Museu da Pessoa

O Brasil precisa conhecer o Brasil

autoria: Museu da Pessoa personagem: Laura Sales Magalhães Motta

Projeto: Mercado Livre - Biomas que Transformam
Entrevista de Laura Motta
Entrevistada por Grazielle Pellicel
Local: São Paulo (SP)
Data: 24/06/2022
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1213
Transcrita por Monica Alves
Revisada por Grazielle Pellicel

P/1 - Oi Laura, tudo bem com você?
R - Tudo bem, sim!

P/1 - Para começar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, a data e o [seu] local de nascimento.
R - Meu nome é Laura Sales Magalhães Motta, eu nasci no dia 27 de outubro de 1990, em São Paulo capital.

P/1 - Seus familiares, seus pais, eles chegaram a contar como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu sei que eu nasci 12h13, a minha mãe estava acompanhada da minha avó e dos meus tios, que são meus padrinhos. Meu pai chegou um pouco depois, mas estava lá também. Eu fui um bebê muito esperado, eu sei disso, porque a família da minha mãe, principalmente, tinha tido muitas perdas, do meu bisavô, do meu avô. Então vinha de uma década difícil, da década de 80, então eu sei que a minha chegada foi muito importante. E é isso, eu não sei muito mais sobre o dia não.

P/1 - Você era uma das poucas crianças da sua família, é isso?
R - É! Na família da minha mãe, eu fui a primeira filha, primeira neta, primeira sobrinha, sou a primeira dessa geração. A mais nova na verdade, que era minha tia, tinha quinze anos. E na família do meu pai, não, meu pai já tinha dois filhos do primeiro casamento dele, que são meus irmãos. Na família do meu pai, eu sou a terceira filha de cinco.

P/1 - Qual é o nome da sua mãe? Você pode contar um pouco sobre a família dela?
R - Posso! A minha mãe é a Lucinha Magalhães, ela vem de uma família de mulheres muito fortes, ela e a gente, vem de um matriarcado. Então a minha avó é uma mulher negra que ficou viúva muito cedo, meu avô faleceu com cinquenta anos, e batalhou muito para criar as três filhas sozinha. Ela começou na verdade como servente, merendeira em escola municipal. Esse é um dos motivos da minha mãe ser professora, porque como a minha avó era merendeira em escola, ela sempre admirava muito quem eram as professoras da escola, e esse é um dos motivos dela ter influenciado a minha mãe a ter feito magistério, depois pedagogia e ter entrado na área da Educação. E aí ela começou assim, como servente, foi ocupando outros cargos na Prefeitura de Osasco, que é de onde a minha família é. Aí a minha avó foi transferida para a biblioteca uma época, passou a ocupar cargos administrativos. Inclusive, foi nessa época que a minha avó e minha mãe conheceram o meu pai, porque o meu pai trabalhava na prefeitura nessa época, era secretário de Cultura em Osasco; minha avó acabou trabalhando com ele, foi assim que os meus pais se conheceram. Então minha avó teve sua trajetória dentro da prefeitura, em cargos administrativos. E aí, enfim, depois de ter as três filhas, não vou saber exatamente a data, mas acho que por volta dos quarenta anos, ela foi para faculdade de direito, e aí sim ela estudou e teve esse diploma tardio, que aí foi o primeiro diploma da minha família do lado de mãe. A minha bisavó, era uma mulher com muita sabedoria. Eu sou de uma família muito supersticiosa, [com] receitas, chás, rezas, orações, tudo que a minha família até hoje faz. Apesar de eu não me considerar católica, acho que tem esse sincretismo que a gente vem herdando desde a minha bisavó. Então minha bisavó, para mim, eu convivi um pouco com ela, até os meus quinze anos, mas no meu imaginário, ela ocupa muito esse lugar de tradição, de trazer as orações, as receitas, de soluções como quando uma coisa precisa. Hoje eu ligo para minha avó quando acontece alguma coisa: "O que eu faço?". Mas antes era para minha bisavó. Minha bisavó era lavadeira, lavava as roupas do exército. Na verdade, tanto a minha bisavó, quanto minha tataravó, acho que principalmente por uma descendência de mulheres negras que foram escravizadas e que se relacionaram com homens brancos, isso veio embranquecendo minha família ao longo do tempo. Mas eram lavadeiras. A minha bisavó era lavadeira, lavava roupa para o exército, e o meu bisavô, que tinha vindo do Nordeste e tava no exército, principalmente para ter o que comer e para ter que fazer; [ele] conheceu a minha bisavó no exército, foi assim também que eles conheceram. Então essa [é a] história da família da minha mãe. Mas também o meu bisavô faleceu, meu avô faleceu, então a minha bisavó, a minha vó, criaram essa família muito sozinhas. E aí a minha avó teve três filhas mulheres, reforçando acho que esse matriarcado, não teve nenhum um filho homem. E aí, enfim, minha mãe e minhas tias… Agora tem mais meninos na família, mas eu venho muito dessa família de mulheres muito batalhadoras. E aí a minha mãe educadora, se formou em pedagogia, trabalhou muito tempo na prefeitura municipal de Osasco também. A minha mãe com vinte anos já era diretora de escola municipal, ela começou a trabalhar muito cedo. E aí até passa muito pela minha história e dos meus irmãos também, que ela foi na verdade num curso, numa formação, que era liderado pela Madalena Freire na época, e fez uma boa pergunta - a minha mãe sempre diz que boas perguntas falam muito mais para as pessoas do que boas respostas. E aí ela foi convidada para fazer parte de um grupo de formação que era supervisionado pela Madalena, passou a ter esse olhar e se aproximou de uma linha de educação mais construtivista. E minha mãe foi trabalhar na Escola da Vila, que é onde eu, meus irmãos, meus primos estudaram. Então o fato da minha mãe trabalhar lá possibilitou que a gente fosse bolsista a vida inteira, e a gente acessasse uma educação de qualidade. Isso foi uma prioridade muito grande para minha mãe na nossa formação, tanto espaço para educação, quanto à formação do pensamento crítico, que era uma coisa muito importante para ela. Então a minha mãe trabalhou durante mais de trinta anos na Escola da Vila, e por volta de 2008 ela decidiu voltar para [a] causa dela, que é a educação pública, e hoje ela trabalha no Sedac com formação de professores da rede pública, muito focados nos estados do Nordeste e da Bahia. Então ela gosta de trabalhar na ponta e viaja bastante por isso. E do lado do meu pai, eu vou começar acho que pelo meu avô: meu avô veio de Alagoas, de uma situação também de começar do zero aqui em São Paulo. E a minha avó vinha de uma família de Avaré, do interior, uma família italiana, que, enfim, migrou para o Brasil, que a gente tem poucos detalhes também, mas que migrou para o Brasil, se instalou aqui no interior de São Paulo, em Avaré, e era uma família assim, de mais de…. Nem sei dizer, acho que eu já perdi a conta, mas acho que são oito filhos. E aí a minha avó casou com meu avô e veio morar em Osasco, [que ainda] era muito rural. Eu tenho umas fotos dessa época, a cidade nem existia ainda. A casa do meu avô, ali do Jardim das Flores, que é o bairro, era uma das primeiras casas. E aí foram construindo a vida em Osasco. O meu avô era pintor de paredes, a vida inteira pintou casas, tinha orgulho de falar que pintou casas importantes, sempre foi pintor. Uma vez eu fiz uma biografia do meu avô, quando eu estava na segunda série: acho que o fato que eu achava mais incrível era ele estar no Maracanã na final da Copa de 50, era o marco da vida dele. Pintava casas e a minha avó sempre foi dona de casa, então eles construíram a família em Osasco, tiveram quatro filhos. E o meu pai, enfim, desde muito novo… Tem até uma coisa muito engraçada, que uma vez eles ganharam uma promoção, um sorteio, foi a primeira TV a cores da rua, e aí as pessoas iam assistir, todo mundo, na casa deles. Meu pai sempre teve uma questão comunitária muito forte, que vinha tanto dessa tradição do interior, então eu cresci com festas juninas na rua da minha vó aberta para todo mundo. Sempre foi uma casa que foi muito aberta para a comunidade, com viés comunitário muito forte, [e] meu pai sempre carregou isso com ele. E aí o meu pai quando estava na escola, fez parte do grêmio estudantil. Era um grêmio que se destacou bastante nessa época, por conta da atuação do grêmio, que era uma escola muito grande de Osasco, [com] quase quatro mil alunos. E por conta desse destaque, surgiu uma oportunidade, na verdade, de entrar para a política. Então um dos colegas dessa época, de militância estudantil, foi candidato a Prefeito, meu pai foi candidato a Vereador, e aí, um pouco, esse grupo de estudantes se reuniu para fazer oposição ao governo e eleger um Prefeito para cidade. Isso deu certo, foi super na guerrilha assim. Nessa época, meu pai conta que eles faziam placas com caixote de feira e pintava, e era essa a rusticidade da campanha. E aí, na época, esse amigo foi eleito, meu pai entrou para política como Vereador muito cedo. Foi Vereador por dois mandatos, depois foi nomeado secretário de Esportes e Cultura da cidade, fez bastante coisas nessa época. Se formou em Turismo nesse paralelo e abriu uma agência de viagens também na década de oitenta. Então ele tinha agência, mas sempre atuava muito na área pública. E, enfim, ao longo do tempo, a política foi mudando um pouco, acho que também foi mudando o perfil da política, o perfil das campanhas, então meu pai chegou a se candidatar algumas vezes para ser Deputado, porque ele como Vereador já tinha uma atuação muito forte em Brasília, de trazer recursos para o município, sempre teve, conseguiu conquistas importantes para o município, de trazer o Sesi, o Sesc, de conseguir coisas importantes. E aí, enfim, ele tentou se eleger como Deputado [e] acabou não conseguindo, então eu também tenho uma infância marcada por derrotas eleitorais. A eleição sempre foi muito importante, mas sempre foi um dia difícil, porque os momentos que o meu pai ganhava eu não tinha nascido ainda e depois que eu nasci, eu tenho acompanhado mais, eu acompanhei principalmente, mas essas tentativas que acabaram não dando certo. E aí meu pai acabou saindo da política, continuou atuando mais com turismo ao longo do tempo, que também é um setor que foi bastante impactado, do avanço da internet principalmente. Mas meu pai começou a trabalhar com projetos turísticos, então passou a conciliar o conhecimento em turismo que ele tinha com o conhecimento de política pública, para trabalhar principalmente com festivais, com projetos públicos de turismo, com empreendimentos turísticos. Então isso meu pai fez. Mas acho que meu pai, da mesma forma que a minha mãe tem uma contribuição muito forte, por meio da educação e por meio de toda a formação e capital intelectual que a gente conseguiu acessar, que acho que mudou a história da minha família. Então, hoje, a nossa geração inteira estudou na Escola da Vila, nossa geração inteira acessou muito conhecimentos. As minhas tias sempre brincam: "A Laura, desde pequena, ela que ensinava para gente o que era greve”. Tem uma coisa da entrada da minha mãe na Escola da Vila ser uma ruptura muito grande na história da minha família, do ponto de vista de renda, do ponto de vista de capital intelectual principalmente. Mas o meu pai tem essa questão desse compromisso com o público e de engajamento comunitário, que é muito forte também. Então acho que essas duas coisas contribuíram muito para as nossas formações cidadã.

