Museu da Pessoa

O respeito, a perspicácia e o esforço nordestino de Seu Manoel

autoria: Museu da Pessoa personagem: Manoel Barrozo do Nascimento

Entrevista de acervo – Museu Aberto
Depoimento de Manoel Barrozo Nascimento
Entrevistado por Sonia London e Ilze
São Paulo, 23/08/2003
Entrevista MA_HV030
Transcrito por Rosali Nunes Henriques
Revisado por Carlos Alberto Lopes Durães (voluntário)
Revisado por Gustavo Kazuo (estagiário)

P/1 – Qual o seu nome completo e local de nascimento?

R – Meu nome é Manoel Barrozo do Nascimento, nasci na cidade de Itabaiana, no Estado de Sergipe.

P/1 – O nome dos seus pais e avós?

R – O nome do meu pai era Antonio Barrozo do Nascimento e do meu avô paterno, sei que o primeiro nome era Luiz. Na minha certidão de nascimento, quando chega ao espaço de colocar o nome dos avós paternos, tem um risco. Só tem os nomes dos avós maternos. É uma história meio complicada porque meu pai era do tempo da escravidão e eu não conheci ninguém da sua parte da família. Segundo o que contavam minha mãe e meus irmãos mais velhos, naquele tempo os ricos compravam pessoas, até famílias inteiras. Meu avô foi propriedade do filho de um senhor que havia comprado outra família toda, com umas três ou quatro mocinhas e com uma delas ele gerou meu pai e sua irmã, que foram criados separados de seus outros irmãos. Perdi meu pai com dois anos, quando tinha dois anos. Ele tinha 81, a idade que tenho hoje. Foi uma luta, sobrou tudo para mim. Tive que lutar com muita garra para chegar aqui.

P/1 – E os avós por parte de sua mãe?

R – O pai da minha mãe eram o Cesário Lino, e a mãe dela chamava-se Laurinda, acho que Laurinda da Conceição. Não lembro bem dos sobrenomes.

P/1 – O senhor se lembra da atividade profissional dos seus pais, dos seus avós?

R – Era tudo lavoura, naquele tempo a gente morava no sítio.

P/1 – Trabalhavam lá?

R – Um irmão mais velho era gerente de uma usina de açúcar. Meu pai tinha colocado professor em casa pra ensinar os filhos homens, porque mulher não estudava ainda. Eram oito mulheres da primeira família e três homens. De forma que meus irmãos estudaram. Naquele tempo, quem tinha uma situação mais ou menos boa de vida, preferia fazer desse jeito, era melhor que mandar as crianças para a cidade, que daria mais despesa. Cheguei até a participar uma vez da escola na casa de um irmão - quando tinha uns oito, dez anos de idade - que também havia colocado um professor pra ensinar os filhos e os vizinhos que tinham condição.

Eu comecei, mas a minha finada mãe, coitada, que era uma pessoa muito simples, sem nenhuma instrução, foi lá e me tirou. Eu lembro que a professora ainda disse: “Deixa seu menino, ele é inteligente, aprende tudo com facilidade” Ela respondeu: “Não, porque a gente precisa que ele trabalhe”. Fiquei sem estudar, mas nunca me queixei dela, porque a cultura era essa, era o que ela escutava dos pais dela também, só podia fazer aquilo mesmo. Comecei a trabalhar na lavoura e fiz isso até a idade de dezoito anos. Mas sempre com vontade de sair de lá, porque sabia que não tinha futuro, e eu via as pessoas da minha idade crescendo, todo mundo se arrumando, e eu não tinha condições, porque não tinha pai, tinha que trabalhar para sobreviver e ajudar a minha mãe. Via aqueles moços saindo para outras cidades, para São Paulo, para o sul da Bahia, e ficava com vontade de viajar. O problema é que eu não tinha o dinheiro para a passagem, naquele tempo a gente tinha que vir de navio. Quando meu pai morreu, nós éramos quatro filhos em casa, e minha mãe decidiu dividir um quarto de terra com cada um. Naquele tempo, os pais é que faziam o inventário. E sobrou aquele pedacinho de terra para mim, que vendi por 250 mil réis (em 1940). Comprei a passagem de navio por 137 mil réis e arrumei os documentos, porque tinha que tirar identidade, folha corrida da polícia, uma série de coisas para poder embarcar. E vim. Quando cheguei a Santos, a decepção. Assim que o navio parou, o guarda perguntou para onde eu iria e respondi que para a capital, São Paulo. Ele: “Você tem emprego arrumado?” “Não, senhor” “Tem residência pra morar?” “Não” “Então é melhor ir para o interior, porque aqui não tem serviço, está ruim. Você escolhe a cidade dentre algumas opções e o governo dá a passagem”. Escolhi Rancharia, porque era onde tinha um conhecido, um senhor de idade que tinha saído corrido da nossa região, porque Lampião o estava perseguindo. O guarda me levou até a estação de trem, me indicou descer na Estação da Luz, me informar e seguir pela Estrada de Ferro Sorocabana, até chegar a Rancharia. Isso foi no dia 20 de abril de 1940.

