Museu da Pessoa

Pai, eu quero a caneta leve

autoria: Museu da Pessoa personagem: Romário Gava Ferrão

Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé Ouvir o Outro – Compartilhando Valores
Pronac 128.976
Depoimento de Romário Gava Ferrão
Entrevistado por Tereza Ruiz
Vitória, 5 de junho de 2014
NCV_HV_22_ Romário Gava Ferrão
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Claudia Lucena
MW Transcrições


P/1 – Primeiro, Romário, eu vou pedir pra você dizer pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.

R – Bom, Romário Gava Ferrão. Eu nasci no Município de Conceição do Castelo, que fica mais ou menos a 120, 130 quilômetros daqui, mas eu nasci no interior desse município. É um pequeno município, que hoje deve ter uns 20 mil habitantes e eu nasci num local chamado Alto Montevidéu, nasci lá em 31 de julho de 1956. Um lugar muito simples, de topografia acidentada, muito morro, um local de difícil acesso, estrada de chão, onde só chegava a cavalo e depois só de jipe. Porque quando chovia, era um solo muito argiloso e com isso tinha dificuldades de passar outros tipos de carro, mas naquela época também não tinha outros tipos de carro, né? Era, na época, nessa propriedade onde eu nasci, era energia própria, eu tinha... Eu sou o segundo filho de uma família de nove irmãos, onde tem o mais velho, eu sou o segundo, são quatro homens e cinco mulheres, né?

P/1 – O nome dos seus pais, se você puder falar, e o local de nascimento e data também, se você souber, do pai e da mãe.

R – Meu pai se chama Antônio Ferrão Sobrinho e minha mãe Maria Teresa Gava Ferrão, os pais italianos, né? Os meus avós vieram da Itália, no início de 1990, então hoje, se eles estivessem vivos, os meus avós, eles estariam aí com 112, 113 anos. Então eu nasci nesse lugar chamado Alto Montevidéu e lá, de lá eu tenho muitas lembranças, muitas lembranças, e eu fiquei nesse lugar até dez anos de idade.

P/1 – Deixa eu só te interromper um minuto pra perguntar pra você, os seus avós eram da Itália, de que região?

R – Da Itália? Eu não me lembro bem o local, vamos dizer, que eles vieram da Itália, sabe?

P/1 – Mas você sabe por que eles vieram?

R – Bom, isso aí foi, nessa época, né, existia bastante imigração de italianos para o Brasil e eles vieram praticamente na mesma época, eles vieram pra um município aqui de Alfredo Chaves. E esse município de Alfredo Chaves e o local que eu nasci dá mais ou menos uns cem quilômetros, não tinha estrada, não tinha nada, eu não sei como é que eles chegaram nesse lugar. Esse local, naquela época era tudo mata, e eles vieram por trilhas, agora, porque que eles foram estabelecer a família deles lá eu não sei, até hoje eu fico questionando, né, porque eu não tive contato com os meus bisavós, então eu não conheço muito bem essa história, né?

P/1 – Mas esses são os seus bisavós, não seus avós?

R – Meus bisavós, né?

P/1 – Seus avós são nascidos no Brasil já?

R – Um avô meu veio da Itália com seis meses, e o outro nasceu aqui no Brasil, aqui no Estado do Espírito Santo.

P/1 – Eles trabalhavam no campo?

R – Bom, essa, é isso aí, meu avô era, meus dois avós do campo, então desbravaram as matas e já naquela época a principal atividade já era o café, então eles desbravaram a mata, plantaram café e do café eles criaram a família deles. O meu avô por parte de pai teve quatro filhos, o meu pai, o Antônio Ferrão Sobrinho, eu vou dizer, o filho mais velho, né, então ele e os outros também, eles foram criados dentro dessa pequena propriedade, era uma propriedade de cinco alqueires de terra, né, e eles, vamos dizer, foram criados com o café. Por parte de mãe já eram sete filhos, o meu avô por parte de mãe também viveu do café porque ele tinha, ele era comerciante, então ele tinha uma máquina de beneficiar café e ele comprava café na região, então o meu avô criou os filhos, por parte de mãe, com o intermédio do café também. Então, a gente teve uma infância bastante simples, bastante pobre, muita dificuldade, então você imagina, num alqueire de terra, em cinco alqueires de terra, né, e ali o meu pai ficou, a minha mãe, eles tiveram nove filhos, né?

P/1 – O que os seus pais faziam pra sobreviver, qual que era a atividade deles?

R – Bom, o meu pai era dentista prático, era uma pessoa com apenas o quarto ano primário, né, naquela época, mas naquela região ele ainda era uma pessoa, assim, de bom esclarecimento. E o papai tinha uma característica muito interessante, mesmo sendo de pouco estudo ele trabalhou numa profissão de dentista prático, então ele lia muito. Então ele, mesmo sendo uma pessoa simples, era uma pessoa daquela região de um pouco mais de conhecimento. Então ele era uma pessoa simples, uma pessoa boa, muito prestativa, uma pessoa que se comunicava bem com as demais pessoas, é uma pessoa que tinha muitas amizades, né? E uma coisa interessante dele, papai mesmo com pouca instrução, ele tinha um projeto de vida pros filhos dele, pros nove filhos, ele já indicava pra gente que a única saída pra gente, ou herança que ele iria deixar pra gente, é o conhecimento, é a informação, é a educação, e ele sempre perseguiu isso. Então o meu pai era um dentista prático, mas nessa pequena propriedade ele tinha a lavoura de café. A minha mãe era doméstica, então, mamãe era uma mulher também muito simples, de pouco estudo, só apenas o quarto ano primário, e era uma dona de casa, ela vivia pra família, vivia para os filhos, vivia tomando conta da casa. Eu me lembro bem, uma casa grande, grande, alta, né, e ali ela ficava o dia todo, tudo praticamente, a nossa alimentação, era toda produzida naquela propriedade, produzia o milho, produzia o feijão. Nós tínhamos a lavoura de arroz, tinha cana-de-açúcar, tinha as galinhas caipiras, tinha a vaquinha dando leite, tinha o cabrito, tinha o porco, tinha o porco, tinha o pomar, tinha a horta, tinha a energia própria, tinha um moinho que fazia o fubá, que era... Que nós fazíamos a polenta, que era a base da alimentação de todo dia, né? Tinha água de cacimba, não tinha água encanada, era de cacimba. E tinha um córrego, onde era o local, de fim de semana a gente tomava banho nele, mas durante a semana era tão corrido que a gente tomava banho numa bacia com água. Então era uma situação, assim, bem rudimentar, mas ela sempre... Ela, nessa vida muito humilde, ela sempre foi uma pessoa muito caprichosa, muito dedicada aos filhos. Outro ponto, nove filhos, era de ano em ano, de dois em dois anos, máximo três em três anos ela tinha um filho, todos os filhos de parto natural, todos não, só o último que não foi de parto natural, tudo parto natural, né? E era assim a nossa vida, à noite tinha um rádio e ali que a gente ouvia as notícias. E nada mais diferente, que era isso, as nossas brincadeiras de infância muito diferente, a gente não tinha o luxo de ter o que hoje esses jovens têm, né, e nem tinha isso naquela época, né?

P/1 – Do que vocês brincavam?

R – A gente brincava de carrinho, brincava de pique, brincava de esconder, de balanço. Brigava muito, no bom sentido, um irmão com o outro, implicava um com o outro, fazia todas aquelas estripulias de criança do interior.

P/1 – E tinha brinquedo na época?

R – Não, os nossos brinquedos, nós que fazíamos os nossos brinquedos.

P/1 – Por exemplo o quê?

R – Nós fazíamos carrinhos de madeira, de carretel. Nós fazíamos nossos balanços, tinha bastante fruta, pé de goiaba, pé de manga, a gente colocava ali as cordas, fazia os nossos balanços, as nossas brincadeiras era subir no pé de árvore, pular. Tinha um córrego, a gente tomava banho naquele córrego. As nossas brincadeiras assim, brincar de pique, brincar de esconder, né, então é essa vida, né, e era muito gostoso, muito gostoso, né?

P/1 – Esse córrego, você se lembra o nome, não?

R – Não, ele chamava o Córrego de Montevidéu, o nome dele era esse. Hoje esse córrego mudou muito, eu estive lá uns dois anos atrás. Esse córrego que tocava o moinho pra moer milho, que tocava energia elétrica, hoje ele diminuiu muito a água, ele virou um filete de água, de modo que ver o que que é, como é que tá sendo a questão da preservação ambiental, né?

P/1 – A propriedade que vocês tinham tinha um nome?

R – Ela se chamava Propriedade Alto Montevidéu, do Alto do Montevidéu, né?

P/1 – Não existe mais hoje, não pertence mais à sua família?

R – Não, aí o que acontece? Quando a gente começou a crescer, na família, né, e aí eu vou colocar um ponto que isso daí serviu de exemplo pra todos os outros nove filhos. Foi o seguinte, o meu pai e a minha mãe, quando eu tinha dez anos de idade, ele chegou à noite, então antes de dormir ele chegou assim, me falou: “Romário”, ele e a mamãe, falou: “Romário, senta aqui”, “O quê que é, papai?”, “Meu filho, você tem que tomar uma decisão da sua vida”. Eu falo isso, fico emocionado, ele falou assim: “Meu filho, você quer uma caneta leve ou uma caneta pesada”, eu falei assim: “Pai, eu quero a caneta leve”, então falou assim: “Então você vai estudar, você vai pro colégio de padre”. Se eu desse a outra opinião, eu ia trabalhar na roça, na enxada, né? “Bom, então, meu filho”, isso era antevéspera de natal, ele falou: “A partir de janeiro você já vai sair de casa”, foi aí que começou minha vida. Ali eu saí de casa, ficava nesse colégio interno, que é no Munícipio de Cachoeira de Itapemirim, um lugar chamado Jaciguá, e ali ficava seis meses internado.

P/1 – Qual que é o colégio?

R – Colégio Jaciguá, é num local chamado Jaciguá, mas o Colégio de Boa Esperança, é um colégio dos padres salesianos.

P/1 – Foi quando você começou, foi a primeira vez que você foi pra escola?

R – Não, eu fui pra escola com sete anos de idade, seis anos de idade.

P/1 – Qual que era essa primeira escola? Só pra gente, eu vou voltar nesse colégio, mas só pra...

R – Essa escola também chamava Escola do Alto do Montevidéu, era uma escola, mas imagina uma coisa, uma escola simples, simples, ela era de pau a pique, essa escola. Nós estudávamos mais ou menos umas 20 crianças, mas ela era toda esburacada, o assoalho era de madeira, de pau a pique, as paredes já estavam caindo. Tinha um quadro negro e nesse período de quatro anos, dos seis aos dez anos, eu tive três professoras, foi ali que eu fui alfabetizado. Então, fiquei esses quatro anos, aí dez anos, eu já fui fazer o primeiro grau, né, que era o ginásio naquela época.

P/1 – Antes de você ir aos dez anos, ir pra esse colégio, que era internato, né?

R – Isso.

P/1 – Vocês ajudavam os seus pais na roça, como é que era?

R – Ajudava, a gente...

P/1 – Com que atividades?

R – Bom, a nossa vida começava às cinco horas da manhã.

P/1 – Antes de sair da casa dos seus pais, essa questão de ajudar os pais na roça.

