Museu da Pessoa

O sanfoneiro baiano

autoria: Museu da Pessoa personagem: Aurino Pereira de Souza

P/1 – Então, senhor Aurino, começando a nossa entrevista, eu vou pedir pro senhor falar de novo o seu nome completo e a data do seu nascimento.

R – Meu nome completo é Aurino Pereira de Souza. A data do meu nascimento é 28 de abril de 1945.

P/1 – Em que cidade que o senhor nasceu?

R – Em Lençóis.

P/1 – E o povoado?

R – O povoado Remanso.

P/1 – É pertinho?

R – É perto de Remanso.

P/1 – É?

R – É.

P/1 – E o nome dos seus pais, o quê que eles faziam?

R – O que eles faziam? O meu pai chamava Justino Pereira de Souza, minha mãe chamava Maria Madalena de Jesus. O que eles faziam era trabalhar na roça, pescar no rio, que lá passam dois rios onde nós moramos, no povoado de Remanso, passam dois rios, o Santo Antônio e o Utinga. Eles vêm de fora e perto do Remanso eles fazem o encontro, aí em Remanso eles passam os dois juntos, é Utinga e Santo Antônio. O meu pai viveu e a maioria dos moradores de lá vive da roça e da pescada no rio; vivem pescando, trabalhando na roça e pescando. Disso é que se vive lá e o meu pai me criou nesse ritmo e o povo de lá tudo vive assim.

P/1 – E plantava o quê, senhor Aurino?

R – Plantava mandioca, milho e batata doce, aipim, que lá a gente conhece por aipim, mas nos outros lugares têm vários nomes do aipim: uns conhecem por macaxera, outros conhecem por aipim, outros já conhecem por outros nomes, que eu me esqueci.

P/1 – Mandioca.

R – Mandioca, pois é. Então, mas lá a gente conhece por aipim, lá é o aipim. Tem a mandioca e tem o aipim, e a mandioca é a que faz a farinha. Lá nós temos também uma casinha de farinha manual, nós fazemos a farinha lá mesmo. Lá mesmo a gente planta a roça, planta mandioca e faz a farinha.

P/1 – Como é que faz a farinha na casa de farinha?

R – Já ouviu falar roda de braço? São dois puxando a roda e uma mulher, ou mesmo um homem, cevando no bolinete; são três pessoas: dois puxando e um cevando a mandioca. Aí ceva a mandioca, aí ela vira uma massa, a gente prensa, bate na prensa. Aí, depois da prensa ela enxuga e vai peneirar. Depois de peneirada, aí vai para o forno, que é à lenha. Bota lenha no forno e a gente vai torrando a farinha com um tipo de rodo. Então ela torra e aí a farinha você faz do tipo que você quiser. Se quiser mais grossa um pouco faz mais grossa, se quer ela mais fina faz ela mais fina.

P/1 – Como é que faz pra ser mais grossa ou mais fina?

R – Mais grossa você tem que apertar um pouco o fogo pra ser mais quente no forno. Isso se chama embola, aí ela fica mais grossa. E quando você quer ela mais fina, aí você deixa o fogo bem baixo, aí você torra e ela fica fina. Na hora em que ela estiver cozida, aí agora você aperta o fogo pra ela poder torrar. Aí você faz ela fina. Quando você quer que ela fique grossa você aperta o fogo mais um pouco e aí ela engrossa.

P/1 – E coloca algum tempero nela, sal, alguma coisa?

R – Não, na farinha não. Se coloca tempero, sal, ou até doce, se querem, é no beiju. O beiju você faz do jeito que você quiser também, faz de massa misturada com a goma. Uns chamam de goma, outros chamam de tapioca, é tirada da própria mandioca. Quando você vai espremer ela pra botar na prensa, aí você já tira a tapioca, uns chamam de tapioca, outros chamam de goma. Aí, se você quiser o beiju misturado, aí você bota metade de tapioca e metade da massa. Aí mistura, se chama beiju misturado. E se você quiser só da goma você faz só a tapioca, sem a massa, aí você faz do jeito que você quiser. Se você quiser temperada você bota um pouco de sal, se você quiser com doce você bota doce.

P/1 – É gostoso?

R – É, com doce é bom. Sempre a gente lá faz mais é com sal, porque com sal você deixa mais tempo. Com doce, se você deixa ele endurecer, fica meio duro, e com sal não, você faz torradinho, fica o tempo todo você usando.

P/1 – E, senhor Aurino, como é que era a infância do senhor? Quantos irmãos o senhor tinha, como que era a convivência em casa?

R – Irmão eu tinha cinco, eram três homens e duas mulheres. Hoje só temos três, duas mulheres e eu como homem, os dois homens já morreram.

P/1 – E as meninas tinham uma educação diferente dos meninos, coisas que tinham que fazer, que não podia fazer?

R – É, tinha sim. Naquela época os velhos eram muito diferentes de hoje, só ia aonde eles queriam. Os homens quando estavam no domínio deles também só iam aonde eles quisessem. Mas depois que desse, naquela época era 18 anos em diante, aí eles faziam o que eles quisessem. O dizer dos mais velhos era: “Fulano já está sobre si”, aí ele faz o que ele quer, aí ele não vai fazer mais a mandado dos pais. Enquanto não estivesse naquele mandato, ele só ia onde os pais quisessem, né? Agora, hoje é diferente.

P/1 – Mas o senhor brincava lá, ia no rio pescava, nadava? O quê que o senhor fazia quando o senhor era criança?

R – Ah, eu fazia muita coisa. Eu brincava, trabalhava na roça. Quando era pequenininho, que não agüentava trabalhar na roça, aí eu brincava. Naquela época não usava aula, não tinha escola onde eu morava, era uma roça, não tinha escola, não tinha nada. Aí o que fazia enquanto não agüentava trabalhar na roça era vadiar, aprender alguma coisa que os velhos ensinavam, rezar um Pai Nosso. Era isso que eles faziam. E à noite os velhos tinham aquele modo de ensinar pra ir dormir: “Vai rezar pra dormir, meu filho”.

P/1 – O quê que rezavam?

R – Rezava um Bendito, qualquer uma reza, daquelas que eles gostavam, pra livrar do mal, das doenças e aí ia dormir. De manhã tinha que levantar, dar bênção aos pais pra poder sair pra algum canto ou ir vadiar. É assim que eu fui criado. As meninas também do mesmo jeito. A criação hoje eu acho muito diferente da minha. É que os meus filhos eu criei quase do meu ritmo, porque eu, como mãe deles, foi criado assim. Agora, já hoje, se fosse de eu criar novamente eu achava difícil. É difícil porque a lei hoje é muito diferente da época da gente e eu acho muito difícil. Hoje eu crio um neto, em alguma parte eu sigo a lei de hoje, mas em outras eu não consigo seguir. Não consigo seguir porque eu fui criado com o maior respeito aos mais velhos. A coisa que o pai mais castigava a gente era pra não desrespeitar os mais velhos, não responder. Se os mais velhos diziam qualquer coisa a gente tinha que acalmar; se uma pessoa mais velha reclamasse, qualquer menino achava que estava reclamando para o bem, pra livrar de alguma coisa. Hoje a educação é a escola é quem dá, e antigamente quem dava a educação eram os pais. Educação de saber viver com o povo. Não era na leitura não, que a gente não aprendeu a leitura. A educação que os pais davam era saber viver. Saber viver que eu falo é respeitar, ter respeito, que tinha muito respeito na minha época.