P – Quantos anos o senhor tinha?

R – Tinha dezoito anos. Fiquei aguardando o trem que só ia sair às dez horas da noite e ainda eram umas seis horas da tarde, mais ou menos. Naquele tempo não tinha ninguém na estação, estava vazia, não era que nem hoje. Quando deu o horário, entramos no trem, também vazio. Estava numa turma de dez pessoas que vieram no mesmo navio, todos sem dinheiro, só eu que tinha cinco mil réis no bolso. Os outros colegas não tinham nada, todos com fome. Num momento, apareceu um rapazinho louro, bem arrumadinho, passou, olhou, voltou e perguntou: “Vocês são do norte?” Respondi: “Somos” “De que lugar você é?” “Nós somos Sergipanos e aqueles Alagoanos” “Eu também sou Sergipano” Perguntei: “De que cidade?” “Sou de Ribeirópolis” Falei: “Puxa vida, arrumei já um conhecido”. Ele perguntou: “Vocês estão com fome?” Respondi: “Rapaz, bastante, o que mais temos é fome”. A comida do navio era terrível, eu havia comido só uma vez, depois não aguentei porque enjoava. Era um navio de carga, cada um deitava em cima de um tambor de óleo ou arrumava qualquer cantinho para se deitar. Ele mandou trazer comida, uma bandeja com sanduíches pra todos e falou que chegaríamos a Rancharia no dia seguinte, um sábado, por volta de uma hora da tarde, mas não teríamos condição de chegar na fazenda antes de segunda-feira. Ficamos numa pensão e ele conseguiu que o chefe mandasse um caminhão, a condução mais usada na época, para nos levar. Chegando lá, logo arrumei um patrão e fui trabalhar com ele, colhendo algodão. Graças a Deus, sempre fui esperto no trabalho da lavoura, sempre me saía bem. Ele me contou que só iria trabalhar aquele ano na lavoura, que estava indo para uma cooperativa em Presidente Prudente, a cidade mais evoluída dessa região e me disse: “Se você terminar a colheita, pode ir comigo e ser meu empregado de confiança. Você é um menino trabalhador. Se não quiser, pode tocar a lavoura aqui, você pega três alqueires de algodão e quando for daqui a seis meses você está com 15 mil réis no bolso”.

A minha ideia, minha loucura, era voltar para o nordeste. A gente deixa a família, aquela saudade, e eu era muito apegado com a minha mãe (pausa emocionada). Depois que terminei a colheita, ele fez a conta, me pagou tudo direitinho e me deu 200 mil réis de prêmio, mais um corte de pano para fazer um terno. Eu havia decidido tocar roça porque sabia que era algo certo, quando a gente plantava o algodão já vinham aqueles homens das máquinas da cidade e compravam a metade. Se tirasse mil arrobas de algodão, você vendia quinhentas, era um dinheiro garantido. Pensava: “Eu trabalho esse ano, vou sair daqui com um bom dinheiro, chego no norte e me caso”. Porque o interesse da maioria da gente, naquela época, era de se casar. Lá no nordeste, quando o camarada pedia uma moça em casamento, os pais já falavam: “Você tem casa? Não? Então vai fazer uma casa pra depois casar”. O pai da moça dava o enxoval, dava vestido, dava tudo, mas uma casa o rapaz tinha que ter.