R – Bom, a nossa vida começava às cinco, seis horas da manhã. A gente morava num lugar mais ou menos frio, que está a mais ou menos 400 a 500 metros de altitude. E a primeira atividade, quando dava cinco, cinco e meia, o papai e a mamãe levantavam, mamãe levantava pra fazer o café da manhã, acendia o fogo de lenha ali com querosene, acendia o fogo, nós tínhamos a nossa lenha ali que fazia o fogo, né. E enquanto ela fazia o café, eu todo dia, eu ou o meu irmão, os meus irmãos, nós tínhamos que pegar a mula, o burro, que o papai se locomovia, ele trabalhava de dentista prático, mas não só naquele local, o local na nossa casa, ele se locomovia pra outros locais pra fazer a profissão dele. Então eu levantava, ia lá pegar a mula, pegava a mula, arriava a mula pra ele, deixava pronta, isso uma semana eu fazia, outra semana os outros meus irmãos faziam, paralelamente, ou eu ou meus irmãos, nós íamos tirar leite. Nós tínhamos duas, três vaquinhas de leite, então, a gente tirava de dez a 20 litros de leite todo dia, eu me lembro, lá naquele curral, um tirava leite de um lado da vaca e eu tirava do outro, eu tirava de duas tetas, ele tirava de duas tetas. E aí, quando dava mais ou menos sete e meia, oito horas da manhã, já estava a mula arriada pro papai sair, o leite já estava tirado e aí nós íamos almoçar, era oito horas da manhã mais ou menos, o almoço estava pronto. Aí era aquela comida caseira, era o arroz, era o feijão, era sempre as verduras, a carne que a gente comia aquela época não tinha tanta mudança de carne, se comia mais carne de porco, mas era carne da... Carne de porco da lata, de lata de gordura, né, muitas vezes um frango, linguiça e muita verdura. Sempre tinha muitas frutas, mas frutas naturais de acordo com a época, né, era manga ou era goiaba, sempre muita banana, uva, então tudo dali. Acabava o almoço, aí a gente ia pra escola, a gente andava uns dois quilômetros a pé e quando chegava da escola, meio dia mais ou menos, ali a gente tomava o café do meio-dia, que era sempre com o café, leite, sempre acompanhado com as merendas, os pães, os bolos, essas coisas feitas pela própria mamãe e pela minha avó. E na parte da tarde a gente trabalhava, trabalhava na roça mesmo, a gente trabalhava plantando milho, colhendo milho, plantando feijão, colhendo feijão. Na época de se fazer, nós fazíamos o polvilho da araruta, o polvilho, que naquela época tinha dificuldade de ter o trigo, então o polvilho ajudava a fazer os biscoitos, bolos e assim por diante, a gente fazia isso. A gente... Papai estava reformando as pastagens, a gente plantava capim, na época de plantar arroz, a gente plantava arroz, na época de colher arroz, colhia arroz. A gente fazia... Tinha dificuldade do açúcar cristal, então a gente tinha cana, tinha o milho e a cana, fazia o próprio açúcar mascavo, fazia rapadura. Na época de goiaba, fazia goiabada, fazia pé-de-moleque, fazia com um mamão e com, vamos dizer, a cana-de-açúcar, a gente fazia o doce de mamão, e era assim.

P/1 – Preparava tudo?

R – Preparava tudo. E aí a gente chegava de tardezinha, anoitecendo, ia tomar o banho da gente, jantava. E sempre à noite, lá pelas sete, oito horas da noite reunia a família, reunia, conversava, brincava, brigava, rezava o terço, ajoelhava em volta da cama, papai e mamãe colocavam pra gente rezar o terço e quando era oito e meia, nove horas ia dormir.

P/1 – Você falou que você tinha um rádio, né?

R – Tinha um rádio também, ouvia a novela.

P/1 – Me conta o que vocês ouviam, você lembra quais as novelas ou quais os programas?

R – A novela “Gerônimo, o herói do sertão”, “O direito de nascer”, são as duas que eu me lembro, e ouvia “A voz do Brasil”.

P/1 – Como é que era, a família toda se reunia em torno do rádio?

R – Reunia, reunia, é lógico, muito filho, não era essa coisa muito, né, mas papai fazia questão disso. Papai era uma pessoa muito pai, muito amigo, papai e mamãe, muito amigo, gostava, ele conversava com a gente. Uma pessoa bastante rígida, porque ele tinha que colocar ordem naquela família, né, então ele era bastante rígido, mas era uma pessoa muito boa, tanto papai, como mamãe, muito boa, muito atenciosos. Uma pena que eu perdi o meu pai quando ele tinha 51 anos, né?

P/1 – Jovem, né?

R – Ele morreu jovem, e quando ele morreu, a gente... Eu tinha 22 anos de idade, né, mas tudo continuou do mesmo jeito.

P/1 – Me conta, Romário, como é que foi então essa saída de casa, você saiu muito novo, dez anos de idade, como é que foi pra você? O que mudou na sua vida a partir desse momento? Como é que era esse novo colégio?

R – Bom, era um colégio grande, salesiano, onde nós estudávamos lá em cento e poucos alunos. Ali tinha de tudo, tinha o refeitório grande, tinha um campo de futebol, tinha um pomar, nesse colégio tinha a pocilga, que tinha os porcos, né, tinha o estábulo, tinha uma piscina de água natural, mas tudo muito simples. E lá um lugar muito frio, né, muito frio, tinha a igreja também ao lado, um lugar muito bonito, mas muito frio. E a gente tinha uma rotina também, levantava às seis horas da manhã, rezava muito lá. Sete horas tinha o café da manhã, levantava e ia muito rapidamente,

pra um local onde ficava pra gente estudar. Ali a gente tinha a primeira oração da parte da manhã, ia pro refeitório, tomava café, depois estudava mais ou menos das oito até meio-dia, meio-dia a gente almoçava, num salão grande. Almoçava, depois do almoço a gente tinha o horário que a gente fazia limpeza desse colégio, limpava o dormitório, as salas de aula, o pomar, o refeitório, né, limpava... Trabalhava na horta, limpava a piscina, limpava os pátios...

P/1 – Eram só meninos?

R – Só homens, né? E aí...

P/1 – Era distante da sua casa, da casa dos seus pais?

R – Era distante, para nós era muito distante, né, porque ficávamos, uns cem quilômetros.

P/1 – Você lembra como é que você foi levado até lá? Seu pai te acompanhou, quem te levou, com quem você foi?

R – Lembro, eu saí muito triste de casa, porque eu não queria sair de casa, muito ligado a coisa, né? Aí eu saí, porque da minha casa até o local que passava o ônibus uns quatro quilômetros, eu saí a pé. Não tinha nem mala aquela época, a roupa num saco, aí pegamos um ônibus, uma estrada muito ruim, um ônibus desse, a estrada muito ruim mesmo, 25 quilômetros nessa estrada, demorava duas horas de ônibus. Aí fomos, chegamos em Castelo, que é a cidade, que fica a 25 quilômetros, pegamos um ônibus, aí já é uma estrada melhor, fomos a Cachoeira de Itapemirim. Em Cachoeira de Itapemirim chegamos meio-dia, eu me lembro que eu almocei lá num restaurante com papai. Papai quis até fazer bonito lá: “Vamos levar... Tá saindo de casa, vamos num restaurante melhor”, mas o melhor naquela época era uma coisa muito simples. Aí peguei um trem, o trem que fazia a linha de Cachoeira a Vitória, e nesse trem, mais ou menos duas horas de trem, cheguei no colégio. Papai me deixou lá, o trem ia, depois vinha outro, aí duas horas depois o papai já me deixou lá. Aí ali, aí quando chegava no meio do ano tinha, todo meio do ano tinha uma semana de férias, a gente fazia isso. E o final do ano, na época do natal mais ou menos, aí tinha mais ou menos um mês, um mês e meio de férias.

P/1 – Quantos anos você estudou lá?

R – Ali eu estudei quatro anos, então eu fiz naquela época da primeira à quarta série. Dali, olha bem como é que foi, o meu pai morava no interior ainda, então não tinha como mais prosseguir o estudo lá, porque só ia até o quarto ano primário naquela época, então, pra dar sequência, eu já saí, já fui pra Araxá. Araxá é uma cidade de Minas que fica a 200 e tantos quilômetros pra lá de Belo Horizonte. Então papai falou: “Olha, você tem que continuar. Quer continuar ou você quer voltar?”, “Não, tenho, não é que eu quero, eu tenho que continuar”. Então eu saía dali, ia pra Venda Nova do Imigrante, papai me levava de jipe. Venda Nova fica a uns 60 quilômetros da onde a gente morava, aí pegava um ônibus de Vitória a Belo Horizonte, que dá mais ou menos 400 quilômetros desse local. E aí foi uma coisa, eu nunca tinha ido em cidade grande, quando eu cheguei em Belo Horizonte uma loucura. Cidade grande, já era grande naquela época, nunca tinha visto uma cidade daquela natureza, porque a cidade maior que eu conhecia era a cidade, 20, 30 mil habitantes. Belo Horizonte naquela época devia ter quase um milhão de habitantes, né? Eu me senti ali totalmente uma coisa louca, mas fiquei na rodoviária, eles me ensinaram muito direitinho como é que era, aí tinha que pegar o outro ônibus, aí peguei o outro ônibus e fui parar em Araxá. Araxá é mais ou menos uns 230, 200 quilômetros pra lá de Belo Horizonte, lá no Triângulo Mineiro, e lá eu fiquei um ano. Aí, nesse período, foi chegando meus irmãos mais novos, aí o meu pai já mudou de Montevidéu pra cidade de Castelo, aí quando mudou pra Castelo, aí eu já fui estudar em Castelo e voltei pra casa.

P/1 – Que idade você tinha então quando você voltou pra casa?

R – Aí eu voltei com 15 anos de idade, aí eu fiquei.

P/1 – Deixa eu te perguntar só uma coisa dessa fase da infância. Tem alguma história marcante, uma coisa que você, um causo, que você conte pros amigos, você conte pra família, uma coisa que tenha ficado como uma história de família, nessa fase de infância?

R – Bom, são tantos causos, né? A gente tinha, era assim sempre muitos irmãos, né, e a gente sempre, a gente, os casos, né... A gente, era nove irmãos, então a gente fazia as panelinhas da gente, então sempre tinha um grupo de irmão que brincava e disputava com outro grupo de irmão. Eu tenho o meu irmão mais velho, ele se chama Antônio Ailton, e ele é um... Ele é muito certinho aquele cara, também ele foi pra colégio de padre, muito certinho. Não é que a gente era... Ele era... Enquanto a gente era mais bagunceiro, mais travesso, ele era muito disciplinado, muito certinho, e a gente sempre aprontava com ele. E eu tinha o meu irmão que... O terceiro, o quarto lá de casa, que é aquele moleque muito moleque mesmo, né? E quando era, olha bem, olha a cabeça da gente, quando a gente, quando eu me juntava com esse quarto irmão pra, vamos dizer assim, pra maltratar esse mais velho. E a gente chamava, a gente subia no alto do morro lá, que era muita topografia, e chamava ele, a hora que ele vinha nós soltava pedra lá de cima e falava assim: “Vamos soltar, vamos ver se a gente consegue acertar ele.” E as pedras desciam, ele pulava pra lá e pra cá, Deus abençoou que não pegou (risos).

P/1 – Que perigo!

R – Que perigo! (risos)

P/1 – E a da tua vida escolar, Romário, teve algum professor marcante, uma professora ou um professor que tenha sido...