P/1 – Pelos mais velhos.

R – Pelos mais velhos, um grande respeito. A gente não podia responder aos mais velhos, não podia xingar de nome nenhum na vista dos mais velhos.

P/1 – Tinha que tomar bênção?

R – Tinha que tomar bênção, tinha que tomar bênção. Passou o mais velho que o outro de dez anos, às vezes tinha que dar bênção àquela pessoa. Era assim que foi a minha criação. Agora, hoje é muito diferente.

P/1 – Mas, e de brincadeira? O senhor brincava do quê?

R – Ah, naquela época as brincadeiras da gente também era diferente das de hoje, as brincadeiras que hoje o povo chama como cultura, né? A gente ia brincar de roda. Quando já estava grandinho, que já sabia conversar, já sabia cantar, a gente tinha: “Embora cantar roda”.

P/1 – Que música que cantava de roda, o senhor lembra?

R – Alguma música a gente lembra ainda, outras a gente não lembra mais não. Mas algumas a gente lembra, porque outras a gente esquece por causa de outra realidade que a gente vive. A gente se envolve com outras coisas hoje em dia, como o que está acontecendo com a música. O povo manda a gente fazer isso, fazer aquilo, e aí a gente esquece daquelas coisas mais velhas em que a gente foi criado, a gente esquece dos lugares, mas alguma coisa a gente ainda lembra. Você fala o que é a roda?

P/1 – É.

R – A roda é o que a gente canta pra dizer um verso. Não sabe o que é dizer um verso?

P/1 – Fala pra mim, pra gente gravar. O que é um verso?

R – Um verso pode ser como hoje no Griô tem um tipo de dança: Boi Mariá. “Bebeu, bebeu, boi Mariá, meu chapéu caiu, meu amor apanhou”. Então isso era justamente uma roda que a gente brincava antigamente. Quando a gente estava rapazinho, as mocinhas e os rapazinhos diziam o verso: “Fui na fonte beber água, boi de Mariá, não foi pra ela beber, boi de Mariá, foi pra ver as piabinhas, boi de Mariá, na veia d’água correr”. Isso aí é um verso. E tem mais, vários versos que a gente dizia, que a gente só lembra na hora que a gente está cantando, aí agora vêm as idéias da gente, aí a gente lembra dos versos. Os versos vêm no meio da cantoria.

P/1 – Mas, senhor Aurino, vocês iam no rio nadar, iam fazer traquinagem?

R – Ah, eu acho que lá onde eu moro, nasceu, já todo mundo sabe nadar, porque lá a gente sé anda em cima de canoa, umas canoinhas muito pequenininhas, barco e coisa e tal. Se não souber nadar está arriscado a perder a vida qualquer hora. Lá onde eu moro é igual às capital pro lado do trânsito, dos carros, o trânsito de lá é canoa.

P/1 – É?

R – É. Aqui, nos comércios, nas capitais, o freguês anda com muito cuidado por causa de carro, modo de acidente, modo da pista, e lá nada com muito cuidado. Tem que aprender a nadar porque senão se afoga.

P/1 – E como o senhor aprendeu a nadar, sozinho?

R – Ah, lá se aprende a nadar rapidinho. Lá, é sozinho, é mais os colegas, vamos para o rio tomar banho, porque lá a gente toma banho é no rio. Tomava banho no rio, porque agora que está tendo banheiro, essas coisas de tomar banho, mas antigamente não tinha. Lá banho era no rio. A gente ia tomar banho era de noite, era de manhã, era meio-dia, qualquer hora. Toda hora estava dentro do rio, que mora na beira do rio. E o rio lá não dá pra sair de a pé, é fundo direto. Você tem que andar de barco ou de canoa. E lá você tem que ensinar logo o menino a nadar, porque é perigoso ele sair sozinho e se afogar.

P/1 – E o pessoal faz lá canoa?

R – Fazia. Hoje em dia não faz porque não está tendo madeira pra fazer. Hoje em dia, além de não ter madeira, as leis os proíbem de tirar madeira pra fazer canoa. Mas antigamente nós tudo fazia canoa. Era a canoa da gente pescar, pra sobreviver a gente mesmo que fazia.

P/1 – Conta pra gente como é que era, que madeira que é melhor, que época que colhe essa madeira, como é que faz a canoa.

R – Hoje em dia se faz de muitas madeiras, mas antigamente era madeira escolhida. Era o ipê, esse cedro d’água. O cedro d’água até hoje ainda faz porque ele é uma madeira assim que dá muito, e é na beira d’água. Tem de dois cedros: tem o da mata, que dá na mata, e o que dá na beira do rio. Então todos os dois são bons pra fazer canoa. Então tem uma madeira que chama cocão, que é muito bom pra fazer canoa. Mas naquela época a gente fazia as canoas dessas madeiras, mas hoje não está tendo mais. Além de não ter, as leis impedem a gente de cortar madeira pra fazer. Pra fazer tem que pedir permissão às leis pra poder fazer a canoa. Mas a gente mesmo faz a canoa. Agora, o barco é feito de tábua. Acho que tem barco grande que pega até seis pessoas, oito pessoas. Esse daí é feito fora. Agora que está tendo um rapaz que mora lá, que já está fazendo lá mesmo, mas sempre comprava fora. Mas hoje a gente já tem um rapaz que mora lá, é casado até com uma sobrinha minha, que hoje ele fabrica lá mesmo, no Remanso, barco de todo tamanho que você queira. Faz pequenininho pra pescaria, porque o de pescaria é um pequenininho. Os grandes é só pra carregar o pessoal pras cachoeiras.

P/1 – É de madeira também esses barcos?

R – É de madeira, mas só que é um tipo de tábua. E a canoa que a gente faz é cavado. Sabe, cavar?

P/1 – Cavado no tronco?

R – É. A gente tira o tronco, aquela parte de madeira, o tamanho que você quer, o comprimento que você queira, e agora você vai cavando. Tira aquela madeira, deixa daquela grossura que você queira, vai cavando e se faz a canoa. E o barco é feito de tábua. Eles compram na serraria as tábuas e fazem o barco. E a canoa é lá mesmo, é cavado. Tem um tipo de ferramenta que se chama enxadão e enxó. A gente cava em primeiro lugar o machado, segundo o enxó e enxadão, é que a gente faz a canoa.

P/1 – Quanto tempo demorava pra se fazer uma canoa?

R – Pra fazer uma canoa é conforme o tamanho e a largura. Quando é uma pescaria lá que pega só duas pessoas, se faz em cinco dias. Pra fazer bem feita uma pessoa faz em cinco dias uma canoa que pega duas pessoas. Agora, grande, aí demora. Quanto mais cresce no tamanho, mais cresce nos dias de fazer. Faz em uma semana, faz em uma semana e meia, faz em duas semanas. Aí depende do tamanho da canoa.