Naquelas alturas, um primo que já havia morado na capital por um ano e não estava se dando bem tocando lavoura, ficou me falando para irmos embora para São Paulo, parar de dormir em barraco de sapê, de tomar banho só nos rios que davam maleita, era tudo um sofrimento. Falei: “É isso mesmo”. Ele veio na frente e disse: “Se eu arrumar serviço mando te chamar” Falei: “Tudo bem”. Eu já tinha plantado os três alqueires de terra, tava tudo prontinho, o patrão tinha me vendido a máquina de matar bicho e me arrumado tudo que precisava numa lavoura, para eu pagar depois que colhesse o algodão. Depois de uns quinze dias, meu primo mandou uma carta falando que eu podia vir que o emprego estava arrumado. Eu era novo, fiquei todo alegre. São Paulo seria melhor porque a gente sairia, se divertiria e coisa e tal.

Naquele apogeu, peguei e vim. Saí de lá com 2.500 réis no bolso. Falei: “Puxa vida, dava até para eu ir pro norte, mas quero chegar lá bem melhor do que isso!”.

Cheguei a São Paulo e o serviço que ele tinha arrumado era de servente de pedreiro, na Brahma, que estava passando por uma reforma. Era um serviço bem mais pesado do que a lavoura, tinha que pegar uma marreta de doze libras e quebrar concretos, trabalhando dez horas por dia. Um serviço terrível. Me conformei: “Agora não adianta, tenho que me aguentar por aqui”. Trabalhei um ano e depois resolvi mudar para o ABC, procurar emprego em alguma indústria. São Caetano naquela época era uma vila de Santo André, não tinha uma rua asfaltada, era tudo barro. Mudei, arrumei serviço, fui procurar uma pensão, mas só tinha 20 mil réis no bolso. Na primeira pensão que entrei o homem falou: “É 140 mensal e você precisa pagar ao menos uma quinzena, 70 mil réis” “Puxa, só tenho 20, e agora como é que vou fazer?” Saí, passei em outra pensão, a mesma coisa. Pensei: “Meu Deus e agora? Como vou fazer? Tenho o serviço, mas não tenho onde morar”. Mas sempre nas horas difíceis, quando a gente tem fé, aparece uma alma pra ajudar. Ia passando na rua pensando no que fazer e veio um senhor, que olhou pra mim e falou: “Você não tava ontem na fila, lá na repressagem – da firma que ia trabalhar?” “Tava, por quê? O senhor me viu?” Ele disse: “Sou o guarda lá e vi você e uma turma” “É, meu senhor, estou numa situação difícil”.

Eu tinha uns vinte anos de idade e todo mundo dizia que eu tinha cara de criança, quinze, dezesseis, no máximo. Ele perguntou: “Por que tá difícil?” Expliquei meu caso, dizendo que era nordestino e ele: “Sou mineiro, todos nós que chegamos de fora sofremos a mesma situação que você está passando. Hoje sou casado, já tenho filhas moças e minha situação tá resolvida. Inclusive, tenho um quarto na minha casa que eu tinha vontade de alugar, mas queria alugar pra uma pessoa de confiança, porque tenho umas filhas moças”. Naquele tempo o respeito era muito grande, os pais tinham muito cuidado com a família. Falei: “Sobre isso o senhor não precisa se preocupar, pois eu sempre soube respeitar a família dos outros” E me levou. Ia me cobrar só 25 mil réis de aluguel e como trabalhava no mesmo lugar que eu, ainda me deixou acertar quando recebesse o pagamento. Comprei um colchão – cama não dava para comprar -, botei no quarto e fiquei morando lá.

Comecei a trabalhar. Era doze horas por dia, um serviço muito pesado, pegava duzentos quilos de peso, jogava em cima de um carrinho, e saía empurrando. Mas na outra semana em que fui trabalhar, me disseram que não tinha serviço, que não havia chegado o vagão pra descarregar. E não tinha domingo, feriado, nem nada, só as horas trabalhadas. Pensei: “Puxa vida, agora apertou”. Fiquei uns três, quatro dias em casa, quando me disseram que estavam precisando de ajudante na Sibra. Fui a pé - quase uma hora de caminhada – porque não tinha condução pra chegar. Chegando lá, vi a placa “Precisa-se de ajudante” Entrei, tinha um senhor alto louro e um baixinho, falei: “Vocês tão precisando de ajudante?” Ele olhou pra mim e falou: “Nós estamos, mas pra você não serve” Perguntei: “Por quê?” “O serviço aqui, meu filho, é carregar saco de sessenta quilos na cabeça subindo escada com doze degraus e você não aguenta, porque aqui tem entrado negão que trabalha meia hora, uma hora, vai embora e nem vem buscar os documentos”.

