Museu da Pessoa

Na luta pelos Xavantes

autoria: Museu da Pessoa personagem: Rosa Jandira Gauditano

Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Rosa Jandira Gauditano
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo 21/10/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_21
Transcrito por Ana Carolina Ruiz

P/1 – Primeiro, Rosa, fala pra gente o seu nome completo, data e o local de nascimento.

R – Meu nome é Rosa Jandira Gauditano. Eu nasci em São Paulo, capital, em 3 de abril de 1955.

P/1 – Você sabe qual que é a origem da sua família? Da onde vieram seus antepassados.

R – O meu pai é italiano da região de Nápoles, de Castelo di Cisterna. Ele era camponês. E a minha mãe é daqui de São Paulo assim de família daqui, paulistana mesmo.

P/1 – E o seu pai você sabe por que ele veio pro Brasil? Ele te contou essa história?

R – A minha mãe foi viajar na Europa e conheceu o meu pai em Veneza e eles se apaixonaram. Aí eles ficaram se correspondendo e depois de um ano ele veio pro Brasil casar com a minha mãe.

P/1 – Ele veio por causa dela então?

R – Veio por causa dela.

P/1 – E lá ele era camponês, quando ele veio pra cá ele foi fazer o quê?

R – Ele era de origem camponesa, mas lá ele era bersagliere, ele trabalhava como bersagliere que é um tipo de uma polícia especial. Ele veio pra cá e ele trabalhou na época com... A vida inteira ele trabalhou com xerox, fazendo xerox. Antigamente xerox era igual fotografia, né? Você fazia no quarto escuro e tal. E depois quando saíram as máquinas de xerox, ele alugava essas máquinas e ele a vida inteira ganhou dinheiro com isso.

P/1 – Eles te contaram como é que eles se conheceram em Veneza?

R – Eles se conheceram na Piazza di San Marco em Veneza. Ela passeando e ele trabalhando e eles se conheceram. Ela ficou lá uns dias, eu acho, e eles se apaixonaram.

P/1 – Você ia pra Itália pequena assim?

R – Não.

P/1 – Não.

R – Eu só fui pra Itália depois de grande. Toda a família do meu pai mora na Itália, né? Eu tinha então avó, meu nome é o nome da minha avó, minha avó chamava Rosa. Eu só fui depois que a minha avó morreu, depois de muitos anos.

P/1 – E você tinha contato com eles, com os seus avós italianos?

R – Não. A gente não tinha contato nenhum. Eu escrevia naquela época, não tinha nem telefone direito. Eles se falavam por carta, mandavam fotos, ele mandava fotos da gente, eles mandavam fotos deles. Eles eram pessoas muito simples e se correspondiam assim só por carta de vez em quando, era raro também, não era sempre que se escrevia assim.

P/1 – E a família da sua mãe você sabe qual é a origem?

R – A família da minha mãe veio eu acho que da parte de pai do interior de Laranjal no Sergipe. E a da minha avó, acho que era daqui de São Paulo mesmo, acho que descendência de portugueses.

P/1 – Bem antiga assim, você não sabe...

R – Bem antigos e talvez de índios tupinambá porque o meu bisavô tinha tupinambá no nome. Também de negros, porque ele tinha cabelo crespinho, né? É uma mistura, negro, branco, índio, português.

P/1 – Qual que era o nome dele? Você falou que ele tinha tupinambá no nome, é isso?

R – É. Tinha tupinambá.

P/1 – Qual que era o nome?

R – Fabrício Tupinambá Vampré era um dos avós. Eu lembro que eles tinham até... E depois eles mudaram o nome. Não. Era Campos Pereira, a minha vó era Campos Pereira e eu acho que o avô era tupinambá. Não lembro direito, eu sei que tinha Tupinambá e Campos Pereira e depois eles mudaram pra Vampré. Tiraram o Tupinambá e colocaram Vampré que era sobrenome francês, que era nome... Acho que eles mudavam o nome daquela época. Acho que tinha vergonha de ser índio tupinambá e achava bonito ser francês, sei lá (riso).

P/1 – É possível mesmo.

R – É. Era moda parece que você ter um sobrenome francês. Eu acho que foi por isso que eles mudaram. Eu não sei, não sei direito.