R – É, nós tínhamos uma professora, ela chamava Delcina Pravato. Essa professora ela era muito rígida com a gente e a gente... E papai, como dentista, então o que ela fazia? A gente fazia as nossas bagunças dentro de sala de aula, mas ela era muito rígida, ensinava, mas colocava a gente na linha, né? E o que que acontecia? E quando chegava assim, uma vez por semana ela ia... O papai era dentista, então ela tratava os dentes com o papai. Então papai queria saber como é que a gente estava indo na escola e aí ela contava, né, como que a gente era na escola, né? Com isso papai sabia da vida da gente na escola, e aí o papai fazia as correções. Papai como muito rígido, hoje saiu aqui na... Saiu um decreto lei, né, que não pode dar mais palmada nas crianças, né, não pode, tá aí pra ser sancionada pela Dilma. Não pode dar palmada, mas as palmadas fizeram parte da nossa vida. Papai e mamãe não davam palmada na gente querendo maltratar a gente, eu acho que a palmada que davam na gente eu acho que doía mais neles do que na gente. Então ela levava... Essa professora, Delcina Pravato, ela levava essa, tudo isso que a gente fazia de errado, toda essa bagunça da escola, levava e contava pros nossos pais e o papai, quando a coisa era mais forte, ele colocava a gente de castigo, se precisava dava um puxãozinho de orelha, mas isso não faz mal pra ninguém, não, isso ajudou a educar a gente.

P/1 – Que tipo de arte vocês faziam na escola?

R – (risos) Tipo de arte.

P/1 – É, que artes?

R – Ah, gente, a gente como menino, você imagina, a gente brigava na escola, brigava de um jogar o outro no chão, dava canelada um no outro, pegava o caderno do outro e escondia, rasgava, brinquedo de criança, maltratava, ficava implicando um com o outro. Então, quando a coisa passava um pouquinho dos limites, ela pegava e contava pro papai e o papai dava a correção na gente. Pegava a merenda do outro, essas eram as coisas que a gente fazia.

P/1 – Essa professora, ela era de que ano, era de qual dessas escolas que você citou?

R – Era dessa escola do Alto do Montevidéu, do local onde nós nascemos.

P/1 – A primeira escola então?

R – A primeira escola.

P/1 – E depois, quando você vai pra Castelo, então volta a morar com a tua família, qual que é a escola que você vai estudar?

R – Aí nós fomos pro Colégio João Bley, é um colégio estadual, é estadual. É interessante, esse colégio, antigamente não tinha, aquela época, nessa época não tinha escolas particulares, praticamente todo o ensino era público, né? E naquela época as escolas públicas tinham um nível muito bom, muito bom. Então o Colégio João Bley de Castelo era um colégio muito bom, muito bom, ele era uma referência do Estado do Espírito Santo em termos de colégio público. Então eu me lembro muito dessa professora, eu já estava no segundo ano científico naquela, o segundo e o terceiro. Então ele... Realmente as professoras eram fantásticas, os professores, as professoras davam conteúdo, né, tinham uma boa cobrança, era um bom nível, né, enfim, como...

P/1 – Você tinha uma matéria preferida?

R – Olha, eu sempre gostei mais da parte de exatas, então eu sempre gostei mais da Matemática, da Física, da Biologia eu gostava. Eu não gostava muito das matérias de Português, de língua, de conhecimentos gerais, essas coisas eu não gostava muito, não, eu gostava mais da área de exatas e da área da ciência, da Biologia.

P/1 – Romário, essa fase de adolescência, porque aí você já

está

na adolescência, né?

R – Isso, isso.

P/1 – Até um pouco antes começa, né? Antes de mudar pra Castelo. Eu queria saber se mudou alguma coisa nas coisas que você fazia de lazer mesmo, pra se divertir, se tinha festa, se ia em festa ou se saía, saía pra onde, o grupo de amigos.

R – Olha, como eu disse pra você, a gente saiu de uma vida muito simples da roça, do interior, e a gente viveu dos dez aos 15, 16 anos num internato, e os internatos, eles têm... Tinham regras muito rígidas, então você imagina, em internato, onde você tinha muito...

P/1 – Araxá era internato também?

R – Internato, internato.

P/1 – Achei que você tinha saído do internato aos 14, Araxá era... Só retomando então essa coisa que você estava explicando, que no internato era muito rígido, né?

R – Então, no internato tem as regras, normas muito rígidas, tinha como hora de levantar, hora de trabalhar, hora de estudar, hora de dormir e internato, como o próprio nome diz, você fica ali fechado. Então, por exemplo, em Jaciguá, os meus dez a 14 anos, a gente saía muito pouco, a gente ficava no internato, à noite todo dia tinha missa à noite, né, todo dia a gente rezava o terço, né? E uma vez por semana a gente ia fazer um passeio, que a gente falava, um passeio, a gente ia em alguma localidade, mas a gente não tinha convivência praticamente nenhuma com o meio externo, então não tinha uma vida social intensa. Já quando a gente foi pra Araxá, também era um internato, então era mais ou menos dentro de normas rígidas, mais ou menos parecido, mas lá, naquela época Araxá já era uma cidade de 30, 50 mil habitantes, né? Então, ali a gente já tinha uma convivência um pouco mais externa e a gente tinha liberdade de a gente sair do colégio e ir na cidade, mesmo o colégio sendo na cidade, a gente podia sair do colégio e andar pela cidade, mas tinha o horário pra fazer tal coisa. E fim de semana, depois da missa, sábado, domingo, a gente tinha uma vida muitas vezes comunitária e a gente tinha contato com outras pessoas, tinha cinema, a gente podia ir ao cinema, podia ver um filme, né? A gente começou a ter os contatos mais diretos com outras famílias, com outras pessoas. Mas a gente era muito tímido, porque a gente foi criado, nasceu num ambiente muito simples, viveu de dez aos 15, 16 anos de forma internato, então a gente tinha uma timidez natural. Bom, então quando eu voltei pra Castelo eu passei a ter uma vida social um pouco mais, um pouco maior, comecei a conviver com mais famílias, mais pessoas, uma vida de mais liberdade, de sair, de ver televisão, de jogar bola, no futebol, de assistir futebol, né? Aí eu me lembro que a gente... Aí que eu comecei a ter... É uma cidade do interior, Castelo, naquela época era uma cidade de uns dez, 15 mil habitantes, mas tinha alguns bailes, a gente ia, tinha algumas festas, a gente ia.

P/1 – Como é que eram esses bailes e essas festas?

R – Era muitas vezes... Tinha um clube nessa época, que no interior, na época, os clubes, era a época dos clubes, tinha bandas, tinha músicas. Mas só tinha um problema, que eu não tinha muitas vezes condição financeira de pagar pra entrar no clube, então, a gente não ia com muita frequência, não, né, mas a gente sempre dava um jeitinho. Mas tinha um outro que chamava Girafão, então esse daí era um pouco, era um local onde se concentrava as pessoas, os jovens, um local mais simples e ali tinha muitas vezes era som apenas, né? E ali que a gente começou a aprender a dançar, comecei a arrumar a primeira namoradinha, mas aí já tinha seus 17, 18 anos de idade. Então a minha primeira namoradinha foi com 17, 18 anos de idade, não é igual hoje, que as crianças ficam adolescente mais cedo, tudo é muito precoce, né, naquela época não.

P/1 – Como você conheceu a sua primeira namorada?

R – Ah, foi uma paixão, né, eu não posso falar porque vai dar problema (risos).

P/1 – Não pode contar? Já faz tantos anos.

R – Não, a primeira namorada, a primeira paquera, ela era uma vizinha minha, eu não vou falar o nome, mas era uma menina nova, também mais nova do que eu. Era loura, muito bonita, né? E a gente morava em Castelo, na casa não tinha televisão, e aí a gente brincava na rua, conversava na rua. E aí tinha uma novela das seis horas, não tinha televisão, e aí eu ficava na varanda, vendo a novela, mas não estava vendo a novela, eu estava de olho era na menina, né? E a gente paquerou, namorou um pouquinho, aprendemos um pouquinho, aí depois também passou aquela época, né, depois arrumamos mais outras, outras, outras e foi liberando, né?

P/1 – E essas canções, o que tocava de música nesses bailes que vocês dançavam?

R – Ah, era época da Jovem Guarda, então tinha música sertaneja, sempre foi isso,

carnaval, as modinhas de carnaval. Em Castelo sempre tinha os blocos de carnaval, a gente participava, eu já fui liberando, e as músicas da Jovem Guarda, né?

P/1 – Você tinha uma música favorita?

R – Não, gente, eu era apaixonado, como a gente... Castelo é uma cidade muito próxima de Cachoeira e a época do Rei Roberto Carlos, né? Então pra nós ele é o rei ainda. Então hoje ainda é o cantor que eu mais gosto, já se passou aí 40 anos, quase 50 anos e ainda gosto muito, né?

P/1 – Tem uma canção dele assim, que seja marcante pra você ou que seja favorita?

R – Não, não é uma marcante, eu gosto de todas as músicas dele, não tem uma que me marca, assim, mais ou menos. É Roberto Carlos, pra mim ele foi o rei e continua sendo o rei, enquanto estiver vivo será o rei dentro de mim.

P/1 – Eu queria que você contasse, você falou que tinha esse carnaval de rua, né, em Castelo, como é que era o carnaval naquela época?

R – Era as modinhas de carnaval da época e tinha os blocos, né, e se fantasiava de mulher, colocava máscaras. E aí tinha vários blocos e disputava entre os blocos. A gente saía nos blocos, né, durante o dia os homens se vestiam de mulher, as mulheres se vestiam de homem. Em muita cidade do interior tem isso ainda, e era dessa forma.

P/1 – Você saía num bloco específico ou não?

R – Não, não tinha um bloco específico, não é que a gente participava efetivamente do bloco, a gente acompanhava. E era interessante, olha bem como é que era, eu já tinha os meus 17, 18 anos de idade, eu não tinha colocado bebida alcoólica, eu nunca tinha tomado bebida alcoólica. A gente ia pros blocos, ias pros bailezinhos de cara limpa, né? Hoje os jovens já não fazem... A maioria já não faz isso mais, né, então a gente não tinha experimentado uma cerveja ainda, nada disso. Então, primeiro que a gente não tinha despertado pra isso, os pais da gente, a família da gente não tinha esse hábito de beber. E a gente tinha um problema financeiro também, né, que não tinha o dinheiro pra comprar, então só depois que a gente começou a experimentar essas coisas, aí foi assim.

P/1 – Você falou que você fez o científico, né, eram três anos na época também?

R – Eram três anos.

P/1 – E aí que queria saber quando que você decidiu o que você ia fazer de faculdade. Primeiro uma pergunta antes dessa. Você lembra o que você queria ser quando crescesse quando era criança, tinha isso assim?

R – Olha, não é como hoje, porque hoje é muito maior os meios de comunicação, as pessoas hoje têm muito mais facilidade de escolher uma carreira, uma profissão, né? No primeiro momento eu pensei em ser... Em seguir a profissão do meu pai, ser odontólogo ou dentista, né, eu acompanhava papai no dia a dia dele, né, mas...

P/1 – Ele visitava as pessoas na casa?

R – Visitava.

P/1 – Como é que era esse atendimento?