P/1 – E com quem o senhor aprendeu a fazer canoa?

R – Aprendi com os meus tios, meus pais, eles tudo faziam canoa. Eu já aprendi logo, porque os velhos, antes que eles morressem, eles já passavam tudo que eles sabiam pros filhos. Nem tudo também, algumas coisas; porque os velhos tinham segredo do que sabiam também. Aqueles filhos que eles mais interessavam, eles passavam tudo que eles sabiam. Aqueles que eles nem interessavam, aí eles negavam alguma coisa. Faziam que nem o gato mais a onça, ensinavam os furos mas o principal não ensinavam não.

P/1 – Mas que tipo de segredo será que eles tinham?

R – Alguma oração de ciência que eles tinham, e não ensinavam os filhos não. Tinha algum filho que eles podiam ensinar aquelas orações de reserva deles, de garantia, de livrança. Não eram todos os filhos que eles tinham coragem de ensinar. “Não, isso daqui você não pode aprender não, você está muito novo”. E aí ficava naquela e o cara ficava velho e ele não ensinava. E aí era assim. Eu gostei muito de meus pais. Eu era muito apegado com o meu pai, tanto que quando ele morreu eu levei muito tempo apaixonado pelo velho. Gostava muito do meu pai. Não sei por que, os outros irmãos têm até ciúme porque eu era o caçula. Ele me queria muito bem, em todo lugar que ele ia ele me levava. Os outros tinham ciúme: “Parece que o pai gosta mais de você do que da gente”, “Não mano, é não, é porque é o caçula”. Eu sou mais novo que o meu irmão cinco anos. Acho que ele não esperava mais que ia aparecer eu, e aí ficou com esse ciúme até hoje. E eu senti muito a falta do velho. E tenho muita também da minha mãe, mas a minha mãe demorou mais, ela morreu muito mais derradeira e ele foi primeiro.

P/1 – E tinha festas religiosas, procissões que vocês acompanhavam?

R – Tinha e ainda tem.

P/1 – Que procissão que é?

R – Procissão de São Francisco. O padroeiro lá do lugar da gente, São Francisco das Chagas. Porque diz que tem dois São Francisco. Tem um que é de Assis e outro que é das Chagas. Diz o povo, mas acho que é um sozinho.

P/1 – Que época que é a procissão, como que é?

R – No dia 4 de outubro que é a festa de São Francisco e tem a procissão. Agora, a festa mesmo começa no dia 25 de setembro. Tem as novenas e todo dia tem reza, tem festa. Aqueles novenários é quem fazem a festa. Às vezes são duas pessoas ou três: “Essa noite é de fulano”, por exemplo, “é de fulano e cicrano e beltrano”. Aí você faz a festa. Se a noite for sua, você faz a festa do jeito que você quiser. Se você quiser fazer forró, você faz, se tem uma banda pra tocar, você leva. Isso aí é problema seu, a noite é sua, você faz do jeito que você quer. Ali rezou, você faz a noite. Se você não quiser fazer nada você também não faz, só faz a reza e solta um foguete, acende uma vela, o pessoal reza. Você querendo: “Vou fazer uma festa no dia da minha noite”, aí você faz a festa do jeito que você quiser. Do dia 25 até no dia 4 de outubro. Dia 4 que é do santo, é do padroeiro da gente.

P/1 – Aí tem o quê? Tem missa? O que tem dia quatro?

R – Tem missa, tem batizado, tem até casamento, dependendo. Hoje em dia não está tendo mais, mas antigamente tinha muito casamento, todo ano da festa tinha casamento. Tem batizado, um monte de batizado. Esse ano mesmo teve muito batizado. O padre vai lá, batiza muitos meninos pagão.

P/1 – E tem esse negócio de quermesse, de ter barraquinha de doce, salgado?

R – Tinha, tinha muita quermesse. Hoje em dia quermesse não está tendo quase mais, mas barraca pra vender coisa tem, tem muita barraca.

P/1 – O que vendia quando você era criança?

R – Naquela época vendia muito, hoje vende também, mas naquela época vendia mais coisa porque o pessoal levava mais coisa, demorava mais. Vendia várias coisas, tira-gosto, o que vende sempre em barraca. Era tira-gosto, era pinga, era vinho, era cerveja. Vende de tudo lá na barraca, tira-gosto, peixe frito. Hoje lá até está tendo um peixe que o povo é muito chegado a ele, é um que chama molé. Conhece? É um peixinho pequeno, ele é de couro. Aí eles até fazem o caldo. Eles cozinham ele, tiram a carne, só a carne, que ele não tem espinho não, só tem o espinhaço. O corpo dele tudo é carne. Aí eles cozinham, tiram a carne, batem no liquidificador e faz o caldo. Aí o pessoal não deixa ele esquentar, porque é muito forte. É o peixe do rio que é mais forte, o povo dá muito de valor. Porque diz que os velhos, naquele tempo, os que tinham muitos meninos era por que comia esse peixe.

P/1 – Uma receita forte?

R – Ficava muito forte, aí diz que tinha muito menino, os velhos. Tem velho lá que teve acho que vinte e tantos filhos; o casal, teve vinte e tantos filhos lá, os mais velhos. Acho que dos casais lá, do meu tempo pra cá, que tem mais pouco filho foi o meu pai mais a minha mãe, mas os outros tudo se fala de dez, doze, quinze, vinte em diante.

P/1 – Senhor Aurino, quando aprendeu a tocar sanfona? Quando e quem te ensinou.

R – Hoje eu dou como o meu mestre o meu pai. Porque ele não me ensinou assim próprio: “Vem cá, meu filho, deixa eu lhe ensinar”. Mas eu dou ele como meu mestre, pra mim foi ele quem me ensinou porque ele que tinha o instrumento. Eu olhava pra ele fazer o trabalho. E aí tive aquela inteligência de prestar atenção. E aí ia lá e pegava sem a explicação dele, e eu fui indo e aprendi. Aprendi assim, quase escondido dele, porque ele não queria que eu pegasse no instrumento. Mas o ciúme dele era o medo de perder o instrumento. Perder assim: porque naquela época era muito difícil pra se encontrar esse instrumento, qualquer instrumento. O instrumento mais fácil, naquela época, justamente era uma viola, era um violão, porque tinha gente por perto que sabia até fazer de madeira, gente que no meio da parentalha mesmo sabia fazer uma viola, sabia fazer um violão de madeira. Mas uma sanfona ninguém sabia fazer. Então, nem sabia fazer e nem tinha quem, se quebrasse, consertar, que era difícil.

P/1 – Tinha que mandar pra onde, pra Salvador?

R – Tinha que mandar pra longe, mandar pra Itaberaba, pra outro lugar longe. E naquela época o pessoal da roça não sabia nem andar. Só sabia andar da roça pra cidade, pra ir pra feira. Pra sair pra outro lugar ninguém sabia andar. Então era difícil, ninguém conhecia ninguém. Era difícil, então ficava com ele. Era o divertimento do povo da região.