P/1 – Tá certo. Então vamos conversar essa história toda da sua aproximação com o trabalho com os índios, tudo isso você já tem registrado, né?

R – Tenho.

P/1 – Como é que você começou a trabalhar, qual que foi o seu interesse, como surgiu o interesse. Tudo isso tem na outra entrevista.

R – Eu acho que sim porque eu falei do meu trabalho lá.

P/1 – Tá. Então eu queria que você falasse pra gente mais especificamente desse projeto que gerou essa publicação Nossa Tribo, como é que surgiu a ideia, como é que foi viabilizado, como é que foi a experiência.

R – Eu fiz contato com os Xavantes em 91. Eu fui lá fazer uma matéria pra revista Terra que na época era Editora Azul, que não existe mais, e eu fui fazer uma matéria sobre uma visita de jovens alemãs de uma ONG do norte da Alemanha que ajudavam os xavantes de Pimentel Barbosa e eles vieram de férias pro Brasil pra conhecer esses índios. Aí eu soube dessa história através duma ONG e eu pedi pra poder acompanhar esse povo pra fazer uma matéria. Eu trabalhava já na Fotograma que é uma agência que eu fundei e a gente fazia pautas e aí eu fiz essa pauta e vendi essa pauta pra essa revista e fui fazer uma matéria nessa aldeia de Pimentel Barbosa no Mato Grosso. Então foi o primeiro contato que eu tive com os Xavantes. Aí a matéria resultou capa da revista, foi cartaz de banco, os Xavantes ficaram superfelizes com o meu material e aí eles vieram pra São Paulo, eu tinha feito já uma série de postais de alguns outros índios que eu tinha fotografado e eles viram, falaram: “Rosa, a gente quer que você faça esses postais pra gente também”. Eles vieram pra São Paulo e aí essa ONG que era o Núcleo de Cultura Indígena conseguiu uma verba pra fazer uma série de postais sobre os Xavantes. E aí eles vieram pra São Paulo selecionar esse material e eles falaram assim: “A gente gostaria que você fotografasse os nossos rituais”. Eu voltei pra lá e os velhos me chamaram e falaram: “Olha, a gente gostou muito do seu trabalho, nós queremos que você fotografe os nossos rituais pra fazer um livro pros brancos entenderem quem são os Xavantes. Porque a gente acredita que as pessoas só respeitam aquilo que elas conhecem e como elas não conhecem a gente elas não nos respeitam e a gente então gostaria que você fotografasse os nossos rituais”. Como eu não entendi nada de nada de índio nem de Xavante falei: “Tudo bem”. Pensei vou vir umas duas, três vezes, faço isso pra eles, não custa nada. E aí eu topei fazer, mas eu não tinha ideia onde que eu estava me metendo, porque pra fazer esse trabalho eu levei 15 anos porque os rituais xavantes eles... Depois eu fui descobrir isso, entendeu? Eles acontecem de ano em ano, de dois em dois anos, de cinco em cinco anos e tem um que é o Darini que acontece de 15 em 15 anos. E aí quando eu comecei a fotografar esses rituais eles me chamavam, eles ligavam pra mim, pro meu escritório, falavam assim: “Rosa, olha, vai ter tal coisa você tem que vir. No mês tal vai ter um ritual tal, você tem que vir de qualquer jeito”. Eu falava: “Gente, mas não dá pra eu ir.” “Não, você tem que vir”. E aí eu comecei a me organizar e comecei a ver que o negócio era muito mais amplo do que eu tava imaginando. Aí eu comecei a fazer umas pesquisas, teve um antropólogo americano que foi o primeiro que fez o contato com os Xavantes, o Maybury-Lewis, que escreveu um livro sobre os rituais. Eu consegui esse livro aí eu descobri que o negócio era gigante. Era muita coisa. E também conversando com eles eu tentei fazer um plano de trabalho praquilo tudo. Nesses anos eu fui organizando esse trabalho. Eu fiz acho que umas 30 viagens pra poder fazer esse trabalho. E assim, conforme o trabalho ia crescendo e eu ia descobrindo todo aquele mundo, que é um mundo assim que pra gente é completamente diferente, logo no começo eu pensei, eles falaram: “A gente quer fazer um livro pra escola, pra distribuir nas escolas brancas do entorno da reserva”. Aí eu falei pro Supitó que era o cacique, falei: “Supitó, vamos fazer um livro de fotografia.” “Olha, você pode fazer um livro de fotografia, mas nós queremos um livro implicando a nossa