P/1 - Qual é o nome do seu pai? Como era essa expectativa do dia da eleição? Você lembra se as pessoas do partido se reuniam para esperar o resultado? Como é que era?
R - O nome do meu pai é Francisco Carlos Motta. Na verdade, as minhas lembranças são muito de frio na barriga, acho que dois dias prévios de eleição, de trabalhar muito. Nessa época, tinha muita boca de urna ainda [e] vários de nós já fomos presos fazendo boca de urna, na família assim, porque era uma prática que hoje não acontece mais, mas que nessa época era muito uma prática. Mas, normalmente, o meu pai ia na apuração e a gente sempre ficou em casa com a minha mãe, com a minha família, sempre esperando isso. Eu lembro que o meu pai sempre ficava sem voz nessa época, fazia muita campanha. Então eu sempre lembro do meu pai sem voz, com pastilha. E aí eu sempre lembro assim, [que] eu sempre fui dormir antes do meu pai voltar para casa. Eu nunca vi o meu pai chegar, então eu sempre acordava na segunda e perguntava para minha mãe como que ele estava, sabe? Acho que uma vez só que eu vi ele chegar triste, mas não é que a gente participava, não.

P/1 - Você comentou que o seu avô era pintor e que ele pintou casas importantes, ele te contou que casas eram essas?
R - Olha, eu não vou saber exatamente. Eu vou até ‘colar’ aqui, porque estou com medo de falar errado quem é a pessoa. Uma das casas que meu avô tinha mais orgulho de ter pintado, era do Ademar de Barros, que tinha sido prefeito de São Paulo. Então essa era uma casa que ele sempre contava, também de alguns donos de banco, que agora eu não vou lembrar quais são, mas principalmente a do Ademar de Barros, é um marco, é uma lembrança que eu tenho forte. E acho que sobre as experiências eleitorais, eu tenho acho que duas lembranças: uma vez o meu pai teve uma campanha muito grande, ele tinha um comitê grande, e aí, antes da eleição, a gente fez uma festa com todo mundo que tinha trabalhado na campanha, com camiseta, com vários materiais… Mas eu lembro muito desse dia, mesmo sendo pequena. E aí gente fez uma carreata. Tem muitas fotos da minha família na carreata, então eu lembro muito disso. E uma vez também que o PDT fez um encontro em Osasco, na época do Brizola, e que também teve um almoço para muitas pessoas, que foi numa quadra em Osasco, e que eu tenho muita lembrança desse dia.

P/1 - Você comentou onde seus pais se conheceram. Mas você sabe como eles se aproximaram?
R - Foi por meio da minha avó. O meu pai por conta de trabalhar na prefeitura, conheceu a minha avó, a minha avó virou uma grande amiga do meu pai, trabalhou muito nas campanhas do meu pai. Na época… A minha mãe é mais nova que meu pai [por] dez anos, então, no começo, inclusive, era o amigo chato da minha avó. Ninguém imaginava que isso ia acontecer, [deles ficarem juntos], o meu pai era casado nessa época, tinha dois filhos. Minha mãe foi no primeiro casamento do meu pai, inclusive, então… Era realmente um amigo da minha vó. E aí, ao longo do tempo, conforme a minha mãe cresceu, entrou na prefeitura. E aí meu pai fala que a primeira vez que ele já começou a olhar para ela, talvez, de outro jeito, foi porque ela foi pedir seis ônibus para levar as crianças no zoológico, foi atrás dele para pedir ajuda para escola que ela trabalhava. E aí eles começaram a ter mais contato depois de alguns anos, então, por conta da prefeitura, principalmente. E aí, num ano novo na casa da minha avó… Na realidade, foi a primeira vez que eles se aproximaram mais e começaram a ficar juntos, e aí o meu pai se separou e ficou com a minha mãe.

P/1 - E a sua família te contava muitas histórias? Você lembra de alguma?
R - Minha família tem muitas histórias. Deixa eu pensar! Que difícil isso, porque são tantas coisas. Estou tentando pensar uma que seja relevante. Acho que assim, essa história de amor dos meus pais, de ter sido uma paixão arrebatadora, do meu pai já ser casado [antes], e isso ter mudado toda a vida do meu pai, é uma história importante para minha família. Acho que a minha vó tem boas histórias, desde pequena, minha vó, tem uma história, por exemplo, que ela conta… Nossa, engraçado, tem tantas e eu não consigo lembrar. Mas tem uma história que ela conta, que uma vez ela foi visitar no interior, algum bairro longe. Porque em Osasco, quando a gente vai para São Paulo, as pessoas falam: “Vamos para a cidade”, então a experiência de viajar para [a] cidade. Então, eu não sei exatamente para onde eles foram, mas acho que deve ter sido dentro de São Paulo mesmo, foram fazer uma visita e a minha avó se perdeu da minha bisavó, de alguma forma, nesse novo lugar, e quando a minha bisavó encontrou ela, a minha bisavó bateu na minha vó. E aí a minha avó fala que ela demorou muito para entender que aquele tapa era de amor, que aquele tapa era de desespero de ter encontrado, tal! Então essa é uma história que eu lembro bastante. O falecimento do meu bisavô, foi muito difícil também para minha vó, porque foi um acidente de carro, [e] a minha avó que estava dirigindo. Eles estavam indo visitar um curandeiro no interior de São Paulo. E como a minha família sempre teve muito essa crença na medicina e na cultura popular, de procurar curandeiros, de acreditar muito no poder curador da natureza e tudo mais, eles foram em um curandeiro e na volta aconteceu esse acidente, um acidente muito feio. Na época, tava minha vó, minha bisavó, meu bisavô e a minha tia mais nova. E aí foi um acidente, assim, muito feio, de cada um ir para um hospital de uma cidade diferente, porque foi no interior, então foi muito difícil e o meu avô faleceu. Porque, na verdade, o caminhão veio para pista deles, e o meu avô faleceu, a minha tia machucou a perna, minha vó quebrou a bacia, mas todo mundo ficou bem no final. Acho que foi um acidente que foi um marco na família, muito chocante, acho que por ser uma morte trágica, [e] minha vó estava dirigindo. E acho que foi difícil assim. Tem tantas histórias, e eu não estou conseguindo lembrar, que eu estou ficando chateada.

P/1 - Não, magina! Era só para saber se eles contavam alguma histórias e se você gostava de ouvir as coisas que eles tinham para falar.
R - Eu adoro! A minha avó, principalmente, sempre me contou muitas coisas, muitas coisas da infância dela, que ela ia na casa da madrinha dela, casa da madrinha dela tinha penteadeira com colar, perfume, batom e ela ficava se arrumando lá, que era quando ela [se] sentia muito importante. Meu pai tem muitas memórias de infância também, de ir para Avaré, ter uma mesa comprida com muita comida. E é curioso, que nas duas famílias a comida tem um lugar de afeto muito importante. O meu pai, acho que muito pela tradição italiana. E as mulheres da minha família por lado de mãe, que sempre cozinharam muito. A minha família é uma família que senta todo mundo na mesa para comer na mesma hora e é sempre mesa cheia, casa cheia. Isso é uma coisa que eu tenho muitas lembranças, eu tenho muitas lembranças de mesas de família ao longo da minha vida.

P/1 - E tem alguma comida especial que te lembra desse afeto?
R - Ai que difícil isso! É, assim, tem muitas mesmo. Feijão é uma coisa que lembra muito a família da minha mãe principalmente. Putz, o melhor feijão do mundo era da minha vó, agora o melhor feijão do mundo é o da minha mãe, é uma comida importante. Mas eu acho que tem uma… A Sexta-feira Santa sempre foi uma data importante para minha família, então a gente sempre come o bacalhau. Acho que o bacalhau, principalmente, mas porque tem uma oração que a minha família realiza nesse dia, desde sempre, que é uma oração que é uma tradição, então eu acho a oração muito bonita, e é uma oração que a minha bisavó puxava, minha avó puxava e hoje sou eu que puxo. Então, a Sexta-feira Santa é uma refeição que para mim é simbólica, porque eu acho que tem esse papel de levar a tradição adiante. Até na Páscoa desse ano, um primo perguntou: “Mas por que a Laura que puxa a oração?”. E a minha avó respondeu: “Porque ela é a neta mais velha, ela que tem a missão de levar adiante”. Então, acho que o bacalhau da Sexta-feira Santa tem esse valor simbólico para mim, que está muito associado a essa oração, e é sempre um momento de pensar na minha bisavó, na minha vó e na minha família.

P/1 - E por que que a Sexta-feira Santa é importante para a sua família?
R - Eu acho que é muito mais pela tradição do que pela religião. Então, eu acho que essa é uma oração que ela termina falando: “Que quem rezar essa oração, Sexta-feira da Paixão, sua alma será salva e de toda a sua geração”. Então eu acho que o fato de fazer consequentemente essa oração e salvar as gerações, eu acho que isso trouxe uma tradição que, [de] a gente sempre se reunir para rezar essa oração. Eu acho que tá muito mais na tradição, e nisso da gente se reunir todo mundo e rezar essa oração juntos, exatamente, talvez, por a gente não ser uma família tão católica. Como isso, ao longo do tempo, se perdeu, eu acho que esse é um momento do ano que a gente de fato se reúne para intencionar e orar junto. A gente até teve um debate esse ano em família, um dos primos perguntou, esse mesmo que perguntou porque eu estava puxando a oração: “Mas você acha que, de certa forma, a gente vai continuar fazendo isso depois que a vovó morrer?”. E aí eu falei: “Vamos, vamos continuar sim”. E ele falou: “Mas a gente não acredita”. E aí eu falei: “A gente não faz pela religião, a gente faz pela nossa família”. Então acho que é isso, o significado tem muito mais a ver com a tradição e com encontro, com a reunião, do que com a religião, que hoje cada um tem a sua. Eu acho que é muito mais parar para intencionar juntos do que qualquer intenção religiosa.