P/1 – Ele tocava e cantava também?

R – Ele tocava, ele cantava. Ele cantava Reisado.

P/1 – O que é cantar Reisado?

R – É Reis que sai no dia primeiro de Janeiro, é o Reisado, Santo Reis.

P/1 – E vai parando nas casas?

R – É verdade. Ia parando nas casas. E saía, passava oito dias fora, nas casas, pra cantar. Lá era a minha tia, que era a irmã de meu pai, é que era dona do terno, chamado. Era ela quem tinha o santo, Santo Reis. Aí ela saía todo ano com o terno de Reis, e o meu pai que era o cantador, ele é que sabia cantar o Reis. Depois que ele morreu ficou pro filho dela mesmo, que é esse que foi o fundador da associação nossa lá, que chama Manoelzinho. Ele já morreu.

P/1 – Senhor Aurino, o senhor trabalhou? No que o senhor trabalhou?

R – De roça ou de outra coisa?

P/1 – Qualquer coisa. Qual foi o primeiro trabalho do senhor?

R – Ah, o meu trabalho sempre é isso mesmo, é roça. Que naquele tempo tinha muito aquilo que a gente fazia na roça, pescaria e fazer festa. Fazia festa, que hoje eu não aprendi várias coisas por causa da minha vaidade, a idade, e achava que aquilo não valia de nada. E hoje eu estou arrependido porque não aprendi as coisas do meu pai, dos meus tios, dos meus primos, que sabiam várias coisas de cultura. Sabia Reisado, formava reunião, fazia festa de índio. Fazia Marujada, não sei se você conhece.

P/1 – O que é Marujada?

R – Marujada é um cordão de grupo, a mesma coisa que a gente faz numa roda, numa festa, a gente faz a Marujada. Marujada tem o piloto, tem o mestre e tem o cordão, que a gente dança. Tem as palavras que a gente fala da Marujada e tem as músicas. Aí é um cordão de Marujada. Em Lençóis mesmo tinha. Ainda tem ainda, mas está devagar, que os chefes, os velhos, morreu tudo. O Omar Siciliano, que era o chefe da Marujada de Lençóis, esse morreu. Depois ainda ficou o filho dele, também tomou conta, mas o filho também morreu esses tempos, chamava João. E aí a Marujada está um pouco devagar. Ainda tem lá, mas só sai de ano em ano, na festa do padroeiro. O padroeiro de Lençóis é o Senhor Bom Jesus dos Passos, é no dia 2 de fevereiro. Essa Marujada era de lá. Isso também a gente levou pro Remanso e a gente foi vendo uma brincadeira também. E tinha o nosso grupo de Marujada também, mas isso hoje se acabou também porque o jovem de hoje não gosta muito dessas coisas, não está querendo. Vai fazer o quê? Os mais velhos se acabou, aí por isso que foi por água abaixo.

P/1 – Mas o senhor sabe dançar, aprendeu a dançar Marujada?

R – A Marujada ainda sei, ainda lembro ainda dançar. Se for pra dançar ainda danço.

P/1 – E que papel que o senhor fazia?

R – Na Marujada a primeira coisa que eu fui foi ração, se chama o termo ração. Era menino, lançou um grito, o mestre chama, o piloto chama, o ração responde. Ele chama: “Oh, ração”, a gente diz: “Oh, mestre”. Vai lá, torna a voltar e ele fala aquelas palavras. E aí agora eles chamam os marinheiros e aí fala as palavras, manda puxar as músicas. Agora todo mundo vai dançar. Eu aprendi a dançar com eles me botando como ração. E daí, de ração eu subi, fui pra posição de piloto. O meu irmão era o mestre, era o mais velho. E aí ele morreu, a gente formou o cordão. Eu fiquei como mestre e outro rapaz que tem lá ficou como piloto, mas só que não foi à frente porque saíram, um disse que não queria mais, que ia trabalhar fora, outro saiu. E é coisa que não se pode fazer com dois mais três, pode fazer um cordão com mais de dez pessoas em diante. Aí foi indo, acabamos. A gente tem três fardas lá.

P/1 – Está guardado?

R – É. Pra sair assim tem que sair fardado.

P/1 – É branco?

R – Pode ser branco e azul, e pode ser também outra cor, qualquer cor, aí dependendo da combinação do cordão do grupo. Nós queremos de tal cor, assim, assim, aí é tudo de uma cor só. Aí a gente combina e manda fazer a farda. A gente tem uma lá. A da gente é toda branca e agora tem uns vivo azul. Temos lá a farda ainda que foi doada pra gente, mas só que o cordão parou porque o pessoal saiu, outros saíram, outros disseram que iam trabalhar fora, outros mudaram de lá. Aí parou o cordão. E eles hoje, a vida é me cobrar esse cordão de Marujada. A vida lá da região lá, do pessoal, é me cobrando, me cobrando, me cobrando, mas eu não posso fazer nada, que eu não posso fazer sozinho, né?

P/1 – É difícil ensinar?

R – Não, não é muito difícil não. Pra ensinar é fácil, dependendo de que as pessoas queiram não é difícil não. É fácil pra ensinar.

P/1 – E a Marujada com quem o senhor aprendeu?

R – A Marujada eu aprendi com o meu primo. No tempo do meu pai eles não sambavam Marujada não. Mas aí já foi com o meu primo, com esse que eu falo que é o chefe, que foi o fundador da associação lá. Ele foi o fundador até da população do lugar, porque juntou o pessoal que morava distante assim um do outro. E ele veio, fez um povoado. Onde a gente mora tem um povoadozinho. Nessa época não tinha energia, hoje já tem energia, tudo puxado. Foi ele quem puxou. Hoje tem escola, tem prédio de escola. Tem posto, só que o posto não está funcionando porque não tem coisa pra funcionar. Não tem médico nem enfermeiro, mas o posto está lá feito. Tem o posto e tem o prédio de escola.

P/1 – Quando e quem te convidou o senhor foi convidado pra ser mestre griô?

R – Quem me convidou foi o professor Márcio, foi ele que me convidou, ele que me chamou pra fazer parte da trilha dos griô.

P/1 – O senhor já conhecia o Márcio?

R – Não, eu não conhecia o Márcio. Nessa época eu não conhecia ele, depois ele andou por lá, coisa e tal, sondando. Acho que ele percebeu pelos forró da gente, que a gente fazia forró, e até hoje a gente faz forró por aqueles lugares tudo ali, tem em Lençóis, Andaraí, aquela redondeza tudo o povo chama e a gente vai fazer o forró. E aí eu acho que ele observou de um forró e encostou por lá, esteve por lá. E sempre eles gostam também de visitar a escola, o grupo deles sempre visita a escola. E esteve por lá e me chamou: “Vamos ali fazer uma caminhada ali mais o velho griô”. A primeira vez que ele esteve lá em casa se vestiu lá de griô e: “Vamos fazer ali uma caminhada, bater ali um bumbo”. Tocamos uma viola e eu fui bater bumbo. Aí, daí pra cá começamos.