cultura”. Eu falei: “Então vamos fazer dois”. Porque fotógrafo sonha com livro de fotografia, eu falei: “Eu vou fazer um livro de fotografia e fazer um livro mais paradidático para as escolas”. Ele falou: “Tudo bem”. Aí eu fiquei trabalhando nesse projeto durante 15 anos. Quando foi o Darini em 2003, que é esse ritual que acontece de 15 em 15 anos que é o ritual mais importante que é a iniciação espiritual dos meninos xavantes, eu fui pra aldeia e esse ritual demora um mês. Então eu fui pra ficar o começo do ritual e depois eu tinha me organizado pra voltar pra São Paulo e depois voltar no final, porque ele é igual durante o mês, ele tem a iniciação que era legal de fazer imagens, depois o mês inteiro o negócio continuava mais ou menos parecido, eu tinha umas coisas pra fazer aqui, eu falei: “Eu fico, depois eu volto”. E aí quando eu fui nessa primeira vez aconteceu uma coisa que eu nunca tinha visto antes, porque sempre nessas viagens eu ficava uns 15, 20 dias na aldeia e voltava. Nunca tinha coincidido de eu ver ninguém morrer e nessa viagem coincidiu de eu ver assim, morreram duas crianças. Morreu um bebê de parto, a mãe tinha pressão alta e não quis ir pra cidade, o bebê morreu no parto e morreu uma criança de insuficiência respiratória, de dois anos. Na hora que essa criança tava passando mal, essa de dois anos, eles têm lá um postinho de saúde que, diga-se de passagem, quem montou esse postinho de saúde foram os Xavantes com o dinheiro dos alemães. O governo brasileiro nunca deu dinheiro pra nada pras aldeias de saúde Xavante. Nem Xavante, nem outros índios. Se você vai nas aldeias da região mesmo de Pimentel, depois eu descobri isso, a única que tem postinho de saúde decente era Pimentel Barbosa porque eles tinham conseguido dinheiro e eles tinham construído com o dinheiro dos alemães. Aí eu fui, tinha um dentista que ele também fazia um trabalho com os índios, ele começou a fazer o mestrado dele com os Xavantes e ele sempre ia, eu sempre o encontrava lá e ele tava acampado lá na aldeia fazendo o trabalho dele, ele me chamou, ele falou: “Rosa, você entende de primeiro socorros?” “Não tenho a mínima ideia, Rui.” “Tem uma criança passando mal lá, eles estão chamando”. Porque agente de saúde ficava 15 dias e aí deveria ter outra que ficasse no lugar dela enquanto ela tirava férias, porque são 15 dias, folga e fica outra 15 dias, só que não tinha. Aí a mulher tinha ido embora um dia antes e não tinha ninguém pra fazer primeiros socorros pra criança. Eu também não entendo nada de primeiros socorros. Aí o Rui chamou, falou: “Rosa, a criança está passando mal, vamos lá, eles estão chamando”. Aí nós chegamos lá, eu vi que a criança tava com insuficiência respiratória, que a única coisa que eu entendo é de insuficiência respiratória que a minha filha teve bronquite quando era pequena. Aí eu vi que a criança estava com dificuldade de respirar eu falei: “Gente, é o seguinte, vocês têm que pegar essa criança, leva pra cidade pro hospital porque essa criança está com problema de respiração e ela pode morrer”. Porque a minha filha tinha bronquite asmática quando era pequena e é muito grave, se a pessoa fica sem respirar ela morre. A criança tava mal e eles tinham um balãozinho de oxigênio lá, mas também não tinha muito oxigênio, aquelas coisas bem precárias. Isso era umas quatro da tarde. Bom, eles tentaram fazer essa criança ficar bem, a criança lindinha assim sentada no colo da mãe e aquela criança com aquela insuficiência e eu pensando, falei: “Rui, melhor eles levarem”. E o Rui falou: “Melhor vocês irem”. Da aldeia pra cidade são quatro horas de carro de estrada de terra então, sabe, eles acharam que a criança ia melhorar, eles não queriam levar porque as mães também têm medo de levar no hospital branco, porque as pessoas não cuidam direito. Tanto é que a outra que morreu de parto também morreu porque eles são maltratados no hospital, elas não falam português, não tem tradutor e é uma complicação pra elas irem pro hospital nosso, elas são maltratadas. As pessoas não entendem, não tem boa acomodação, não tem médico, é uma desgraça. Aí o Jamiro que era o assistente de saúde indígena ficou tentando reanimar a criança, só que lá não tinha luz elétrica e o negocinho estava funcionando com a bomba do poço de água, então só tinha luz elétrica na hora que ligava a bomba e aquele negócio acendia e tinha energia. Aí caiu a bomba, minha filha. Aí eles resolveram pegar a criança e levar pra cidade, isso era umas oito da noite. Viajaram com a criança, quando chegaram na cidade a criança morreu no caminho aí eles voltaram com o neném. Eu não fiquei sabendo de nada, eu fui dormir, no outro dia: “Gente, e aí? Tudo bem com o neném?”