P/1 - Você tem quantos irmãos ao todo? Você sabe descrever como é a relação de vocês?
R - Nós somos em cinco filhos. A minha irmã mais velha é a minha irmã mais distante de mim, por uma série de coisas, acho que primeiro porque ela viveu a separação dos pais dela em detrimento de uma nova família, então acho que isso é o processo que nem sempre foi fácil para ela, apesar da gente sempre… Meu pai tem uma coisa que é, meu pai usou muito o futebol para unir os filhos… Eu vou parar um pouquinho. É quase uma terapia isso. (risos) O meu avô era um corintiano fanático, insuportável, e por isso que o meu pai virou são paulino, porque o meu avô era tão chato, tão insuportável, que o meu pai virou são paulino, influenciado por um tio são paulino, que até faleceu no ano passado. Esse tio era um tio muito importante. Pra mim, era o tio do quentão, da festa junina, mas para o meu pai tinha esse peso de ser um tio que acompanhou, de ser um tio são paulino. E aí o meu pai virou são paulino em oposição ao meu avô. E todos nós somos são paulinos. E o meu pai sempre usou o São Paulo para juntar os filhos dos dois casamentos, então meu pai todo domingo, toda semana, a gente ia todos os filhos, desde sempre, no estádio junto com meu pai, então isso ajudou a gente a construir um vínculo de convivência e de ter uma paixão em comum, e de ter uma coisa em comum, e isso ainda marca muita gente. Então a gente já viajou junto para ver jogos fora de São Paulo, jogos importantes. O meu pai e os meus dois irmãos, que são de casamento diferentes, foram para Argentina para ver a Libertadores, então o São Paulo proporcionou muitos momentos de família entre os meus irmãos. Então, muitos dias dos pais a gente foi ver jogo no estádio, juntos. Era uma época ainda que a gente ia de numerada quando era São Paulo e Corinthians, meu avô, meu pai, a gente ali convivendo no mesmo lugar, então eu tenho muitas lembranças de estádio. E aí meu pai sempre usou muito [o time do] São Paulo para juntar os filhos e eu acho que isso, sabiamente, garantiu que hoje a gente tem um bom relacionamento, nós cinco, e a gente tem uma convivência continua indo ainda no jogo junto sempre que a gente pode, ou conversando sobre o jogo. Então acho que tem esse papel do futebol na minha família ter sido uma agenda comum para os cinco filhos. A minha irmã mais velha sempre foi mais distante de mim, acho que por conta dessa questão da separação dos pais dela. Ela também tem uma personalidade muito diferente da minha, eu sou uma pessoa, como que eu vou dizer, muito… Bom, eu acho que a gente tem jeitos muito diferentes. Então, eu sou uma pessoa, talvez, mais contida, mais cautelosa e ela é mais impossível, fala o que ela pensa. Ela não teve também, acho que a mesma formação que eu e os meus irmãos, então a gente tem gostos diferentes para tudo, de música, de jeito, de roupa, a gente é muito diferente. E ela morou fora do Brasil também, durante a minha adolescência, isso também dificultou que a gente construísse um vínculo maior. A gente tem uma relação boa, mas é uma relação mais distante. Acho que a gente tem muito em comum no cuidado com o nosso pai, nós duas somos muito aficionadas pelo o meu pai, então a gente cuida muito do meu pai. A gente está sempre cuidando muito não só do pai, mas das famílias também. Acho que ela é a filha mais velha lá, eu sou mais a filha mais velha aqui, então a gente compartilha um pouco desse papel de cuidado com meu pai, com a família e com os meus irmãos. O meu segundo irmão, que é o Leonardo, é muito parecido comigo, mas eu não sabia disso, eu só descobri… Apesar [que] a gente sempre foi do mesmo signo, mas a gente também não leva super a sério isso, a gente sempre teve um bom relacionamento. Ele, na minha adolescência, tava aqui e foi muito presente, principalmente por conta do São Paulo. Então, eu fui com ele para o Maracanã, fui com ele para muitas coisas. A gente ia ao jogo semanalmente. Quando São Paulo estava bem, não agora. Eu sempre tive mais convivência com Leonardo, o Leonardo convivia muito com a gente, sempre conviveu bastante com a gente. Leonardo trabalha com meu pai hoje, então ele é muito presente e eu descobri… A gente sempre teve uma relação muito boa, de muito carinho mesmo, de muito apoio também um com outro. Ele, como meu irmão mais velho, me ajudava muito, desde carona até outras coisas. E, em 2015, o meu pai precisou ser internado, meu pai teve uma hemorragia, teve um sangramento; meu pai teve uma síncope durante um jantar, aí a gente chama o Samu, meu pai foi internado, ficou na UTI [por] quinze dias e foi um momento muito difícil para gente. Mas foi nessa situação que eu me dei conta do quanto era parecida com meu irmão. Eu acho que a gente tinha as mesmas reações, as mesmas preocupações, as mesmas linguagens corporais, os mesmos sentimentos, e aí acho que foi quando a gente também se aproximou e viu que a gente era muito parecido, e eu não sabia disso, porque meu irmão é muito quieto, meu irmão é muito na dele, meu irmão é muito contido, muito para dentro, meu irmão nunca teve um relacionamento, meu irmão nunca… Meu irmão é muito focado no São Paulo, muito focado no meu pai, muito quieto, então ele fala pouco. E aí foi nesse episódio mais difícil que eu vi, nossa, como a gente era parecido, e acho que isso ajudou também a aproximar a gente. E a gente tem uma relação ótima que passa muito pelo São Paulo, que ele é um torcedor fanático, ele tá em todos os jogos, sabe tudo. Muito [o] que me conecta com ele é a paixão pelo futebol. E aí vem, que eu sou a do meio, e aí eu tenho dois irmãos mais novos, um é o Francisco, que cresceu comigo, ele é dois anos mais novo que eu. Quando o Francisco nasceu, eu tive um pouco de ciúmes - pelo o que a minha mãe fala -, mas a gente cresceu junto, então eu tenho muitas boas lembranças com ele, de brincar, de crescer junto. Sempre crescemos juntos e brincamos muito, nos ajudamos muito também quando precisamos, quando precisou. Ele sempre foi muito agitado, a gente também se compensava um pouco. Eu sempre fui muito madura assim, na verdade, sempre fui meio adultinha, mais séria, e ele sempre foi um caos, bagunceiro, e aí acho que a gente sempre se equilibrou muito e se apoiou muito. Hoje, ele também estuda economia [e] a gente tem uma relação muito de apoio. Acho que eu defendi muito ele ao longo da vida também, tanto que desde que eu saí de casa, ele fala: “Que falta que a Laura faz, porque a Laura era muito justa, a Laura que me ajudava aqui”. Aí eu sempre fico preocupada, se eu era justa, ou se eu passava um pano; se ele sente falta, eu sempre fico nessa dúvida. Mas a gente tem uma relação de muita cumplicidade, desde sempre, porque a gente cresceu junto. Então acho que a minha relação com a minha irmã mais velha, é uma relação de respeito, a minha relação com Leonardo é uma relação de carinho e de futebol, parece que não, mas é muito importante, a minha relação com Francisco é de cumplicidade, de ter compartilhado a infância principalmente. E a Sofia, que [é] a minha irmã mais nova, a minha pequena, que já tem 25 anos, que [quando] nasceu eu já tinha sete para oito anos, e eu cuidei muito dela, muito, então eu tenho uma relação muito de cuidado com ela. Para mim, ela é muito a minha irmã mais nova, eu me assusto quando vejo [o quanto] que ela cresceu. Mas, como a minha mãe começou a viajar muito, trabalhando com formação, eu cumpri muitas vezes um papel de cuidar da Sofia, para tudo: separar roupa para escola, arrumar cabelo. A minha irmã tem cabelo crespo e blackão assim. Eu sou a que tenho mais cacheado, mas ela tem um blackão, então eu que cuidava do cabelo dela. E ela ia fazer apresentação de dança, de balé, essas coisas, eu ia lá para arrumar o cabelo dela, para ninguém colocar a mão no cabelo dela, porque ninguém ia saber fazer coque no cabelo dela. Então eu realmente cuidei muito da Sofia. Nunca vou esquecer, uma vez a gente fez uma festa do pijama para vinte meninas [e] eu organizei tudo: cantinho da fantasia, cantinho para cozinhar, cantinho para pintar, cantinho para brincar. Nossa, eu nunca fiquei tão cansada na minha vida, mas, eu tinha, sei lá, uns quinze anos e eu fiz muitas coisas. Mas é isso assim, a Sofia, eu cuidei muito dela. Para mim, ela é minha irmã mais nova, eu acho que [tem] essa relação de cuidado. Ela é professora também, de educação infantil hoje. Ela fez pedagogia, assim como minha mãe, então acho que ela… A gente, hoje, troca muito em relação à educação, às questões sociais. E ela, foi uma surpresa para mim, sentiu muito [por] eu ter saído de casa e ter ido morar com meu companheiro. Ela sentiu muito isso, até hoje ela me critica um pouco, porque ela sente essa saída e acho que eu me dei conta [só] depois, [porque] enquanto eu estava saindo, não me dei conta desse impacto nela, e acho que teve um impacto nela importante, mas a gente tem uma relação muito boa. Acho que hoje ela é a irmã mais próxima de mim, que eu tenho. Mas acho que é, principalmente, por causa do ponto de vista ideológico, do ponto de vista de afinidade, de gosto, ela é a irmã mais parecida comigo também, porque eu que criei ela. Acho que eu fiz um bom trabalho junto com os meus pais.

P/1 - Você lembra da casa onde você passou a sua infância?
R - Sim! Até hoje os meus pais moram lá, então continua sendo a casa da nossa família. Apesar de todos nós termos saído, meus pais não querem sair de lá. É uma casa enorme, que não precisa, para os dois, mas acho que é uma casa que a gente tem bastante apego. Então, eu cresci no Jaguaré, que é um bairro, a gente conhece… Enfim, a gente está lá há mais de trinta anos, então a gente conhece todo mundo, eu conheço todos os vizinhos pelo nome, alguns vizinhos foram falecendo ao longo do tempo, mas os filhos estão lá. Eu cresci na Rua Hermann Pina, no Jaguaré, que é um bairro onde a gente conhece todo mundo, que é uma rua que tem feira toda sexta-feira, numa casa que era amarela. Hoje é azul, mas sempre foi a casa amarela da rua. E é uma casa que é uma casa grande, com três quartos, eu tinha um quarto para mim, quando a Sofia nasceu, eu torci muito para ser menina, para dividir o quarto comigo. Depois eu não achei tão boa ideia, mas quando ela nasceu, eu fiquei muito feliz que era uma menina, para dividir o quarto comigo. Então é uma casa com três quartos, três andares, uma cozinha muito grande, uma sala de piso de madeira, que tem uma piscina e um fundo que a gente nunca terminou, talvez, do jeito que a gente queria. Eu sonho em ter um fundo muito top assim, mas a gente foi fazendo aos poucos assim, que a gente tem muitas lembranças boas lá também. A piscina, meu pai sempre quis ter uma piscina, quando ele fez a piscina foi uma conquista. Quando era horário de verão, a gente chegava em casa, ainda tava de dia, a gente ia para a piscina, a piscina tem… A gente acha que usou menos do que meu pai gostaria, ele sempre fala: “Essa piscina tá aí e ninguém usa”. Mas é uma característica da minha casa, todo mundo sempre fala da piscina da minha casa, é a coisa mais legal que tem na minha casa.