P/1 – Já na caminhada mesmo?

R – Já na caminhada. Me chamou, me convidou pra fazer uma caminhada. Foi lá mesmo, lá no povoado. Ele foi lá visitar as escolas e aí me chamou pra fazer essa caminhada: “Vamos ali mais eu bater um bumbo, vamos acompanhar o velho griô?” Eu digo: “Vamos embora”. E aí foi quando a gente, nessa caminhada, aí começamos. Ele me convidou e aí eu vim, sempre eu venho e até hoje estou. Gosto muito e estou muito me dando bem com eles.

P/1 – E aí o senhor tinha noção assim do quê que era um velho griô?

R – Ah, eu não sabia. Até aí eu estava lutando e ele não me falava que era um griô, mas não falava o que era o griô. Um dia ele fez as procuras, se eu sabia o que era o griô, me explicou. Eu acho que eu tenho isso gravado. Eu digo: “Nossa, eu mesmo não estou bem por dentro como é o griô não”. E ele: “Não, mas pra você, o que você pensa assim mais ou menos o que é?”. Eu digo: “Bom, pra mim o griô é uma coisa que vai trazer as coisas velhas, que pelo jeito do griô eu acho que ele vai, é esse tipo de coisa que vai trazer aquela lembrança dos velhos pais da gente, dos tios, desse povo, aquela lembrança”. Pra mim o griô é desse tipo, porque eu nem sabia o que era griô. Porque pelo que eu vi o griô fazer, dá a aparência daquelas coisas antigas, dos velhos. Dá aquela aparência daquela coisa dos velhos, aquela dança, era cantar roda, era dizer verso, fazer essas coisas pra mim é o que é o griô, é lembrar, é trazer. O griô tá vindo pra trazer a lembrança dos velhos, que acabou.

P/1 – E como que o senhor conhece a ida dos griôs nas escolas tradicionais, que é o saber oral e tudo, pras escolas? O senhor tem ido nas escolas?

R – É, eu tenho ido com eles nas escolas.

P/1 – Qual que é a diferença?

R – Sempre eu luto lá com eles, sempre, eles me chamam pra brincar lá junto com eles. Eu me dou muito bem também com o grupo dele, que ele tem um grupo dos meninos que tocam e eu toco junto com eles. De vez em quando a gente vai lá dar uns ensaios. Época de São João a gente quem toca pra São João e é junto com os meninos. Os meninos é com guitarra, é com baixo, eles já têm os instrumentos todos.

P/1 – São João é das festas mais importantes da Bahia.

R – Em Lençóis, ali naquela redondezinha, é o mais que adora a festa de São João, porque não é fácil não. Tem anos que eles começam do dia 21, só vai acabar lá perto de São Pedro. Outra hora emenda com São Pedro.

P/1 – E porque é São João?

R – Porque que eles gostam assim? Porque, você acha...

P/1 – Porque eles gostam?

R – Eu acho que, sei lá, não sei se é por causa do santo mesmo que trás aquela energia pro povo. São Pedro nem tanto, São Pedro é meio devagar, mas o São João lá quando o povo não faz festa o povo fica cobrando: “Esse ano São João não prestou não, não teve festa que presta, não teve isso, não teve aquilo”. O povo cobra logo. Quando a festa de São João não está boa o povo cobra logo, fica logo cobrando, só falando, falando, falando. E vem muita gente de fora também. Não sei por que Lençóis tem essa energia assim que chama o povo mesmo, muita gente de fora no São João. Muita gente vai passar o São João em Lençóis.

P/1 – Quem que é o aprendiz que está com o senhor?

R – Por enquanto é dois meninos lá do Grãos.

P/1 – Quem que é?

R – Moça, você sabe que tem um que eu tô lembrado do nome mas o outro eu não. Vou procurar a menina ali porque eu esqueço do nome dos meninos.

P/1 – Não tem problema. Mas o quê que o senhor ensina pra eles?

R – Tocar sanfona. E junto com eles lá no griô, tem hora que a gente canta umas músicas, lembra de umas músicas, daquelas músicas velhas. Aí eu passo pra eles. Mas eles estão mais interessados que ensine a tocar. Quer dizer, o pessoal do griô está mais interessado que eu ensine os meninos a tocar sanfona, ali na região só tem eu e acho que eles estão com medo de eu morrer, aí acabar e ninguém não aprender mais a tocar sanfona e ficar sem tocador. Aí então a gente já tem um garotinho, é até parente da gente lá, mora em Lençóis, que botou pra cantar comigo. É inteligente que é danado. Já tem parece que umas oito músicas dele, que ele já fez lá, está tocando.

P/1 – É difícil tocar sanfona?

R – Não, eu acho que não é difícil, dependendo da vontade da pessoa. Se a pessoa tem vontade, gostou, eu acho que não é difícil. Que nem esse menino mesmo, eu acho que foi umas duas ou três vezes que eu expliquei pra ele e ele já está bem adiantado. E já o outro não, o outro é mais devagar. A gente explicou aquilo ali, ele não tira da cabeça e vai caçando até encontrar. A pessoa, como eu digo, se tiver vontade eu acho que não fica difícil. Tudo que a gente tem vontade a gente vai fazer e Deus ajuda. E eu acho que Deus ajuda, que a vontade ali, eu acho que Deus ajuda que não dá trabalho pra pessoa conseguir.

P/1 – O senhor, pra aprender, se inspirou no seu pai, né?

R – É.

P/1 – Quem te ensinou mesmo?

R – Não, provavelmente vamos dizer que quem me ensinou mesmo foi assim o tempo. Foi o tempo mesmo porque o meu pai veio me dar alguma explicação depois que ele viu que eu já estava adiantando alguma coisa. Quando ele descobriu eu já estava adiantando alguma coisa. Eu estava aprendendo escondido. Então, quando ele viu eu já tinha adiantado alguma coisa. Aí ele liberou. Desse dia pra cá liberou, me deu alguma explicação e parou aí. Eu aprendi mais com o tempo. Chegava numa festa, sempre era festa direto. A gente saía pra fora, encontrava com outros tocadores por lá por fora. Aí eu chegava na beira, ficava na beira. Toda vida eu, inteligente, gostava muito de bater um instrumento. Batia um pandeiro, batia um triângulo. Tinha um instrumento que se chama maracaxá, que rapa assim: “Choc, choc, choc, choc”. Aí eu ia fazer esse trabalho pra eles lá na festa, era garoto e tinha as horas ali, porque naquela época: “Menino não pode ficar até tarde”, tem aquela hora, não pode dormir tarde. E assuntando o movimento deles, como eles faziam. Aí eu ficava naquele instrumento ali assuntando, assuntando. Quando passava daí, que eles paravam a festa, aí eu ia lá experimentar o que eles estavam fazendo. Foi assim, dessa forma. Eles puxavam ela assim, eu via eles batendo quando dava desse jeito.

P/2 – Qual é a sanfona que o senhor toca?