. Aí um olhou pro outro e falou: “Rosa...” “Gente, e aí o neném?” “Morreu”. Quando eles falaram morreu me deu assim uma... Eu falei: “Como assim morreu?” “Morreu, a gente chegou na Matinha aí ele morreu, aí a gente voltou”. Olha, eu tive assim um ataque de choro, fiquei super mal e pensei, cara, eu aqui fazendo livro de fotografia, tinha conseguido um patrocínio então tava fazendo um superlivrão legal de fotografia, com uma grana legal e de repente as pessoas morrendo em volta. Aí eu pensei, cara, sabe, o que eu estou fazendo aqui? Porque eles não reclamam, eles nunca falaram: “Olha, isso daqui é uma droga, a gente não tem assistência, as pessoas morrem”. Eu não sabia, eu não tinha muita ideia aí caiu a ficha. Aí eu terminei meu trabalho lá, voltei pra São Paulo com aquele negócio na cabeça, falei: “Gente, tenho que fazer alguma coisa com esses Xavantes”. Porque agora meu trabalho acabou, o Darini era o último ritual, eu fechei o livro, fechei uma grande exposição, era todo um projeto cultural, nós apresentamos aqui em São Paulo, fizemos divulgação, foi muito legal pra eles, fizemos a cartilha que é essa cartilha... Ah, não. Não é essa cartilha. Essa é outra. Fizemos o livro, fizemos o outro livrinho que eu não trouxe, esqueci, podia ter trazido, pra distribuir, que é Raízes do Povo Xavante, pra distribuir nas escolas. Fizemos um trabalho com as escolas, distribuímos nas escolas dos entornos como eles queriam e tudo e aí eu pensei: “Bom, e agora?”. Não queria terminar assim, larga-los lá, né? Aí eu pensei, pra fazer alguma coisa eu vou ter que fundar uma ONG, pra conseguir fazer alguma coisa nessa área de saúde, dar uma força pra eles. Eu tirei umas férias, pensei, pensei, falei: “Acho que eu vou ter que abrir uma ONG (riso). Gente, vou arranjar sarna pra me coçar, mas eu acho que eu vou ter que abrir”. Aí eu fundei a Nossa Tribo com oito amigos e dois Xavantes, um que é o Cipassé Xavante, que vai vir aqui dar depoimento, e o Caimi Waiasse que é um videomaker, ambos professores. A Severiá e eu diria que também era uma carajá casada com o Cipassé que também era professora da escola. Então nós fundamos essa ONG e o primeiro projeto que eles pediram pra fazer era exatamente esse da mortalidade das crianças, por que as crianças Xavantes morrem tanto. E aí o Cidaneri, que era um velhinho tio do Xavante, filho do Apoê’ que foi o Xavante que fez o contato com os brancos na década de 50, eles são uma família de chefia, uma família tradicional de chefia. Porque os xavantes são divididos em dois clãs, um clã que é o Poreza'õno, é o clã de chefia, o outro é o Öwawê, ele fala que é o clã dos soldados. Eles têm toda uma divisão, uma organização e essa família é uma família de chefia e o Cidaneri falou pra mim: “Rosa, eu estuo convencido de que as crianças aqui morrem por causa do contato, porque antes do contato, quando eu era pequeno ninguém morria de doença aqui. As pessoas só morriam em guerra e só morriam de velhinho. Ninguém morria de doença. E depois que foi feito o contato com os brancos, com os waradzu...” em Xavante waradzu é branco “... depois que foi feito contato as crianças começaram a morrer igual moscas aqui. E eu quero que você escreva um projeto sobre isso”. Eu como não entendi nada dessa área de saúde eu chamei algumas pessoas, uma jornalista que é especializada em saúde, que é a Mônica Tarantino, outra jornalista que também trabalhava na ONG, a Cristina Duran, que era do Estadão, os Xavantes, nós sentamos todo mundo e falei: “Bom, e agora? O que a gente vai fazer?”