Museu da Pessoa

O corpo, a mulher e o esporte

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria Rosa Ascar

Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Maria Rosa Ascar
Entrevistado por Isabela de Arruda e Caroline Pitta
São Paulo, 30/03/2010
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV259_Maria Rosa Ascar
Transcrito por
Revisado por Erick Vinicius de Araujo Borges

P/1 – Dona Maria Rosa, boa tarde. Gostaria que a senhora dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – Meu nome é Maria Rosa Ascar, nasci no dia 15 de fevereiro de 1932, tenho 78 verões. Nasci em Nova Resende, Minas Gerais.

P/1 – A senhora falou sobre a data do seu nascimento.

R – Ah, sim, 15 de fevereiro é o oficial. O verdadeiro é primeiro de dezembro de 1931. Como antigamente se atrasava de um ano para o outro o registro dos filhos. No meu caso, meu pai libanês, pão duro. “Não, ela nasceu ontem”. Este ontem era 15 de fevereiro, passou para 1932. Então, o dia 15 de fevereiro é o oficial; o verdadeiro é primeiro de dezembro de 1931.

P/1 – Como era o nome dos teus pais?

R – Meu pai José Calixto Ascar. Meu pai era do trabalho, digamos assim, mais voltado para a terra. Não era rico, meu avô, sim. Meu pai nasceu no Líbano, não me lembro o nome da cidade que nasceu. Parecido com Ancara, mas não é Ancara, porque Ancara é na Turquia.
A minha mãe, brasileira, Batistina Maria José Ascar. O Ascar é do pai, porque ela é filha da avó, Maria Eduwiges Almeida Prado Machado Chedder. A mãe Batistina Maria José e Ascar do meu pai.
Meus avós, do lado de mãe: o avô libanês trabalhava no comércio de sedas em Beirute, no Líbano. Rico, veio para o Brasil como turista. Meu pai veio para trabalhar, como imigrante, digamos assim. Meu avô veio com passaporte de turista, se apaixonou pelos olhos azuis da avó e os dois formaram a família, Chedder e Ascar.
O lado do meu pai, todos da agricultura. Pequenos sitiantes, não eram empregados, mas eram modestos. Viviam do que plantavam. Avó Helena Bachur Ascar, do lado da vó. Meu pai, filhinho dela, José Calixto Ascar. Ele e o tio Domingos – meu pai tinha só um irmão, a avó Helena só teve os dois, o Domingos Bachur Ascar e o José Calixto Ascar.

P/1 – Quando o seu pai veio do Líbano veio sozinho?

R – Veio com a avó Helena e o irmão dele, o tio Domingos. Solteirão o tio Domingos; não quis casar. A avó não quis casar outra vez. É tradição, a viúva, só se o marido tem algum cunhado disponível, senão não casa.

P/1 – Eles vieram para o Brasil e foram morar aonde?

R – Foram para Minas. O pai veio como imigrante; foi trabalhar na lavoura de café, lavoura da mãe, que veio da avó Maria. O avô era do comércio de sedas. Ele trabalhava muito com a China; importava seda da China. Já a avó, não. Do Brasil, o pai da avó, Diocleciano Almeida Prado Machado. O pai da minha avó Maria Edwiges Almeida Prado Machado Chedder.

P/1 – Nome comprido.

R – Tinha mais, no casamento ela tirou um pouco. Havia alguns a mais, porque era comum as famílias manterem os nomes. Pelo menos as famílias do meu lado. A avó Maria era fazendeira de café e gado. Tinha um laticínio, porque quem tem gado leiteiro, era o forte – tanto que aquela canga, do carro de boi da foto, era da fazenda da avó Maria. A avó Helena era do lar também. A avó Maria do lar, mas ajudava na criação. Enfim, cuidava dos negócios da casa, da criadagem. A mãe, não. Ela já cuidava da criadagem e do comércio. Porque meu pai tinha um comércio, avô também. Como eles não falavam português, a mãe, quando vinham os fiscais ia junto e traduzia.
Voltando à avó Maria, fazenda do café e gado leiteiro. Vítima da queda do café nos anos 40, ao final da guerra, a guerra do Hitler. Não lembro que número foi esta guerra, nem quero lembrar. Coisa assim melhor não lembrar. A vovó foi embora muito cedo, tinha 40 e poucos anos. Ficou doente, naquele tempo não tinha o atendimento médico que tem hoje. A ciência estava um pouquinho devagar, muito devagar. Ela se foi porque não tinha remédio, teve uma hemorragia e naquele tempo não tinha a transfusão de sangue, muito menos se sabia que era falta de plaquetas. Este conhecimento tenho porque trabalhei em banco de sangue, como voluntária, a gente é informada pelo enfermeiro, médicos, para poder transmitir aos doadores a informação e fazer campanha de doadores de plaquetas.
A avó, trabalhando com café se foi e a mãe assumiu. Porque meus tios não tinham o tino administrativo dela. Não sabiam mandar. Eram dóceis, uma hora assim você tem, não que ser rude, mas saber orientar, mandar; sem ofender, claro.
Bom, veio para a ela a incumbência de cuidar do que a avó tinha deixado.

Ela, os vovôs do lado dela, do lado da mãe. Veio a guerra, a queda do café, a queima do café. O que a mãe fez? Não podia fazer outra coisa, pegou a filharada, de comum acordo com meu pai. Ele ficou cuidando dos negócios, já falava português, aprendeu com a mãe e a avó. Falava melhor do que o avô. Ficou o pai cuidando dos negócios e a mãe veio para São Paulo. Nós tínhamos fazenda em Ribeirão Preto também. Tínhamos familiares, tios, primos, do lado da vovó Maria, aqui na capital. Ela, conversando com pai e com o avô, achou melhor, mais prudente, vir para São Paulo poder tocar os negócios que tinham aqui.

P/1 – Quantos anos a senhora tinha quando veio para cá?

R – Três para quatro anos. Eu tenho 78; era bebezona ainda.

P/1 – A senhora não tem alguma lembrança lá de Minas?

R – Muito pouco, o que lembro, um primo nosso, ele era Luiz Eduardo Oliveira Prado, tinha mais uns nomes, só guardei o começo. Morava em uma casa na Alameda Santos. Uma casa que não tem mais, virou prédio, perto do Trianon. A mãe, com ajuda dos primos e tios – a mãe tinha tios por parte de pai também, moravam na Avenida Paulista. A Paulista era dos fazendeiros de café. A mãe tinha familiares na Paulista. Moravam perto da Casa das Rosas. Isso guardei, porque ia na Casa das Rosas para ganhar rosas. Sempre fui muito comunicativa desde garota, fugia da mãe e ia para ver as rosas. O jardineiro sempre esperava para dar uma rosa. Nós fomos morar na Rua Vergueiro. De lá, vem ano, fomos para o Imirim. Esqueci de trazer a fotografia da nossa casa. Era nossa. A mãe foi vendendo, morando cada vez mais modestamente, para não deixar os empregados que tinham ficado em Minas na miséria. Quando queimava o café, para onde ia esta turma? Para esmola. A mãe controlando, ia à Minas uma vez por ano, o que tinha que fazer; ajudava; tinha que levar o dinheiro. Naquela época não dava para fazer via banco. Nem tinha banco. A mãe ia levar o dinheiro para não faltar aos colonos, já sem emprego. Já tinham um cuidado de ajeitar na vida. Enfim a mãe em São Paulo, nós em São Paulo. Você perguntou da lembrança, me lembro muito pouco. Me lembro que fui crescendo. Guardei de ouvir os irmãos mais velhos contarem. A mãe não gostava de falar a respeito.

P/1 – Quantos irmãos a senhora têm?

R – A mãe teve 14, não teve mais porque veio pra São Paulo e meu pai não tinha chance. Não, mentira. Foi porque meu pai já era bem idoso, tinha 30 anos a mais que a mamãe. O avô tinha quase isso a mais que a avó, antigamente era comum. Com isso a mãe teve 14, criou nove, teve duas vezes gêmeos, logo depois de nascer não ficou nenhum dia. Não nasceram mortos; mas nasceram, respiraram, choraram e morreram, foi o que ouvi da minha irmã mais velha. Depois, o caçula, o Egídio, morreu com um ano e cinco meses, doentinho. Antigamente não tinha nenhum recurso, era tudo medicação natural. A avó era muito estudiosa, não chegou a ser médica, mas estudava. Tinha um médico na família, o Doutor Julio, ajudava minha avó a ajudar as pessoas da região. Vovó por sua vez, ensinou a minha mãe. A mãe foi parteira e professora daquele fim de mundo. Estava estudando para ser professora, mas saiu do internato para o altar casar com o pai. Se conheceram no altar. A avó, não. Estava passeando com o avô Diocleciano, era viúvo, mas levava os filhos para conhecer a capital federal, o Rio de Janeiro. Não São Paulo. O lado libanês que veio para São Paulo, do comércio de café, do lado do avô. Meu pai não tinha ninguém; era pobre; veio como imigrante. Avô, não, era rico. Tinha os parentes que moravam na Paulista,

tidos como fazendeiros, mas eram mais negociantes.

P/1 – A senhora estava falando dos irmãos. Que eram 14, dois deles faleceram; o mais novo faleceu; então sobraram nove.

R – A mãe nos criou a todos. Fizemos todos faculdade.

P/1 – E o nome deles?

R – João Evangelista e João Batista, que morreram; os outros Marcos e Mateus, dos gêmeos. Era a repórter da família. Chegava visita, minha mãe chamava para contar. Quando perguntavam, claro. Se não perguntassem, não abria a boca. Não precisa perguntar, já falo; sou bem tagarela. A mais velha, Leonisa, apelido Nisa, hoje está com 90 anos, não está bem de saúde. Bem de cabeça, de saúde, não; está de cama. Depois da Nisa, o Kalile; depois do Kalile vieram João Batista e João Evangelista. Depois veio Tufik. Depois vieram Marcos e Mateus. Depois veio Salma; depois Salomão; depois Jorge; Abdalla, eu, Maria Rosa, o Abílio e o Egidio.

P/1 – Dos dois lados da família a senhora tem ascendência libanesa. Quais eram os principais costumes?