R – Oito baixo. Essa é bem mais pequena e ela é meio complicada. Sanfona eu acho que é essa que eu tenho, que é mais pequena. Essas grandes, que chamam paleta, se chama hoje de acordeom. É dessas grandes, esse dente branco, aquele teclado branco. Aquela dali eu acho que é mais fácil porque é um som só. Se você quer um sol, você puxa ela pra lá, puxa ela pra cá, é o sol. Se você quer um dó, você puxa ela pra lá, puxa ela pra cá, é um dó. E a oito baixo não é. Você puxa pra lá, é um dó. Você puxa, quando você vem é um sol. Ela é complicada por causa disso. É porque, na hora que você puxa aqui é um tom, na hora que você vai voltar já é outro tom. E a paleta não, você puxa e volta, é um som só. Se você estiver em dó é um dó só. E a oito baixo não, se você for pra lá é um sol, quando você vem já é um dó. Ela é complicada mais por isso, você tem que saber manejar ali pra modo de você traduzir de um para o outro, pra ficar um por um. Você tem que saber traduzir no fole e na saída, entendeu, pra modo de ficar um por um, porque pra ser um dó direto você tem que ir pra lá. Aí você sai do lugar, muda a mão de lugar, o baixo também, pra quando você vir já ser o mesmo dó. Você tem que mudar. Por exemplo, aqui é dó, você vai puxar pra lá. Aí você tem que mudar, e mudou o de cá também, pra modo de quando vir já é o mesmo dó, porque se você deixar no mesmo lugar já é outro, entendeu? E a paleta não, você pode ficar no mesmo lugar que você vai e vem, é um só. Quando você muda, você muda pra fazer outro relativo do tom, você muda pra você fazer relativo. E a oito baixo não, você tem que mudar pra ser o mesmo tom. É por isso que eu acho que seja mais complicado. Dizem eles que é mais complicado, e pelo jeito eu acho que é mesmo porque os meninos desandam mais na paleta do que na oito baixo.

P/1 – E Senhor Aurino no mundo de hoje, com tanta coisa, tanta informática, qual a importância de o senhor estar ensinando outras pessoas a tocar sanfona? Como é que o senhor vê o trabalho do senhor agora?

R –Eu me interesso muito porque eu tenho o maior prazer, se por acaso eu morrer, de deixar quando nada uns dez ou vinte aprendizes, pra quando nada ficar a minha lembrança, que eu tenho lembrança com o povo. Às vezes, quem sabe, que eles estão falando depois a mesma coisa que eu estou falando aqui, não é verdade? A mesma entrevista que você está entrevistando aqui, pode entrevistar qualquer um dos meus aprendizes. Amanhã ou depois: “Quem me ensinou foi um velho que chamava Aurino, por essa forma e essa”. E é o desejo que eu tenho, de deixar. Isso era pra deixar pros meus filhos, mas os meus filhos não interessam nada.

P/1 – Mas tocam algum instrumento, não?

R – Uns tocam alguma besteirinha. Tocar instrumento assim, bater um bumbo, outro triângulo assim, mas sanfona mesmo não. Um lá que diz que tem vontade de tocar é bateria, esses negócios, violão, essas coisas, mas sanfona não tem.

P/1 – É o rock que eles preferem?

R – É, eles são mais chegados a som, esse tipo de coisa, a escutar, não fazer. Eles são mais chegados a escutar, não a fazer. No meu tempo os meus irmãos todos aprenderam alguma coisa de cultura. O meu irmão mais velho era tocador de pife, que nem o menino aí, o seu Zé. E era da região, o melhor da região que era. Ele era de Salvador. Tem muito tempo que ele morreu não. Era bom nesse pife aí, era bom mesmo. E o outro tocava um pouco de sanfona também, o outro, o da beira, mais novo.

P/1 – Senhor Aurino, como é que foi assim o convite pro senhor ser um mestre griô?

R – Esse convite foi justamente como eu acabei de lhe dizer, ele descobriu pela festa, pela farra que a gente fazia.

P/1 – Depois de algumas caminhadas?

R – É, depois dessas caminhadas eles me chamaram lá e me convidaram pra ser o mestre lá do griô, e o moço: “Você é, você agora vai lutar com a gente, é um mestre do griô”.

P/1 – E esse trabalho que a gente está fazendo aqui, da Ação Griô, o quê que é importante, o quê que significa pro senhor estar aqui com outros mestres, qual é a importância?

R – Ah, pra mim é muita importância, que pra mim a importância é pra mim conhecer o povo. E eu tenho o prazer de fazer o trabalho junto com o povo, ter mais amizade. Cada dia passa, as amizades crescem mais. Mais conhecimento, cada dia passa, mais a gente conhece o povo. Mais conhece os lugares. Um desejo que eu realizei, um sonho que eu realizei agora também, que eu tinha vontade de andar de avião.

P/1 – Ah, foi a primeira vez?

R – Não, eu tinha esse desejo, mas agora parece que é a quarta vez. Porque a gente foi pra São Paulo de avião. E fomos pra Espanha.

P/1 – Ah, o senhor foi pra Espanha?

R – Fui com eles pra Espanha, fomos de avião.

P/1 – Se apresentar lá com a sua viola?

R – Foi com a sanfona.

P/1 – E qual que foi a emoção? Uma viagem longa...

R – Longa.

P/1 – E chegar em outro país. Como é que foi isso pro senhor?

R – Ah, lá foi muito ótimo, lá foi muito bom. E tem mais, o companheiro lá, o grupo lá foi muito legal. Essa viagem da gente saiu o convite de um encontro em Guarujá, que foi convidado pra ir a um festival do griô, aí a gente foi de ônibus pra Guarujá. Passamos em Guarujá quase uns 18 dias.

P/1 – Fazendo o encontro?

R – É, fazendo o encontro. A gente apresentava nas escolas, apresentação nas escolas. Passamos a semana toda apresentando nas escolas. Tinha vez que eram duas apresentações por dia, uma dez horas e outra acho que era três horas.

P/1 – E aí, nesse encontro que veio o convite?

R – Aí foram seis grupos, cada país um grupo. O grupo daqui do Brasil foi a gente. E veio da Espanha, veio o povo do Equador, de um bocado de lugar aí, de país. Aí foram seis grupos, com o da gente, e a gente ligado com o da Espanha. Aí foi aquele amizadão danado, a gente aprendendo a dança deles, eles aprendendo a dança dos meninos. Estava um grupo grande, que tinha 20 e tantas pessoas. E aí formaram aquela amizade, e aí acho que foi um deles que me convidou, o professor Márcio aí, o chefe, pra ir lá. Aí passaram uns dois anos, aí eles presentearam e a gente foi. E aí esse grupo está vindo agora também aqui, fazer uma visita em Lençóis.

P/1 – Senhor Aurino, qual a sensação de estar em outro país, conhecer outra língua?

R – É justamente isso que estou lhe falando. A emoção que me dá, nesse programa de eu estar no griô, é o que eu estou lhe falando: é esse sonho que eu tinha de andar no avião. E eu nem pensava de conhecer nem São Paulo. Hoje já outros lugares eu estou conhecendo. Conheço o Rio de Janeiro, conheço São Paulo, já estou conhecendo aqui Minas.