. Aí a gente trocou ideia e os Xavantes falaram: “Olha, Rosa, a gente quer fazer um trabalho sobre a comida tradicional, o que é a nossa comida tradicional, o que a gente comia antes do contato e depois do contato o que mudou, sobre as doenças e a gente quer reverter esse quadro da mortandade das crianças”. Aí a gente montou um projetinho pequeno que tinha um médico pediatra, uma nutricionista pra cuidar dessa parte da comida, um médico pra cuidar diretamente das mães e dos bebês e um engenheiro florestal pra reforçar as roças dos xavantes, que os xavantes fazem roça na aldeia e eles têm roças comunitárias que são fora da aldeia, que são no cerrado. Eles têm uma tradição de plantar muitas coisas de cerrado que a gente não tem nem ideia, que depois eu fui descobrir fazendo o projeto. E aí então nós montamos essa equipe e eu pensei, bom, como eu sou da área de comunicação ou a gente fotografa ou a gente grava. Como a gente pensou de fazer uma cartilha bilíngue, xavante / português, mas as mulheres mais velhas e os homens mais velhos ninguém fala português. Pra você ter ideia uma aldeia de 300 pessoas, dois ou três falavam português, ninguém falava português, até hoje ninguém fala português. Só as gerações mais novas que estão indo a escola que agora aprendem o português. Então a gente pensou, vamos fazer um vídeo que eu acho que seria mais fácil um vídeo falado em xavante que eles podem colocar numa televisão comunitária na hora que liga a luz lá do gerador e eles assistirem. E aí a gente procurou, mandou esse projeto pra vários lugares e conseguimos patrocínio do Criança Esperança. Bom, qual foi a minha surpresa quando eu recebo um fax do Criança Esperança dizendo que a gente tinha sido aprovado? Eu entrei em pânico (riso). E primeiro que eu não acreditava que a gente ia conseguir tão fácil e segundo que eu pensei: “Gente, e agora? O que eu vou fazer?”. Porque não é a minha praia, saúde não é minha praia. Eu fiquei apavorada, liguei pra todo mundo, todo mundo falou: “Bom, agora conseguimos o dinheiro, agora nós temos que fazer”. E aí eu fiquei assim, como eu coordenava eu falei: ”Agora tenho “que montar a equipe”. Aí os índios falaram: “Nós não queremos profissionais de São Paulo. Nós queremos profissionais do cerrado, do Mato Grosso porque é diferente. A gente já fez projeto aqui com gente de São Paulo, os paulistas não entendem nada de cerrado, não entendem nada do interior do Mato Grosso e é uma confusão porque a cultura é muito diferente”. No começo eu achei que ele estava exagerando e depois eu vi que ele tinha razão. Então nós conseguimos depois de muito procurar um médico, que foi a coisa mais difícil descolar um médico, um pediatra. Em Goiânia a gente não conseguiu, a gente conseguiu em Cuiabá através da Associação de Pediatria. A gente conseguiu um médico e as nutricionistas conseguimos uma nutricionista na Universidade de Goiânia, que no fim foram... A equipe aumentou pra duas, uma nutricionista assim, uma professora da universidade, a Dulce, e a Fabiana era a mais velha professora e a mais jovem professora da universidade. Foi bem legal assim porque as duas se complementavam. E um engenheiro florestal especializado em cerrado que o Cipassé já conhecia, que era o Juan de Brasília. Aí a gente montou essa equipe mínima, e assim eu coordenei e os Xavantes fizeram toda a parte de base na aldeia, a Severiá e o Cipassé que era cacique da aldeia nessa época e a gente colocou os Xavantes também no trabalho. Então todo mundo que trabalhava no projeto ganhava. Então a gente dividiu o dinheiro, que na época foram 102 mil reais pra um ano, nós dividimos esse dinheiro em um ano pagando os profissionais a mesma coisa que eles ganhavam aqui em São Paulo, eu fiz questão assim de pagar pra eles quererem ir lá praquele lugar porque é longe, é difícil as pessoas, principalmente os médicos, é muito difícil de conseguir médico pra trabalhar nesses lugares. Então esse programa do Mais Médicos tem muito a ver porque... Eu sei porque eu tenho uma irmã médica, minha irmã mais jovem, e a minha irmã falava: “Imagina que eu vou lá fazer isso daí lá naquele fim de mundo.”