P/1 - E quais eram as suas brincadeira favoritas?
R - Nossa, que difícil isso! Eu acho que eu tô ficando velha mesmo, porque quando a gente deixa de lembrar das coisas, é que a gente tá ficando velho. Tem uma coisa que eu gostava muito, enfim, nem é tão legal, mas… Que era tipo ser estilista, vai, de desenhar, recortar e vender essa roupa, ou desenhar… A gente brincava, eu e meu irmão, que a gente vendia prancha de surf: a gente desenhava umas pranchas estilizadas, recortava e vendia uma para o outro. Então eu acho que isso de recortar coisas e vender… Uma coisa que eu gostava muito de fazer… Eu tô com vergonha um pouco [de falar], na verdade. A gente tinha uma brincadeira que era péssima, péssima, mas eu vou contar, que era brincar de 25 de Março, que era, cada um tinha sua barraca aqui assim, e aí, botava, sei lá, uma canga e botava os produtos que você estava vendendo, porque o meu irmão ganhou um carrinho que tinha uma sirene, aí o meu irmão, quando tocava a sirene, era o 'rapa' (fiscalização da prefeitura), aí a brincadeira era ficar dez horas arrumando as coisas, para quando meu irmão tocasse a sirene, a gente a gente juntasse, entendeu? Então, na verdade, o mais legal era juntar as coisas e sair correndo, por isso que eu falei que estava com vergonha. Mas a gente brincava muito de 25 de Março muito, era uma brincadeira que a gente amava, sei lá porquê. Uma coisa que o meu pai fazia muito, era, tipo, a gente ficava de olho fechado, ele jogava as colheres na piscina, muitas colheres, e aí quando ele falava "já", era quem pegava mais colheres dentro da piscina. Então essa é uma brincadeira… Meu pai foi viajar para o Japão à trabalho, uma vez, num congresso de turismo e ele trouxe uma máscara de mergulhador, que era muito de mergulhador profissional, e a gente gostava muito de brincar de brincar de mergulhador. Então isso é uma coisa que a gente brincava, [de] ficar explorando. Essas brincadeiras de piscina, eu tenho muita lembrança de brincar de mergulhadora, de brincar muito de pegar essas colheres, quem era mais rápido, quem conseguia nadar mais, era uma brincadeira que eu lembro bastante. A Sofia gostava muito de brincar de mamãe e filhinha, e aí a gente sempre brincava muito de mamãe e filhinha, muito, muito, até cansar. Aí quando eu cansava, eu falava: "Tá na hora de dormir, filha!". Brinquei muito de mamãe e filhinha, por conta da Sofia, brinquei muito de Barbie, com a minha tia, que a minha tia mais nova, tinha muito. Eu brinquei muito de Barbie, muito. Nossa, muito! Na minha geração, a gente brincava muito de Barbie, eu e a minha tia mais nova, e eu herdei muitas coisas dela, herdei uma casinha muito legal. Eu quebrei um carro de Barbie que a minha tia amava, até hoje ela fala: “Ai, você quebrou!”. Eu sentei em cima, porque eu queria andar no carrinho também, [que] rosa. Era maravilhoso. Então eu brinquei muito, acho que na minha infância, mais novinha, brinquei muito de Barbie, muito disso, de desenhar roupinha. Então, por exemplo, na Copa de 98, eu lembro de eu desenhando camisetas estilizadas do Brasil, recortando, roupas da Copa, roupas amarelas. Eu sempre brinquei muito disso, de desenhar roupas, de ser estilista. Muito de Barbie, muito de ser estilista, essas brincadeiras de piscina. E aí depois que a Sofia nasceu, brincar de mamãe e filhinha, brincar de Polly, porque a Sofia é da geração da Polly, de ficar trocando roupa e tal. E essa brincadeira aí de 25 de Março, não sei, tava reproduzindo a realidade, ainda bem que era isso. (risos)

P/1 - Você lembra da primeira vez que você pisou na escola?
R - Eu não lembro! Eu estudei primeiro numa escola que chamava Aldeia, que eu tenho poucas lembranças. Tenho mais lembranças sensoriais, sabe, de cheiro, de gosto, do que lembrar coisas que aconteceram. Mas eu lembro muito da minha avó, a minha avó materna sempre foi muito presente na minha formação, então eu lembro muito da minha avó fazendo a minha adaptação, da minha avó e alguns momentos nessa primeira escola. E aí eu entrei na Escola da Vila com quatro anos, no grupo um, com muitos amigos que até hoje são meus amigos, muitos mesmo. Pelo menos cinco amigos são meus amigos desde essa época. A sala do grupo um da escola, ela tinha uma porta azul, redonda, que parecia meio Castelo Rá-Tim-Bum. E aí eu lembro bastante dessa sala. Quando eu penso na educação infantil mesmo, eu lembro muito de parlenda, muitas parlendas, os nomes escritos. Eu, por exemplo, sempre teve outra Laura na minha sala, que é a Laura Carmona, então eu sou a Laura Motta para todo mundo, por conta disso, por ter outra Laura. Então é muito engraçado, porque os meus amigos mais íntimos me chamam de Laura Motta. Tem gente que me conhece hoje, me chama de Laura, me chama de outras coisas, mas quem é meu amigo de infância, me chama de Laura Motta, por conta dessa época, que sempre teve outras Lauras. E aí lá na lista de nomes da sala, que a gente ia aprendendo, sempre tinha a Laura Carmona e a Laura Motta, então eu sou a Laura Motta para todo mundo assim. Mas eu não vou lembrar assim… Uma coisa que eu lembro também, eu acho que lembro muito disso, da sala, [é que] tinha uns banquinhos coloridos também. A minha mãe disse que nessa época contaram a história de Romeu e Julieta e eu amei a história de Romeu e Julieta, foi uma das histórias do grupo um. Lembro de parlenda e lembro que na Escola da Vila tinha uma coisa, eu sempre muito gordinha, que chamava prato do meio, que era assim: se você levava um lanche e você não queria comer aquilo, o que você não queria mais, você colocava no prato do meio, que era um prato compartilhado, que aí qualquer outra pessoa podia pegar. E aí, nossa, eu limpava o prato do meio, ou quando alguém levava uma coisa gostosa, eu falava: “Você não quer colocar no prato do meio não?”. Eu fiz isso também! E a minha mãe, eu sei que a minha mãe sempre caprichou muito nos lanches, então eu lembro muito disso, que tinha que levar um guardanapo de pano, sempre tinha essa recomendação, que era um guardanapo de pano para você colocar o seu lanche na mesa, para forrar. E a minha mãe sempre caprichava muito, então os lanches da minha mãe sempre foram impecáveis, tudo organizadinho, potinho, cortadinho, e o paninho. Então minha mãe sempre teve muito esse cuidado com lanche. Aí eu comecei já, porque eu sempre fui gordinha, aí ela, tadinha, mandava cenoura bebê, mandava várias coisas lights pra mim. Sempre teve esse cuidado do lanche da minha mãe, que é uma coisa que eu lembro bastante também. E aí, ao longo da vida, eu lembro muito de projetos feitos pela escola. Então, quando a gente estava no pré, a gente estudou contos de fadas e fez uma trilha, um filme de trilha de contas de fadas. Quando eu estava no grupo quatro, a gente estudou a Grécia e esse é um projeto que na escola que eu estudei era muito importante, então a gente aprendeu a fazer ambrosia, a gente estudou sobre os deuses, a gente gravou histórias, então até hoje eu acho que eu tenho a fita de "Persépolis - A Primavera e O Verão", que é a gente contando a história. E aí teve um evento para os pais, que a gente pintou as togas, eram todos nós vestidos de gregos, servimos ambrosia. Então estudar a Grécia me marcou também. Aí a gente estudou os pólos, então a gente tinha que estudar animais polares, e aí eu e o Jonas, que [é] um grande amigo meu, desde os três anos, a gente estudou junto [os] pinguins de Magalhães, porque meu nome é Laura Salles Magalhães Motta, aí eu estudei o pinguim de Magalhães e a vida inteira ele me zoa por conta disso. E aí a gente estudou os polos. Na primeira série também, a gente estudou as baleias. Lembro muito desses projetos, da gente buscar conhecimento, de estudar. O projeto pedagógico da escola gerou muitas memórias para mim. E na segunda série teve esse museu da família, que eu comentei até que eu fiz a biografia do meu avô, que é um projeto que a Escola da Vila tem, para você construir sua árvore genealógica, para você conhecer a história da sua família, isso me marcou muito. Eu acho desde essa época, eu sou a neta da tradição, porque acho que eu conheci muitas coisas, então eu fiz a biografia dos meus pais, eu fiz a biografia do meu avô paterno e da minha avó materna; a gente foi atrás de objetos, objetos que foram dos meus avós, dos meus bisavós. Aí isso fez eu ver que eu tinha descendência italiana do lado da minha vó, que tinha descendência portuguesa do lado do meu avô paterno, entender que a minha família vinha de famílias negras que tinham sido escravizadas, do lado da minha mãe principalmente. Foi um projeto importante também para entender… Acho que muita das coisas que eu contei aqui que eu já nem lembro tanto, acho que vem muito desse lugar, desses estudo que a gente fez. Aí na terceira série, também acho que me marcou muito, que a gente estudou os anos sessenta. Era um projeto multidisciplinar na escola, então, em inglês, a gente estudou os Beatles, a gente estudou muito a ditadura, muito a repressão. E é um projeto que marcou muito também, onde três grandes amigas minhas fizeram o projeto comigo. A gente apresentou "Apesar de Você" do Chico Buarque, eu lembro muito dessa apresentação. E hoje as três estão entre as minhas melhores amigas. É um projeto que me marcou muito, mesmo. Eu lembro que nessa época eu romantizei muito esse período. E aí eu lembro que a gente falava: “Porque na época da ditadura militar, eles tinham o inimigo declarado. A gente, hoje, não se engaja, porque a gente não tem isso”. E aí acho que depois, quando o contexto político brasileiro atual chegou, eu falei: “Nossa, eu não queria ter vivido [aquele momento], eu não sabia o que eu estava falando quando eu romantizei tudo isso”. Mas foi o projeto que marcou muito, por exemplo, foi um projeto também que eu descobri coisas que eu não sabia e que tem a ver… Tem uma história da minha família que eu lembrei, meu avô paterno também foi militar, e ocupava um cargo administrativo no exército, durante a ditadura militar. Ele nunca fez parte ativamente disso, mas fazia parte de uma instituição. E o meu avô paterno morava numa vila militar, em Osasco, de Itaúna, que é a mesma Vila Militar que o Lamarca… Então essa é uma história da minha família que eu não contei, mas que o meu avô era militar com o Lamarca, eles moraram na mesma vila durante muito tempo. E a minha avó, enfim, acho que as mulheres sempre conviviam na mesma vila, então o Lamarca morava na mesma vila que meu avô. E que também, quando o meu avô soube da tortura da Bete Mendes, da atriz que ele era um fã, ficou muito mal [e] isso teve um impacto muito grande na minha família. E aí quando na sexta série eu fui estudar os anos sessenta, essa foi uma história que a minha mãe me contou. Tanto que o Lamarca era companheiro do meu avô e tinha vivido na mesma vila que ele, quanto que essa era uma memória que meu avô tinha, e que tinha machucado muito ele. Foi um jeito de conhecer a família, conhecer a história do meu avô que faleceu muito cedo, que eu não tive nenhum contato e que todo mundo fala que era muito sensível. Acho que isso também foi importante. E é isso, acho que esses projetos me marcaram muito, de coisas que eu estudei, que eu adquiri mais conhecimento. Na vida inteira, na verdade, isso, mais nova, mas mais velha também, muito das minhas escolhas profissionais, inclusive, foram pautadas por trabalho de campo que eu fiz na escola, então acho que isso fez muita diferença. Na oitava série, a gente foi para Cananéia, entender a reserva extrativista, entender cooperativismo e acho que isso teve impacto na minha escolha profissional. Visitar acampamentos do Mtst (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) no ensino médio também, acho que isso fez bastante diferença. Então, de fato, a escola da Vila teve muita influência na minha formação.