P/1 – O senhor não conhecia Minas Gerais?

R – Não, Minas eu nunca tinha visto não. Eu nunca tinha vindo aqui em Minas. E está arriscado de conhecer mais outros lugares, e estou querendo ver se eu conheço, viu? Então o meu prazer, nessa situação, é esse, é ter o pessoal. Porque a minha natureza, a minha vontade é igual à música de Roberto Carlos, que a gente tem que ter um milhão de amigos pra poder viver mais forte. É que nem a música de Roberto Carlos. Ele tem essa música: “Eu quero ter um milhão de amigos, viver mais forte pra poder cantar”. Então, é esse o meu desejo. Quanto mais eu tenho amizade, quanto mais eu tenho amigos, pra mim é igual o dinheiro. Tem gente que quanto mais tem dinheiro mais acha que é pouco. É igual a eu com amizade, quanto mais eu tenho amizade mais pra mim eu quero ter mais. Pra mim, a minha felicidade, a minha riqueza é os amigos, as amizades que eu faço. Sou tanto chegado à amizade e pessoal que no meu lugar eu não tenho diferença com ninguém, acredita? Eu acho que a minha sorte, que Deus me deu, não tenho diferença pra lá, no meu lugar ou Lençóis. Lá no meu lugarzinho, no meu povoado todo mundo é assim. Daí a meninada toda me chama: “Velho Aurino pra aqui, velho Aurino pra acolá”. Todo mundo me respeita, todo mundo gosta de mim. Eu acho, eu sinto que gosta. Não sei se é verdade, mas pelo jeito que me tratam eu acho que gostam. Lençóis é a mesma coisa. Quando eu chego em Lençóis, é pra arriba, é pra baixo, é rico, é pobre, é menino, é gente velha, é tudo assim mesmo, me abraçam. Eu tenho o maior prazer de viver no meio do povo. Pra mim, a riqueza que eu tenho é o povo, é a amizade do povo. Pra mim não tem coisa melhor do que certas amizades. É como na situação que eu estou lhe dizendo, que eu tenho de estar aqui hoje, junto com vocês aqui, proseando aqui com você. É essa situação que eu tenho, e tenho o desejo de ser hoje, amanhã, depois e toda hora, e todo dia enquanto vida eu tiver.

P/1 – Senhor Aurino, a Eniele é aprendiz do senhor?

R – É, a Eniele aprende. Ela aprende muito lá no griô com outros mestres também. Que tem a Rosa, que é parente minha, minha prima, tem a Lina, que é tudo lá do griô, é mestre lá do griô. E ela aprende nesse gregário com a gente tudo. Cada qual ela aprende uma coisinha.

P/1 – Com outros griôs ela aprende?

R – É, aprende. E ela puxa um galhinho de cada um e aí vai seguindo. De cada um ela tira um galhinho, uma folhinha, e vai seguindo.

P/1 – Ela tem talento pra sanfona?

R – Rapaz, eu ainda não vi ela dando um jeito assim pra ter. Talvez pode até ter. Mas eu não sei se é por causa dos outros trabalhos que ela faz, que ainda não deu tempo de ela estar chegando na sanfona pra dizer assim: “Eu quero mesmo”. A não ser que eu não sei. Porque eu só venho no griô assim uma vez na semana ou tem vez que passa uma semana sem vir, que eu moro mais na roça. Eu fico mais na roça, porque os meus filhos é quem fica em Lençóis. Tem um barracozinho, eles ficam lá em Lençóis, mas eu gosto de ficar mais lá na roça. Eu e minha mulher, porque eu já acostumei na roça, a trabalhar. Eu arranjo o meu trabalhozinho, arranjo a minha pescadinha, e aí eu fico por lá, e o meu pessoal, os meus filhos moram tudo cá em Lençóis. Eu fico lá, eu e a mulher. Só venho final de semana pra rua, pra cidade. Eu venho final de semana, que a gente vem pra cidade, mas a semana eu passo lá na roça, em Remanso. É um povoadozinho mas tudo é roça. Cada qual tem a sua roça lá, tem a sua canoa, tem coisa de pescar. É assim que a gente vive lá. E os filhos é que ficam na cidade. Eu não gosto de ficar na cidade porque eu não acho trabalho pra trabalhar.

P/1 – E como o senhor se sente sendo um mestre griô?

R – Ah, eu me sinto muito prazeirado, eu me sinto muito satisfeito, que eu não esperava de ser, nem pensava de ser mestre. Pra mim o mestre era uma coisa que eu nunca ia chegar lá, nesse lugar de mestre, porque mestre pra mim é uma grande coisa. E hoje eu me sinto muito prazeirado, muito satisfeito. O que precisarem de mim nessa parte, precisarem de alguma coisa, eu estou pronto. O que eu puder fazer, até disponho.

P/2 – Enquanto o senhor trabalhava na roça, em algum lugar, sempre quando tinha um tempo pegava a sanfona? Como é que era?

R – Moço, tinha vez que eu tinha tempo assim uma vez na semana, final de semana, no domingo, sábado. Todo final de semana eu pegava porque lá todo final de semana tinha festa, fazia festa, tinha reunião. A gente ia se reunir, que a gente tinha uma comunidadezinha lá, uma associaçãozinha lá, dos pescadores. E aí todo sábado a gente tinha que se reunir pra acertar alguma coisa, falar do trabalho. Aí, nessa reunião, a gente se reunia sempre à noite, sempre era de seis, sete horas da noite. Sempre eram três horas de reunião. E aí acabava de fechar com a festa, com forró. Todo final de semana a gente acabava a reunião, fazia o forró. Aí comemorava, bebia por ali uma cervejinha, uma coisa e fazia forró. Mas todo final de semana tocava sanfona. Agora hoje tem vez que passa uma semana, não pega na sanfona. Hoje tem um monte de instrumento. Antigamente não tinha música pra gente escutar. Tinha que chegar, pegar a sanfona e fazer uma música. Hoje tem muita música. Quando dá a noite a gente chega, descansa um pouquinho, toma um banho, descansa um pouquinho, ao invés de pegar na sanfona: “Eu vou assistir televisão”, assisti isso, assisti um filme. Às vezes o menino está lá: “Eu quero assistir isso”. A mulher gosta muito de assistir novela. E aí a gente vai e não pega na sanfona. Mas antigamente todo final de semana tocava sanfona. Quando não era em forró era em casa. Não tinha música, então, pegava na sanfona. Pegava, mexia muito na hora de dormir. Mas hoje em dia já não facilita. Às vezes está ali, a casa é uma só: “Ah, fulano vai tocar sanfona, vai empatar eu de assistir meu filme, assistir minha novela”. Deixa pra lá, deixa eles assistirem novela, não vou pegar sanfona não.

P/1 – Mas antigamente não tinha televisão, não tinha luz elétrica.