R – Ele visitava o seguinte, ele tinha os clientes, que falava, as pessoas, né, que precisavam fazer um tratamento de dente. Então ele trabalhava dois ou três dias por semana em casa e o resto da semana ele trabalhava em outras comunidades, né? Então as pessoas iam lá durante o dia todo, então ele fazia tudo. Ele fazia todo tipo de serviço dentário daquela época, um dentista prático: ele fazia obturações, fazia limpeza, extraía dente, fazia restauração, ele fazia... Falava na época, hoje são as pontes, essas coisas todas, né? E papai, além disso, ele era a pessoa que fazia as alianças, ele trabalhava muito com ouro. Então ele fazia praticamente da região todas as as alianças quase da região ele que fazia, né, e eu acompanhava, ajudava ele fazer. Bem, mas eu tinha assim, como nasci no interior, eu tinha uma ligação, gostava muito das coisas da terra. E aí começou a interferência, o seguinte, mesmo morando em Castelo, a gente tinha uma referência, uma referência muito grande, Castelo fica 140 quilômetros de Vitória, no sul do estado, e tem aqui a Universidade Federal do Espírito Santo, que é a UFES. Mas a maioria dos estudantes daquele local, daquela região, não vinha pra UFES, eles iam pra Universidade Federal de Viçosa, então a gente tinha a Universidade Federal de Viçosa como um sonho, um sonho. Bom, mas antes de ir pra Universidade Federal de Viçosa fazer o meu primeiro vestibular, eu fiz o Tiro de Guerra lá. Então com seis meses eu fiz o Tiro de Guerra, um momento legal também da vida, né, experimentamos, assim, uma outra experiência, né? E aí, além de toda a parte do Tiro de Guerra a gente fez amizade, o time, o nosso time de futebol, eu agarrava no gol, aquela coisa toda, né, a gente dava algumas saídas, jogava com outros adversários, né, tanto ali do município como até fora, então foi um período bom, eu comecei a me socializar mais. Bom, então quando chegou na época... Terminou o meu segundo grau, então eu não fiz cursinho, não fiz nada, eu fui pra Viçosa fazer o vestibular em Agronomia, mas eu não consegui passar no vestibular, eu, pra mim foi um sonho. Cheguei em Viçosa, a universidade lá é uma universidade muito bonita, uma referência, né, e pra nós era uma referência muito maior ainda, muito bonita, muito bem organizada, é uma referência em termos de universidade na área agrícola, mas eu não consegui passar no primeiro vestibular. Aí eu voltei pra casa e eu falei: “E agora?”, já estava em Castelo, mas eu não tinha condições, minha família não tinha condições financeiras de fazer um cursinho, de se preparar, bom, foi aí que eu resolvi, eu resolvi me preparar sozinho. Então eu peguei uma série de literaturas, de livros básicos de Química, de Física, de Matemática, de Biologia, tudo, e aí a coisa interessante, eu peguei com o meu vizinho, o meu vizinho se chama Anis Ventorim e Dona Laura Ventorim, que são os meus sogros, vizinho. Eu não tinha o contato com eles, mas eu sabia que eles tinham esses livros, então, eles me emprestaram esses livros básicos e nesses livros básicos eu estudava, aí eu criei meu horário de estudo. Eu levantava todo dia às seis horas, começava a estudar seis e meia, ia até meio dia, almoçava, tirava uma hora e meia, ia até as seis horas da noite, então eu fazia no mínimo sete a oito horas de estudo por dia. Aí no meio do ano apareceu um vestibular na área de Agronomia, só que eu... Na área de Agronomia, pela Universidade Federal do Espírito Santo, só que é um centro da Universidade Federal do Espírito Santo, que é o CCA/UFES, em Alegre, um vestibular do meio do ano. Eu consegui passar em Agronomia, aí começou minha vida acadêmica.

P/1 – Como é que foi essa entrada na faculdade? O que mudou na sua vida, tanto em termos pessoais como de perspectiva de trabalho?

R – Bom, aí começou a vida acadêmica, começa mesmo, então de Castelo a Alegre, que é esse centro da UFES, dá 60 quilômetros. Eu passava a semana toda nessa cidade estudando, fazendo o curso lá, e fim de semana eu voltava pra casa, né? E ali eu morava, nós morávamos num, não era nem uma república, era um quarto, tinha uma senhora que alugava quartos, nós ficávamos três num quarto e era um quarto muito simples, não tinha ventilador, não tinha nada, um lugar quente. E ali a gente estudava durante o dia dentro da universidade, dentro desse centro da Universidade Federal do Espírito Santo, e à noite a gente dormia nesse local, né? Nesse centro lá tinha a biblioteca, tinha o refeitório, enfim, tinha tudo direitinho lá. Então ali a gente começou a entrar dentro da área da Agronomia, a gente começou a ter a percepção daquilo que a gente gostava mais, que a gente tinha mais aptidão, né? E a gente passou a ter uma vida social um pouco mais independente e, logo já de início, como a gente tinha um problema financeiro familiar, porque eram nove irmãos, a primeira coisa que eu fiz foi já arrumar um jeito de arrumar um dinheirinho, né? E aí eu comecei a ser... O primeiro dinheirinho, eu trabalhava no refeitório servindo as pessoas e lavando os bandejões, então com isso eu tinha direito do café da manhã, do almoço e do jantar, então já melhorou muito.

P/1 – O trabalho era em troca da refeição, era isso?

R – Em troca da refeição, o trabalho pra servir os outros alunos e pra ajudar a lavar os bandejões, você tinha o direito do café da manhã, o almoço e jantar, então isso já foi uma coisa muito boa. Logo em seguida apareceu uma abertura de uma bolsa e aí eu comecei a ser monitor, eu fui monitor de Anatomia Animal, aí comecei... Tinha uma bolsa, uma bolsa que correspondia aí a 70% de um salário mínimo na época, só que o salário mínimo naquela época era um salário mínimo proporcionalmente menor do que hoje, né?

P/1 – Como você usava essa bolsa, você lembra, Romário?

R – Essa bolsa?

P/1 – É.

R – Essa bolsa, eu já tinha refeição de graça. Então ela servia pra pagar aonde eu dormia e ela servia também pra eu comprar minhas roupas, meus calçados, e eu ainda ajudava em casa com ela, fim de semana eu ia pra casa e ajudava, o que dava eu ajudava em casa, né? E, quando chegou já no...

P/1 – Fazia render, né?

R – Fazia render.

P/1 – Você falou que com essa bolsa você ajudava... Praticamente se mantinha, né?

R – Me mantinha e aí o que sobrava eu ajudava em casa, tá? Bom, aí quando cheguei já no terceiro, no último ano de Agronomia, no último ano, de sexta-feira eu já ia pra Castelo, já abriu uma vaga pra professor de Química e Física no Colégio João Bley, o colégio que eu estudei, como professor substituto. Eu dava aula na sexta-feira à noite, quatro aulas, no sábado de manhã e no sábado à tarde. Naquela época no sábado à noite tinha aula, então eu dava aula de Química e Física e aí foi engrossando o meu salário, né?

P/1 – Você lembra a primeira coisa que você comprou pra você, uma coisa que você desejasse e pôde comprar?

R – Ah, um sapato bonito, uma camisa bonita, né? Mas aí teve uma coisa triste, porque foi quando eu perdi o meu pai, aí eu perdi, foi uma loucura, todo mundo lá em casa e tal, papai, a gente não tinha mais a fonte de renda, e aí a gente...

P/1 – Ele adoeceu, foi isso?

R – Não, papai, ele era hipertenso, então, ele teve uma morte súbita, teve um infarto e faleceu, né? E aí nós... O meu irmão mais velho, ele estudava ainda no internato e tinha o trabalho dele também, então o que a gente fez? Além de cuidar... Cuidar não, de estar na frente com mamãe e com os sete irmãos que estavam em casa, a gente precisou arrumar uma forma de ter um pouco mais de recurso pra poder estar sustentando a família. E tinha aquela... Sempre dentro daquela ideia, né: “E agora?” Papai tinha um projeto de vida, o projeto de vida era qual? A educação, o que ele deu pra nós os outros irmãos têm que ter da mesma forma, né? Bom, então terminou aí, Deus arrumou um caminho pra nós, tinha a propriedadezinha lá ainda, meu irmão José Carlos começou a tomar conta da propriedade, tinha o café, os boizinhos, tinha o arroz, tinha o milho e fomos juntando aquilo. Eu tinha o meu salariozinho do Colégio João Bley, o meu irmão, que ficava fora também, tinha um salário, fomos juntando isso e aí os meus outros irmãos já vieram pra Vitória, aí começaram a passar, um passou em Medicina, o outro passou em Odontologia. A minha irmã Maria Amélia, eu esqueci de falar, né, que era a terceira, ela fazia Agronomia comigo também em Alegre. Então, ela começou também a se virar, ganhando um dinheirinho de bolsa também e assim a nós fomos com isso ajudando a concretizar o projeto do meu pai, de vida, da educação, né? Bom, então eu terminei o meu curso de Agronomia.

P/1 – Que ano você terminou?

R – Eu terminei em 1980.

P/1 – E aí, quando você terminou, você tinha feito já algum estágio, alguma coisa na área de Agronomia ou ainda não?

R – Não, tinha, eu já tinha feito alguns estágios, eu fiz um estágio no IBC, eu fiz estágio na Emater, eu fiz estágio numa empresa de planejamento do Governo do Estado do Espírito Santo, na época, da Secretaria de Agricultura aqui, eu fazia... Os estágios tinha um programa que eu esqueci o nome dele agora, né, que a gente fazia as aulas práticas, também durante as férias, dentro de um campo, do campus da Universidade Federal do Espírito Santo, então fiz vários estágios, né?

P/1 – Você já tinha um direcionamento quando você se formou, de uma área que você tivesse mais interesse, a questão do café, por exemplo, como é que foi isso?

R – Não, ainda não era o café. Aí a área de Agronomia é muito ampla, então, a gente tem desde disciplinas ou matérias muito básicas, né, saindo da Botânica, passando pela Zoologia, à área das exatas, da Matemática e da Física, da Química, passando pela área de pastagem, de suinoculturas, as grandes culturas, de construção rural, Climatologia e aí pra frente. Então é muito amplo, então eu tinha que decidir, mas eu tinha uma coisa na minha cabeça: “Eu não vou parar aqui, eu vou querer fazer um mestrado”. E aí por interferência, interferência boa de professores do CCA/UFES lá de Alegre, eu optei pela área de Genética e Melhoramento de Plantas, optei por isso. Com toda a sinceridade, foi uma interferência muito boa, mas eu não tinha muita profundidade no que eu iria trabalhar. Bom, então eu fiz o meu pedido de mestrado

pela UFV, pela Universidade Federal de Viçosa, que era a universidade que eu tinha um sonho também de estudar nela. Eu fui aprovado pra ir pra Universidade Federal de Viçosa, então eu larguei as coisas, fui pra Universidade Federal de Viçosa e lá eu fui bolsista do CNPq e naquela época a bolsa era uma bolsa, assim, um pouco mais remunerado do que hoje, de mestrado. E com aquele dinheiro da bolsa eu me sustentava, eu sobrevivia mais ou menos com 30, 40% desse valor da bolsa, e o resto eu devolvia lá pra casa pra dar sequência aos estudos dos meus irmãos, tá certo, pra ajudar isso daí, nesse sentido. Aí fiz o meu mestrado e a minha tese foi com a cultura do milho, tá certo, então a minha dissertação de tese, a minha pesquisa foi com a cultura do milho. Eu fiquei lá em Viçosa dois anos e meio e aí, quando foi em 80, final de 84, de 83, já estava terminando o curso e na época, aqui no Estado do Espírito Santo tinha a empresa de pesquisa, que hoje é o Incaper, a empresa de pesquisa chamava Emcapa, e eles tavam recrutando, eles tavam precisando de contratação. Então tinha sido interiorizado a empresa de pesquisa, ela era centralizada aqui em Vitória e, por uma decisão importante que teve na época, né, eles resolveram interiorizar a pesquisa. Interiorizar a pesquisa é o quê? Seria reforçar as pesquisas em diferentes locais estratégicos ou diferentes macro ambientes do Estado do Espírito Santo. Então toda a Emcapa, que era centralizada aqui em Vitória, ela foi interiorizada. Então se criou um Centro de Pesquisa em Linhares, outro Centro de Pesquisa no Município de Cachoeira do Itapemirim, outro Centro de Pesquisa na região serrana, em Domingos Martins, e com isso eles precisavam tanto de interiorizar os pesquisadores daqui como, vamos dizer, reforçar a equipe de pesquisa. Como eu estava terminando o mestrado naquela época, eu fiquei sabendo disso, eu me apresentei e eu fui contratado pra trabalhar como melhorista de plantas em Linhares.