Então falei: “Olha, se vocês não me arrumarem esse serviço eu não sei o que vou fazer, porque não tô trabalhando, preciso pagar a pensão, não tenho parente, não tenho ninguém aqui conhecido que possa me ajudar, vocês podiam dar um jeito de me arrumar esse serviço” O baixinho olhou pra mim e perguntou: “Você é do norte?”, “Sou”, “De que lugar?”, “Sou do Sergipe”. Ele disse “Conheço seu estado”. Ele era paulista, mas na revolução de 1924 tinha conhecido minha região. E disse para o alemão: “Você vê a coragem desses nordestinos, largam a família, vem para cá numa situação dessas, vamos dar serviço pra esse rapazinho”. Eu pesava naquela época 56 quilos e disse: “Eu tô acostumado a trabalhar em serviço pesado, trabalhei no interior, fiz derrubada em mata com foice, machado. Nasci trabalhando no pesado”. O alemão falava que não adiantava, porque eu não ia aguentar o serviço. Pedi, chorando, implorando. O baixinho falou: “Nós vamos experimentar, ele vem trabalhar amanhã, se der certo, no dia seguinte nós o fichamos. Só que aqui tem uma coisa, tem hora pra entrar, mas pra sair não tem”. No tempo da ditadura, de Getúlio Vargas, era dente por dente, olho por olho. “Se você não aguentar, vai embora meu filho, não tem outro jeito” Eu disse que tudo bem. “Você vem amanhã às sete horas e não tem horário pra sair, às vezes dez horas da noite você tá trabalhando”. No outro dia me botaram na sacaria mesmo, cada saco pesava cinquenta quilos, mas o saco era que nem concreto, saco de salito duro que nem pedra. Comecei trabalhar, fui tocando, tava indo bem, eu tinha aparência fraca, não tinha peso, não tinha presença, mas tinha força. Pegava o saco, jogava na cabeça e ia embora.

Quando foi cinco, seis horas, que era a hora que a gente largaria o serviço, eu tava com fome e o pescoço quebrado, quando virava a cabeça tinha que virar o corpo inteiro. Perguntei: “Que hora nós vamos embora, agora às seis?” O chefe falou: “Vocês só vão embora quando carregar esse vagão com oitocentos sacos de adubo” Falei: “Puxa vida!”. Nós éramos uma turma de umas quinze pessoas e eu disse “Eu tô com fome que não me aguento” Me disseram: “Vai ali naquele bar, compra alguma coisa e come”. O que tinha no bar eram umas cocadinhas e pão doce. Comi, bebi um pouco de água, voltei, fui trabalhar. Trabalhamos até nove horas da noite carregando o vagão.

Quando acabamos, ele falou: “Vou dar uma hora de presente pra vocês, vocês trabalharam até nove horas, eu marco até as dez” “Tudo bem”. Naquela noite eu não dormi, porque quando me virava, o pescoço doía muito.

No outro dia, me ficharam “É, você aguentou o dia rapaz, coisa que poucos têm aguentado, cada negão forte vem aí, não aguenta e vai embora” Quando recebi o primeiro pagamento, me animei! Eu tava acostumado a ganhar 200, 220, e lá recebi 500 e poucos. Era direto, domingo, feriado, até dez horas da noite. Eu pensava em completar um ano e arrumar outro serviço melhor, mas o problema era arrumar outro melhor, porque não existia, naquele tempo não existia indústria, só tinha trabalho de servente de pedreiro e nada mais. Quando venceu o ano, trocou de diretoria na firma – que era pequena, tinha uns sessenta funcionários mais ou menos - e veio um gerente do Rio de Janeiro. Ele fez uma reunião com os encarregados e os superiores. No final, meu chefe, que era baiano, disse: “Rapaz, o gerente deu ordem pra cada um de nós arrumarmos uma pessoa pra ser nosso auxiliar, porque a firma vai crescer, vai aumentar e vai precisar de gente pra tomar conta do serviço, quer dizer, vai ter outra seção, vai ter um aumento geral pra todo mundo e botei teu nome pra poder ficar em meu lugar, quando eu sair”. Como eu era novo, tinha receio de passar a contramestre e o pessoal mais velho não me obedecer. Mas meu chefe disse que ia avisar todo mundo que na falta dele, eu iria substituí-lo, porque já conhecia todo o serviço, trabalhava sempre que me chamavam, mesmo de domingo, e os outros não eram assim. Falei: “Tudo bem”. Ele combinou com a turma, todo mundo concordou, com dois dias o tiraram e o botaram num outro setor, e eu já fiquei tomando conta do serviço. O resultado disso é que trabalhei doze anos como chefe, já chegou a ter setenta pessoas trabalhando sob meu comando. Depois desse tempo, resolvi sair, porque aconteceram uns problemas que não gostei. Tinha muita malandragem, sujeito que começava a roubar, gente que se eu fosse fazer um relatório e levar ao conhecimento da diretoria, estava arriscado até a morrer.