P/1 - E na adolescência, muita coisa mudou na sua vida? Você saía com os seus amigos para se divertir?
R - A minha adolescência estava muito ligada à escola, estava muito ligado ao engajamento social também, em participar do projeto social… A Escola da Vila tinha um projeto social de fazer voluntariado que eu participava, a gente formou uma chapa para o grêmio da escola. A escola já tinha tido um grêmio muito importante, que tinha parado de atuar. É curioso isso, mas tinha parado de atuar porque a escola já tinha tudo, então não tinha reivindicações. E aí a gente começou um movimento, quando eu estava na sétima série, que eu tinha catorze anos, [para] retomar o Grêmio da escola, e começou a se reunir uma vez por semana, para gente tentar retomar o Grêmio da escola. E aí, nessa época, o Chicão, que era orientador educacional, se aproximou desse grupo e apresentou para a gente o Estatuto da Criança e do Adolescente, muito sabiamente, na verdade, ele mostrou que o grêmio era um direito garantido pelo ECA, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e convidou a gente para fazer parte de um grupo de formação sobre do Estatuto da Criança e do Adolescente. E aí a gente criou um grupo com alunos da Escola da Vila, com alunos de escolas públicas do Butantã, alunos de ONGs que atuavam no Butantã, que era um grupo de adolescentes, que era o grupo de formação do ECA do Butantã. Então todas as sextas-feiras a gente fazia reuniões muito longas, para estudar o estatuto, ver vídeo, ler artigo, debater, fazer oficina, então a gente ia em muitas organizações, na São Remo, em outras favelas de São Paulo também, para apresentar o Estatuto da Criança e do Adolescente para os jovens e falar muito de protagonismo juvenil. E falar: “Olha, tem o estatuto, tem esse direito”. Trazia filmes para debate, passava curtas e fazia debate sobre isso. Então eu tive uma adolescência de muita militância na área de direito da criança e do adolescente, participei de conferências, então, conferência regional do Butantã, para definir propostas para o Estatuto da Criança e do Adolescente, conferência municipal, eu fui escolhida como a adolescente que discursou na conferência Municipal, que foi no Anhembi, eu falei em nome dos adolescentes. Fui para estadual, fui para Brasília na época. A escola ocupava um espaço muito importante, o grupo de formação ocupou um espaço muito importante, de militância mesmo, na área da Criança e do Adolescente. A gente acabou formando um grêmio também, então no ensino médio a gente tinha um grêmio, mas muito focado em questões culturais. Como a escola não tinha tantas coisas para gente reivindicar, nesse momento, a gente fez, na verdade, um festival de bandas, a gente formou uma poligremia, em conjunto com outras escolas do Vale Encantado de São Paulo, fez um debate sobre a redemocratização da equipe na época… A gente promoveu alguns debates. Então a minha adolescência foi muito marcada por essa militância e também por festa, por sair, por tudo mais, mas eu acho que eu não tenho tantas boas lembranças da minha vida social dessa época. Eu acho que é uma época que tem uma pressão muito forte, de ficar com as pessoas e tudo mais, e eu sempre fui gorda, tinha o cabelo enrolado, que, na época, não era uma coisa legal, fazia escova sempre. Não é que eu tenho boas lembranças da minha vida social na minha adolescência, porque acho que já tinha isso já [de querer] ficar com a pessoa que você quer e gostar sempre dos bonitos que nunca iam olhar para mim. Então eu não tenho muitas boas lembranças, quando eu penso na minha vida social. Mas também a vida social estava muito na escola, a minha adolescência é marcada pela escola, muito engajamento na escola e por essa militância na área do Direito da Criança e do Adolescente.

P/1 - E, atualmente, você é casada, né?
R - Eu sou!
P/1 - Como é que você conheceu o seu marido?
R - Eu conheci o meu marido num bloco de carnaval, no Rio de Janeiro, em 2014. Assim, a minha vida mudou um pouco quando eu entrei na faculdade. Para não pular direto: na faculdade, já estava melhor, porque aí quando você sai da escola é diferente, quando você conhece as pessoas é mais difícil. Eu indo para faculdade, acho que eu passei ser mais segura de mim mesma. Eu aproveitei bastante a minha juventude, então, dos dezoito aos 23, eu aproveitei bastante a minha vida universitária. E aí, em 2013, eu tava, conheci o Thiago no carnaval no Rio, no Sargento Pimenta. No aterro do Flamengo, tinha um bloco com 180 mil pessoas. E aí eu fiquei com Thiago nesse dia, a gente trocou telefone. Eu nem costumava passar meu telefone correto na verdade, mas eu passei meu telefone correto, e aí a gente começou a conversar desde então, e aí a gente se falava todo dia e tudo mais. E aí eu voltei para o Rio... Isso foi no comecinho de março, eu voltei para o Rio em abril e falei para ele se ele quisesse me encontrar, eu estava lá. Aí a gente passou um final de semana incrível, foi demais, parecia que a gente se conhecia a vida inteira, e aí, desde então, a gente continuou se falando, ficando e se encontrando. E aí, enfim, a gente começou a ficar sério e teve uma conversa: "Pode dar certo, então vamos tentar se conhecer mais". E aí a gente fez um combinado de se ver todo final de semana, então, um final de semana eu ia, um final de semana ele vinha, e aí a gente ficou um ano assim, namorando à distância. Até que em 2015, o Thiago conseguiu um emprego em São Paulo, largou tudo lá e mudou para São Paulo, e veio morar perto de mim. E aí, seis meses depois que ele veio para cá, eu fui morar com ele. Então a gente mora junto desde 2015. Acho que é por isso que a minha irmã sentiu também, porque foi de repente, do nada, e cedo. Eu sempre disse que eu ia morar sozinha primeiro, que eu não ia casar. Meus planos eram outros, que eu ia para fora. Nessa época, trabalhava numa empresa espanhola, então eu queria ir para fora e tal. Mas foi assim uma paixão arrebatadora, e aí mudou toda a nossa vida: ele largou tudo lá, eu mudei todos os meus planos aqui, e a gente foi morar junto aqui. Penamos muito, muito, foi muito difícil de grana, principalmente no começo, a gente não tinha nada, eu tinha acabado de ser efetivada, ele tinha largado tudo, tava começando do zero aqui, então penamos bastante. E aí a gente começou a morar junto em 2015, desde então, para mim, a gente já tava casado na verdade, mas depois que meu pai ficou doente, em 2015… Na verdade, não, a gente começou a morar junto em 2015 e, em 2016, o Tiago me pediu em casamento no meu aniversário. Bêbado, feliz, falou: “Quero casar com você!”, "Ótimo!". Assim, era mais uma brincadeira, mas depois que meu pai ficou doente, acho que isso fez eu olhar para a família de outra forma e acho que também aumentou a vontade de eu ter a minha própria família, que continua sendo eles, mas que em algum momento meus pais não vão estar aqui, então acho que isso também me deu força para olhar para minha família para frente. E quando meu pai estava internado na UTI, a gente entrou na visitação, eu e o Thiago, e o meu pai falou brincando, assim: “Fica tranquila, ainda vou sair daqui para te levar pro altar”, isso me marcou muito. Então a gente saiu da UTI, só se olhou e Thiago falou: “Vamos marcar!”. Então a gente fez um casamento bem tradicional, perto do que a gente faria normalmente. Eu acho que nosso plano, no máximo, era um dia fazer uma roda de samba para comemorar. E aí a gente fez um casamento tradicional, a gente casou em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, um casamento pequeno. Por isso que a gente fez até fora de São Paulo, porque a gente não tinha condições de fazer um casamento muito grande. Mas a gente casou no alto de Santa Teresa, numa tarde linda, num dia lindo. E eu entrei com meu pai, super tradicional, chorei muito. Não tenho fotos boas do meu casamento, porque eu chorei tanto de estar entrando com meu pai, que parece que eu estou indo para a forca, mas foi um dia muito bonito. E eu acho que, sempre brinco, celebrar o nosso casamento foi um organismo social mesmo, de estar com tanta gente que a gente gostava, de sentir tanto amor e poder celebrar esse amor. Então, a gente casou formalmente também em 2017, e aí a gente tá junto desde um bloco de carnaval, contrariando todas as expectativas de amor de carnaval e de namoro à distância.

P/1 - E vocês têm filhos?
R - Não, ainda não! A gente quer muito ter, mas ainda não.

P/1 - Na época da escola, assim que você terminou, qual foi o seu primeiro passo depois? Você começou a trabalhar? Fez a faculdade já?
R - Quando eu saí da escola, eu tinha sido bolsista a vida inteira, então para mim era muito importante passar na USP. Eu não passei, e foi uma frustração muito grande para mim não ter passado na USP, nesse momento. E aí eu não me permiti fazer cursinho, eu falava assim: "Não, eu já tive muito privilégio, eu vou entrar na faculdade, tudo mais". E aí eu entrei em economia na PUC, então eu fui direto para a faculdade. Trabalhava em três empregos para pagar a faculdade: eu trabalhava com edição e revisão de texto numa revista, dava aula particular, trabalhava em eventos de final de semana. Então, no meu primeiro ano de faculdade, principalmente, eu fazia de tudo um pouco, para conseguir pagar a faculdade. E aí em 2019, eu passei num estágio, eu sempre quis trabalhar na área pública, e eu decidi fazer economia para trabalhar com geração de renda e distribuição de renda. Então a minha decisão de fazer economia estava muito ligada a trabalhar com geração e distribuição de renda e também com uma visão de sustentabilidade. E aí por isso também, por exemplo, que essa viagem para Cananéia me marcou muito, porque foi quando a gente entendeu ali no Vale do Ribeira a questão de preservação, de sustentabilidade. Então eu fui fazer economia por isso. E a primeira oportunidade de estágio que apareceu para mim na época foi num banco. Eu não tinha intenção de trabalhar nem no setor privado, nem em banco, mas foi onde eu tive uma oportunidade, inclusive, de ter mais estabilidade para pagar a faculdade e aprender. E, coincidentemente, eu entrei nesse banco para atuar num projeto de garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, que era a área onde eu tinha militado. Então eu entrei no banco para trabalhar na área de projeto social, de investimento social, com projetos de geração de renda, voluntariado e também com um projeto de fortalecimento de conselhos municipais da Criança e do Adolescente. Pela legislação brasileira, a gente pode destinar uma parte do Imposto de Renda para os fundos municipais e o banco tinha um programa para mobilizar, funcionários, clientes e grandes empresas, para que elas direcionassem para fundos municipais, e aí o banco capacitava esses fundos para aplicação do recurso e monitoramento do recurso. Então, eu trabalhei durante oito anos no banco, comecei como estagiária, fui efetivada, fui crescendo lá, sempre na área social, e aí no último ano na verdade, teve uma reestruturação da área, e aí eu fui transferida para uma área de negócios inclusivos, para trabalhar com projetos de empreendedorismo, economia de baixo carbono. Eu já tinha experiência na área social, passei a ter um pouco mais experiência com o sistema de sustentabilidade. E aí foi nessa época que eu recebi um convite para trabalhar no Mercado Livre e estruturar a área de sustentabilidade do Mercado Livre, e eu achei que, principalmente, por ser uma companhia latino-americana, que está presente em quase todos os países da América Latina, era uma oportunidade de eu conhecer mais sobre a América Latina e que profissionalmente podia ser bacana. E aí eu vim para o Mercado Livre e desde 2017 eu lidero a estratégia de sustentabilidade do Mercado Livre aqui no Brasil, um pouco com esse olhar de, principalmente, quais são as temáticas que a gente não pode deixar de atuar no Brasil, garantir, eu sempre falo, esse olhar localizado para iniciativas, que hoje muitas… A nossa sede é na Argentina, então a gente tanto implementa projetos no Brasil, como brinco, que a gente exporta projetos daqui também, então a gente vem pilotando coisas, replicando esses projetos em outros países, principalmente na Colômbia, que é um país que tem uma realidade, uma cultra bastante parecida com a brasileira. E aí eu, em 2017, quando eu casei, prestei Geografia na USP, muito porque achava que em economia eu não tinha encontrado tudo que eu buscava. Acho que eu tinha encontrado coisas bacanas, mas não tinha o olhar pro local, pro território, pra economia solidária que eu gostaria de ter. Porque eu me dei conta que talvez desde o começo era geografia que eu queria. Foram os trabalhos de campo de geografia que me levaram a escolher economia. Eu, hoje, não sei porque eu não cogitei em fazer geografia desde o começo, eu acho que tinha uma preocupação minha em relação a questão financeira, então eu lembro que um dia antes de prestar a Fuvest, quando eu tinha dezoito anos, eu perguntei para os meus pais: “Eu presto RI em economia e tenho chances de ter uma vida financeira melhor, ou eu faço história com o risco de não ter dinheiro?”. E eu lembro que os meus pais falaram: “Você não tem que se preocupar com dinheiro, você tem que fazer o que você quiser, que dinheiro a gente corre atrás. Faz o que você quiser”, mas eu me cobrava muito pelo privilégio que eu tinha tido na minha formação, de ter sido bolsista, então eu não escolhi nesse momento fazer História, que era minha opção nesse momento, mas geografia [também] não tinha sido. Aí eu me dei conta, na verdade, trabalhando com sustentabilidade, vendo temas que eu tinha sentindo falta na minha formação, eu prestei geografia na USP, super descompromissada, sem a pressão dos dezessete anos, e eu passei e fiquei muito feliz! Nossa, para mim passar na USP era uma conquista muito importante, tudo que eu tinha ficado frustrada mais nova… Eu fiquei muito feliz! E agora estou terminando de fazer Geografia na USP, bastante feliz de ter feito esse segundo curso, puxado, fazer uma segunda graduação, mas bastante feliz.