R – O pior costume: mulher é propriedade, quando o homem dá presente para mulher é para mostrar aos outros. Ela é apenas uma vitrine. Outro: não têm direitos; só têm deveres. Isso foi a minha luta, no caso, porque a mãe, filha e casada com libanês, passou para nós o que recebeu. Eu fui rebelde, a Salli também. A Salma nem quis se casar. “Eu, não. Sair de um jugo para entrar no outro”. A Nisa, a mais velha, deixou o noivo quase no altar. O pai era bem idoso. Não durou três anos que ela tinha nos trazido para não morrermos de miséria, para cuidar dos negócios; logo em seguida o pai faleceu. Neste falecimento a mãe ficou sozinha. Minha irmã se achou no dever de ficar com a mamãe. Nisso eu tinha uns dez anos, já estava no ginásio. Antigamente era primário e ginásio; não tinha pré-escola, nem maternal. Era a mãe que cuidava. Por isso me lembro bem da minha irmã. O porquê da escolha de vida. A Salli não queria casar para sair de um jugo e entrar em outro. A Nisa para ficar com a mãe. Era mais velha, foi também no hábito libanês, é mais ou menos semelhante ao japonês. Os mais velhos são responsáveis pelos mais velhos da casa: os pais, avós. Ela, primogênita, ajudou a mãe a nos criar. Eu a chamo de “irmãe”, porque ela é irmã e mãe. Foi uma luta difícil, depois de venderem os bens, começamos...
Eu não porque já nasci na pobreza, vamos dizer – para mim foi tudo, o que veio do céu; veio como se fosse um néctar, um prêmio. Para a minha irmã, não. Ela nasceu em berço de ouro. Estudou, como mamãe, era tradição, no Colégio São José. Era internato em Belo Horizonte. O Kalile estudou na escola Marista; Belo Horizonte. O ___ idem. Já no Salomão não dava mais. A Salma ainda chegou a fazer o primário no colégio interno, então chegou a tristeza da queima do café, foram para escolas públicas. Imagina para quem veio como a Nisa! A Salli nem tanto. Eu já nasci, não digo na pobreza; mas para a Nisa é pobreza, comparando. Ela tinha babá para amarrar o sapato, para pentear o cabelo, como a mamãe. Tinha uma babá só para pentear o cabelo porque o cabelo da mamãe era como o meu.
Depois de tudo isso, a gente cresce, ouve aqui, ouve ali e quer voltar aonde nasceu. Foi o que fiz. Fui até Petúnia, município de Nova Resende, Minas Gerais, Sul de Minas conhecer o chão que engatinhei. Fiquei sabendo que era a mamãe escrita, porém morena; a mãe era bem clara e tinha os olhos do avô, verdes.
Vovô era lindo! Meu pai era feinho, por isso não tem nenhuma foto dele. Vai ver ele mesmo jogou ele era vaidoso. Tinha consciência do sogro, bonito. tinham a mesma idade. A minha família, acho que manteve a tradição. O Abílio tem a idade da sogra. Essa cunhadinha, hoje, em casa, fazendo um pulo grande, falando do hoje – esta cunhada cuida de três velhos. Jorge, que é solteirão, teve um AVC, morava sozinho, minha irmã convenceu que fique morando com ela. A casa era da mãe e ficou para minha irmã, ela tem um apartamento. Minha mãe, na construção, fez para Abílio não deixar a minha irmã sozinha.
Os filhos dessa minha cunhada estão casados, os quatro, ela tem 56 anos e o Abílio tem 67, bem mais velhinho. De modo que hoje essa cunhada cuida do asilo Ascar: marido e dois cunhados. Dois solteirões: minha irmã de 90 anos e o Jorge de 80 e poucos. Com isso a minha vida ficou rica – ficou, não, sempre foi – mas cada vez está enriquecendo mais por causa destas nuances e destas mudanças bruscas ,que só trouxeram vantagem.

P/1 – A sua mãe trouxe então os nove filhos para São Paulo...

R – Não, o Tufik ficou com o papai.

P/1 – E vocês foram morar na Rua Vergueiro. Como era a casa onde vocês moravam?

R – Na Rua Vergueiro, não. Perdão, falei Vergueiro, me enganei. Fomos para a nossa casa; era um palacete de três andares, fora três andares da torre, no total seis andares. Não tem mais essa casa.

P/1 – Era perto da Casa das Rosas.

R – Não, perto da Casa das Rosas nós éramos hóspedes na Rua Vergueiro, mas não era nosso.

P/1 – Vocês ficaram bastante tempo nesta casa?

R – Pouquíssimo, logo a nossa casa ficou arrumada. A nossa casa estava fechada, era propriedade da minha avó para receber os familiares quando vinham de Portugal, era ao lado da avó Maria. Ou da Suíça, a mãe tinha tios suíços, quando essa turma vinha ficava lá.

P/1 – Então a casa de vocês era no Imirim. E como era esta casa?

R – Gostoso. Tinha torre de três andares, adorava subir e ficava urubuservando, porque tinha muito urubu por lá. (risos). Eu brincava, junto com meu irmão caçula e três agregados, sobrinhos da mãe que vinham a São Paulo para estudar e ficavam morando em casa. Essa casa era uma delícia; adoro a lembrança de lá, um casarão. Ocupava duas ruas: entrada social era na Rua Dona Eufrida e a de serviço, Rua Nova dos Portugueses, não tem mais a casa. Era uma, pode-se considerar, uma chácara, tinha até horta, árvores; tinha bananeira, abacateiros. Tudo no plural. Tinha parreiras, roseiras, de tudo. Tinha, claro, o galinheiro. Onde o Abílio ia cedinho para ver a galinha botar ovo e trazia para eu, antes de ir a escola, tomar. Porque ia cedo para a escola e o Abílio mais tarde. Quem me levava eram irmãos mais velhos, o Tufik, me levava de carro, ou o Jorge, a pé. Estudava no Colégio Santana, na Voluntários da Pátria. Antigamente era só para meninas, estava no ginásio; tinha feito o primário, fiz perto da Vila Mariana, Paraíso, um colégio que não tem mais. Não tem mais a Brahma. Brahma era a minha referência, era muito nova. Fui para o colégio já alfabetizada; fui para o segundo ano, não fui ao primeiro, porque mamãe era professora e nenhum filho entrou no primeiro ano. Faziam teste, já matriculavam a gente pelo conhecimento. Não tinha limite de idade; hoje tem, antigamente, não, a mamãe com treze só faltava um ano para ser professora. Com doze anos, isso ela herdou da vovó Maria.
Deixa me localizar quanto a idade... Me lembro que ia no Colégio de freira e era bolsista, que um primo arrumou para a mamãe. Era escola pública, quer dizer, não é bem pública, vai e volta. Externato e não internato, internato sai caro. A mãe não pagava, primo Eduardo arrumou bolsa para todos os menores. O Salomão, o Abdalla, o Jorge, eu e Abílio. Nós cinco estudávamos. Os meninos estudavam no Colégio São Bento, era para menino, ia para menina, eu e a Salli. A Nisa não ia porque tinha que ajudar a mãe, ficava costurando, cozinhando e ajudando a mãe. Depois que ela foi.

P/1 – Com este monte de irmãos, quais eram as brincadeiras favoritas de vocês?

R – Foi difícil adaptar à cidade, nas fazendas... Montava em pêlo! A brincadeira que a gente fazia era... Fazia de moleque porque tinha marmanjo do meu lado. a Salli era bem mais velha que eu; tinha oito anos a mais; era outro gosto. Eu brincava de boneca em cima de árvore, quando viemos para São Paulo, brincava de bolinha de gude com meus irmãos, estilingue. Era malvada, brincava com estilingue. Só não atirava em passarinho, nem em gente. Acertava planta, flor, nisso era malvada.
Não lembro exatamente a idade que fomos para casa, quando desocupou, mas ficamos pouco tempo. Lembrei a idade: foi a do ginásio, ia para o Colégio Santana, também bolsista e de freira, como o São José, da Rua da Glória, não pagando. Do Colégio Santana fui para o Fernão Dias, do estado, fiz o ginásio e depois faculdade fiz USP (Universidade de São Paulo), primeiro a São Francisco. Enganei, não é bem isso, traí, esta é a verdade, nós temos na tradição Ascar, claro, os tios tinham seus filhos, que eram nossos primos e tinha o Camilo Ascar que chegou a ser deputado estadual e desembargador. Chegou até a secretário, qualquer coisa assim, nunca liguei para o status, ligo para a pessoa. (risos). Sei que Camilo já tinha no escritório uma mesa reservada para mim, seria a primeira advogada Ascar, entrei, mas não disse que tinha entrado. Pensei: “vamos ver se gosto; se gostar, eu conto”. Mas detestei!

P/1 – Vamos voltar um pouco ainda para a infância, a senhora estava falando da primeira escola que foi esse colégio que ficava na Vila Mariana. Qual a primeira lembrança da escola que a senhora tem?

R – Nossa, que medo que senti! A mãe fazia o uniforme para nós, era mais em conta. Comprava uma peça e minha irmã costurava. Tudo igual, era uniforme. Não estranhei isso, estranhei que era muita menina da minha idade. Em casa era só eu, aquilo foi um choque! Estranhei elas falarem palavrão. Nunca tinha ouvido “merda”, nossa, nunca! Quando cheguei não sei quem me mandou a “merda”. Nossa senhora, avancei na menina! Ela em mim, claro. Resultado: entrei em coma. Foi um choque tão grande que fiquei cega na hora, falei em coma, depois veio o coma, fiquei cega. Abria o olho, enxergava, depois não enxergava mais. Tive um trauma tão grande que, como defesa, sei lá o quê,

as freiras me acudiram e me levaram para a enfermaria. Aí que entrei em coma.

P/1 – A senhora tinha quantos anos?

R – Tinha cinco aninhos. Isso me lembro bem, alfabetizada, mas tinha cinco anos.

P/1 – Tem algum professor dessa época que marcou a senhora?

R – Não, bem, Yolanda que foi minha professora. Entrei no segundo ano, mas foi depois, esse colégio não estava indo para estudar, me levaram para conhecer. Foi dia de festa, não dia de aula, levei um susto.

P/1 – E foi este dia que teve a briga?

R – É, fui parar na enfermaria, nem era do colégio ainda.

P/1 – Mas depois a senhora passou a frequentar esta escola.

R – Depois, sim, voltei pra casa, sarei, depois quando estava bem em ordem, o Dr. Júlio era o médico da família. Antigamente tinha médico na família, não era Dr. Júlio, ele era de Minas, em São Paulo era o Dr. João de Deus Bueno dos Reis. Fui no ano seguinte, lembro que fui a escola com seis anos.

P/1 – A senhora ficou nesta escola por quanto tempo?

R – A mamãe arrumou a casa, fomos para Santana,

devia ter doze anos. É: seis, sete, oito, nove... Não, menos, tinha dez anos. Dez anos.

P/1 – A senhora passou a estudar no Colégio Santana.