“Pô, você podia ir lá’’” “Não. Imagina que eu vou lá”. E através dela, ela era professora na universidade aqui em Jundiaí, a gente não conseguiu ninguém aqui em São Paulo. É muito difícil. Os médicos não querem sair do bem bom aqui pra ir trabalhar lá no meio do cerrado, no calor, tomar banho de rio, não tem banheiro, fazer sua própria comida. É complicado, né? Assim, são lugares que não têm condição nenhuma assim pra uma pessoa que está acostumada na cidade. É muito complicado. Tem que ser meio Indiana Jones assim (riso). Aí nós conseguimos o doutor Darcy e depois eu descobri por que o doutor Darcy, Darcy Bicudo é o nome dele, por que ele topou fazer esse trabalho. Eu descobri que o doutor Darcy era neto de índia bororo. E o dia que ele me falou eu me arrepiei, até me arrepiei agora porque eu falei: “Darcy, como que você... Porque foi tão difícil conseguir um médico”. Ele falou: “Rosa, a minha avó foi pega a laço. Meu avô era fazendeiro e a minha avó era uma índia bororo. Eu sou neto de bororo. Aí eu fiquei curioso de saber como que vivem os índios, por isso eu estou aqui.” “Darcy, você caiu do céu”. Porque na véspera da viagem a gente ainda não tinha médico, eu estava apavorada. Não tinha conseguido médico através da Sociedade Brasileira de Pediatria, menina, ninguém queria vir. E aí, bom, formada a equipe eu dividi a grana pra esses 12 meses aí eu coloquei no orçamento uma câmera de vídeo pra gente formar dois videomakers Xavantes. Então nós fizemos uma parceria com a Universidade Metodista de Rádio e TV daqui de São Paulo, que na época o diretor era o Sebastião Squirra que ajudou muito a gente nessa área de vídeo e fizemos acordo, depois num segundo momento, também com a Unifesp aqui em São Paulo, a universidade que faz o Projeto Xingu, que atende os índios do Xingu que é a maior referência de saúde no Brasil. Depois de seis meses de projeto o doutor Darcy Bicudo teve que sair porque ele arranjou um emprego fixo pra trabalhar em Cuiabá e aí a Unifesp entrou, que eu já tinha tentado no começo do projeto e aí quando eles viram o resultado do projeto em seis meses eles toparam ir, aí eles mandaram uma equipe com o doutor Marcos Schaper. O doutor Marcos foi, levou os médicos lá do Projeto Xingu da Unifesp e aí os outros seis meses foram eles que fizeram essa parte de saúde. Então a gente tinha a parte de saúde, a parte de nutrição, a parte de comunicação, cada um cuidando da sua parte e eu organizando esse negócio todo. Aí foi bem legal, nós formamos dois videomakers que no começo quase não falavam Xavante, o Jony e o Leandro Parinaiá. A gente levou o melhor aluno de vídeo daqui da Metodista que era um Leandro também pra lá, que nunca tinha viajado, a mãe dele estava apavorada dele ir numa aldeia. Ele foi e ficou 15 dias lá dando curso, compramos uma câmera legal igual essa que vocês têm aí, uma Panasonic superlegal, zerinho pros índios, digital. Aí os dois Leandros lá trabalharam junto com o Jony, fizeram um curso de 15 dias pra saber manusear a câmera, nessa parte técnica. Aí o Leandro branco voltou pra São Paulo e os dois ficaram com a câmera de vídeo com a incumbência de gravar todo o projeto na aldeia no tempo que a gente não tivesse lá, porque esse projeto a gente fez cinco viagens de dez dias cada, mas o projeto quando a gente não estava lá continuava. E o foco do projeto foi ouvir os índios e fazer o trabalho com o ponto de vista dos índios. Tanto é assim que a gente teve alguns problemas logo que a gente chegou com o pessoal da nutrição, as duas professoras chegaram com todo um projeto montado pra falar sobre nutrição com as mulheres, nas casas, fazendo uma pesquisa o que os índios comiam antes do contato e o