P/1 – O que era o cargo melhorista de plantas?

R – Era pesquisador na área de melhoramento de plantas.

P/1 – Explica pra gente em linhas gerais qual que era o papel da Emcapa na época? Qual que era o papel desse instituto de pesquisa, qual que era a função, o que ele executava?

R – Bom, a Emcapa é um órgão vinculado ao governo do Estado do Espírito Santo, à Secretaria de Estado da Agricultura do Estado do Espírito Santo, então ela é estadual.

Emcapa é a Empresa Capixaba de Pesquisa Agropecuária, é uma instituição de pesquisa agrícola, foi fundada em 1973. É como fosse a Embrapa, foi criada na mesma época. A Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisa, no âmbito federal, e a Emcapa é a empresa de pesquisa agrícola do Estado do Espírito Santo, no âmbito estadual. Então naquela época ela já tinha quase 20 anos, ou 20 anos de existência, então a Emcapa naquela época trabalhava com a pesquisa agrícola no Estado do Espírito Santo, nas diferentes áreas do conhecimento, em diferentes culturas, com milho, feijão, arroz. Café naquela época não era nós que pesquisávamos, era o IBC, Instituto Brasileiro do Café, e trabalhava com pecuária, né, enfim, com a olericultura, com a fruticultura. Então a gente foi pra Linhares, fomos contratado dentro dessa interiorização, nós fomos lotados em Linhares, e nós fomos pra Estação Experimental de Linhares e lá nós começamos a nossa vida como pesquisador dentro da área de genética e melhoramento de plantas, com a cultura do milho. Naquela época o milho era a cultura que tinha maior área plantada no Espírito Santo, naquela época se plantava 280 mil hectares, era a principal cultura alimentar do Estado do Espírito Santo, né? Então tinha muita demanda pelo milho na época e a gente começou a trabalhar dentro de um programa de melhoramento genético de milho e trabalhamos nesse programa de melhoramento genético mais de 20 anos.

P/1 – Que anos foi isso mais ou menos, Romário, quando você começou, quando você foi contratado?

R – Oitenta e cinco, eu comecei a trabalhar com o programa, eu fui contratado em 84, 85 eu já estava trabalhando com a pesquisa na área de genética e melhoramento de milho.

P/1 – Você era casado já nesse momento, não?

R – Ainda não, então eu fui solteiro pra lá, já namorava com a Liliam Maria Ventorim, que é a minha esposa.

P/1 – Conta como é que você conheceu a sua esposa pra gente.

R – A minha esposa?

P/1 – É.

R – Bom, a minha esposa é castelense, a minha esposa é minha vizinha, só que a gente tinha uma distância, qual é a distância? Vamos dizer assim, eu não vou dizer, vizinha, mas a gente não tinha uma aproximação de conversa, de amizade, né, por duas questões: uma questão que ela também é filha de italiano, ela tinha também as suas normas dentro da casa dela, como mulher ela não tinha uma abertura de sair muito de casa, ela ficava muito na casa dela, né? E como eu também fiz o meu segundo grau e o meu curso superior fora de Castelo, a gente só se via, né, a gente nunca tinha tido oportunidade de conversar. Mas a mãe dela tinha, assim, uma aproximação muito grande com o meu pai e com a minha mãe e eles conversavam, conversavam, iam à missa juntos, quando voltava da missa, ela passava, um parava na frente da casa do outro, continuava a conversa. Eu não sei muito bem como é que foi, né, a gente começou a conversar um com o outro e começou a ter uma amizade.

Eu já estava em Viçosa, eu estava em Viçosa, e quando eu voltava a gente se encontrava, conversava como amigo, né, e tal. À noite a gente dava uma saidinha junto como amigo e essa amizade, ela foi, assim, evoluindo, e de amizade se transformou num namoro. Nós namoramos aí uns três anos, se eu não me engano, mais ou menos, mas aquele namoro um pouco longe, porque eu estava em Viçosa fazendo o meu mestrado e ela estudava aqui em Vitória, ela já estava se preparando pra fazer o curso de graduação dela também, né?

P/1 – O que ela fez?

R – Ela fez Administração de Empresa. Bom, então a gente...

P/1 – Namoraram três anos e aí...

R – Namoramos três anos mais ou menos, eu acho que é isso, né?

P/1 – E aí se casaram?

R – E nós nos casamos em 1986.

P/1 – Como é que foi o casamento de vocês?

R – O casamento? Ah, foi um casamento simples, mas um casamento bonito. Nós casamos, namoramos três anos, casamos num dia, eu lembro bem, hein, no horário de verão, a 35 graus a temperatura, horário de verão de Castelo, que é uma cidade muito quente, às dez horas da manhã. Então, um dia muito quente, aí nós fizemos o casamento na matriz da igreja, tinha mais ou menos umas 200 pessoas no casamento, mais ou menos. Teve uma recepção no Clube Purus, em Castelo, né? E ali foi feita uma recepção, tinha tipo um almoço, né, e terminou mais ou menos essa recepção três horas da tarde. Depois nós fomos pra lua de mel. Aí a primeira noite nós ficamos num hotel em Cachoeira de Itapemirim, depois fomos pra região serrana do Rio de Janeiro, ficamos uma semana fora, depois voltamos e a nossa vida começou.

P/1 – Vocês voltaram e vocês foram morar juntos onde?

R – Bom, aí voltamos e eu estava em Linhares, ela ficou ainda um ano aqui em Vitória,

ela estagiava aqui, então, ela ficou mais ou menos um ano aqui.

P/1 – Mas vocês já tinham montado uma casa de vocês ou ainda não?

R – Ainda não, ela ficava na casa, num apartamento aqui em Vitória. E eu aluguei um apartamento lá em Linhares, um apartamento também bem simples, eu me lembro muito bem, né, a nossa sala eram duas cadeiras de praia e uma televisão, era isso a nossa sala, muito simples. E aí ela foi pra lá e nós começamos a nossa vida. De repente ela virou... Ela passou a ser tipo uma bolsista na Emcapa, né, naquela época, começamos a trabalhar dentro do mesmo instituto. E não tinha empregada, a gente fazia as coisas caseiras e tudo, e em 1988 nós tivemos o nosso primeiro filho.

P/1 – Como é que foi quando ela contou que estava grávida, como é que foi o anúncio da gravidez, você se lembra?

R – Eu me lembro, mais ou menos eu me lembro. Foi mais ou menos programado, né,

aí ela chegou com o resultado, foi um dia, assim, de muita emoção nesse dia, né, muita emoção. A gravidez dela foi uma gravidez bem tranquila.

P/1 – O parto você acompanhou?

R – Acompanhei.

P/1 – Como é que foi?

R – Só que no dia do parto, quando ela... Ela tinha a irmã dela aqui, a família ficava aqui. A gente ficava em Linhares, sozinhos lá, quase a família ficava toda aqui. Teve todo o acompanhamento médico, quando faltava aí uns dez, 15 dias pra, pela programação, pra ter o Luís Felipe, o nosso primeiro filho, aí a Liliam já ficou na casa da irmã dela aqui, podia ser de uma hora pra outra, né? Mas eu não fiquei aqui, eu

fiquei lá trabalhando. E aí de manhã ela, um dia aí, se eu não me engano, uns oito, dez dias antes do dia previsto, rompeu a bolsa dela cinco horas da manhã e ela não entendia aquilo, como é que era, né? Quando deu sete, oito horas da manhã, a bolsa rompida, aí foi ao médico: “Não, tem que fazer o parto”. Aí eu tava... Até eu me lembro, era um dia de reunião, estava numa época que tinha uns projetos de irrigação financiada a nível de Brasil, né, então eu estava com uma autoridade de Brasília discutindo isso lá. Então, quando foi 11 horas do dia eu recebi a notícia que a minha esposa já tinha ido pra maternidade pra ganhar o Luís Felipe. Eu saí meio apavorado de lá, a minha irmã me trouxe, aí cheguei aqui uma hora da tarde, ela já tinha ganhado o Luís Felipe, um menininho, quatro quilos, grande, cabelo pretinho, eu já era quase calvo, né, e ele muito cabelo pretinho, uma felicidade muito grande.

P/1 – Como é que foi ser pai, Romário? O que mudou na sua vida?

R – Ah, gente, eu vou dizer assim, é lógico, o filho da gente é diferente, mas a gente exerceu um pouco essa função, não vou dizer de pai, mas acompanhou muito a família muito, né? Então ser pai, ser pai é uma emoção, uma emoção diferente, é uma emoção misturada com alegria, misturado com uma responsabilidade, misturado com um amadurecimento, compromisso, então é uma mistura de coisas, né? Mas eu sempre gostei muito de criança, mesmo dentro das correrias da vida da gente, eu sempre procurei ser um pai muito presente com os meus filhos, por achar ser importante e por gostar. Por gostar de participar, participar como pai, como amigo, participar da vida do filho, porque o meu pai foi assim. Então a minha vida, o meu espelho sempre foi o meu pai, tá certo, então eu sempre procurei ser bastante presente juntos dos meus filhos, e foi muito gostoso.

P/1 – Quantos filhos você tem, Romário?

R – Bom, são três homens, é o Luís Felipe, Guilherme e Arthur, né? Então, assim, o Luís Felipe hoje está com 26 anos, o Guilherme 22 e o Arthur 18, 18 anos, né?

P/1 – Estão moços já.

R – É.

P/1 – Eles foram pra uma outra área?

R – Bom, aí nós temos que voltar, né? Eu estive lá em Linhares, na Emcapa de Linhares, lá eu fiquei 16 anos. Então eu trabalhava com a pesquisa do milho, de genética e melhoramento do milho e nesse período que eu fiquei em Linhares, dentro de todo um programa de pesquisa do milho, que era muito importante o milho na época no aspecto econômico e social, a gente recomendou mais de 40 cultiváveis de milho para os diferentes ambientes do Espírito Santo e desenvolvemos, naquela época, e lançamos e registramos no Ministério da Agricultura três cultiváveis de milho para o Estado do Espírito Santo, que foi a variedade EMCAPA 201, EMCAPA 202 e EMCAPA 301. Então foram três tecnologias na área de genética e melhoramento do milho, que foi muito utilizado e continua sendo utilizado no Estado do Espírito Santo. Bom, falando do milho ainda, o programa continuou, de melhoramento, em 2007 foi lançada a quarta variedade de milho desenvolvida por esse programa que a gente coordenou, que é chamado o Incaper, aí já é Incaper, Incaper 203, que é o milho capixaba, né, então no milho foi isso. Bom, então, quando chegou mais ou menos na década de 2000 mais ou menos, antes um pouquinho, o milho começou a perder expressão no Espírito Santo e o café começou a ter muita demanda de pesquisa, muita demanda de informação pelo café conilon. E nós estávamos numa região lá de Linhares, essa região norte do Estado do Espírito Santo, que representa hoje 80% do café conilon do Espírito Santo, isso hoje, 80%, isso dá quase sete, oito milhões de sacas de café. Então tinha uma demanda muito grande por resultado de pesquisa com café conilon na área de melhoramento, demanda por variedades, de nutrição, na área de manejo da planta, da poda do café, enfim, da irrigação e assim por diante. Bom, então, como o milho começou a perder a importância econômica e social no Espírito Santo e o café passou a ter uma importância muito grande, então precisava reforçar as equipes de pesquisa. Então eu tive um chamamento do nosso instituto que fosse deslocado para a área do café. Então naquela época, mais ou menos 88, 89, por aí, eu comecei a trabalhar dentro da área de melhoramento genético do café conilon, então foi aí que eu comecei com o café conilon. E aí nós... Trabalhando em conjunto, né, sempre trabalhando muito em conjunto com diferentes instituições do Brasil, como o Instituto Agrônomo de Campinas, a Universidade Federal de Viçosa, a Epamig, a Universidade Federal de Lavras, a Embrapa Café, né? Então nós, uma equipe aqui do Espírito Santo em conjunto com essa equipe de fora, nós começamos a definir os nossos programas de pesquisa e eu sempre voltado para a área do melhoramento genético do café conilon.