R – É, mas fiquei pouco tempo sem estudar, era muito fraquinha, muito doentinha, quando menina; depois que virei um tourinho. Fiquei a conselho do Dr. João, não fui para escola logo que saí do hospital. Acho que o Dr. João já tinha noção de psicologia, lia o que naquele tempo era feio ler: o Freud. Fiquei sabendo quando fiquei mocinha, fui ao consultório dele, depois conto o escândalo que dei. Porque antigamente os pais, as mães não ensinavam, não preparavam as meninas. Sei que depois de lá ficamos pouco tempo, quatro anos, o tempo que fiz o ginásio no Colégio Santana. A mãe também teve que vender, voltamos para a Vila Mariana – fomos morar em apartamento – 1342; hoje não tem mais. Hoje é respiradouro do metrô.
No começo foi dramático, porque sair de um casarão para morar num apartamento! Está certo que, com três quartos, mas caramba! Três quartos, sala, cozinha, um quintal e o banheiro, para quem veio no casarão: eu, quarto sozinha; a Nisa e a Salli em outro; a mamãe sozinha. Então conta: um, dois, três. Eu, Nisa e Salli e mamãe. Abílio e Abdalla, quatro. Jorge sozinho. Tufik, já estava namorando e não ficava em casa, mas quando vinha tinha o quarto dele, o Kalile já estava casado. Chegou a ter que dormir quatro num quarto! Num beliche! Eu tinha um camão, sempre fui espaçosa, tinha uma cama enorme e de repente numa cama que se virasse, caia! Ho, ho, ho!. Foi bom porque experimentei o outro lado da vida, me preparei; foi uma escola. Não lembro quando mudei para o apartamento; lembro quando saí: no dia que o Getúlio se matou. Não dá para esquecer, quarto centenário! Ainda mais eu, usando farda, todo aquele holofote., era a mais visada porque era a única mocinha, o resto tudo vinha. Eu tinha 22 anos, a minha irmã quase 30. Não, já tinha 30! A Nisa quase 40, ou já tinha 40. Foi uma mudança dramática para nós todos, mas valeu, porque a mãe já recebia presentes dos antigos colonos que, no natal, mandavam caixas e caixas. Caixa de manga, ou caixa de (choro) milho. Sacas e sacas de milho. Gente! Olha que lembrança! Foi duro e ao mesmo tempo maravilhoso, foi divino. Deus nos abençoou. Aquilo foi a retribuição, Deus ajudou os colonos, eles se reergueram e já mandava presentes, engradados. Quando, em 1954, fomos para Rua Roquete Pinto, 260, no cinquentenário, 25 de janeiro, nós recebíamos engradados de leitão no natal; engradados de frango duas vezes por ano. Vocês imaginam a minha emoção, lembrar a emoção da Nisa poder comer um leitão sem torcer o nariz porque não sabia como tinha sido morto. A galinha, o frango, sabia de onde vinha, para mim tudo era festa. Já nasci na pobreza, quer dizer, pobreza, não. Pobreza comparando com o que eles eram, nasci na pobreza. Gente que coisa mais linda! Se vocês pudessem imaginar a carinha da Nisa, a irmã mais velha. A mãe! A Sali nem tanto que ela tinha oito anos, mais de oito, isso não importa, A Sali era de 25 eu de 31, façam as contas. A Nisa, 20; o Kalile, 21; gêmeos, 22; Tufik, 23; outro gêmeos, 24; a Sali, 25 e daí até chegar no 31, 32, no 33.

P/1 – Uma vez por ano tinha uma gravidez.

R – Um filho aparecendo,

sei que, minha gente, sempre gostei de ler e a Sali, que ajudou a mamãe a me alfabetizar, me levou ao curso de leitura. Lia livros de adultos, “Casa Grande e Senzala”. Não falava isso porque senzala era de escravos, do jeito que os meus irmãos trabalharam, os mais velhos, eles foram verdadeiros heróis. (choro) O Kalile tinha um emprego que o Eduardo tinha arrumado, o primo da mãe, Eduardo Oliveira Prado, a noite ia trabalhar de lanterninha de cinema. antigamente tinha. A Nisa foi trabalhar de costureira, trabalhou na camisaria Ricardi, ou Ricordi, não lembro, ela fazia os colarinhos. Era uma mão abençoada, os fregueses só queriam camisas feitas por ela. A mamãe, Jesus, foi uma heroína, para ela não estar pedindo – isso eu descobri não por ela, por terceiros –ia ajudar em casas de comércio, não queria dinheiro, queria doces para trazer para nós. Por isso que adoro São Paulo, não nasci aqui, mas São Paulo ressuscitou a mãe e meus irmãos, os mais velhos, porque, nós, os pequenos, já nascemos na necessidade, uma coxa de galinha para dividir em dois.

P/1 – Quando vocês mudaram deste apartamento a senhora mudou de escola, foi para o Fernão Dias, uma escola estadual.

R – Terminei o ginásio e fiz o clássico.

P/1 – E quais eram as maiores diferenças entre uma escola estadual e aquele colégio de freiras onde a senhora estudava antes?

R – Colégio de freira, todo mundo dizia antigamente, é espera marido. A gente aprende bordado, boas maneiras, usar todos os talheres, todos os copos, a receber visita, tipo de coisa que você pode oferecer de acordo com a visita. Aprende isso. Por isso que chama escola de espera marido, dei aula para esta turma no Caetano de Campos. Eu dizia: “minha aula não é para esperar marido, não!”. A diferença brutal, fomos para um colégio que não tinha nem uniforme. No recreio era aquela zoeira. No recreio de colégio de freiras, não. Brincava de roda, fui aprender a brincar de roda no colégio, em casa não era, não. Era brincadeira de moleque e cantar, cantava em casa. Colégio público tinha o coral, tinha canto orfeônico, eu era do coral e oradora. Desde pequena, agora não tenho uma dicção muito boa porque estou com prótese de dentes artificiais em cima, mas tinha uma dicção perfeita, tanto que cheguei a gravar comerciais, fitas para escola de cegos e romances porque tinha dicção perfeita. Bom ,tinha uma atividade comunicativa, uma vida social, colegial, bem intensa, demorei pra entender o colégio de freiras, no particular estava na minha praia. Isso é, meio de moleque, eram meninas, mas eram meninas mais soltas, menos preocupadas com o que vão dizer, menos preocupadas com as aparências. Estavam ali porque os pais podiam pô-las para estudar, visando um futuro, meninas, embora novas, já tinham um plano de vida, um objetivo.

P/1 – A senhora nesta época tinha alguma vontade que queria ser quando crescer?

R – Queria ser professora e fui. Não queria ser advogada, tinha o hábito de defender menina fraquinha, que jogava mal, eu era das boas nos jogos, criada com meus irmãos. Tinha gestos e força desenvolvida igual moleque, tinha mais força que a média das meninas da minha idade, mesmo sendo mais velha que elas. Eu entrei muito nova para a escola, está certo que fiquei, não lembro quanto, um pouco em casa quando tive aquele trauma da visão. Acho que ela falou, “vai a merda”, vai ver alguma pergunta boba que fiz, não sei, só sei que foi uma briga. Na briga me dei mal, sei que estava na minha praia, não num ambiente seleto. Não era povão, quem podia estudar, mesmo em colégio do estado, que não pagava, era gente que queria estudar. Se não passasse de ano ia para colégio pago, era o inverso de hoje. Sou do tempo que colégio estadual era currículo, um exemplo, que vivi no meu currículo. Só porque tinha um tempo que dei aulas no Caetano de Campos as portas eram abertas para mim; era procurada para dar aula.

P/1 – Nesta época quando a senhora estava nessa outra escola começou a sair com os amigos?

R – Não, minha mãe não aceitava isso. Se quisessem vir quando convidado, em casa, eram recebidos como os da casa, mas ir a casa deles a mãe não deixava.

P/1 – Nem ia ao cinema, tomar sorvete?

R – Cinema meus irmãos me levavam. Fui criada a moda antiga, bem antiga. Em relação a minha idade, minhas amigas saíam, iam em duas, não iam sozinhas. Como sempre tinha um irmão de babá, sempre tive um irmão de babá, irmã, não, porque elas trabalhavam.

P/1 – Então, namorado nem pensar.

R – Não, não, nem eu tinha interesse. Eu demorei e não quis saber de namorado, porque ia ter que casar, meu medo era não poder estudar, casou, acabou. Tinha os meus sonhos, desde garotinha, queria ser professora de professores. Olha que engraçado, realizei o sonho no Caetano de Campos, no Colégio Canadá, em Santos. Quando o Colégio Canadá era o Caetano de Campos da Baixada, fui professora de professores, futuros professores.

P/1 – A senhora terminou o clássico e o que aconteceu?

R – Fui trabalhar e fazia faculdade, trabalhar porque queria viajar. Fiz teste na Panair, empresa de aviação, tinha a Real e outra que agora fugiu o nome. Fiz teste na Panair, como no colégio falava-se francês, eu falava um francês, não era boa na escrita, mas na fala era ótima. Tagarela! Conversava, aprendia rápido. Tinha uma pronúncia excelente, sempre tinha boas notas. Nós tínhamos latim, inglês, francês e espanhol, era a melhor aluna nas quatro. Fazia redação em latim, era ótimo, porque eu gostava, meu sonho era ler os originais na língua original. O meu sonho era ler Shakespeare em inglês, ler Victor Hugo em francês, um castelões em espanhol. Inglês eu não gostava, depois eu conto por que.

P/1 – Por quê?

R – Influência dos irmãos. Já tinha naquele tempo antiamericano, tinha este movimento, esse burburinho. Sempre fui interessada em classes sociais, não digo igualdade, mas pelo menos fraternidade. Aquele símbolo francês: igualdade, fraternidade, para mim era muito importante, no meu tempo o primeiro mundo, o maior país, era a França e a educação para nós, América do Sul, era a moda francesa. Americano era tido como burro, burro enfeitado de ouro. Ainda é, hoje menos, mas os americanos contemporâneos não sabiam as capitais da América do Sul, não sabiam as capitais dos estados deles. Não liam ninguém, só liam gibi, não liam livros. Eram considerados burros endinheirados, por que eu não gostava? Tinha meus conceitos já pré-formados, antiamericano. Almeida Prado odiava, hoje não sei, no meu tempo odiava americano, venho da raça Almeida Prado, primo, prima, tio.

P/1 - A senhora fez então o teste na Panair e deu certo?

R – Passei, cheguei em casa e não falei para mãe. Fazia tudo contornando, porque para a mãe primeiro era o não; não tinha chance de defesa. Perguntei primeiro o que ela achava, eu tinha um irmão, o Kalile, quando começou a melhorar os homens faziam o serviço militar. O Kalile fez aeronáutica e, quando ele chegava, ficava encantada e procurava fazê-lo vomitar tudo o que ele tinha feito, queria aprender. Queria ser igual, queria voar, ele fez engenharia de aviação. Bom, cheguei para a mãe e falei: “que tal eu também voar?”. Menina, ela não jogou o que tinha na mão porque não tinha nada. O que fiz? Enrolei o rabo e sentei em cima, não fui. Porque tinha que ter autorização, mesmo maior de idade, minha mãe jamais deixaria. Eu não iria falsificar, tinha um senso de honra muito grande. tinha não, tenho. Aprendi e uso, precisava da autorização dela. “Filho, meu. Já chega o Kalile!”. Falei que era uma amiga: “o que a senhora acha de fazer igual a ela?”. “Já tenho um filho que não me deixa dormir quando é dia de jogo”. Eu de aeromoça, naquele tempo aeromoça não era muito recomendado para moça de família, muito menos para minha mãe que era tipo galinha com os pintinhos debaixo das asas. Super protetora.

P/1 – Não deu certo, o que a senhora fez?

R – Desisti deste sonho, parti para ser dona do meu nariz, ter meu dinheiro, meu canto e não precisar depender da proteção da família. Financeiramente, com bem menos idade, já me defendi, fazia redação para as colegas e ganhava dinheiro. Lembra que eu contei pra você do jornal? Ganhava. Sempre me virei.

P/1 - Como a senhora fez para conseguir esta independência?

R – Depois que fui fazer o clássico já trabalhava, admitiram que estudasse a noite. A Sali também estudava, a Nisa também. Então eu tinha um... Se ela faz, por que eu não? Fui doentinha na infância, já não era mais, já era um tourinho, não tinha porque se preocupar.

P/1 – Mas a senhora trabalhava com o que durante o dia?