Foi quando conheci essa minha patroa, quer dizer, eu já morava pegado com a casa dela, desde que ela tinha só doze anos e eu era noivo de uma moça que era quase da minha idade.

Tava com intenção de casar, mas um dia a mãe dela me fez uns desaforos, eu não gostei, desisti, e nem pensava dessa outra um dia ser minha esposa, porque era quase uma criança. Eu sei que foi indo, foi indo, minha sogra pegou amizade comigo, ficou sabendo que eu almoçava em um restaurante longe de onde eu morava e ofereceu: “Se o senhor quiser, pode comer aqui em casa, eu vi que o senhor é uma pessoa comportada”. O Hélio, meu sogro, foi o pai que não conheci, pra tudo (pausa emocionada). Um dia, me disse: “Vou fazer um quarto pro senhor morar aqui”. Fui morar com eles, mas com aquela ideia ainda de ir embora pro norte. Mas, comecei a gostar da menina, começamos a conversar. Ela tinha, então, quinze anos de idade, e eu achava que os pais dela não iam querer a relação, porque eu era treze anos mais velho. Nesse mesmo tempo, minha mãe escreveu pedindo pra me ver, tava com dez anos que eu morava aqui e não tinha ido visitá-la, apesar de sempre mandar dinheiro. Aquilo me deu uma tristeza tão grande que cheguei em casa e falei pra minha sogra: “A senhora sabe, amanhã eu vou viajar pro norte, vou ver minha mãe”.

O tempo de férias era só de quinze dias, mas pedi ao gerente da firma se ele podia me arrumar outros quinze.

Ele ainda me disse que se meu dinheiro não desse para a viagem, que me ajudaria. Foi quando percebi que minha patroa tava gostando de mim também, porque ela disse: “Por que você não pede pro meu pai pra gente namorar?” Respondi: “E se ele não quiser?” “Se ele não quiser, eu vou embora, desapareço daqui”. Naquele tempo namoro era com o pai e a mãe junto.

Fui pro norte, trouxe minha mãe e uma irmã solteira. Essa minha irmã mora lá pegado na minha casa, ficou viúva faz três anos, tem dois filhos formados, e, graças a Deus, tá muito bem. Assim que cheguei, no dia seguinte, fui falar com meus sogros para ver se estavam de acordo com meu namoro. Minha sogra era descendente de portugueses, muito faladeira, o que tinha que falar já falava na hora: “Eu não vou impedir o namoro de vocês” Meu sogro, muito calmo, disse: “Só tem uma coisa, enquanto estiver dentro dessa casa quem manda sou eu, porque aqui os moços tem mania de querer mandar nas moças quando começam a namorar e eu não vou permitir” E a sogra: “E outra, sozinha daqui nunca vai sair, tem que sair com um da família – eram em sete irmãos – ou com irmã, ou com irmão, ou comigo. E enquanto não fizer dezoito anos, ela não vai casar”. Eu disse: “Olha, concordo com tudo que a senhora falou, menos esse negócio dela casar quando tiver dezoito anos, porque eu tô com vinte e oito, vou esperar três anos... de jeito nenhum! Eu acho que a mulher quando tem que ter cabeça, com quinze anos ela já tem”. Meu sogro, mais compreensivo, falou: “O senhor tá em condições de casar?” Respondi que não. Ele continuou: “Ela também não tá, então o senhor vai se arrumar, ela vai se arrumar, se daqui a um ano o senhor tiver condições, chega e fala, quem vai mandar são as condições, não é o tempo” Eu disse: “Tô de acordo com o senhor”. Antes de dois anos nós casamos, graças a Deus. Temos seis filhos maravilhosos, todos fizeram uma faculdade. A mais nova tá com 41 anos, inclusive tá morando em Portugal porque casou com um português e tem uns outros que, graças a Deus, estão todos encaminhados e a gente tá por aqui ainda. Completamos cinquenta anos de casado, agora vai fazer cinquenta e dois e estamos tocando a vida. Meus filhos pra mim são um tesouro, são tudo pra mim. Qualquer apuro que tenho... já operei da ponte de safena, fiz uma série de operações, às vezes, preciso ser internado, eles estão todos presentes, só tenho que agradecer a Deus.