P/1 - Tem algum momento marcante que você lembra da faculdade?
R - Acho que não é da faculdade, mas eu acho que foi uma conquista importante quando eu era estagiária, que eu sempre tive muita dificuldade de falar inglês, e sempre estudei muito, tentei, mas eu tenho dificuldades. E aí eu fiz um intercâmbio para São Francisco, quando estava na faculdade, para tentar acelerar o meu em inglês. Então eu fiquei dois anos me organizando para conseguir fazer um intercâmbio, eu financiei em 24 vezes esse intercâmbio, numa financiadora mesmo, para conseguir fazer o intercâmbio. E eu acho que foi uma experiência importante para mim, de ter viajado sozinha, de ter ficado um mês e meio em São Francisco. Foi importante pro inglês, mas eu acho que foi importante para eu ter uma experiência sozinha, conhecer pessoas de outro país, entender que o inglês era uma ferramenta para eu me comunicar com mais pessoas e aprender mais sobre a cultura dessas pessoas, então também dá um sentido e um significado a isso. E acho que foi uma conquista e um marco importante para mim, ter ficado um mês e meio sozinha fora do país, ter bancado isso, ter conseguido isso, mas, principalmente, ter conhecido pessoas de culturas diferentes das minhas. Então, eu conheci a Carola que era italiana, a Carmem que era espanhola. Acho que eu tive muito boas companhias durante esse intercâmbio. Fiquei hospedada na casa de uma senhora que era aposentada, que me deu muito carinho também, nesse período, então eu tenho muito carinho por ela. Fiz amigas do Japão, da China, fiz amigos de muitos lugares. Então acho que foi uma experiência, do ponto de vista cultural e do ponto de vista de autonomia, independência, que foi uma conquista importante desse período.

P/1 - Quando você trabalhou no banco, foi o seu primeiro emprego ou você trabalhou em algum lugar antes?
R - Antes, eu tinha trabalhado numa editora de revistas, revisando textos e produzindo textos. Era uma editora de revistas populares, dessas pequenininhas, fininhas. Era de tudo: livro de receita, signo, revista de simpatia para o ano novo, revista de Kama Sutra, enfim, escrevi sobre todos os temas possíveis. E era muita produção e revisão de conteúdo, então no meu primeiro ano de faculdade eu trabalhei com isso. E sempre dei aula de particular de história e geografia, logo que tinha saído da escola, para alunos de ensino médio também.

P/1 - Como você entrou na área de sustentabilidade mesmo?
R - O primeiro estágio que eu consegui no banco, que era nessa área de projetos sociais, já fazia parte da área de sustentabilidade, então eu sempre soube que eu queria trabalhar com isso, e acreditava muito nessa ideia do movimento sustentável, muito influenciada por essa viagem que a gente fez em Cananéia, que a gente visitou uma reserva extrativista, a gente visitou quilombos, a gente visitou cooperativas. E, para mim, o que ficou mais latente dessa viagem era o fato da região com maior biodiversidade, ter o pior IDH, do ponto de vista de desigualdade. Então eu acho que isso é uma coisa que chamou muito minha atenção, no Vale do Ribeira como um todo, e que eu fui levando isso comigo. Eu acabei entrando nesse estágio por conta da minha militância dos Direitos da Criança e do Adolescente, mas foi esse estágio que abriu a porta para eu entrar no setor de sustentabilidade, acho que conhecer mais sobre isso. Acho que um momento importante da minha carreira foi que eu, a gente teve um projeto de criar [um] documentário sobre os projetos sociais que a gente apoiava, então, criar curtas contando as histórias dos projetos, e aí eu viajei [pelo] Brasil registrando sete projetos sociais do banco, aí foi onde eu tive certeza também que eu queria muito trabalhar com projetos na ponta, ouvindo as pessoas, e acho que principalmente conectando os saberes das pessoas. Então, eu fiz muitas viagens, eu conheci muitos projetos legais, mas um dos projetos que mais me marcou foi na Ilha das Onças, no Pará, que era um projeto de uma universidade em parceria com a comunidade. Então, um dos projetos que a gente trabalhava, que era o Unisol, financiava projetos de extensão da universidade em parceria com a comunidade. E um dos projetos que a gente apoiou, foi com a universidade rural da Amazônia, a UFRA, que eles ajudaram a população dessa Ilha, [em que] eles viviam do cultivo da produção da venda de açaí, e eles passaram a ter a produção escassa, por uma série de motivos. E aí a universidade ajudou essa comunidade a entender esses motivos, do porquê que a produção estava baixa, e em um desses motivos era o fato de ter poucos agentes polinizadores na ilha, talvez mataram as abelhas, ou as abelhas não conseguiram chegar até a ilha. E aí a universidade fez um trabalho de introduzir abelhas sem ferrão nas casas, nas comunidades, ensinou as mulheres a cuidarem das colmeias e das abelhas, a produzirem mel. A partir disso, isso trouxe muitas abelhas para Ilha, e ajudou na polinização, não só do açaí, mas também de outros frutos. Então todo trabalho que a universidade fez de inserção de abelha sem ferrão nessa Ilha, contribuiu para melhor produtividade, melhor produção de açaí e melhorou muito as condições de renda dessa comunidade, contribuiu para o empoderamento das mulheres, não só a partir do cultivo e da venda do mel, mas a partir do artesanato feito com a semente do açaí e os galhos de açaí. E além do empoderamento e da questão de renda, a universidade implantou cisternas de água nas casas dessas comunidades ribeirinhas, que tinha um alto índice de mortalidade, principalmente por cozinhar com a água do rio e não ter acesso a água limpa. E a universidade implantou cisternas de captação de água de chuva, ensinou o tratamento dessa água para a comunidade. Semanalmente, a universidade fazia um controle de contaminação da água, de qualidade da água, e isso zerou a mortalidade na ilha, isso trouxe bem-estar para essas comunidades, respeitando o modo de vida dessas comunidades, para mim foi muito importante. E acho que essa viagem é um marco para mim, acho que a Amazônia transforma as pessoas, estar na Amazônia por si só já transforma as pessoas, a experiência de ficar uma semana e meia lá sem energia elétrica, vivendo com essa comunidade e aprendendo com essa comunidade, eu acho que [me] fez ter certeza que eu queria trabalhar com território, acho que é por isso que eu fui fazer geografia também. Eu quero entender sobre esses territórios, eu quero entender sobre a história desses territórios. E acho que essa relação das pessoas com o território e essa relação das pessoas com a terra, foi o que me encantou em todos esses projetos, seja em Cananéia quando eu tinha quinze anos, seja no MST quando eu tinha dezessete, seja nessa experiência que eu tive nesse projeto na Amazônia. Isso fez eu me aproximar cada vez mais desse olhar de biodiversidade e esse olhar de riqueza e conhecimento e saberes dos territórios e das populações locais. Pensando bem, acho que esse foi o grande motivo de ter escolhido estudar geografia e entender mais sobre as geografias do Brasil.

P/1 - Você ajudou a introduzir essa parte da preocupação [com] a biodiversidade no Mercado Livre?
R - Sim! O projeto que a gente tem hoje, que é de fortalecimento, na verdade, é de fortalecimento, mas principalmente de apoiar o acesso ao mercado de produtos da biodiversidade, é um projeto que eu criei do zero. É uma criação minha, mas muito em parceria com organizações que já vem atuando nisso. Em 2018, 2019, entre 2018 e 2019, eu fui convidada para um encontro em Manaus com algumas organizações, lideranças e empreendimentos locais, para ouvir sobre [os] desafios de comercialização e logística na Amazônia. E nessa época eu virei para minha chefe, que é Argentina, e falei: “Olha, não dá para estar no Brasil e não olhar para a Amazônia. Eu estou indo nesse encontro e volto com uma proposta.” Foi isso que eu falei: “Estou indo para entender mais e volto com uma proposta”. E aí, nesse encontro, apareceu muito que muitos dos empreendimentos que estavam gerando renda para as comunidades e que contribuem para manter a floresta em pé, tinham um desafio muito grande de comercialização para vender os seus produtos e encontrar canais, e como vender esses produtos e desafios logísticos também, para isso, porque quando tinha demanda, essa demanda estava principalmente na região sudeste. Coincidentemente, eu estou trabalhando no Mercado Livre, estava trabalhando no Mercado Livre, que é uma plataforma de comercialização online e é uma plataforma de logística. Então eu achei que fazia muito sentido colocar a plataforma do Mercado Livre a serviço desses empreendimentos. Então eu pilotei em 2019… A chegada da pandemia também fez com que o comércio online fosse muitas vezes a única fonte de receita para esses empreendimentos. Então, em 2019, a gente pilotou com quinze empreendimentos, eu capacitei esses empreendimentos sobre como vender no Mercado Livre, eu fiz todas as mentorias sozinha. Então, a gente nem tinha recurso, nem era um programa formal do Mercado Livre nesse momento. Foram mais de quarenta horas de mentoria para ajudar esses empreendimentos a publicarem os produtos no Mercado Livre. E aí a gente fez no dia da Amazônia uma campanha para promover os produtos desses empreendimentos, foi muito bacana o resultado, principalmente de geração de renda. E aí, a partir desse piloto, a gente desenhou um programa, que é o “Empreender com Impacto + Biomas”. E aí a gente criou uma metodologia de fato, para apoiar a digitalização, a entrada de negócios da biodiversidade na plataforma do Mercado Livre. Então a gente criou uma metodologia, primeiro sobre como ter uma boa estratégia comercial, uma parceria com muitas organizações no Mercado Livre, depois a gente traduziu essa metodologia para os empreendimentos da biodiversidade. Então a gente construiu uma metodologia específica para esses empreendimentos. E aí no ano passado a gente capacitou oitenta empreendimentos no Brasil e criou uma sessão de biomas, exclusiva, dentro da plataforma do Mercado Livre. Esse ano, a gente está capacitando mais trinta negócios no Brasil e mais 24 organizações no México e na Argentina, a gente está levando esse programa para outros países que o Mercado Livre atua também, sempre na linha de poder contribuir para esses produtos acessarem o mercado. E para o Mercado Livre, os comércios eletrônicos [deve] ser uma solução para reduzir distâncias geográficas, para reduzir barreiras, para reduzir também [as] distâncias socioeconômicas e contribuir para a geração de renda nesses territórios, porque a gente entende que muito dos desmatamentos e das atividades ilegais que se expandem nesse território, tem a ver com o fato dessas populações não conseguirem obter renda das atividades sustentáveis que eles já fazem. Então a ideia é que eles possam obter renda e possam se manter no território, manter protegendo esse território e levar também esses sabores, esses saberes para outras pessoas do Brasil, porque muitas pessoas não conhecem o Brasil. Já dizia Elis Regina, que o Brasil não conhece o Brasil. E acho que é um pouco uma oportunidade também de pessoas de outros lugares conhecerem produtos do Cerrado, da Mata Atlântica e da Amazônia.