R – Escritório. Gerenciava escritório, gerenciei dois, um de um jornal de bairro, jornal de pequena monta e um escritório de advocacia trabalhista e cível. O Otávio era trabalhista; fez concurso e foi ser delegado cível, Raimundo. O outro Otávio era trabalhista, eram dois Otávios, dois trabalhistas e um cível. Tinha uma outra, um conglomerado, andar de prédio na Rua Sete de abril, hoje é Caixa Econômica Federal. Esse pessoal, cada um tinha sua sala e eu gerenciava tudo. Gerenciava de que forma? Tinha uma secretária, que atendia, ela era telefonista e secretária, cada um tinha a sua secretária, eu gerenciava tudo. Limpeza, pagamentos de luz, água, telefone, a correspondência quem abria era eu. Naquele tempo nem tinha nome de gerente, me chamavam de supervisora, supervisão já vem um termo mais antigo.

P/1 – Este foi o primeiro trabalho da senhora?

R – Não, concomitante com a segurança pública, meu primeiro trabalho era por conta própria: fazia redação. Com 14 anos dava aula; alfabetizava adultos, escondido da mamãe, ganhava meus trocados.

P/1 – O que a senhora fazia com este dinheiro?

R – Comprava gibi, porque gibi não entrava lá em casa. Comprava revistas, adorava a vida de artistas.

P/1 – Tinha algum artista que a senhora preferia?

R – Tinha o Sinclair Lopes. Já faleceu. Só tinha rádio aquele tempo. ____. Me correspondia, só que punha o nome das minhas irmãs. Não punha o meu nome. Esqueci de trazer a fotografia do ___ para a Leoniza, para a Salma. Eu que escrevia, no nome delas. Ia por meu nome? Chegava em casa, a mãe ia abrir escondido, era bem esperta, mas escondido, graças a Deus, não fiz nada que me prejudicasse. Tinha medo, sabe, eu lia muito, tinha medo de chegar numa festa, num casamento e alguém chegar e comentar com os outros: “está aí!”, como quem diz: “não é virgem”. Antigamente virgindade era documento, era credencial. Vocês devem ter lido, visto histórias, vivenciei isto. Me cuidava para nunca ninguém ter nada para falar de mim, graças a Deus ninguém pode falar. Pode falar que sou grosseira, que as vezes, sou; que sou mandona, não é às vezes, é sempre; que eu sou metida, não é às vezes, é sempre. Isso pode falar, não mente, eu sou, assumida. Pode falar que tenho mania de perfeição, um defeito que não... Hoje não tanto. Prejudiquei quem trabalhou comigo porque queria a perfeição, já imaginou um chefe cri cri, chato. Aprendi até a falar palavrão, nunca falava e não admitia que falasse perto. Bobeira! Se isso é credencial.

P/1 – A senhora trabalhava fazendo as redações e na Secretaria de Segurança Pública. O que a senhora fazia?

R – Lá eu entrei em 1950. Dez de outubro de 1950 foi meu primeiro pagamento, entrei em setembro.

P/1 – Como a senhora chegou lá?

R – A minha irmã me colocou, ela era respeitadíssima e arrumou emprego para mim. Eu fazia pesquisa datiloscópica e, como aprendo rápido, fiquei melhor que minha irmã, encarregada de distribuir serviço. Trabalhava com as fichas, impressões digitais de quem vai tirar identidade. Antigamente, atestado, folha corrida, passaporte. Depois, fiz escola de polícia em 1953, como pesquisadora datiloscópica, hoje chama datiloscopista, não me lembro. Datiloscopista antigamente era quem tirava a impressão; pesquisadora datiloscópica trabalhava com as fichas datiloscópicas, fiquei dezenove anos. Bom tempo acumulando com o magistério.

P/1 – A faculdade entra onde, neste tempo?

R – Já estava trabalhando; tinha entrado no Direito, não gostei. Não contei para ninguém, até hoje não sabem. A mãe já faleceu, o primo já faleceu, quem souber agora, não tem problema, não vou machucar ninguém. Mas eu já trabalhava, fazia ginástica, sempre gostei de trabalho corporal. Freqüentava os clubes, mas só de dondoca, eu era dondoca. Festas assim, hoje, se fosse de grife, eu era convidada pelas primas. Como fazia ginástica no DEFE (Departamento de Educação Física e Esportes), na Água Branca e a professora Maria Rodrigues era a professora. Ela via que tinha jeito, aprendia rápido e ensinava todo mundo, percebia que eu ensinava melhor que ela. Tinha o dom natural, porque nem sabia bem para que servia isto, eu fazia de farra. Adorava mexer com o corpo, dançava, fiz balé na infância, gostava, adoro. Acho que é da raça, as mulheres aprendem a dançar porque é da cultura, tem que dançar para o marido. Eu adorava dançar, só que dançava para mim, dançava sozinha, não dançava a dança social, veio depois e vim até a dar aula. A Maria Rodrigues falou: “por que você não faz Educação Física?”. Falei: “o que é isto?”. Aí ela me contou da USP, no começo dos anos 1960, estava aquele zum zum zum de movimento, antes dos militares. Eu tinha militares em casa, percebia no ar que tinha alguma coisa mexendo, me convidaram, veio polícia feminina... Isto foi depois. Bom, Maria Rodrigues me falou e fui ver como era. Ah, menina, achei o meu sonho, tudo ali concretizado! Adorava viajar: eu tinha a chance, os campeonatos, viajava com a escola. Nas olimpíadas viajava com os professores. Tudo isto veio na hora, que já gostava de ouvir notícias de eventos, ainda não vinha olimpíada, mas vinha campeonato, meus irmãos jogavam.
Não sabia nadar, aprendi a nadar em menos de um mês, era matéria eliminatória. Não precisei fazer cursinho; fiz um dia de cursinho para saber o que ia cair, sabia melhor que o professor.

P/1 – A senhora já cursava direito e abandonou?

R – Já nem lembrava mais, nem lembrava mais.

P/1 – Como a sua família recebeu a notícia que a senhora ia começar outra faculdade?

R – Catástrofe! Se tivesse notícia de morte de alguém não teriam sofrido tanto, foi um total desastre. As primas não me convidavam mais para festa nenhuma, porque eu era ralé! É! Quem fazia Educação Física era paraíba, mulher macho. (canta) “Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor”. Lembra desse baião do Luiz Gonzaga? Era considerado moça que não era de família, não que não era virgem, mas não era bom partido, era ralé, mesmo. Era, digamos, favelado, comparando com o dia de hoje: favelado. Comparando com a nossa nomenclatura, ralé é favela, quem mora em prédio, em condomínio, já é gente melhor. Antigamente, bem, a Educação Física era ralé, eu, corajosamente, dondoca e capital. Noventa por cento das meninas, nós éramos poucas, nós éramos 18 e dos 18, 11 homens e sete mulheres, mais masculino que feminino. A maioria do interior que entraram para Educação Física era ou porque eram campeãs de natação, ou campeãs de basquete, porque no interior jogava-se. Hoje, não, hoje capital também joga; antigamente só interior.

P/1 – Como foi essa vida na faculdade?

R – Passei a trabalhar a noite, tinha sido promovida, era chefe de mim mesmo, continuei trabalhando com impressões digitais, porém não de vivos, de mortos, cadáveres desconhecidos. Vinha da Interpol, vinha da Cia, vinha do Brasil inteiro, vinha da América do Sul, do mundo inteiro e do Brasil também, claro. O que eu fazia? A mesma coisa que antes dos vivos: pesquisar para ver – como eram desconhecidos – se tinha identificação. Porque ou vinha de um cadáver encontrado putrefado; ou ainda não putrefado; a impressão digital é a última parte de um corpo a putrefar. Deus; ele é muito trabalhador e esperto, porque para dar chance de identificar o cadáver.
No primeiro ano fazia a faculdade de manhã e a tarde ia para a repartição. No segundo, terceiro e as especializações, era em tempo integral. Hoje é pós-graduação: fiz um monte comparando o tempo de aula. Aí o diretor, Dr. Guilherme, permitiu que trabalhasse a noite, estudava o dia todo.

P/1 – A senhora ainda morava com a sua família?

R – Morava no fim do mundo. Porque antigamente não tinha ônibus como hoje; não tinha condução como tem hoje.

P/1 – Era naquele apartamento?

R – Não, em 25 de janeiro de 1954 fomos para o [bairro] Providência, no dia que o Getúlio se matou. Não tinha condução, tinha na [Avenida] Francisco Morato, não tinha coletivo. Ônibus que vinham de Cotia, de Taboão da Serra, que passavam e pegavam, claro, passageiros. O que eu fazia para ir trabalhar? Para ir para a faculdade, pedia carona de caminhão.

P/1 – E sua mãe?

R – Enquanto não voltasse, não dormia. Ia trabalhar cedinho, depois veio uma jardineira. Jardineira é um micro-ônibus, essa jardineira nos levava. Estas caronas me deixavam em Pinheiros, lá que eu pegava ônibus. Para faculdade descia em Pinheiros, pegava o ônibus Fábrica... até Pinheiros, em Pinheiros pegava um ônibus até a Rebouças, da Rebouças pegava o Fábrica que subia a Brigadeiro. Descia na [Avenida Brigadeiro Faria Lima] Brigadeiro esquina com a Estados Unidos não tinha Cidade Universitária, não existia. Educação física era trabalhado, a parte de esporte coletivo era na Água Branca, no DEFE; e a parte didática, teórica, as aulas: anatomia, fisioterapia, fisiologia, cinesiologia e outros que tais, didática das partes práticas, porque tinha a prática e a teórica: a prática como ensinar o basquete, a teórica, o regulamento, como montar aula. De todas as matérias práticas, no Ginásio do Ibirapuera eram as aulas teóricas. Tinham as salas de aula, a secretaria e a diretoria, no meu tempo foi este, não foi fácil, precisava ter vocação para fazer, ninguém ia para aparecer, para ganhar um troféu. Não; ia porque gostava.

P/1 – Vou pedir para a gente voltar um pouquinho para a senhora contar como foi a experiência do Quarto Centenário.

R – Nesta época nem sonhava ser uma educadora, ainda mais do corpo, educação física. Estava no grupo de direito, não era da São Francisco, não estudava, mas minhas irmãs já atuavam, porque eram da sociedade e as senhoras da sociedade foram convidadas para fazer este trabalho de auxiliar de guerra. Por quê? Tinha que ter gente trabalhando no lugar dos homens que estavam na guerra. Nos anos 1940, minhas irmãs, a OFAG (Organização Feminina Auxiliar de Guerra), dos anos da guerra do Hitler, entraram, como já tinham formação cultural, universitária, entraram como oficiais. O que fizeram? Trabalharam na área da saúde e o que fizeram na área da saúde? Planejamentos, assistência social, assistencial propriamente dita, á população. As novas meninas que entravam para a OFAG, organização feminina auxiliar de guerra, sem formação profissional, eram de família que foram para ajudar. Não sabiam fazer nada, então ensinavam noções da saúde: como fazer um curativo numa criança, num jovem, num adulto, num velho, como ajudar numa emergência seja qual for os primeiros socorros. Noções elementaríssimas, não é para por a mão na vítima, aprendiam como chamar ajuda para a vítima; não o atendimento. Quem fazia o atendimento eram as pessoas chamadas, que as minhas irmãs estavam neste grupo. Porque elas já tinham formação, aprendido na faculdade com os militares, que as orientavam. E onde? No quartel do exército que antigamente era na [Rua] Conselheiro Crispiniano. Foi cinema, o Metrópole, tinha, mais para baixo, onde tem uma parte do Conservatório, hoje é uma pracinha. Ali tudo era quartel general, espaço para os soldados fazerem ordem unida. Ordem unida é saber marchar; saber manter a distância entre o que está na frente e o que está atrás, à direita e à esquerda, bater continência na hora certa, saber colocar a bandeira. Tudo isto foi passado para elas e elas passavam para as subalternas, não participei, era novinha, não tinha formação universitária. Nem concluí o primeiro ano de direito. Não podia ser considerada universitária. Universitária era considerada para ser oficial, quem tivesse concluído o nível universitário.