Eu, quando era novo, aprendia as coisas com facilidade, as pessoas me davam um endereço, um número de telefone, eu nunca marquei, passava tempos e eu me lembrava, hoje passa uma coisa agora, daqui a três, quatro horas já não lembro mais. A gente tem que aceitar, porque é a vida, não é? Quando cheguei a São Caetano, fiz a revisão do primário na escola, morava na casa de uma senhora, uma italiana muito maravilhosa, que me dava conselhos: “Meu filho, você é um menino novo, entra na escola, já vai se formar esse ano e coisa e tal” Era difícil pra mim, por trabalhar doze horas, um serviço sujo, tinha que tomar banho, comer alguma coisa e ir a pé. Da escola até onde eu trabalhava eram uns quarenta minutos em passo acelerado. Mas a escutei e entrei na escola. Eu me lembro, nós éramos em 28 alunos, todos mais adiantados do que eu, até me envergonhava no meio deles. Só que tinha uma coisa, em Geografia, Matemática, eu tirava de letra na frente de todo mundo, agora já pra outras coisas eu era fraco.

P/1 – Quantos anos o senhor tinha?

R – Tinha vinte anos.

P/1 – E estava fazendo a revisão do...

R – A revisão do primário, como eu falei pra senhora, eu fiz lá no sítio, naquele tempo as escolas eram debaixo de um pé de cajueiro, de um pé de mangueira, eram muito atrasadas. Então eu entrei pra fazer a revisão e ia muito bem, maravilhosamente bem. Só tinha aquela escola em São Caetano, hoje ainda está no mesmo lugar. Toda vez que passo ali, me lembro. Quando fizemos os exames de ano, tirei em terceiro lugar, eu tinha uma memória maravilhosa. Me lembro que em um dia de 1943, a professora, a Dona Judite, disse: “Meninos, quem sabe o nome das capitais do Brasil? Quem souber levanta a mão” Vi que todo mundo ficou parado, e pensei: “Será que essa turma não sabe?” Levantei a mão: “Você sabe meu filho?” “Sei” “Então começa do Rio Grande do Sul ao Amazonas” Falei num instantinho, dentro de dois minutos e ainda concluí: “Se a senhora quiser, falo o nome das cidades principais, porque também sei que todo estado tem duas, três cidades principais” “Não precisa, que você já falou tudo. Vocês vejam como os nordestinos são aplicados nas coisas do Brasil”. Porque as extensões de rios, de água, dessas coisas, as capitais da Europa, do estrangeiro, eu sabia tudo. Eu via um livro e já procurava ler, já guardava na memória.

Eu fui um pouco rigoroso com a minha família, tenho um sobrinho que tem sítio no interior e que morou em frente a minha casa por uns quinze anos, que me falou: “É, Barrozo, todo mundo te criticava porque você era muito rigoroso com os seus filhos”.