P/1 – Explica um pouquinho pra gente o que seria o melhoramento genético, especificamente na área do café, em linhas gerais.

R – Bom, quando trabalhamos em pesquisa, a gente busca sempre desenvolver procedimentos, tecnologia, conhecimento, visando prioritariamente aumentar a produtividade, melhorar a qualidade e fazer com que essa cultura, ela... A cultura que a gente está trabalhando no melhoramento, ela seja cada vez mais sustentável no aspecto econômico, social e ambiental. Então sempre pensando em maior produtividade, melhor qualidade de bebida no café, sempre pensando em desenvolver variedades mais resistentes à seca, que aqui no Espírito Santo tem muita seca, sempre pensando em variedades que tenha uma arquitetura melhor de planta, buscar sempre variedades ou cultiváveis mais resistentes à praga e doença. Então dentro dessa linha que nós trabalhamos, sempre nessa linha que nós trabalhamos, né?

P/1 – Deixa eu te perguntar, porque a gente conversou com alguns produtores rurais, muitos falaram em clones, né, clone de conilon, isso tem a ver com a criação de clones e seleção de clones, tem uma relação entre o que você

está

falando?

R – Bom, vamos, então agora vamos entrar dentro da nossa área de atuação, não sei se ficou alguma coisa pra trás aí, né?

P/1 – Não, eu acho que

está

bem encaminhado, pode seguir.

R – Está bem encaminhado, né?

P/1 – Tá, está bem encaminhado.

R – Bom, então dentro da minha vida profissional tem aí desde... Com café, dentro do melhoramento a gente começou mais ou menos em 97, 96, 97, por aí que nós começamos a trabalhar, né? Sempre, então qual que é o objetivo maior desse programa de melhoramento genético de café conilon? É desenvolver variedades que podem ser clonais, quando fala clonais são variedades que são propagadas pela parte vegetativa da planta, ou variedades propagadas por sementes, que seja, que tenha adaptação, que tenha estabilidade de produção pro Estado do Espírito Santo e que tenha alta produtividade, que tenha tolerância a praga e doença, que seja resistente à seca, que tenha qualidade de bebida. Enfim, desenvolver variedades que vão ao encontro da demanda ou da necessidade do produtor, do industrial e do consumidor, então é isso que nós perseguimos. Bom, então nós formulamos o nosso... Os produtores cada vez iam demandando da gente variedades mais responsivas. O que que são responsivas? Que a medida que você fosse colocando, injetando, usando tecnologia nela, quando eu falo tecnologia, mais irrigação, mais adubação, um melhor manejo, que ela tivesse resposta em produção. Bom, o conilon é uma planta de clima quente, ela é uma planta que deve ser plantada em altitudes abaixo de 500 metros, de topografia, topografia não, de temperatura entre 22 e 26 graus centígrados. E no Espírito Santo tinha uma matéria prima muito boa pra se fazer melhoramento desse café, uma vez que todas as plantas que existiam até essa época no Estado do Espírito Santo eram propagadas por semente e, se é propagada por semente, nós chamamos que ela tem variabilidade genética. O que é ter variabilidade genética? Nessas populações dos produtores a gente tem condição de selecionar plantas do jeito que a gente imaginasse, de porte mais alto, porte mais baixo, planta que tenha boa uniformidade de maturação, plantas que tenham maior tolerância a praga e doença, melhor qualidade de bebida e assim por diante. Então nós começamos a explorar essa variabilidade, começamos a aplicar os métodos de melhoramento. Então explorando essa variabilidade que está aí dentro do conhecimento, dentro da estratégia do melhoramento, usando o conhecimento dessa equipe multidisciplinar que tinha e tem no Incaper e buscando todo aporte de outras instituições, como eu já disse, o Instituto Agronômico de Campinas, a UFV, Embrapa Café e assim por diante. Nós até hoje já desenvolvemos nove variedades de café pro Estado do Espírito Santo, dessas nove variedades, oito são propagadas, são clonais, são propagadas pela parte vegetativa, uma é propagada por semente. Essas variedades, elas são a base da renovação do parque cafeeiro de conilon do Espírito Santo. Então o que que é renovação? Os produtores hoje nós temos mais ou menos 300 mil hectares de café conilon plantados no Espírito Santo. O que o produtor está fazendo? Ele sabe que o conilon é uma planta que se você plantar uma variedade responsiva, uma variedade de alto potencial de produção, e se der uma boa nutrição, uma boa irrigação, um bom manejo da poda, é uma planta que ela tem um potencial de produção muito elevado, ela pode chegar a 150, até 200 sacas por hectare. Mas para isso, para ela responder à adubação, pra ela responder à irrigação, a genética da planta tem que, ela tem que ter variedades que respondem a essas outras tecnologias. Bom, então o produtor hoje, ele está renovando o seu parque cafeeiro, ele está renovando na base de 7 a 8% ao ano. O que significa isso? Todo ano ele está, no geral, no Espírito Santo, está se renovando de 50 a 60 milhões de plantas por ano, e como é que eles tão renovando? Eles tão tirando as plantações antigas e plantando os clones das variedades desenvolvidas e lançadas pelo programa de melhoramento do Incaper.

P/1 – Romário, qual o tempo de vida útil, tem isso, de uma planta de café, pra se manter produtiva? Você está falando em renovação.

R – Isso.

P/1 – Eu estou aqui imaginando que, claro, tem a questão de renovação, envolve trocar por uma variedade mais, o que você está chamando de responsiva, né, mais produtiva, uma melhora, de melhor qualidade, tudo isso.

R – Mais resistente à doença, isso.

P/1 – Mas envolve também trocar plantas que já não estão mais tão produtivas por uma questão de idade, ou não?

R – Tereza, isso não tem uma idade, uma idade definida. É o seguinte, se você implantar uma lavoura de café que seja clonal, conilon, clonal ou propagada por semente. Se você der, ou vou dizer assim, fazer um bom manejo dessa lavoura, plantar a variedade correta, no espaçamento correto, fazer as adubações, que é a nutrição que a planta precisa, fazer a irrigação correta, fazer o manejo da poda de acordo com a recomendação, uma lavoura de café clonal ou de semente conilon pode durar 20, 30 anos. Mas o que é que está acontecendo? A ciência, a pesquisa na área de melhoramento, ela é dinâmica, então, quando eu digo dinâmica é um programa, o programa de melhoramento, ele está avançando, cada... De ano em ano a gente está conseguindo vantagens dentro dos novos materiais genéticos que tão sendo desenvolvidos. Isso não é só no café, é no milho, é na soja, é na cana, é no tomate, é no suíno, é nas aves, né? Então a pesquisa e melhoramento genético, ela busca cada vez agregar vantagens naquilo que você está desenvolvendo. Então depois de dez, 12 anos, mesmo o produtor tendo uma lavoura muito boa, já apareceu uma variedade melhor, que tenha maior produtividade ou que tenha melhor qualidade de bebida ou que é mais tolerante à seca e assim por diante. Então em geral, numa média, aqui no Espírito Santo as lavouras, elas têm sido renovadas de dez a 12 anos, não é porque ela não serve mais, é porque se renovar, o produtor vai ter mais ganho e vai ter mais segurança naquilo que está fazendo. Bom, então hoje é mais ou menos 50 a 60 milhões de plantas que são renovadas por ano, usando essas nove variedades desenvolvidas por esse programa de melhoramento, que a gente trabalha nele com a nossa equipe.

P/1 – Romário, como é que é a sua interlocução, você tem uma interlocução direta com os produtores nesse seu trabalho, de tempos em tempos? Eu queria entender como é que funciona.

R – Bom, primeiro ponto, esse é um comentário importante, o nosso instituto, o Incaper, ele tem 56 anos de idade, tem 28 anos que trabalha com pesquisa em café, e a maioria dos nossos projetos de pesquisa, eu vou falar no café hoje, envolvendo arábica e conilon, tem 40 projetos de pesquisa, mais de 150 experimentos sendo conduzidos, não só no melhoramento, mas nas outras áreas, são desenvolvidos isso nos principais macro ambientes do Estado do Espírito Santo, né? E todos esses projetos são projetos de pesquisa aplicada, nós trabalhamos muito pouco em termos de pesquisa básica. A gente tem uma visão, o seguinte, as pesquisas básicas nós trabalhamos em parcerias com as universidades, então as pesquisas básicas que dão sustentação à nossa pesquisa aplicada, ela é feita em conjunto, em parceria com as universidades. A maioria dos nossos projetos de pesquisa é pesquisa aplicada aqui, e o Incaper é uma das poucas instituições públicas que tem a pesquisa e a extensão rural dentro do mesmo órgão. Então, a gente tem tanto um contato, uma linha direta de contato com o extensionista, que é o agrônomo que faz a transferência de tecnologia ao produtor, como o próprio produtor. Então a gente desenvolve a tecnologia, antes da gente chegar ao final da tecnologia e a gente já passa as informações, ou já faz com que o extensionista, que é os agrônomos e técnicos agrícolas que tão lá em cada município, que eles conheçam a tecnologia, o detalhe dessa tecnologia, porque eles que vão fazer com que essa tecnologia chegue aos produtores. O primeiro ponto é a capacitação desse extensionista, não só do Incaper, mas das prefeituras, das associações, das cooperativas, do setor privado e assim por diante. E dentro do Incaper, como a pesquisa e a extensão, elas estão juntas, a gente trabalha com diferentes metodologias de transferência, como dia de campo, como visita técnica, como encontro de cafeicultores, como unidade demonstrativa, que são unidades de referência, onde a gente, numa área, a gente coloca a tecnologia, leva o produtor pra ver, com as publicações, desde o livro do café conilon até um folder, e assim por diante. Hoje, além da parte de está na frente de um programa de melhoramento de café conilon, nos últimos dez anos eu tenho uma função, eu coordeno, eu sou coordenador do Programa Estadual de Cafeicultura do Estado do Espírito Santo. Então tem dez anos que além disso a gente coordena um programa de café a nível de estado, então, a gente tem uma interação bastante intensa com os diferentes setores da cafeicultura, o setor de ensino, de pesquisa, o setor da indústria, do mercado, da comunicação, os setores organizados com as cooperativas e com o produtor rural. A gente tem um contato bastante bom com o produtor rural e isso faz muito bem pra gente, né?



P/1 – Romário, dentro desse contexto, dessa realidade então que você está descrevendo, de trabalho do Incaper, eu queria entender como é que começou essa interlocução com a Nestlé. A Nestlé procurou vocês, mas do seu ponto de vista, como é que você conheceu, por exemplo, o Nescafé Plan, como é que foi essa aproximação?