P/1 – Das festas do Quarto Centenário as meninas participaram?

R – Elas foram convidadas, o cerimonial presidencial, o grupo que fez a programação para atender autoridades presidenciais foi que convidou a OFAG, porque tem Getulio nas nossas fotos? Porque nós éramos o grupo que recepcionou autoridades presidenciais. Porque o Getúlio [Vargas] era o presidente, o governador acho que era o Ademar [de Barros] e o prefeito era o Jânio [Quadros]. Se não me falha a memória, não gosto do Jânio, não gostava; não tinha muito respeito por Ademar. Essa história de fazer só porque rouba, não, como Maluf. Como é que fala? Rouba, mas faz, não é meu tipo.

P/1 – Além da participação das meninas da OFAG a senhora lembra das festividades, como que era?

R – Lembro de cada uma. O que marcou foi que vi o mar pela primeira vez quando fomos a Cubatão para a inauguração da Eletrobrás (Empresa Brasileira de Eletricidade), era Light e passou para a Eletrobrás, nos levaram para a praia, só de longe. Pensar que a minha mãe tinha casa na praia e não levava de medo que eu me afogasse. Sabia que eu era maluquinha ?.

Meus irmãos iam, eu não.

P/1 – E na cidade teve alguma festa?

R – Na capital era festa de manhã, tarde e noite. Na Praça da Sé foi um deslumbramento, no Pátio do Colégio, então. Só as autoridades presidenciais que participavam nos locais onde o acesso não dava para levar o povo: Pátio do Colégio ficou cercado, fechado, só nós, deste grupinho da foto: a Coronel Iolanda, não me lembro o que a Nisa era. A Salma era tenente, a Nisa... Não lembro, esta categoria não é a minha praia, nem memorizo. Sei que me encaixaram de aspirante, vimos a Praça da Sé; não tinha lugar para respirar. Os trechos que vocês viram assim abertos, porque estavam as famílias que faziam parte das autoridades presidenciais, tinha autoridade do governo, tinha uma equipe que atendia; tinha autoridade municipal, outra equipe que atendia; nós éramos presidencial, do presidente. E o que teve? No Teatro Municipal tivemos e espetáculos maravilhosos, oradores, cada um mais fervoroso e proeminente, tipo Castro Alves, Olavo Bilac. Se bem que falar esses nomes para vocês não quer dizer muito. Vamos atualizar, vamos dizer, tipo globais, personagens da TV Globo, são personagens mais em evidência. Nós éramos os globais, estávamos inseridas neste grupo, era do contexto presidencial, depois tivemos outras. Isto seria janeiro de 1954, teve de início a recepção das autoridades no Quartel General; depois Jóquei Clube, a entrada estava forrada de orquídeas e dentro todo paramentado. Só para o presidente, o governador estava, mas Getúlio, Ademar e Jânio não se bicavam. Antigamente não era forçado isto, não tinha ver a sua antipatia ou simpatia, está no cargo, assuma o cargo. Não tem nada a ver, sei que as festividades foram mais ou menos separadas. Depois fomos para a missa, foi à tarde, não foi de manhã. Da missa, missa campal; montaram lá em frente, não tinha Catedral ainda, estava começando, montado, de lá, claro, cada um foi para sua casa se trocar.
Vocês me veem de farda e veem a paisana, fomos para o Hotel Esplanada, atrás do Municipal, o único hotel cinco estrelas praticamente no Brasil. Rio [de Janeiro] tinha vários, era a Capital Federal, ainda era em 1954, o melhor hotel do Estado, de todo o Nordeste, Norte e Brasil, tirando o Rio [de Janeiro]. Era o hotel Esplanada, depois foi para o Tocantins, a firma Tocantins comprou. No Esplanada, para vocês terem uma ideia da grandeza das festividades, nós, damas, recebemos do consulado japonês, três pérolas de verdade, não eram cultivadas, não. Sei que eram de verdade porque foram avaliadas, vinha com certificado de garantia japonês e traduzido, cada dama das autoridades presidenciais. Não éramos muitas, não, éramos aquelas das fotos que vocês viram e as respectivas esposas dos oficiais. A OFAG não podia casar, não tinha o cônjuge; era só a oficial, a mãe era viúva e participou também.

P/1 – A senhora falou de vários lugares agora, do Municipal e da Praça da Sé.

R – Estivemos dali. Dias depois, ainda em janeiro, fomos conhecer a fábrica que recebeu autorização, acho que foi a Flemming, que alugou a patente para fabricar a primeira penicilina no Brasil, no ABC. Depois é que fomos para Cubatão inaugurar uma série da Eletrobrás, fomos também ver as usinas e as refinarias de Cubatão. Voltando fomos ao Solar da Marquesa de Santos, sempre com guias especializados em cada local, depois, voltando para São Paulo, fomos ao Teatro Municipal, aí Getúlio já tinha voltado para o Rio [de Janeiro].

P/1 – Mas como a senhora falou destes vários lugares eu queria que a senhora falasse um pouco sobre como era a cidade em 1954.

R – Aí, a chuva de prata! Na noite de 25 de janeiro o rádio e a publicidade, a mídia, incentivaram as senhoras, mães, enfim, as damas, não podia falar mulher, mulher era negativo. As damas, as senhoras, as mocinhas; mulher era qualquer uma, uma empregada é mulher; a patroa é uma senhora, mesmo que a patroa seja solteira. É senhora, ou senhorita. As damas foram convidadas a ir de branco, vermelho e preto, a mamãe mandou fazer vestido branco, ela ajudou também, de linho. Ela não,

ela de preto, viúva. Uma flor vermelha e os complementos pretos, vermelho, preto e branco. Na cidade o anoitecer como foi? Ali na Praça da Bandeira, hoje tem um predião atrás da prefeitura, não existia prefeitura, nem aonde é o Matarazzo. Depois eu conto onde está a prefeitura, o que era. trabalhei lá também. Ganhei também uns extras ensinando datiloscopia, tinha um prédio que era um paredão. Este paredão o que eles fizeram? Foi pintado de branco, à noite, com serviço de luz, não sei explicar, porque só vi o símbolo de São Paulo refletido. As luzes se apagaram e os aviões, antes de escurecer de tudo, a imagem refletida no telão, veio um avião ainda de dia e soltaram um triângulo, uma filipeta de alumínio, fininha. Igual papel alumínio, igualzinho, o mesmo material, e denominou chuva de prata. Não trouxe porque não achei em casa, o dia que encontrar uma filipeta mando para vocês. Gente, vocês não podem imaginar! Holofote! Sabe aquele negócio de guerra que usa a noite, não é projetor; tem outro nome, é holofote mesmo, faz aquele jogo de luz., sinal de luz para aviação. Antigamente não tinha tanto aperfeiçoamento, tinham isto nos aeroportos para avisar se pode ou não pode descer o avião, o sinal, tem o sinal de dia, o sinaleiro, você já deve ter visto em filmes antigos os sinaleiros, assim pode, assim não pode. São bandeirolas, cada uma de uma cor, cada cor significa sim ou não, estes holofotes – acho que era holofote mesmo – iluminaram, já no cair da noite, a saída do avião, a chuva de prata. Aquilo resplandecia como se fosse uma verdadeira chuva de prata, não foi só na Praça da Sé. Toda São Paulo. Toda, não, nas Perdizes, sim; Zona Leste, não; Zona Oeste, sim; Zona Sul também não; Zona Sul tinha mais arvoredo que casas, não tinha tanta casa. Morumbi era uma casa aqui e dali a cinco quilômetros outra casa, cada casa um quilômetro quadrado. Foi desbunde total, um deslumbramento, o tipo da coisa que fala Quarto Centenário e vejo a chuva de prata.

P/1 – Eu queria que a gente voltasse para a faculdade, já na conclusão da faculdade. Com o que a senhora foi trabalhar?

R – Antes de me formar já trabalhei a convite, na Colônia de Férias da Hebraica, colei grau, tinha direito, mas devia anatomia e história da Educação Física. Porque eram aulas aos sábados, eu trabalhava aos sábados, antigamente repartição pública trabalhava-se sábado. Sou deste tempo, fiquei devendo esta matéria, colei grau, mas fiquei devendo, já comecei a trabalhar a convite. Eu sempre fui CDF (Cabeça de Ferro), em toda a minha vida, tudo que me proponho a fazer vou fundo. Claro, não era do esporte, lembra que contei como comecei na educação física, eu era dondoca. Minhas colegas eram todas do esporte; eu não, a primeira calça comprida que eu pus foi o agasalho da educação física. (risos). Sei fui convidada, no último ano, para trabalhar numa colônia de férias; a colônia de férias da Hebraica, um clube, a colônia de férias tinha, sempre existiu, era de uma empresa que trabalha muito com campismo, não lembro o nome. Fui também do campismo; não cheguei a ser escoteira, era só bandeirante, sempre dondoca, porque bandeirante é dondoca, trabalhando na hebraica vinham as crianças, divididas por faixa etária, e trabalhei como monitora, no primeiro ano. No segundo ano, com os menores, são os mais difíceis para dar aula, acho que tinha jeito, porque não era professora, era pesquisadora, era técnico, científico e burocrático, porque eu fazia o laudo pericial. Era perita também da hebraica, logo a seguir fui convidada para dar aulas no Tênis Clube, na Hebraica nas férias escolares, ano letivo, dava recreação para crianças da pré-escola. Autodidata, porque, antigamente, não tinha recreação específica para pré-escola, brincava e, na brincadeira, ajudava criança a brincar sem se machucar e a dividir. A gente percebe que é próprio da criança até os três anos, ela é a estrela, não divide, então, a gente, eu, lia. Procurava me inteirar do que fazer nesta ou naquela função, não ficava só na matéria da educação física, fui para o Tênis Clube a convite de Antonio Boaventura da Silva, já falecido, professor de menino, mas convidou uma mocinha por causa do meu comportamento. Ouvi colegas na sala de professores, fiquei sabendo muitos anos depois, ele era sargentão, não admitia nada que fosse fora de um quartel, parecia coronel, mandão. Não era militar, era professor de educação física, antigamente a educação física era baseada no ensino militar, era muito rígido, era cartesiano, mesmo, sistema militar. A gente tinha a ordem unida,

a gente passa isso; depois que tempos mudam, a gente vai se atualizando. O diretor da faculdade me convida para dar aulas no Caetano de Campos, só que era no mesmo horário do Tênis Clube, tive que falar com o Boaventura, pedir desculpas, falou: “não se preocupe”. Ele já sabia que eu era um nome indicado, porque o Caetano de Campos mandou um ofício para a faculdade pedindo uma professora de educação física infantil, ninguém tinha a experiência que eu tive no Tênis clube e na Hebraica, sem querer, não estava fazendo para ganhar pontos. Nem sabia disto, que estava sendo observada, estavam holofotes em cima de mim, porque era competente, esforçada e simpática com as crianças. Era brava com os adultos, com as crianças, não, claro que olhava, sabia que tinha de ficar quieta ou capeta, na classe era melhor comigo. Quando estava levado eu falava: “ah, você está muito cansado, senta aqui do meu lado para me ajudar”, que moleque quer isto? Ai de quem levantasse a voz ou falasse quando eu estivesse falando. Não tomava conta, eles tomavam, os capetas, por causa disso fui convidada a dar aulas na melhor escola do Brasil na época.