E era mesmo, eu ia buscar na escola de noite, não deixava sair com qualquer companhia, porque eu criava meus filhos de um jeito e se juntasse com outros que tinham um costume diferente podia botar a criança a perder. Nunca bati em filho meu, nunca dei um tapa em ninguém, mas eu conversava. Um deles, junto com a mulher, tomava conta de uma vendinha que eu tinha. Hoje, graças a Deus, ele é jornalista, tem uma firmazinha de revista. Minha mulher, um dia me falou, quando ele tinha catorze anos: “Ele tá fumando”. Minha mulher não é de falar muito, mas tudo que se passava ela me falava. Eu fumei também e se não tivesse deixado o vício, já tinha me acabado, já nem existia mais. Perguntei pra ele: “Meu filho, você tá fumando?”. Ele ficou quieto, abaixou a cabeça e eu falei: “Se você tiver fumando, pode pegar esse maço de cigarro e dar pra quem você quiser, porque enquanto você estiver nessa casa, sob minha responsabilidade, não vou permitir que você fume, porque o cigarro é o maior inimigo da saúde da pessoa, eu já passei por isso e sei o quanto é difícil pra pessoa deixar. No dia em que você for maior de idade, estiver sob seu domínio, eu nunca vou dizer “fume que é bom”, mas se você quiser, será um assunto seu, você já vai saber o que tá fazendo”. Eu sei o que é a cabeça de uma criança, a cabeça de um adolescente, eu fui criança, eu fui adolescente, eu sei. Sei lá se existisse maconha naquele tempo eu não tinha fumado? Às vezes, eu fazia uma coisa errada, e a educação que os pais davam no meu tempo era batendo nos filhos. Tudo era na base da surra, eles achavam que batendo iam consertar tudo. Muitas coisas foi o mundo que me ensinou, porque não tive uma presença forte da escola ou dos meus pais. Minha mãe, às vezes, me dava uma corriada por ter feito algo errado, e eu saía gritando: “Vou embora, vou sumir, desaparecer, não sei o quê”. Quando voltava, ela tava chorando. A gente passando por esses caminhos é que vê o que os filhos passam.

Quando vejo essas mulheres na porta da FEBEM [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor] chorando: “Porque meu filho é um coitadinho, coisa e tal”, a primeira coisa que dizem é que o filho se juntou com má companhia. Ninguém tem a capacidade de dizer que não soube ensinar ou que a educação que deu tava errada, ou que não teve sorte, sempre o outro é que é má companhia. E o filho da gente? Ninguém faz nada sozinho, mas a senhora pode ver, se entrevistar dez pais de família, a primeira coisa que vão dizer é que o filho se juntou com má companhia. Ninguém assume que não teve capacidade de ensinar o que era preciso. Por isso a gente vê essa miséria de hoje, tanta criança perdida, sofrendo e padecendo. Se desde pequenininho, na hora que a criança começasse a falar, os pais já falassem aquilo que pode e o que não pode, seria diferente. A criança guarda, a criança é inteligente. Não aconteceria o que acontece, mas tem muitos pais que dão muita liberdade, porque acham que o mundo está mudado.

Graças a Deus, meus filhos sempre me obedeceram. Tive cinco mulheres e um homem, o mais velho. A minha filha mais velha é advogada do jornal do ABC, faz 33 anos que ela trabalha lá, entrou com 15 anos de idade. Outro dia fizeram uma homenagem pra ela na Câmara Municipal de São Bernardo e eles a elogiaram muito. Tenho o maior prazer de ela ser o que é. E outra coisa, é meu anjo da guarda, porque sem ela eu não seria ninguém. Ela me acompanha, me ajuda. Só ela não, todos eles são bons, mas a situação dela é sempre melhor do que a dos outros, é o braço forte de casa. Qualquer problema que aparece ela resolve. E tudo isso depende do sistema que a pessoa foi criada. De pequeno, criança, eu via cunhado ou algum irmão bater nos filhos, e ficava tremendo, me criei com aquilo na cabeça, que bater não resolve.

Tem essa minha netinha, o pai dela foi embora, a deixou não tinha nem três anos de idade, a mãe arrumou outro, português, casou e foi morar em Portugal. Levou ela contrariando a minha vontade, porque eu achava que não ia se acostumar. Ficou por lá sete meses, e mandou a menina de volta, porque realmente não se acostumou. Então, a gente quando tá falando alguma coisa é porque já sabe o que vai acontecer. A vida da gente é isso aí, hoje nós estamos num mundo muito diferente, a gente tá vendo coisas que nunca pensou em ver na vida. Depois dizem que é a evolução do tempo. A evolução tem que vir com respeito. Vejo pessoas querendo fazer coisas que não tá na cabeça de ninguém. Esse negócio de fazer casamento de homem com homem, onde é que já se viu isso? Mas no meio de mil pessoas, se só um falar que tá errado, toma vaia, aquele que tá certo é o que tá errado. Eles dão vaia, dizem que é ignorância, porque hoje vale tudo e é por causa disso que nós estamos nesse mundo de crime, todo dia acontecendo mortes e mais mortes de muitos inocentes. Mas, infelizmente o mundo é assim mesmo, a gente tem que ficar quieto.