P/1 - Tem alguma história interessante de algum produtor que mudou de vida depois que começou a ter essa captação do Mercado Livre e vender os produtos online?
R - Eu acho que seria muito pretensioso da minha parte dizer que a gente já teve um impacto de mudar a vida da pessoa assim, acho que é um programa recente também. Acho que a gente tem muitos relatos de empreendimentos que, por exemplo, na pandemia, o Mercado Livre representou setenta por cento da receita, que mostra de fato que o Mercado Livre foi um canal [de] comercialização relevante para geração de renda nesse território. O Instituto Peabiru, por exemplo, comercializa mel de abelha sem ferrão; no ano da pandemia tinha setenta por cento das vendas online, a maior parte delas pelo Mercado Livre. A Manioca é um empreendimento também que produz e inova com geleias, molhos a partir de ingredientes da Amazônia e tem essa missão de levar os sabores da Amazônia, e cresceu muito dentro do Mercado Livre. Então o Mercado Livre representa uma parte da receita e muito do crescimento da Manioca nos últimos tempos. E a gente tem outras histórias, então, a Central do Cerrado, por exemplo, que hoje tem um faturamento legal, e que está apoiando várias cooperativas. A gente então tem muitos relatos acho que de empreendimentos cada vez mais comercializando pelo Mercado Livre, acho que dos oitenta empreendimentos que a gente capacitou no ano passado, se eu não me engano, 25% nunca tinha feito uma venda online. Então esse programa possibilitou já o acesso ao mercado desses empreendimentos, que já é o impacto quando a gente olha. Acho que tem isso, tem muita gente que entrou na venda online a partir desse programa. Hoje, o Mercado Livre representa um percentual importante da receita desses empreendimentos. E acho que a gente tem relatos muito bacanas desses empreendimentos.

P/1 - E como é que são essas capacitações?
R - Essas capacitações, elas tem apoio de uma consultoria, que [se] chama Geraldo Vieira, de projetos, que é uma consultoria bastante focada também em negócios comunitários, em negócios no território. E o que a gente fez foi pegar conteúdos do Mercado Livre, sobre como vender no Mercado Livre, e traduzir esses conteúdos, e trazer conteúdo que seja relevante, não só para vendas no Mercado Livre, mas para vendas em outros canais. Então a gente tá falando sobre como criar um storytelling pro seu produto, como contar a história do seu produto. A gente fez parceria com agência que chama Libras, que é uma agência na Amazônia e Universidades na Amazônia, para refazer embalagens e rótulos dos produtos e poder contar essas histórias e ter embalagens que sejam mais atrativas do ponto de vista comercial. Então a gente fez um trabalho, tanto de como vender no Mercado Livre, como ter uma estratégia comercial integrada. Então, como você está presente no Mercado Livre, mas também está presente em feiras, eventos e gera experiências diferentes, de acordo com o canal que você está vendendo. Como fazer análise de dados, análise de mérito e entender performance, como isso pode te ajudar a ter decisões baseadas em dados quando você olha para a gestão desse negócio. A questão do rótulo da embalagem, então ela está muito focada mesmo em como apoiar esses empreendimentos a comercializarem os produtos no Mercado Livre. E assim, claro, que a gente tem histórias de empreendimentos que cresceram na plataforma, então que começaram a vender online, mas as histórias dos empreendimentos em si, acho que é por isso que é tão legal esse projeto. As histórias dos empreendimentos em si, são histórias muito legais, porque elas têm sabores da biodiversidade, mas ela também tem esse impacto social e ela tem essas histórias. Então, tem um empreendimento, por exemplo, que faz um praliné de cacau, que é produzido enquanto as mulheres rezam Ave Maria. A gente brinca: “Putz, esse praliné de cacau é uma benção”, porque a gente está sempre se conectando de certa forma com esses saberes locais. E essas são as histórias que a gente quer que eles contenham, para além do produto, para além dos benefícios para [a] saúde. Então a gente quer também que eles contenham a histórias dos modos de vida desses territórios.

P/1 - E dentro do seu trabalho, tem alguma coisa assim, que você queira… Um objetivo muito forte que você queira realizar ainda dentro dele? Nesse sentido da sustentabilidade, dos biomas?
R - Eu acho… Que difícil essa pergunta. Deixa eu pensar para responder… Eu acho que é muito importante que… Eu acho que um desafio que eu tenho dentro do Mercado Livre, mas acho que eu quero levar para minha carreira também e quero sempre tentar trazer esse olhar, é a gente ter um… Vou começar de novo essa resposta. Eu acho que a gente tem uma oportunidade de olhar para as questões ambientais e para o enfrentamento das mudanças climáticas, olhando para as pessoas e para as questões sociais, para o lado social dessa gente. Então eu acho que a gente tem um desafio, não só no Mercado Livre, mas como sociedade, que é entender que as mudanças climáticas e a preservação da biodiversidade, e a preservação dos ecossistemas, são questões ambientais, mas são questões sociais, são questões que impactam a vida das pessoas. Então eu acho que a gente tem um grande desafio, que é de olhar com olhar para as pessoas que estão nos territórios, para além da preservação. Claro que a preservação ambiental é muito importante, mas é importante a gente ter esse olhar do impacto na vida das pessoas. A gente tem outro projeto aqui no Mercado Livre, que é um projeto para apoiar iniciativas de regeneração. Então, quando a gente está investindo na Serra da Mantiqueira para apoiar a regeneração da Mata Atlântica, a gente está contribuindo, por exemplo, para segurança hídrica da região sudeste de São Paulo, né, porque preservar a biodiversidade já é contribuir para preservar ecossistemas como água, como ar puro, como outros serviços que hoje mantém a nossa vida. Então acho que nosso desafio é como a gente olha para a proteção da biodiversidade e para o enfrentamento das mudanças climáticas com o olhar social, com o olhar do quanto isso impacta nossa vida como sociedade, com o olhar de que pensando na questão do racismo ambiental, inclusive, na necessidade e no tema da justiça climática, as pessoas mais impactadas com as mudanças climáticas são justamente as pessoas que hoje estão mais vulnerabilizadas. Como que a gente consegue ter um olhar, de fato, para a gente gerar renda e apoiar que a nossa sociedade seja mais resiliente e consiga se adaptar às mudanças climáticas? Gerando esse valor compartilhado de gerar renda, de valorizar os saberes locais e de, principalmente, gerar aprendizado. Eu acho que é muito importante que essa conexão com os produtos da biodiversidade, por exemplo, gerem conhecimentos, aprendizados e descobrimento desses novos sabores e desses novos modos de vida que preservam a natureza e que a gente precisa preservar. Então, eu não fui muito clara na minha resposta, mas acho que o resumo é: eu quero cada vez mais introduzir indicadores sociais e o olhar de geração de renda na agenda de preservação de biodiversidade, porque a gente precisa entender que essa é uma agenda que passa pelas pessoas e que a Amazônia, por exemplo, não é um vazio demográfico, a Amazônia tem milhares de pessoas com muitos saberes, muito conhecimento, que pode contribuir, não só para preservação das florestas, mas, inclusive, para todo país ter um outro olhar pro desenvolvimento. Então, acho que o nosso desafio é expandir para América Latina, para que a gente possa conectar mais desses produtos com as pessoas, mas, principalmente, mais dessas histórias e desses territórios, com as pessoas, e a gente ter cada vez mais iniciativas sociais ligadas à biodiversidade.

P/1 - Você, pessoalmente, comentou das tradições… Isso também te atraiu? Porque os pequenos produtores, geralmente, são de uma região e eles aprenderam com alguém [que veio] antes deles a fazerem aquilo. Você acha que isso também te atraiu?
R - Com certeza! Porque eu acho que a minha conexão com a ancestralidade, com a tradição e com a sabedoria de quem veio antes de mim, que passa pela minha família e passa também, acho pela minha valorização, pelas populações tradicionais e por esses modos de vida, são bastante conectadas. Porque eu acho que no fim do dia eu quero muito contribuir para a valorização da cultura popular e dessa sabedoria ancestral. Eu acredito muito que o futuro é ancestral e que pra gente superar muitos desafios que a gente tem hoje em relação à crise climática, em relação a desigualdade social, em relação a segurança alimentar, passa por resgatar esses saberes ancestrais de populações que têm modos de vidas que são mais equilibrados, que preservam, que contribuem para preservação da biodiversidade, que contribuem para agenda climática. Então eu valorizo e enalteço os conhecimentos tradicionais dentro da minha casa e dentro da cultura brasileira, porque eu acredito que eles trazem muito dos caminhos que a gente deveria percorrer quando a gente olha para o futuro, eu acho que se a gente olhar pro que a gente tem de bom para trás, a gente tem muitas ferramentas e muitos aprendizados que ajudariam a gente a construir um futuro melhor, um futuro mais inclusivo, menos desigual, que eu acho que de certa forma é um pouco meu propósito.

P/1 - A sua atividade é relativamente nova, né? Mas, ainda assim, ela mudou bastante desde que você começou até agora?
R - Eu acho que o setor de sustentabilidade como um todo mudou bastante, acho que a gente se acelerou muito nos últimos anos. Dentro das empresas, ela está cada vez mais conectada com os negócios, então eu acho que as empresas estão entendendo como que o meu negócio, para além de apoiar projetos, como que o meu negócio pode contribuir de alguma forma, e acho que é isso que o Mercado Livre está tentando fazer, quando coloca suas ferramentas à disposição desses empreendedores. Então eu acho que o mercado tá olhando cada vez mais para o tema, o que não necessariamente é bom, acho que é uma tendência, mas acho que as empresas têm ativos que podem ser colocados à disposição desse tema, então eu acho que essa é uma tendência. E o que eu acho que mudou e que quando…. E aí pode ser da minha trajetória, que antes da minha conexão com essa agenda… A agenda de sustentabilidade, ela era uma, no início, agenda muito formal, uma agenda muito burocrática, então, uma agenda muito conceitual, muito de compromissos e diretrizes conceituais, de como as coisas deveriam ser. E eu acho que cada vez mais a gente tem experiências práticas que estão gerando impacto positivo. Acho que hoje, a principal mudança que eu vejo, é que eu vejo muitos casos de sustentabilidade na prática mesmo. Então, iniciativas que estão de fato gerando impacto e estão conseguindo tirar do papel. Eu sou crítica um pouco, ao setor de sustentabilidade que gera muitos papers, e muitos eventos, e muitos compromissos no papel, mas que não tá olhando esse para prática, e que não tá olhando para quem são de fato os sujeitos que podem construir e liderar isso. Eu acredito muito que as comunidades tradicionais podem e devem liderar o olhar, por exemplo, do Brasil, para a biodiversidade, porque eles já estão fazendo isso há centenas de anos. Então acho que a gente… Acho que tem uma mudança que é a gente [ter] cada vez mais ter iniciativas mais práticas e menos burocráticas, mas a gente ainda tem um desafio de colocar os sujeitos que deveriam ser, estar no centro e no protagonismo dessas discussões, para liderar esses debates.