P/1 – A senhora ficou quanto tempo lá?

R – Fiquei três anos. Não fiquei mais porque não quis.

P/1 – Foi nesta época que a senhora foi morar fora do Brasil?

R – Logo depois.

P/1 – Como foi isto?

R – Lembra do México 1970? Dava aulas no Caetano de Campos, podia ter ido participar, como profissional, não pagar, na equipe. Sei lá que cargo iam arrumar para eu poder viajar com eles, não fui porque achei que não podia. Caramba, eu dava aula para a escola normal, a gente é o que é; acho que nasce assim, não fui porque não podia, senão tinha que alguém me substituir e não tinha ninguém para me substituir. Tinha sondado, brincando, sondando, como eu fiz com a mãe da Panair, lembra que contei? Fiz no Caetano de Campo, cheguei para a doutora Iolanda, que era a superintendente, lá tinha a superintendência geral, tinha o colegial, clássico e científico; tinha o Magistério, que era o Normal; tinha primário, ginásio e pré-escola. Cada um tinha a sua diretoria, a doutora Iolanda era superintendente eu dava aulas para a filha dela e nem sabia, nunca procurei ver o nome. Não estou vendo o nome, quero ver a pessoa, de modo que passei para ela o meu jeito de ser: simpático e competente, competente e eficiente. Só ser competente é pouco, outro detalhe, lembra que falei, dei aula para magistério, mas comigo não era aula de espera marido? Porque levava para elas o gosto pelo ensino do trabalho do corpo, levava para as alunas este gosto que até hoje curto, simplesmente simplificava o que tinha aprendido. Aprendi com Estela Ferreira Guerios que, na época, era o Boaventura em educação física e a Guerios, ele masculino, ela feminina. Rio [de Janeiro] era lixo a faculdade de lá, as outras também. Era só a USP, a Escola de Educação Física da USP, da Universidade de São Paulo.

P/1 – Como foi a tomada de decisão? A senhora não foi para o México?

R – Fiquei no Caetano de Campos, acontece que trabalhei com a nata da sociedade, nata financeiramente falando. No Caetano de Campos, sabe quem eram os alunos? Filhos de magistrados, de desembargadores, de cônsules, não eram famílias modestas. Para entrar lá tinha um vestibular, criança, sangue azul, simplificando: era selecionado. Se entrasse uma criança que fosse de família modesta, só se a criança fosse muito esforçada, gostasse de estudar, não inteligente porque o inteligente nem precisava estudar, só de ouvir a aula chega em casa

e faz até melhor. Que mostrasse serviço, eles olhavam o boletim de onde veio, olha, entrar era difícil, sair era mais ainda. Nós nem éramos obrigados; era a filosofia, como vocês, ninguém obriga vocês a serem eficientes, ninguém obriga vocês a fazer uma coisa que vocês não gostam, por mais que se esforcem. Se não gostam, aguentam e procuram mudar. A gente vê que vocês fazem porque gostam; fazem o quê gostam, era o caso lá. Os professores que entraram lá, 90% por indicação, acho que 99%. Eu, o diretor da faculdade e os outros, idem, idem na mesma data.

P/1 – Para deixar esta estrutura tão respeitada, como foi?

R – Você cansa de trabalhar só com a nata, quer experimentar o povo, nunca tinha trabalhado com o povo. Quis experimentar a periferia, o pessoal lá quis me matar, porque eu poderia ser catedrática, já estava com a tese pronta e aprovada. Quer dizer, subjetivamente aprovada, o tema era este: o corpo na educação; a educação física no contexto geral da formação do indivíduo.

P/1 – E a senhora foi para onde?

R – Vila Ede, Zona Leste. Perto de Vila Gustavo, Vila Medeiros. Onde Judas perdeu as meias, porque as botas ele perdeu antes.

P/1 – Como foi o trabalho lá?

R – Fiz milagre, modéstia à parte, milagre, em 1971 e 1972. Em 1972 fui à primeira olimpíada, Munique, conheci o cara com o qual casei, casei lá, escondida.

P/1 – Como vocês se conheceram?

R – Eu, quando fomos para as olimpíadas não quis ficar em hotel, quis ficar numa casa. Mesmo se for mais caro fico, foi até mais em conta, para minha sorte. Sobrou mais dinheiro; aproveitei mais e fiquei mais tempo, depois que as olimpíadas terminaram ainda pude fazer pesquisa. Nós ficamos, eu e Josefina, num quarto e um casal que esqueci o nome, de propósito, porque tive desgosto com eles. Enfim, quatro pessoas numa casa, só o café da manhã. Era tipo um apartamentinho com dois quartos e um banheiro para nós quatro. Íamos às olimpíadas, íamos assistir dança, vocês já foram a olimpíadas? Depois eu conto, é a maravilha das maravilhas; não é só esporte, o cultural é mais rico ainda. Fui experimentar lente de contato moderna lá, esqueci de falar para as pessoas que fazia dois anos que não usava mais, tinha voltado a usar óculos. Fiquei doze horas com a lente, no dia seguinte tirei e cocei a vista, fiquei com dois olhos do tamanho de um ovo, vermelhões. Me levaram ao médico, lá em Munique, e voltei, a Josefina cuidando de mim, minha amiga de Jundiaí, agora já morreu; ela era mais velha que eu. Não é por isto que morreu, mera coincidência.
Veio o Valter, irmão da dona da casa, casa consistia de a ______-, o marido e o filho, Valter, também, o nome do tio. Ele e o irmão dela. Ela contou que tinham brasileiros e ele gostava do Brasil, estudava, mas estudava em livros, em mapas, em fotografias. Vi que não era mentira; quando casei estavam lá os livros já manuseados, sabendo que havia brasileiros foi nos conhecer e, quando me viu deitada, a minha amiga e o filho da (Tradle?) trocando as bandagens nos meus olhos. Eu ouvia a voz dele, sabe quando você sente um arrepio? Ele não deixou ninguém cuidar de mim, ele que cuidou, me conheceu horrorosa, com a cara lavada, cuidando dos olhos. Foi amor de verdade, a primeira “ouvida”, primeira audição, porque eu não o vi, ele me viu.

P/1 – Como foi o casamento, vocês casaram lá mesmo?

R – Sim, fomos ver a documentação. Não foi bem casamento; foi permissão para coabitar. Depois que me casei na Suíça, ele morava lá e era divorciado. Tanto que depois que voltei ao Brasil ele veio para me pedir e falei: “não, minha mãe não pode saber destas coisas”. Imagine, para a mãe eu era virgem ainda. Para encurtar a história: veio ao Brasil, era noiva aqui, imediatamente escrevi porque telefonema você discava de manhã para falar a noite, era assim antigamente. Para encurtar a conversa: ele veio ao Brasil, foi conhecer minha família, pediu minha mão em casamento, mas só fui me casar no ano seguinte, em 1973, na Suíça.

P/1 – Como foi o dia do seu casamento?

R – Lá é tão fácil, fomos na prefeitura, assinamos e pronto.

P/1 – Teve uma cerimônia?

R – Os amigos dele fizeram um almoço para nós no domingo, mas já estávamos casados. Porque não quis festa, não falava a língua dele, falava com o Valter mais em francês, com os filhos deles, em francês e italiano. Porque na Suíça se fala inglês, a linguagem comercial; falava francês, italiano e o alemão. Ele é da Suíça alemã, divisa com a Alemanha, Kreuzlingen, lá eu falava um pouco de francês, um pouco de italiano e muito de espanhol. O Valter entendia bem o espanhol, então, falávamos em espanhol.

P/1 – Vocês ficaram morando lá um tempo ou foi só para casar?

R – Não, fui e fiquei. Fiquei direto por dois anos; depois indo e vindo, voltei ao trabalho e depois pedi mais um tempo de licença que tinha para gozar. Gozei lá, mais um ano, foi em 1976, o ano da olimpíada no Canadá, também fui. Depois, o Valter veio ao Brasil, não me dei bem lá, porque tenho um problema de coluna – acidente de trabalho, caí de um aparelho de ginástica e tenho vértebras comprimidas – e no frio é um drama. Como não descuido não tive sequelas, senão estaria numa cadeira de rodas.

Fita 2

P/1 – Eu queria perguntar se vocês tiveram filhos?

R – Se meu útero não fosse abortivo teria tido quatro, se bem que três foram com o Valter, o quarto foi com o meu segundo companheiro. Depois que me separei do Valter, que eu falei: “é melhor ir cada um para o seu lado”, não vou divorciar porque senão fica caro para o homem. não precisava financeiramente dele e mesmo amando falei: “não vou ficar nesta espera de quando você vem, de quando eu vou. Quero ser livre”. Falando uma linguagem nua e crua: tinha a necessidade de sexo e não tinha coragem de aventura, não tinha.

P/2 – Por que a senhora não morou com ele na Europa?

R – Por clima, não me dei bem e ele não se deu aqui. Quando ele vinha para cá adorava a nossa comida, a nossa carne, as nossas frutas, até jaca! Ele não comia inteira porque não dava, mas vivia no pronto socorro com desidratação, tinha disenterias homéricas, a ponto de fazer na cueca. Como ele iria viver? Em dois meses ele ficou quase um mês doente, ficou um ano, morávamos no Brooklin, era a minha casa.

P/1 – Quando a senhora se separou do Valter?

R – Em 1976. Me lembro bem, porque marco as olimpíadas, o conheci em 1972, 1976 achei melhor, falei que ele era livre. Eu não tinha ninguém em vista, mas achei bom deixar ele livre para não sentir que estivesse me traindo, sabia que ele não era santo, mas a gente falando deixa a pessoa mais a vontade.

P/1 – O segundo companheiro como foi que vocês se conheceram?

R – Foi bem depois, quando voltei para o Brasil em 1976, tocando a vida quis mudar de cidade, a gente sem marido, sem coragem de estar com outro, pensei: “vou sair de São Paulo”. Já estava escolhida a cidade, São José dos Campos, Campos do Jordão, depois fui conhecer lá perto do... É bem longe, bom, não importa, apareceu a ideia de Santos, nem lembrava como era a cidade, mas falei: “vou mudar, mudo de uma vez, direto de uma cidade para a praia”. Fui para Santos, eu era assim.
Nós professores tínhamos uma classificação e uma pontuação, essa classificação é pelos cursos que você vai fazendo mesmo estando em atividade; os trabalhos que você apresenta e são apresentados e aprovados, então vai somando. Eu era a segunda do Estado de São Paulo, podia escolher o que quisesse, até Caetano de Campos, se tivesse naquela ocasião, não tinha porque era separado; era instituto de educação, não entrava no rol de escolha, era indicação e comprovação, mas no geral era a segunda, tinha São José dos Campos, tinha Campos do Jordão, de grandes cidades, uma cidade onde tem uma usina e Santos. Falei: “Ah, vou para Santos”. Na hora ali escolhi e pronto, a turma morreu de rir comigo, porque nestas horas, nos concursos de remoção, antes sai no jornal a nossa classificação, saem as escolas e a classificação delas. Santos estava no patamar de primeiro lugar, eu como segunda, a primeira não escolheu Santos, podia escolher São José dos Campos. Não me lembro que cidade ela escolheu, escolheu a cidade que não era das primeiras, mas era da família dela. Nestes encontros São Paulo inteira se reunia onde eram atribuídas as aulas, era no Caetano de Campos. Tinha teatro no Caetano de Campos, hoje é a prefeitura, era uma escola completa. Só faltou piscina, mas tem o teatro, tem as coxias, o camarim, tudo, tinha, não sei se tem mais.