R – Antigamente nem rádio tinha, que dirá a televisão. Naquele tempo que a gente aprendia nem rádio conhecia lá. Aí começou a aparecer o rádio, daí a pouco tinha aquela radiola que tinha aqueles discos grandes, que foi aparecendo. Daí a pouco eu fui esquecendo de sanfona, de violão, viola, essas coisas. Às vezes estava dentro de casa, os filhos, a mulher: “Quero assistir uma coisa, se for tocar sanfona eu vou empacar, que eu vou zoar e atrapalhar”. Então, por causa disso, deixa eles assistirem, deixa a sanfona pra outra hora. Na hora que eles saírem pra fora eu pego a minha sanfona. Antigamente não tinha essas coisas, tinha que escutar era sanfona mesmo. Se não tem opção, então a gente tinha que escutar o som da sanfona. Agora demora mais de tocar sanfona. Aqui também, toda semana eu tocava sanfona.

P/1 – Seu Aurino o senhor tem feito caminhada com o Márcio nas escolas, nas comunidades?

R – Já fiz.

P/1 – Descreve como é que é uma caminhada como mestre griô?

R – Ah, a gente tem que sair às vezes. Quando era lá mesmo a gente ia nas escolas fazendo visita, fazia alguma apresentação cantando, tocando alguma coisa que fosse possível. Nessas reuniões é comum: “Vamos cantar isso, vamos fazer isso, vamos cantar tal coisa”. Então nós vamos ali apresentar na escola de fulano, na casa de fulano, lá mesmo no Remanso, fazia um show lá. Eu já estou lá, moro lá. Então lá a gente saía nas escolas, fomos apresentar lá, eu estava junto com eles, cantando, tocando sanfona, cantando as músicas, dançando.

P/1 – Mas qual é a importância de ter uma caminhada assim?

R – Eu gosto muito de fazer caminhada porque a caminhada faz muitas coisas pra gente. A gente faz várias coisas, a gente se diverte, a gente puxa a memória da gente pra alguma coisa que está esquecida. Por isso a importância da caminhada é esse tipo de coisa. Então é muito importante pra mim.

P/1 – E como é que o mestre griô é recebido nas casas nessas caminhadas?

R – A gente é bem recebido. Aonde eu tenho andado com eles nunca fui mal recebido. Aonde eu tenho ido com eles é sempre bem recebido pelo pessoal da terra.

P/1 – Canta junto?

R – Canta junto as meninas, o pessoal, professor, todo mundo está junto. É muito alegre, eu sempre gosto de fazer caminhada com a turma. Eu gosto muito da alegria. A alegria faz parte da saúde da gente.

P/1 – E agora que o senhor está aposentado e é o mestre griô, qual que é a importância de estar participando desses encontros da Ação Griô, encontrando outros mestres?

R – A importância pra mim é isso. É como eu lhe falei mais uma vez, é mais amizade e mais aquele prazer e mais conhecimento que estou encontrando e quero encontrar mais. A importância pra mim é, além de eu estar fazendo alguma coisa, estar fazendo algum trabalho, estou encontrando amizade e conhecimento, e depois disso conhecendo lugares também, que tem muito lugar que eu não conheço. Mais eu vou conhecendo, mais eu vou tendo amizades.

P/1 – No encontro aqui da Serra do Cipó, o que o senhor mais gostou daqui, nesses quatro dias que a gente está aqui?

R – Eu gostei muito, eu gostei de todas as coisas. Eu gostei muito da união, porque nos outros lugares sempre tem união, mas eu acho que aqui foi mais um pouco. Todo lugar que a gente anda tem união, mas aqui eu achei que foi mais um pouco do que os outros lugares. Além de ser mais um pouco, tem o tipo do lugar, é sossegado, é muito tranqüilo. Parece que o povo daqui já conhecia a gente antes da gente chegar, e todo mundo chama a gente pelo nome, vai vendo e conhecendo. Tem hora que eu vou passando aqui, o pessoal: “Oh mestre, oh mestre”, e eu não sei quem é. Então pra mim é importante. Uma coisa que eu achei ótimo aqui foi isso, o rol de conhecimento e o rol de atenção à gente, muita atenção pra gente. Tanto faz novos como velhos, os mais velhos. Eu gostei muito, é muito importante.

P/1 – E assim, pra gente acabar as perguntas e pegar lá a sanfona, o quê que o senhor achou de ter ficado aqui com a gente agora, ter dado a entrevista, ter contado a história do senhor, da infância, adolescência? O quê que o senhor achou?

R – Eu achei importante porque pra mim é uma grande coisa. Talvez, quem sabe, amanhã o povo não vai saber: “Você estava proseando lá, eu vi”. Que nem lá, eu fiz uma entrevista com o pessoal aí, o povo dá notícia. Esses dias mesmo eu fui dar uma entrevista lá mesmo no Remanso. Aí eles mandaram pra modo de sair na Record, pra gente escutar no horário e coisa e tal. Parece que foi um negócio. Eu nunca assisti, e lá o povo dando notícia: “Olha, ele passou na Record, não foi?”. O povo em Lençóis tudo dando notícia. Eu nunca assisti. Eles mandaram, eu já liguei a TV no horário que eles falaram pra eu entrar e nunca aconteceu. Parece que o dia que eu vou ligar pra assistir é que não acontece. O dia que eu não vou o povo dá notícia. É isso, pra mim a importância é isso. Mais a gente vai crescendo, mais vai ficando reconhecido, o pessoal do lugar que não conhece. Os que conhecem sabem que a gente fez aquela entrevista, sabe que o povo está conhecendo a gente. Quem não conhece não vai lá fazer essa entrevista, quem nunca viu, né? Então sabe que a gente proseou, teve aquela prosa com esse pessoal, ainda um jornalista, que é uma grande pessoa.

P/1 – Imagina.

R – Então pra mim o interesse é ótimo eu fazer essa entrevista, me interesso.

P/1 – O senhor acha que ficou faltando perguntar alguma coisa ou falar de alguma coisa que eu não perguntei?

R – Que está na minha lembrança por enquanto não. A minha lembrança antiga não deixa de ficar alguma coisa esquecida porque é muitas coisas, é difícil a gente lembrar toda a vida assim do princípio ao fim. Com certeza fica coisa. Depois que passa que a gente: “Ah, tinha coisa de fulano que eu poderia ter falado e eu esqueci”. Mas isso sempre tem. Acho que não tem esse pra modo de não deixar uma coisinhas pra trás, aquelas coisinhas mais velhas, aquela lembrançazinha, aquelas coisas mais cedo, que passa anos que já fizemos.

P/1 – Mas o que o senhor recordou aqui foi importante pro senhor?

R – Foi importante. Foi importante que foi uma vivência. O que eu sobrevivi, as coisas que eu sobrevivi até agora, estou sobrevivendo também. Então foi importante a gente lembrar das coisas, do que é bom, o que é bom pra gente, o que faz a gente ser feliz. É importante a gente estar lembrando, a gente estar falando. É muito importante.

P/1 – Eu queria agradecer o senhor ter ajudado a gente, ter feito a entrevista. Eu queria agradecer.

R – Que nada. Pra mim eu estou muito prazeirado. Eu muito agradeço a vocês também, de participar dessa entrevista.