P/1 - Você tem algum hobby, alguma coisa que você gosta de fazer?
R - Eu gosto muito de cozinhar, de escrever e de viajar, muito. Eu acho que viajar, para além do lazer, para além disso, para mim sempre é uma possibilidade de conhecer novos lugares e de conhecer a vida das pessoas. Eu acho que eu sou muito… Estou procurando uma palavra para dizer isso... Eu sou muito fascinada pelas sutilezas do cotidiano. Por exemplo, eu gosto muito de escrever, mas, geralmente, eu escrevo crônicas muito conectadas com os cotidianos. Quando eu viajo, dificilmente eu vou buscar opções turísticas, eu vou buscar viver o cotidiano das pessoas que estão nesse lugar. Tô tentando lembrar uma palavra que eu não consegui lembrar, que era tipo sutileza… É isso, eu gosto muito de olhar para o cotidiano e entender o que está acontecendo. Acho que é isso, cozinhar, escrever e viajar são coisas que eu gosto muito. E eu gosto muito de receber as pessoas, de promover encontros. Então, eu gosto muito de reunir a minha família, de reunir os meus amigos. Amanhã, aqui na minha casa, a gente vai fazer uma festa junina para todos os meus amigos. Muito replicando acho que tradições da minha família, então eu gosto muito de promover encontros e receber as pessoas e receber bem as pessoas e alimentar bem as pessoas, e eu acho que que nutrir vínculos mesmo.

P/1 - Você costuma sempre festejar festa junina?
R - É uma festa que eu gosto muito. A gente, na minha família, sempre tenta fazer alguma coisinha, não é mais grande como era. Eu morava em apartamento antes, é a primeira vez que estou morando em casa, então é a primeira vez que eu vou poder fazer uma festa junina na minha casa, então eu estou feliz disso. Mas, o tio do quentão deixou a receita com a minha irmã mais velha e a minha irmã mais velha passou a receita do quentão, então amanhã eu vou tentar colocar a receita em prática.

P/1 - Tem alguma viagem que marcou a sua vida que você gostaria de comentar?
R - Olha, eu acho que as duas vezes que eu estive na Amazônia, foram duas viagens muito importantes para mim, para entender que a floresta tem outro tempo. Então eu acho que isso é muito importante, desde o fato de você ir para uma rede às seis da tarde, porque não tem mais luz, ou até a forma que o tempo passa mesmo. Então eu acho que as duas viagens que eu fui para Amazônia, foram duas viagens que me marcaram muito, porque eu aprendi muito com as pessoas, eu troquei muito com as pessoas, conheci muitos sabores que eu não conhecia, ouvi muitas histórias e acho que é isso, acho que eu senti outro tempo. Poder conhecer o tempo da Floresta foi uma coisa que foi bastante transformadora para mim. Mas eu acho que eu tenho outras viagens. Fiz uma viagem recentemente para Bahia, foi uma viagem que me marcou bastante também, eu fui para muitos lugares, mas em Salvador eu fui para lugares que eu não conhecia, conheci, por exemplo, o Acervo da Laje, que é um museu na periferia de Salvador, que é um museu feito por moradores com objetos e obras feitas por artistas locais, e que tem desde pedaços de barco, até azulejos pintados. É um museu que tem um olhar muito menos erudito e muito mais de contar histórias daquele território. Então eu conheci experiências muito bacanas nessa viagem para Bahia, de boas histórias e sendo contadas de jeitos muito bacanas. Eu fui também…. Um dos projetos que eu fui filmar, que eu comentei anteriormente, que foi no Rio Grande do Norte, eu fiquei, enfim, numa cidade que é uma cidade muito pequena, que tem uma praça, e para mim foi uma viagem muito interessante, de entender como a vida dessas pessoas era diferente da minha vida. Era uma cidade muito pequena mesmo [e] ter ficado lá alguns dias, foi uma viagem que fez eu pensar bastante sobre muitas coisas. E também tem uma última viagem que eu fiz recentemente, que foi para visitar um dos projetos de regeneração no Pontal do Paranapanema, que é no estado de São Paulo, que a gente tem o projeto lá de plantio, de um corredor biológico de mudas nativas, conectando remanescentes de Mata Atlântica. E aí eu participei de um plantio simbólico desse corredor, então plantei algumas mudas nesse corredor. E aí a gente visitou um corredor que foi plantado há dez anos atrás e que hoje já é floresta. Então acho que poder participar do plantio e entender que daqui dez anos já vai estar daquela forma e poder imaginar que com cinquenta anos a gente pode ter remanejado uma floresta, foi uma experiência, para mim, acho que é muito marcante, assim, mas muito… Uma experiência de muita sabedoria também, de entender de fato que a gente está fazendo hoje vai reverberar e gerar frutos no futuro, e que, por isso, a gente tem que fazer, porque em dez anos vai estar daquele jeito, em cinquenta anos vai estar muito melhor. Eu voltei para casa com a certeza de que a gente precisa de fato atuar hoje, fazer as coisas hoje e que o legado é muito maior quando a gente olhar para trás.

P/1 - O que é mais importante para você hoje?
R - Hoje, a coisa mais importante para mim é a minha família. Eu acho que hoje a minha família é, ainda é, e sempre vai ser um lugar onde eu encontro… Acho que encontro afeto, proteção, troca, muito dos valores que me fortalecem para atuar em prol do que eu acredito. Então eu acho que hoje a minha família, para além do afeto, para além do quanto a gente se nutre do ponto de vista afetivo, eu acho que hoje é quem também me traz embasamento para defender o que acredito, e acho que de fato acreditar num mundo melhor. Então é muito importante para mim voltar na minha família para eu sempre ter força, e eu acho que eu [vou] me nutrir para defender o que eu acredito. Acho que hoje, a minha família é o que é mais importante para mim, inclusive, poder trabalhar e poder retribuir para minha família muito do que eu recebi, acho que do ponto de vista de afeto, do ponto de vista também de acesso a oportunidade e bem-estar. E acho que para mim é muito importante o encontro com as pessoas, com as culturas, eu acho que é muito importante se conectar com conhecimento e aprender mais sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre a gente mesmo. Acho que o conhecimento para mim é muito importante, acho que conhecimento é uma ferramenta muito potente de transformação da nossa sociedade, das pessoas. Eu acho que não por acaso, muitas das experiências que eu trouxe tem a ver com projetos que me trouxeram mais conhecimento sobre a realidade. Eu acredito muito no conhecimento popular e científico para construir soluções, para construir caminhos. E eu acho que o conhecimento mudou, é o que eu comentei, eu acho que o conhecimento mudou a história da minha família, acho que o acesso ao conhecimento foi um marco e uma ruptura para minha família e acho que talvez por isso que valorize tanto a questão do conhecimento e essa busca por conhecimento. E acho que, para mim, o conhecimento é uma coisa muito importante de se buscar, de se trocar, de se construir e de se valorizar. Acho que é muito dessa minha agenda de valorização da cultura e do conhecimento popular é porque eu acho que a gente precisa muito valorizar o conhecimento e acho que deixar o conhecimento ocupar esse lugar de conexão, de troca, de contribuição e de olhar para o futuro.

P/1 - E qual que é o seu maior sonho hoje?
R - Acho que meu maior sonho é criar filhos num país mais justo, menos racista, mais feminista e com acesso a direitos garantidos. O meu marido é negro, os meus filhos serão negros e acho que isso acentua a minha preocupação com o racismo, eu acho que por isso eu faço questão de enfatizar isso. Mas acho que é isso, meu maior sonho é poder criar filhos num país, principalmente, que seja mais justo, menos racista e que valorize tantas coisas boas que o Brasil tem e que eu tive o privilégio de profissionalmente poder, talvez, ter viajado mais, ter conhecido e saber o quanto o Brasil pode ser e é um país incrível.

P/1 - E qual que você acha que vai ser o seu legado para as próximas gerações?
R - Ai que difícil! Eu acredito muito que o legado é coletivo, que o legado não é individual. Então eu acho, eu espero, que as próximas gerações olhem para essa geração que está olhando para a sustentabilidade, que está tentando conciliar esse olhar de geração de renda, com a preservação da natureza, como o começo de um caminho que eles possam seguir. Eu espero que as próximas gerações olhem para todos os esforços que a gente tem feito, para os nossos erros e acertos e possam aprender com os nossos erros e dar continuidade com os acertos dessa agenda para que eles possam levar essa agenda cada vez mais para frente.

P/1 - Tem alguma coisa que eu não perguntei que você gostaria de acrescentar?
R - Eu acho que não.

P/1 - O que você achou de contar um pouco da sua história para a gente?
R - Eu estou com um mix de sentimentos, porque eu admiro muito o trabalho do museu desde sempre, sou uma fã do museu, justamente por contar essas histórias que eu viajo procurando, que eu trabalho procurando. Mas contando a minha história, eu não achei que a minha história é relevante, sabe? Essa sensação que eu tive. Mas é curioso isso, eu acho que é porque eu gosto de conhecer a história das pessoas, então eu acho que esse lugar de falar da própria história não é um lugar confortável para mim talvez. Eu acho que eu fiquei pensando muito isso, talvez a minha história não seja relevante. E que eu acho que eu preciso registrar mais, porque acho que eu esqueci muitas histórias [e] eu sou a pessoa que mais fala isso para minha família: "A gente precisa registrar, a gente precisa registrar." Por exemplo, eu fiz um vídeo com meu pai uma vez contando histórias, para registrar. E acho que quando me perguntou aqui, eu não lembrava, e aí eu acho que eu vou sair daqui lembrando de registrar, porque se eu já estou esquecendo, eu que estou nova. E que se eu tenho esse compromisso que as histórias não sejam esquecidas, acho que um pouco da importância de registrar. Acho que assim, independente disso, fazendo a entrevista, eu pensei: "Putz, como é importante registrar e ter esse registro, porque talvez eu tenha falado aqui coisas que eu não tivesse até hoje falado." Mas eu achei muito terapêutico, refleti muito sobre muitas coisas. Eu acho que me fizeram perguntas que talvez nunca tinham feito. Mas é isso, eu valorizo o cotidiano, a história das pessoas, então poder compartilhar a minha história é também fazer parte desse momento das pessoas contarem mais as suas histórias, das pessoas registrarem mais a suas histórias, então eu fico feliz porque acredito muito no poder do registro dessas histórias. E acho que também saio querendo registrar mais, para que essas histórias fiquem guardadas. E acho que estou feliz de estar apoiando esse projeto também, porque se eu falei aqui o tanto que eu acho importante guardar histórias, quanto eu estou sentindo que preciso guardar, que bom que a gente tá apoiando um projeto que está ajudando a guardar as histórias das pessoas. É isso.

P1 - Laura, a sua história é relevante sim, acho que é porque você está vendo de uma perspectiva de dentro, mas de fora sua história é muito legal. Foi incrível! E a gente agradece, em meu nome e no nome do Museu da Pessoa pela sua entrevista.
R - Obrigada, Grazi!