P/1 – A senhora foi morar em Santos.

R – Fui para Santos em 1977, em 1978 conheci o que veio a ser meu companheiro. Tenho medo de falar, fica chato, eu não casei com ele e ele era casado. Ele me falava que era separado, acreditei e amiguei com ele, amiguei era namorado, só descia, ele morava em São Paulo,

descia no fim de semana e quando eu vinha a São Paulo.

P/1 – Como a senhora descobriu que ele ainda era casado?

R – Depois de muitos anos o filho dele, quando eu conheci o filho dele que era meu colega, para ser professor. Ele quis que eu conhecesse o filho dele, foi assim.

P/1 – E a senhora continuou, como foi?

R – Primeiro tive um tête-à-tête, olho no olho, me conta esta história, fala a verdade. Ele falou que moravam na mesma casa, o filho depois disso, sem querer, num papo confirmou que ele não mentiu, ele só não tinha dito que era casado e morava na mesma casa. Mas o que ele fez? Ela já não tinha amor, foi ele quem se apaixonou por mim, não fui eu por ele. Ele lutou para me conquistar, não foi a primeira vista como foi com o Valter, comecei a minha vida sexual com o Valter, antes de casar. Porque sabia que se não gostar na cama não vou casar, virgindade foi com meu ex-noivo, exigi que me tirasse a virgindade. Eu falei: “se você não tirar o doutor João vai me tirar com bisturi”. O João de Deus Bueno de Reis, aquele médico que falei que era médico da família, ele já era bem velhinho nesta época. Sei que eu não acertava com o ex-noivo, não vou falar o nome dele, fica chato, ele é juiz de direito, tem um status. Para mim não altera nada porque a turma me conhece,

sabe que isto que falo para vocês já todo mundo sabe, não faço segredo. Mas não quero prejudicar os outros, desse companheiro tem colegas dele, fica chato. Ele enganou a esposa, vai passar essa impressão, ele morava na mesma casa só que ele construiu na casa uma quitinete nos fundos e ficava lá. Não coabitava com a esposa, só ia para casa a noite, quando ia, quando não estava comigo.

P/1 – Isso foi por bastante tempo?

R – Foi, só não é até hoje porque ele morreu, ele era bem mais velho que eu. Lembra, falei que são de família estes casamentos de idade? O Abílio com a Zequinha, ele tem a idade da sogra, este namorado tinha 19 anos a mais do que eu. Ele era de 1912, sou de 1931.

P/1 – A senhora ficou sabendo e continuou morando em Santos?

R – Continuei, não morei com ele, ele tinha o apartamentinho, nós tínhamos os nossos encontros, depois ia para o canto dele.

P/1 – Quando e por que a senhora decidiu voltar para São Paulo?

R – O conheci quando minha irmã morreu, em 1978, minha irmã morreu no dia 24 de fevereiro de 1978. No dia 23 eu o conheci na praia, estava lendo “Nosso Lar”, psicografado por Chico Xavier, do espírito Emmanuel. O livro me prendeu tanto que li o livro num dia! Devorei o livro, ele ficou sentado ao meu lado esperando para me abordar. Fechei o livro e ele me abordou, eu não estava a fim. Ainda mais um velho: pensei que era um senhor querendo ser gentil comigo, me acompanhar até em casa. “Tudo bem”. “Gosta de ler?”. “Adoro!” e já leu este? Não sei o quê? Falei, não. Um livro do Jorge Amado: não sei que, camisola de dormir, não lembro. Sei que o título terminava com camisola de dormir, pois ele foi levar para mim. Me levou até em casa, eu morava no segundo andar, era escada, não tinha elevador, meu apartamento era o último, era um por andar no meu bloco, ele foi e depois ainda levou junto com o livro. Foi em casa buscar o livro, levou e junto levou bolinho de bacalhau, vendo que eu gosto, todo o sábado fazia questão de ir lá em casa me buscar para me acompanhar até a praia. Eu ia com a minha bicicletinha, não, minto, bicicleta não. Aprendia a andar com ele, que nem lembrava mais, reaprendi com ele, ele que me deu a bicicleta no meu aniversário verdadeiro, primeiro de dezembro de 1978. Para vocês verem quanto tempo, já estava boa no pedal e ainda não tinha caído a ficha que ele estava a fim de mim. Achava que era amizade, achava mesmo! Não me amolava e sempre trabalhei muito, trabalhava no mínimo doze a treze horas por dia. Sempre muitas atividades, não era só dando aula no colégio, tive representação política da Secretaria de Educação e Esporte de São Paulo. Eu representava em Santos

levei o Esporte para todos lá. Vocês não lembram porque é dos anos 1970, vocês nem sonhavam em nascer, tinha uma atividade fora do comum e ele, com paciência, me assessorando. Até um dia ele viu que eu não me tocava e se declarou, neste se declarar, vai ver eu estava carente. Tivemos um começo gostoso, tranquilo, depois tivemos intimidade, falei para ele: “morar comigo, nem morta. E casar também não”. Já de cara, para não alimentar falsas esperanças, nesta ocasião já tinha divórcio.

Ah, não, pouco depois é que veio, não me lembro, não estava interessada em casar para ele divorciar.

P/1 – Depois que a senhora descobriu?

R – Já estávamos íntimos e fiquei sabendo pelo filho que era meu colega de magistério. Fala nisso, fala naquilo, não sei como fiquei sabendo. Dei a ele a oportunidade de me falar a verdade, ele falou que não falou porque nunca viu necessidade. Porque nunca eu tinha querido ir a casa dele, conhecer os filhos dele, nem sabia que ele tinha uma filha, achava que era só o Gilberto.

P/1 – Vocês continuaram ou terminaram depois disto?

R – Estreitou ainda mais o nosso relacionamento.

P/1 – E continuou até o falecimento dele?

R – Até o falecimento dele. Aliás, um pouco antes, quando ele foi acometido de câncer, não deixou eu ir visitá-lo, não permitiu, como o filho dele me pediu para eu não ir, porque ele sem os dentes, estava feio. Emagreceu demais e o pênis dele, ele teve câncer na próstata, o pênis dele deve ter ficado um monstro, sei porque eu ajudei na Santa Casa pessoas com câncer de próstata e o pênis vira uma bexiga. Aliás, não sei se é na próstata, enfim, câncer no pênis, falei próstata porque lembrei da atual nomenclatura. Porque tem outros cânceres no pênis, como tem na vagina, não só nos órgãos reprodutores, nos internos, tem nos externos também, sei porque trabalhei e trabalho na quimio, colaboro na Santa Casa. Lá passam para gente, perguntando, ficamos a par para poder entender e ajudar melhor o paciente.

P/1 – Ele faleceu e a senhora voltou para São Paulo?

R – Foi antes, porque a mãe também ficou doente, teve câncer nas mamas. Volta e meia vinha correndo de Santos para levá-la a algum médico, porque era só ela e eu. Quando Salomão estava, meu irmão que já faleceu, ele descia e levava, mas ela tinha medo de andar com ele e confiava em mim no volante. Acho que era muito boa no volante, porque nunca bati em ninguém, fui batida, já fiz muita barbeiragem. Não era de dirigir devagar, não, era voo rasante. Não pagava multa porque não passava da medida, sempre fui muito quadrada neste particular, muito certinha, mas não tinha este negócio de andar devagar, não. Volta e meia vinha de Santos para cá, o velho já tinha falecido, eu sozinha. Falei: “quer saber? Eu vou voltar”, voltei para São Paulo.

P/1 – A senhora foi morar no Arouche?

R – Não fui direto, nós tínhamos um apartamento alugado, de amigos nossos, quando eu vinha para São Paulo era lá o nosso canto. Quando estava neste apartamento já tinha vendido o meu de Santos, naquela ocasião, nos 1980, o dinheiro de manhã valia, a tarde valia menos, a noite valia menos do menos do menos. Comprei, achei rápido, pequenininho, mas achei, comprei para não perder dinheiro este do Arouche. Acabei ficando na quitinete, tinha outro apartamentinho, mas num lugar feio, vendi e apliquei.

P/1 – É onde a senhora mora até hoje?

R – É, o velho nem conheceu lá, já tinha morrido.

P/1 – Quando a senhora voltou para cá começou a trabalhar onde?

R – Eu já era aposentada, me aposentei morando lá, em 1983. Só que não parava; viajava muito e como! Nossa! Em 1980, morando em Santos fui à olimpíada de Moscou, em 1976, antes de ir para Santos, fui a Montreal, Mount Royal.

P/1 – A senhora continuava com as suas viagens. Trabalho voluntário?

R – Voluntário desde os doze anos, aprendi com a minha mãe e com a Salma, minha irmã. A Nisa também, mas a Nisa não dava tempo porque ela era o braço direito da mamãe, então não sobrava tempo.

P/1 – Trazendo para os dias atuais, a senhora se envolve com a Associação dos Funcionários Públicos.

R – Sou sócia há 50 e poucos anos, desde 1957, entrei em 1950 no funcionalismo, meu irmão falecido, o Salomão, era do Conselho e diretor de obras. Era da associação, sócio e da diretoria executiva, ele me deu de presente a entrada nesta associação. Como sempre gostei de viajar, conhecia os nossos hotéis, vivia nos nossos hotéis, qualquer feriadinho estava lá. Ele comprou um título para mim e depois que comecei a pagar a taxa de manutenção, pago até hoje, nessa entidade, que usava os hotéis, hoje são doze e mais um clube de campo e náutica. Esta entidade é de 1931, o que aconteceu? Me aposentei, vim conhecer a sede e gostei. Viajei, por esta associação que tem diretoria de turismo, a menina da diretoria de turismo, a funcionária, a Karen, falou: “por que a senhora não vai conhecer o grupo da amizade? É um grupo de aposentados, pessoas como a senhora, cheia de vida ainda”. Fui conhecer em novembro de 1983, mal cheguei já levei ideias, a chefe, Maria Amélia, falou: “vem o ano que vem, Maria Rosa, que nós estamos encerrando hoje, mas como você nós precisamos”. Já anotou o meu telefone, não me deixou em paz, voltei no ano seguinte, no grupo da amizade, grupo de aposentados, que até hoje colaboro. São associados, aposentados, desta entidade que tem hoje 235 mil sócios, sem contar os cônjuges, os sócios dependentes.

P/1 – Até hoje a senhora participa deste grupo. Quais são as atividades do grupo?

