayPen estar comemorando os 30 anos por meio desse projeto?

R – Fantástico. Adorei toda essa situação. Só esse nome de Museu da Pessoa, gente. Temos que olhar mesmo para pessoa, valorizar o ser humano. Isso de vasculhar o passado, a história, buscar o fio da meada, pegar a essência, sentir a energia. Eu acho que tudo isso é muito importante para estar vivo. Porque eu acho que estar vivo desse jeito, mesmo que a centelha se apague, a essência continua. Fica tudo registrado nas escritas, na memória das pessoas, nas células que a gente deixa para os nossos filhos. Então, acho que é a eternidade mesmo. É assim que somos eternos: passando e deixando coisas boas.

P/1 – E o que você achou de estar aí sentada dando essa entrevista?

R – Ah, estou me sentindo o máximo! Super famosa! De verdade, eu me sinto orgulhosa de fazer parte da história. Da história da PlayPen, da história do meu bairro, do bairro da Cidade Jardim, da história do meu país, da minha vida. Então é aquela coisinha que começa no centro e vai ampliando, vai virando cidadã. Cidadã do mundo. Eu sinto que eu sou, de verdade, educadora e qualquer lugar do planeta que você me colocar, em qualquer situação, seja numa fila de banco ou para servir cafezinho, ou para dar uma palestra em Berkeley, eu vou estar inteira ali educadora. Do jeito que eu sou e aprendi a ser. Muito com a PlayPen.

P/1 – Então, eu queria agradecer a sua presença em nome do Museu da Pessoa e da PlayPen. Obrigada.

R – Obrigada. Foi um prazer.