P/1 – Se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua vida, o que mudaria?

R – Ave Maria! Se pudesse, tudo que eu visse de errado eu mudaria.

P/1 – Mas na sua vida.

R – Na minha vida não mudaria nada, não me arrependo de nada, porque tudo que fiz, eu fiz com consciência. A não ser no tempo que eu era novo. Quando eu vim pra cá, gastei muito dinheiro que não devia ter gasto. Tenho colegas que trabalhavam junto comigo, fazendo o mesmo serviço que eu, na mesma firma, que ficaram milionários. Inclusive um que chegou a ter o maior depósito de material de construção em São Caetano. Ele era um cara seguro, pegava o dinheiro e olhava um terreno para comprar. Uma vez me convidou pra ir com ele comprar um terreno em Jundiaí, 25 mil metros de terra, há quase cinquenta anos atrás. Mas eu não pensava em comprar terreno por aqui, queria comprar um sítio lá no norte, sempre tinha ideia de voltar para minha região. Ele ficou rico, casou com uma mulher também muito segura, que trabalhava com ele, como caixa do depósito. Depois ele resolveu ir embora pra Bahia, comprou uma fazenda na divisa com Sergipe, que é um estadozinho pequeno. Às vezes, ele encontrava comigo e dizia: “Rapaz, quando for a Sergipe, vai lá à minha fazenda, é a fazenda modelo da região, botei água encanada, botei luz”. O cara teve dinheiro, teve plano e teve cabeça. Agora vou dizer, o cara teve sorte também, porque a sorte vem com a oportunidade e com a capacidade. Se a pessoa tem capacidade, tem a oportunidade, a sorte tá é nisso. Eu não tive a cabeça que ele teve, mas não me arrependo, porque, graças a Deus, tenho uma casa pra morar, tenho os filhos, esse rapaz só teve uma filha.

Um dia peguei o jornal do ABC e vejo a notícia: “Raimundo Santana morreu na sua fazenda na Bahia”. Falei: “Puxa vida” Me assustei. Fui ao velório, que estava sendo no Hospital São Caetano – ele foi enterrado aqui mesmo -, a mulher dele me conhecia, perguntei: “Puxa, como é que aconteceu isso, o homem tava bom, não tava?” E a mulher: “Ele era muito teimoso, o médico já tinha falado que ele não podia fazer força, não podia trabalhar, mas ele só queria viver trabalhando”. Ao invés dele mandar um empregado fazer uma coisa, ele ia fazendo e os empregados ficavam olhando. Um dia, subiu na caixa d’água pra limpar, deixou dois rapazes embaixo e falou: “Quando eu der sinal vocês sobem com a carretilha” E os rapazes ficaram aguardando e nada dele chamar. Como estava demorando muito, foram olhar e ele tava morto dentro da caixa d’água! Por causa disso que eu digo: a escola maior é o mundo, são os tombos que a gente toma. Eu não me arrependo de nada que fiz não, porque tudo que fiz foi com consciência, a não ser essas coisas que aconteceram no tempo que eu era mais novo, que se eu tivesse a cabeça que tenho hoje, não ia fazer muitas coisas. Mas, Deus me deu a felicidade de poder me corrigir. Pior é quando muitas pessoas fazem a coisa errada e acham que aquilo tá certo. Sei lá se vou morrer amanhã, se vou morrer depois. Tem muitos velhos sofrendo, jogados, porque foram pessoas que não se corrigiram. A senhora vê esse pessoal que invade terra, outro dia vi um velho de setenta anos invadindo, será que esse homem não teve condições de arrumar um pedacinho de terra pra fazer uma casa? O que eu fiz, fiz com sacrifício. A minha casa eu comecei com três cômodos, depois fui aumentando, hoje tenho 270 metros de construção, trabalhando dia e noite. Levei trinta anos pra construir. Todo mundo tem a chance, é só ter vontade.

P/1 – Senhor Manoel, a gente vai ter que parar aqui agora, foi ótimo, queria agradecer ao senhor.

R – Tava só aguardando a ordem da senhora pra parar, não é?