R – É uma reunião de convivência, semanal. A atual líder, sempre tem alguém liderando, já fui líder seis anos e já me candidatei, este ano vou voltar para ajudar o grupo. A gente programa atividade bem variada para o ano inteiro, entra na programação: turismo de um dia, tarde de talentos, onde quem sabe cantar canta, quem sabe tocar, tem um piano, toca, quem sabe tocar leva um instrumento, violão, flauta, quem sabe cantar, quem sabe declamar. Uma tarde de talentos, nesta tarde: aniversariantes e estreantes, estreante é aquele que já foi cinco vezes, cinco quartas feiras, as reuniões semanais Quartas feiras da uma até as cinco, horário oficial das duas às quatro, horário do grupo mesmo, que nós usamos, da uma às cinco, às vezes até mais. Temos teatro, porque temos na Associação dos Funcionários Públicos

diretoria executiva, conselho deliberativo, do qual eu faço parte, são os 235 mil eleitores que votam e escolhem, são 51 conselheiros. Temos o conselho fiscal, toda essa organização implica em dar atenção ao associado em tudo e por tudo que ele for possível, o grupo da amizade é um grupo de aposentados. Não temos sala sede, o interior tem também sedes, tem escritórios, delegacias. Em todo São Paulo temos hotéis e temos dois em Minas Gerais, um Poços de Caldas e um em Areado. Em São Paulo temos: São Pedro, a mais nova aquisição; temos Campos do Jordão, Guarujá, Amparo, Lindóia, Socorro, Serra Negra, Caraguatatuba e Ubatuba.

P/1 – Hoje a senhora trabalha onde?

R – No Conselho Deliberativo, sou conselheira e temos comissões. Como tem na Assembleia dos Deputados tem as comissões, nós também seguimos este exemplo. Sou da comissão social e parte de relações públicas. Tem a comissão de justiça, tem a comissão de estudos do funcionalismo, especificamente, para reivindicações, porque nesta entidade tem todas as secretarias: educação, saúde, segurança pública, financeiro, têm judiciário, judicial, desembargadores, juízes, promotores, oficiais de justiça, diretores de escola, supervisores de escola. Todos sócios, o nosso alicerce até pouco tempo era o lazer, hotelaria, hoje já não, hoje é política de classe.

P/1 – Esta é a sua principal atividade hoje.

R – É, política de classe se bem que cheguei a falar que dei aula até de dança, lembra quando falei que vim, adorava o corpo. Pois é, por adorar o corpo, não como narciso, adorar o mecanismo corporal. Gente, vocês já viram alguma cirurgia? Já viram o corpo? O intestino como é lindo! O nascimento de uma criança passa a ser arroz e feijão, o tempero são as operações de coração, aliás, nem tanto, hoje já está até sem graça, mas o intestino, como é lindo! Estudar as articulações, que perfeição! Vocês já viram uma cirurgia de joelho? É uma perfeição! O encaixe! O líquido sinovial te dá a graça, com a idade acaba ou então, se é esporte, usa demais e seca, tem que por prótese, vocês vão ver a mecânica! Foi inspirado no corpo que fizeram as máquinas, aliás, isto vocês já estudaram, estudaram artes, não estudaram? Michelangelo roubava cadáveres para estudar o corpo humano, Da Vinci roubava cadáveres, vocês sabem disto; estudavam, abriam o corpo para ver como era, claro como me encantei, os médicos e os cirurgiões, eles também, daí vieram as máquinas, do nosso mecanismo, da maravilha de Deus.

P/1 – Queria perguntar se a senhora tem algum sonho hoje?

R – Tenho. O sonho atual, tenho os de longa distância. O para ontem: organizar o primeiro encontro dos grupos da amizade, primeiro; segundo, atualizar o nosso regulamento que não é novo, é de 1983; terceiro sonho, também atual, trabalhar redescobrindo o corpo. Vocês já ouviram falar em Thérèse Bertherat? Já ouviram falar em antiginástica? Não são da área, perguntei antes para poder explicar, claro, Thérèse Bertherat é fisioterapeuta e fisiatra. Ela foi fazer isso para poder sobreviver porque perdeu o marido, acabou gostando, atualizando e revolucionando a fisioterapia. Antigamente fisioterapia era tortura, hoje não tanto, claro, recuperação de lesados dói, é necessário, mas esta dor é bem menor, é compreendida e explicada, porque Thérèse Bertherat humanizou a fisioterapia estudando, procurando. Teve sorte, como também tive conhecendo este trabalho, adequou a fisioterapia, fez isto por não aceitar esta história de que para ser bonito, para ser belo, tem que fazer academia, tem que fazer ginástica; tem que sofrer. Alguém já falou para vocês que para ficar bonita tem que sofrer? Alguma idosa; bem entendido. Lembram dos espartilhos? Os sapatos que espremiam para não mostrar que tinha pé grande? Tinha que ter pé pequeno senão não arrumava bom casamento. Depois conto a boca pequena das bobeiras que foram feitas, no caso a Thérèse, sabendo disso, pôs no livro dela, “o corpo tem suas razões”, e subtítulo: antiginástica. Ela adequou, foi aprender fora, com terapias orientais, o do-in, o shiatsu, o zen-shiatsu, o shiatsu é o do-in de dedo; zen-shiatsu já usa o corpo todo para fazer massagem no outro, a gente faz massagem até com os pés. Fui estudar também para fazer, faz no chão, o shiatsu você faz na maca, eu era massagista de zen-shiatsu, mas fazia no chão, com isso ela aprendeu que você tocando o seu corpo, você se ajuda. Vocês já viram uma gata pegar os filhotes? Ela pega com a boca, faz de conta que o meu braço é um gatinho, um filhote, aqui é a minha boca, sou a gata, não faz um furinho. Ela faz isto ela nela mesmo e ensinam, ponham a mão na nuca; faz de conta que a nuca é o gatinho e a mão de vocês é a boca da gata. Agora traz o cotovelo para frente, não tira a cabeça do lugar, mantém, pega aqui e faz os dois soltando a mão. Isso. Soltou? Sente alguma coisa? Agora faz com a outra mão, pega todos assim, todos. Isso relaxa na hora, vocês não fizeram direito depois vou fazer em cada um, mas para vocês entenderem a Thérèse. Ela sentiu isso de olhar a natureza, o subsídio veio de terapeutas que na ocasião eram proibidos de trabalhar como médicos, mas eram pessoas de outros países, que foram para a França – a Thérèse é francesa – para sobreviver e vieram de países anulados pelo Hitler. Lá desenvolveram tecnologias que, por sua vez, aprenderam em guerra com outros povos e, modificara,

fizeram de uma forma que pudesse passar para os outros, esta Thérèse trabalha o corpo inteiro se tocando. É uma automassagem, a pessoa se toca e sem vergonha do corpo, saber onde está o seu lado direito, o seu dedão direito. Você fala para uma criança: levanta o dedo direito, ela fica olhando, não sabe em que mão está, não sabe nem se o dedão está na mão, porque a nossa educação ocidental nos afasta de nós mesmos, mal nascemos já temos: isso é feio, isto não pode. Vocês nem tanto, mas no meu tempo, na minha infância! Não ponha a mão aí, é feio! Não ponha a mão aí, é pecado! Menino, então, coitado, vai cair! Quando ele descobre que tocar no corpo é agradável faz escondido, mas sabe que é pecado, a menina também. Quando você pode redescobrir em seu corpo em seu benefício próprio, que coisa melhor do que você se deitar quando saí do banho gostoso, você sentir o corpo. Não se masturbar, não é sexo, o prazer de se tocar e se conhecer, às vezes você sente alguma coisa, você põe a mão e vê que melhora. O que houve? Energizou. Só isto, este é o meu maior sonho: projeto redescobrindo o corpo, livro, workshop e ampliar.

P/1 – Para encerrar eu queria que a senhora me dissesse como foi contar esta história aqui, no Museu?

R – Olha, benzão, o melhor do mundo. Se vocês soubessem a satisfação que estão me dando, não sei se de outras pessoas, mas a mim, que sou uma velha feliz, que sou velha nesta época. Porque agora a velhice é o boom da atualidade, todo mundo estuda a velhice, todo mundo estuda para ajudar os idosos, para conscientizar o jovem que ele vai ser velho. Então, este Museu da Pessoa, benzão, veio coroar este trabalho, sou uma velhinha informada, uma velhinha jovial. Este título não é meu, não, fui cobaia de um grupo de cobaia experimental vivencial, nas Clínicas [Hospital das Clínicas], no Hospital auxiliar que tem lá na Rua Diderot. Tem o hospital fisioterápico, neste, até 2003, fui a décima setima turma de idosos, tivemos um trabalho assistencial e comportamental. Terças e quintas das oito às dezesseis, quando chegávamos o café era oferecido; tínhamos o almoço, o lanche antes de sair, aula de psicologia, terapia ocupacional, filosofia, nutrição, condicionamento físico, terapia aquática, hidroginástica, recreação aquática e tivemos, com tudo isto, turismo de um dia. Cada grupo um ano, fui a décima sétima turma, eles fizeram pesquisa de vinte anos para tratar o idosos, foi quando ficamos sabendo que nós somos velhos joviais. Se ia um casal ia cada um em uma turma, para não juntar os casais. Marido em um, esposa noutro, as aulas em conjunto, não tinha isto de homem separado de mulher., salvo atividades específicas, porque condicionamento físico feminino é diferente do masculino.

P/2 – Achei muito lindo a senhora na melhor idade ser tão ativa. Tem muita gente que chega aos 60 anos, 70 e não tem mais perspectiva. Isto está reduzindo hoje em dia. Eu queria que a senhora deixasse o seu recado. Qual a importância de ter esta vida ativa?

R – Autovalorização, fazer autoanálise, se tiver a chance de fazer análise é o caminho. Fiz análise, sempre que tenho problemas procuro um profissional para me ouvir e orientar. Não tenho vergonha de falar isto não, quando escolhi educação física, fui fazer análise primeiro, pensei que estava fazendo isto para fugir de casa, vi que não era isto, era vocação mesmo. Nós idosos, quando falei, é consciente, a maioria destes que não assumem a velhice, não é que tinge cabelo, isso a gente faz quando moça, não é quando velho, mas a principal coisa é se amar, se respeitar do jeito que é. Vai melhorar, mas antes goste do jeito que é, está barriguda? Goste desta barriga. Não a idolatre, não a exiba, falo assim para elas, tem senhoras de 90 anos no meu grupo e me aceitam. Porque só de estar ali, de ter saído de casa, já comprimento. Falo: vocês são joviais, somos velhos joviais, porque se for naquela, são sinônimos, é uma questão de cabeça, o conselho, não é bem conselho, orientação de experimentação: tenha coragem de mostrar o que é e de dizer não quando precisar. Não querer ser só boazinha, a vovó boazinha, tenha coragem de dizer não, hoje não posso, ou simplesmente não posso, lamento. Se puder ajudar você a conseguir vou ajudar, mas não posso, é o conselho que eu dou: seja autêntica, mesmo que ofenda, porque às vezes na autenticidade, você não precisa dizer um não. Fale um não adocicado, explica que está, se pedem dinheiro: “no momento não posso, já foi o não”.

P/1 – A senhora quer falar mais alguma coisa?

R – Quero falar que eu sou abençoada por poder vivenciar isso, poder dividir com os jovens, porque no plano que tenho, ganhando a eleição, os membros do grupo que escolhe seu líder. Eu sendo eleita quero levar a juventude para integrar, não chegar de gaiato e entra e fica, hã, hã, a nosso convite. Quero vocês um dia lá.

P/1 – A gente agradece muito a presença da senhora aqui.