R – Bom, a gente com a Nestlé, sempre a gente teve um conceito que a Nestlé é uma das principais empresas do mundo, né, do café. Então, a gente sabe que ela está aqui no Brasil, está em diferentes partes do mundo, sabemos que é uma grande demandadora de café de qualidade, né? E a gente conhecia tanto o lado, um pouco do lado comercial, e também sabia que ela tem um programa de pesquisa no Brasil e fora do Brasil. Bom, então através de eventos que a gente participa, tanto em nível de estado como em nível de Brasil e até fora, a gente passou a começar a ter a relação com a Nestlé, né? A Nestlé também começou a conhecer, através dessa relação entre pessoas, depois profissionais, entre profissionais, depois entre instituições, passou a conhecer a importância que tem o conilon no Espírito Santo, isso então ficou uma coisa de mão dupla. A Nestlé passou a ter interesse pelas coisas do café ligado ao Espírito Santo e nós do Incaper também passamos a ter interesse pela Nestlé, uma vez que a gente sabe que ela é uma referência mundial pensando em café.

P/1 – No que você acha que essa relação beneficia os dois lados, assim, entre a Nestlé e os produtores do Espírito Santo?

R – A primeira questão, eu acho, é que essa relação, ela está numa relação profissional, é uma troca de conhecimento, troca de conhecimento, troca de conhecimento e de experiência. Então a Nestlé, ela tem a sua equipe de trabalho, ela tem a sua equipe de pesquisa, ela tem as suas estratégias de trabalho, ela está no Brasil e em várias partes do mundo. E nós temos aqui o café como a principal atividade dentro do Estado do Espírito Santo e também nós temos nosso programa de pesquisa e transferência de tecnologia. Ela enxergou... Nós enxergamos essa importância do lado de lá e eles enxergando essa importância que tem o café dentro do Estado do Espírito Santo e como o Incaper está inserido nisso. Então, a partir de 2004, 2005, nós começamos a fazer o nosso primeiro acordo de cooperação técnica interinstitucional.

P/1 – Como é que é esse acordo? O que ele prevê?

R – Bom, o acordo de cooperação técnica, ele começou principalmente voltado à questão da qualidade do café. A gente sabia ou a gente tinha dentro, até dentro do nosso próprio planejamento estratégico pra cafeicultura do Espírito Santo, que planeja essa cafeicultura até o ano 2025. Esse planejamento fala o seguinte, em resumo dos resumos dos resumos, nós temos que trabalhar em ações pra duplicar a produção e a produtividade do café no Espírito Santo, mas desse café produzido pelo menos 30% dele tem que ser café de qualidade. Já tinha-se uma visão há dez anos que o mundo estava de olho ou precisaria ou demandaria mais conilon, mas conilon de qualidade. E como a Nestlé é uma das empresas ou das instituições que demanda por esse café e ele tem um programa de pesquisa, não só na área de melhoramento, visando aumentar a produtividade, mas ele tem um foco muito grande pra qualidade. Então nós fizemos o primeiro acordo de cooperação técnica há dez anos com a Nestlé: que a Nestlé passasse a avaliar os materiais genéticos do nosso programa de melhoramento genético de conilon, avaliar a qualidade de bebida desse café. Dentro das diferentes ações do programa de melhoramento, faltava essa ação da questão da qualidade.

P/1 – Como é essa avaliação, em termos gerais?

R – Bom, hoje nós temos, dentro do programa de melhoramento, nós estamos trabalhando com mais ou menos mil clones diferentes e, dentro dessa estratégia, a gente avalia esses mil clones em três macro ambientes, as diferentes características agronômicas. E nos últimos dez anos, tendo essa visão de futuro, que precisaria de mais conilon com qualidade, nós passamos a precisar de fazer as avaliações bioquímicas e sensoriais. As bioquímicas estão ligadas a todos componentes químicos do grão.

P/1 – Então você estava falando da avaliação bioquímica, o que é avaliação bioquímica?

R – Bom, precisava de ter as avaliações bioquímicas e sensoriais dos grãos, né? A parte bioquímica são os componentes químicos que têm no grão, o que tem num grão de café que dá todo esse prazer, toda essa sensação boa, que deixa ativo, que a indústria precisa, que o consumidor gosta, que nós gostamos, o quê que tem? Será que é a mesma coisa que tem no café arábica? A primeira pergunta, o que tem dentro de um fruto, de um grão de café conilon é o mesmo que tem no arábica? Muitos no Brasil e até fora do Brasil diziam que o conilon não tinha qualidade de bebida, mas será que não tem ou será que não foi estudado? A pergunta é essa. Bom, então a Nestlé tinha todo o interesse, uma vez que esse café estava sendo demandado, o conilon, então vamos estudar dentro de um programa de melhoramento que o Incaper trabalha, dentro de um programa que vai desenvolver variedades clonais e propagadas por semente, dentro de um programa que essas variedades clonais, esses clones, vai ser a base da renovação da cafeicultura no Espírito Santo. Bom, então tinha uma preocupação por trás disso aí, e se esses clones, que formam essas variedades, não tiverem qualidade de bebida, como é que fica isso? E nós também, como pesquisador, nós tínhamos essa preocupação, porque nós temos que desenvolver um produto que vai ao encontro dos nossos clientes. Então, quando chega no fim do programa de melhoramento, nós estamos selecionando os clones pra compor novas variedades, o que que nós fizemos? Pegamos amostras desses grãos de cada clone promissor, nós falamos clone elite, pegamos os grãos de cada clone separados, preparamos esses grãos e mandamos lá pra Nestlé, na França, fazer as avaliações bioquímicas. Então faz uma varredura, óleo, proteína, cafeína, cinza, açúcares etc. etc. etc., e a parte sensorial, que está ligada às características de amargor, aroma e sabor. Encaminhamos pra lá e eles fizeram a avaliação, a Nestlé, mandaram os resultados pra gente e baseado nesses resultados nós começamos a inserir dentro das nossas variedades apenas os clones que foram de destaque no aspecto biológico associado à produtividade, resistência à praga e doença, arquitetura da planta, né, arquitetura da planta, tamanho de grão, boa uniformidade de maturação, menor vulnerabilidade de produção, mas que tivesse nele agregado a qualidade de bebida. Então isso foi, foi muito bom, primeiro, tirou-se uma dúvida que tinha na cabeça tanto da Nestlé como da gente: “Que café clonal é esse em termos de qualidade? Será que vai ao encontro do que nós precisamos?”, e também nós: “Será que nós estamos desenvolvendo aquilo que a indústria e o consumidor quer ou necessita?”, então foi isso. Bom, então isso a gente continua dentro do acordo de cooperação técnica, nós estamos renovando isso daí, por exemplo, as últimas três variedades lançadas, há um ano, dia 13 julho vai fazer um ano, que é a diamante, jequitibá e centenária, são três variedades clonais que, além de toda a parte agronômica, uma série de vantagens em relação às demais até então lançadas, elas foram aprovadas pela Nestlé, ligadas às características bioquímicas e sensoriais.

P/1 – Como é que entra a questão do 4C nisso, Romário?

R – Bom, o 4C... Quando nós falamos 4C, nós estamos, assim, pensando sempre nas boas práticas agrícolas, então hoje nós sempre, o que a gente, o que que nós imaginamos? O mundo consumidor de café, ele cada vez mais, ele vai, não é só no café não o consumidor, vamos dizer assim, ele cada vez mais vai querer ter mais segurança naquilo e, cada vez mais ele vai querer conhecer aquilo que ele está consumindo e cada vez mais ele quer mais segurança daquele alimento que ele está consumindo ou daquele produto que ele está utilizando. Bom, então hoje o ideal é que a gente cada vez mais tivesse trabalhando em qualquer atividade da forma mais sustentável possível, sustentável no aspecto econômico, no aspecto ambiental e no aspecto social. Bem, quando você trabalha dentro de qualquer código de conduta, pensando num produto seguro, ele vai passar por um processo onde que se possível seja da melhor forma ou mais rastreado possível e, quando se fala no rastreamento, esse rastreamento, ele está associado às boas práticas agrícolas. As boas práticas agrícolas, associado... Os procedimentos de plantio, de colheita, de secagem, de beneficiamento, do uso da mão de obra, do uso dos defensivos e assim por diante. Então, quando a gente fala no 4C, ele no fundo, ele é um processo onde vai estar verificando se há o uso das boas práticas agrícolas na produção do café.

P/1 – De que maneira você acha, pensando nessa parceria, nos produtores rurais que aderiram ao Nescafé Plan, a esse trabalho de parceria com a Nestlé, que tem a ver com essa verificação das normas, do 4C pra que o café que eles produzem se enquadrem no selo, né, o produto deles esteja enquadrado no selo, você acha que isso traz benefícios pro produtor rural e por quê?

R – Olha, não dá pra gente pensar mais em produzir café se ele não for produzido de forma segura, porque isso já é uma necessidade. Quando se fala isso nós não estamos nem pensando em prêmio de remuneração, nós estamos pensando que isso é uma exigência de quem usa o produto, né? E o nosso instituto, ele trabalha nesse sentido, tanto na pesquisa como na assistência técnica e extensão rural, a gente sempre busca desenvolver produto e transferir tecnologia, que ela seja a mais sustentável possível. Quando nós falamos de mais sustentável possível, é aquela tecnologia ou aquele conhecimento ou aquela informação, aquela experiência, que ela dê mais segurança ao produtor e ao consumidor. Ao produtor, associada à tecnologia que aumenta a produtividade, que diminui o uso da mão de obra, que hoje é escassa, e que diminui o máximo possível o uso dos agrotóxicos, dos defensivos e que essas tecnologias, elas possam ser mais resistentes tanto aos fatores bióticos, como o ataque de pragas e doenças, como os fatores abióticos, mudança climática, a seca, as altas temperaturas e assim por diante, né? Então isso é o dia a dia nosso, que a gente tem tentado contribuir tanto na capacitação de outros profissionais, na formação de outros profissionais, na capacitação de profissionais que já estão no mercado de trabalho e também cada vez mais levando essa mensagem e a conscientização aos produtores que trabalham com café e com outras culturas também.

P/1 – Nisso que você está me descrevendo, você fala dentro da parceria com a Nestlé ou é o Incaper, você está falando pelo Incaper?

R – Bom, eu estou falando como Incaper, mas o quê que acontece? Ultimamente as nossas relações, elas, ligado à parte de campo, que a Nestlé, ela tem um trabalho, é um trabalho bastante bom, muito importante, nos últimos três anos, onde ela tem o objetivo de aumentar ou de ajudar a aumentar a produção de café sustentável, né, principalmente de conilon no norte do Estado do Espírito Santo. Bom, a gente participou da concepção desse programa e ultimamente a gente está bastante envolvido com a Nestlé. Então, hoje a gente está fortalecendo bastante essa relação, não só na parte de pesquisa de cada qualidade, mas eu vou dizer também, hoje nós estamos ligados à parte de pesquisa de melhoramento genético também, não só na parte de qualidade. Mas hoje nós já estamos com um acordo de cooperação técnica, o Incaper e a Nestlé, pra desenvolver a pesquisa na área de melhoramento, de intercâmbio de hemoplasma, de trabalhar com estratégicas de melhoramento genético em conjunto, mas também dentro de um programa conjunto de assistência técnica e transferência de tecnologia, visando contribuir para o aumento da produção de café sustentável no Estado do Espírito Santo, que vai ao encontro do planejamento estratégico do Estado do Espírito Santo, que programa essa cafeicultura até o ano 2025.

P/1 – Está tudo bem interligado.

R – Está muito bem interligado. E essa parte que a gente vem exercitando agora ultimamente, isso é muito bom pro Incaper e eu acho também que é muito bom pra Nestlé.

P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, eu fiquei curiosa, uma pergunta que ficou lá atrás. Você estava falando dessa avaliação bioquímica e sensorial, né, você falou que tinha uma dúvida sobre a qualidade do conilon em relação ao arábica. Aí eu queria saber se essa avaliação, uma vez feita, essa avaliação bioquímica e sensorial que você descreveu pra gente agora, se quebrou algum mito, algum tabu em relação à qualidade de um café e de outro? O que modificou na visão, se andou nesse sentido.

R – Olha, é o seguinte, hoje a gente percebe que o mundo está consumindo aí, cada dia consumindo mais café e o que a gente tem percebido, né, que, se você pegar a história dos últimos 20 anos, nós saímos de um consumo mundial de robusta de 20%, 20, 25%, hoje já passa de 40%. Eu vou repetir o que eu ouvi, dentro dos estudiosos que entendem dessa prospecção futura, pensando no mundo, nos próximos cinco anos o mundo vai consumir metade de café arábica e metade de café conilon. Então existe um processo de aceleração de consumo, de demanda contínua, né, e esse paradigma da qualidade do conilon eu acho, ou do robusta, é um paradigma que está sendo quebrado. Se a gente pegar a história do café, enquanto que o arábica, ele tem mais de cem anos que está sendo... Só no Brasil tem mais de cem anos que está sendo estudado, o conilon, ele não completou 30 anos de estudo. Enquanto no arábica tem muitas instituições estudando no Brasil, no conilon o número de instituições estudando o conilon é muito menor. Pensando em café o conilon é muito jovem, então, tem muita coisa escondida nessa cultura ainda. Arábica e conilon são cafés, mas são plantas diferentes, são bebidas diferentes e não dá pra extrapolar de um pra outro, do outro pra um, né? O que a gente pode perceber, são bebidas diferentes, arábica e conilon, têm atributos de qualidade diferentes. Jamais eu acho, na minha visão, que um café vai substituir o outro, mas um café pode completar o outro, complementar o outro. Existem alguns atributos que têm no arábica que não têm no conilon e no robusta, ou tem em menor quantidade, e vice-versa é verdadeiro. Então, por exemplo, o arábica tem mais aroma e mais sabor do que o conilon, o conilon tem mais cor, tem mais cafeína, né, tem maior rendimento na indústria. É um café que, vamos dizer assim, é uma plantação que se bem conduzida, bem manejada, ela pode, nesse momento, dar mais segurança ao produtor, pela variabilidade que tem, para maior ataque de praga e doença, pelo maior potencial de produção que tem e assim por diante. O que nós achamos é o seguinte, os dois são cafés, os dois são importantes, vai ter o espaço para os dois e um complementa o outro, mas, dentro do conilon, muita coisa que a gente não conhecia nós estamos passando a conhecer agora. E principalmente ligada à questão da qualidade, nós estamos descobrindo essa qualidade, ela está sendo revelada e com isso está criando muitos paradigmas que parecia que era uma coisa que não existia e que hoje a gente percebe que realmente está aparecendo dentro do café conilon.

P/1 – Romário, eu vou encaminhar agora pras perguntas finais, eu queria saber, antes de encaminhar, se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado que você gostaria de deixar registrado.

R – Bom, é uma história grande, né, são 58 anos, já vai fazer, mas ficou assim, uma coisa ligada à família ainda, né? Eu tenho muito orgulho da minha família, muito orgulho, pra mim a coisa mais importante na minha vida é a família, o trabalho é importantíssimo, mas é a família. Então eu tenho os três filhos e eu tenho muito orgulho dos filhos que eu tenho, muito orgulho primeiro da minha esposa, a Liliam Maria Ventorim, eu tenho um orgulho imenso dela. Ela veio de uma família mais ou menos parecida com a minha, de origem italiana, uma batalhadora também, uma mãe; tem o primeiro turno de trabalho aqui no Incaper, o segundo, o terceiro, o quarto turno a hora que chega em casa, uma dona de casa, uma pessoa que vive para os filhos e os filhos vivem pra ela e pra mim, né? Então a gente procura usar, a palavra usar, né, seguir, né, melhor dizendo, a nossa origem, viver pra família de forma simples, talvez se eu tivesse hoje que dar uma sugestão, que as pessoas vivessem de forma mais simples e que valorizassem a família, que a base é a família. Então a minha esposa, se a gente hoje, se saímos lá do Alto de Montevidéu, daquela vida, e chegamos hoje com muito orgulho de fazer o mestrado, fazer o doutorado, está trazendo alguma contribuição importante pra sociedade, pra o desenvolvimento do nosso estado, do nosso país, né, isso não foi construído sozinho por mim, isso eu devo à minha família, minha esposa e meus filhos, né, meus filhos. E, quando eu falo meus filhos, eu tenho o Luís Felipe, que eu falei, 26 anos, ele

é um biólogo, fez o mestrado em genética e melhoramento também na Universidade Federal de Viçosa e está fazendo o doutorado na ESALQ, na USP, em Piracicaba. O segundo, o Guilherme, com 22 anos, ele também, ele fez a graduação dele na UFES, aqui no Estado do Espírito Santo, Engenharia Civil, melhor dizendo, desculpa, ele fez a graduação dele numa faculdade particular, que é a Multivix, e hoje ele está fazendo o mestrado na UFES, na Universidade Federal do Espírito Santo. E o mais novo, ele ingressou agora no curso de Engenharia da Produção na UFES também. Então é uma satisfação muito grande ter esses filhos, né, e mais ou menos encaminhados, e dos meus nove irmãos (risos) todos têm no mínimo o curso de graduação, todos formados numa universidade federal. Então, pensando em todas as dificuldades, então todos seguiram o encaminhamento do meu pai, né, e todos eles tão muito bem encaminhados, pelo menos com um curso de graduação. Lá nós temos três agrônomos, temos dois advogados, temos dois economistas, temos bioquímicos, temos médico, temos odontólogo, temos educadores e assim por diante, por isso é um orgulho muito grande que a gente tem, né?

P/1 – Eu vou agora pras três questões finais. A primeira delas, eu queria que você me dissesse o que você vê dentro dessa parceria do Incaper com a Nestlé, mas também da Nestlé diretamente com os produtores. O que você tem de expectativa, o que você vê de possibilidades pra essa parceria, além do que já está sendo feito, mas de crescimento?

R – Olha, toda parceria, se ela é bem discutida, bem planejada, bem discutida e se for definido bons parceiros, vai dar resultado bom, né? E no café, se hoje nós chegamos, no Estado do Espírito Santo, no conilon, nos últimos 20 anos, triplicar a produtividade e melhorar a qualidade e, nos últimos dez anos, o arábica duplicar a produção e hoje é uma referência em qualidade, é porque nós fizemos boas parcerias, tanto parceria no setor público como no setor privado. Eu, assim, acho que tem tudo, é um projeto bem elaborado, é um projeto que nós somos parceiros, mas a Nestlé, ela não tem o Incaper como único parceiro, tem outros parceiros, né? Hoje o produtor de café do Estado do Espírito Santo é um produtor que já, principalmente do conilon e da região que está esse projeto, é um produtor bastante empreendedor, ele é bastante empreendedor. Ele hoje já enxerga que tendo uma instituição como a Nestlé do lado dele, ele vai se sentir mais seguro, ele vai se sentir mais seguro e ele vai se sentir que isso não vai ser só bom pra Nestlé, mas vai ser bom pra ele também, no aspecto de tecnológico, no aspecto de assistência, no aspecto de comercial, no aspecto de evolução de gestão e assim por diante. Então eu não tenho dúvida que essa parceria, ela vai ajudar ou ela vai acelerar o processo de desenvolvimento da cafeicultura de conilon no Estado do Espírito Santo, eu não tenho dúvida disso, não.

P/1 – Agora é a penúltima pergunta. Quais são seus sonhos hoje?

R – Meu sonho?

P/1 – É.

R – Meu sonho é ter saúde, continuar tendo saúde, continuar sendo essa pessoa que eu sempre fui e que procuro continuar sendo.

P/1 – Só pra retomar, quais são seus sonhos hoje?

R – Bem, como eu disse, é continuar essa vida que a gente tem, com saúde, com paz,

mesmo faltando quatro, cinco anos pra eu aposentar, meu sonho é continuar trabalhando, continuar contribuindo para o desenvolvimento, contribuindo com as pessoas, com o desenvolvimento do café, com o desenvolvimento do Estado do Espírito Santo. A minha vontade, que eu tenho também, é continuar desse jeito que eu sou, com a minha família, sempre Deus acima de tudo, né, sem Ele nada disso teria acontecido e sem Ele nada vai acontecer pra frente. Mas se no nosso mundo não tiver mais paz e mais segurança, eu acho que... Não vou dizer que é impossível, é difícil da maioria das pessoas concretizar os seus sonhos, nós precisamos de mais paz, mais segurança, mais tranquilidade, né? E que a gente tenha o equilíbrio para a gente conseguir suportar essa corrida desenfreada que está nesse mundo de hoje, é uma corrida muito desenfreada, então é isso aí.

P/1 – Por fim, como é que foi contar a sua história, como é que foi dar o depoimento pra gente aqui hoje?

R – Gente, eu não imaginava que era isso, eu só tenho que agradecer muito vocês.

P/1 – A gente que agradece.

R – Agradecer muito você. Com toda sinceridade eu não conhecia, eu peço até desculpas pra vocês, eu não conhecia esse lindo projeto, eu acho... São quantos?

P/1 – Hoje, na última contagem 18 mil e 500.

R – Então seriam 18 mil 501, né? Olha bem que coisa bonita, quantas histórias diferentes que deve ter, que já foram relatadas. E quantas histórias que não foram relatadas, diferentes, não tem nenhuma parecida com a outra, né? Então pra mim é um momento, assim, de agradecimento a vocês, um momento de emoção pra mim, sabe, e de emoção pra mim, eu não tenho nem muitas palavras pra falar mais o que eu estou sentindo agora, mas talvez resume: emoção e felicidade, estar contando essa história pra vocês.

P/1 – Que bom, obrigada.

R – É mais uma dentre as mais de 18 mil que, né, e muitas outras que vocês vão fazer diferente dessa, né? Parabéns pelo trabalho de vocês.

P/1 – Obrigada.

R – Parabéns mesmo. Agora, isso tem que ser mais divulgado, nós precisamos divulgar mais esse projeto de vocês.

P/1 – Mas o Museu está trabalhando, viu, Romário, nessa coisa de divulgação, em São Paulo já está bem mais conhecido. O Brasil é muito grande, né?

R – É muito grande, mas, olha aqui, olha, eu vou querer, nós vamos precisar, esse projeto de vocês, nós precisamos colocar ele nas instituições, nos formadores de opinião. Nós precisamos colocar esse projeto, que as pessoas formadoras de opinião nesse país sabem que existem tantas pessoas que tem uma história parecida com essa. Eu não vou dizer que essa é, quantos exemplos bons que devem estar sendo relatados, que podem ser seguidos por outras pessoas, não é isso?

P/1 – É isso mesmo, o nosso trabalho é esse mesmo.

R – É bacana, bacana mesmo, parabéns mesmo, obrigada.

P/1 – Muito obrigada.

R – Pela oportunidade, pelo jeito que vocês conduziram isso.

P/1 – A gente que agradece, Romário, o seu tempo.

R – O que eu falei de errado aí vocês cortam.

P/1 – Não tem nada de errado, foi ótima a sua entrevista.

R – Tá certo? (risos)

P/1 – Muito obrigada.

R – Eu que agradeço.

P/1 – Obrigada pela sua disponibilidade também, que não é uma coisa...

R – Que isso, que isso?

FINAL DA ENTREVISTA