que comem depois do contato, o que a mulher grávida comia, o que dava pra criança, toda a coisa tradicional da comida. E elas chegaram já assim com um projeto pronto assim, que foi superengraçado inclusive e foi punk também no primeiro dia porque eu pensei: “Gente, elas vão embora”. Porque elas fizeram uma lousinha assim com fotos de morango, maça, leite, e aí foram de casa em casa e falavam e as mulheres ficavam olhando pra elas e o tradutor traduzindo, tradutor homem porque não tinha nenhuma mulher que falava português. Então tinha que o Cipassé, que era o cacique professor, ia traduzindo. Aí elas foram de casa em casa, isso foi no primeiro dia, quando chegou na hora do almoço nós paramos pra almoçar, os índios chamaram a gente, o Cipassé falou: “Rosa, é o seguinte, vai ter que mudar tudo”. Eu falei: “Por que Cipassé?” “Olha, as mulheres não querem esse negócio de vocês ficarem indo lá e fica falando, falando, falando e elas só escutando. Elas querem alguma coisa que elas façam. Elas querem aprender, elas querem vivenciar as coisas”. Eu voltei com a equipe, falei: “Gente, o negócio é o seguinte, os índios não querem isso”. Aí as duas tiveram o maior piti, foi uma confusão, deu uma briga e eu falei: “Gente, e agora? Essa equipe vai embora, já é pouca gente...”. E aí eu falei: “Olha, o negócio é o seguinte, eles nunca viram um morango na frente, eles não sabem o que é maça, eles não tomam leite...”. Criança indígena não toma leite, só leite da mãe. Eles não têm esses costumes de alimentação. A gente tem que escutar eles, elas falarem e em cima do que elas falarem a gente vê como que a gente vai fazer esse trabalho com elas. E as duas ficaram apavoradas, falou: “Mas a gente não entende nada dessa comida que eles comem”. Aí o Juan, que era o engenheiro florestal, falou: “Olha, gente, eu conheço bastante coisa de fruta do cerrado, eu posso ajudar vocês, eu faço umas comidas de cerrado lá na minha casa com castanha de baru...” que agora é chique, você compra no Pão de Açúcar, mas antigamente não tinha, que é uma castanha que os Xavantes tradicionalmente comem, os homens xavantes “... com a mandioca, eu posso fazer biju com baru. Enfim, tem umas receitas lá que eu posso ensinar vocês e vocês as ajudarem pra melhorar na alimentação delas”. Porque o problema dos Xavantes hoje é que eles só comem arroz. A Funai introduziu o arroz há 30 anos como forma de ajudar na alimentação dos índios. No caso dos Xavantes, que eu conheço mais porque dos outros eu não conheço tanto, ali naquela região é uma região muito boa pra plantar arroz, então eles plantam arroz e dá muito arroz e aí eles começaram a substituir a comida tradicional que era caça, frutos do cerrado e a mandioca, o milho e o feijão por arroz. Como a caça com a demarcação das terras diminuiu muito porque a principal comida Xavante é proteína, é caça e se complementa com o amido que é o milho e a mandioca e a vitamina das frutas. Isso aí eu aprendi no projeto que eu não tinha ideia como é que era o negócio. E as frutas do cerrado a gente fez uma pesquisa, a gente arrumou um livro da Embrapa e a gente descobriu que tem frutas do cerrado, por exemplo, tem um cajuzinho do cerrado, ele tem muito mais vitamina C do que a acerola e a laranja juntas. Então tem frutas fortíssimas de vitamina A, vitamina B e vitamina C. É assim, a alimentação deles era uma alimentação muito forte de coisas que a gente não conhece. A gente descobriu, por exemplo, os Xavantes têm nove tipos de batata diferentes no cerrado. Não tinha ideia e eles têm isso na alimentação tradicional deles, uma coisa que eles pararam de coletar. Porque essa parte da coleta são as mulheres que fazem e como eles eram meio nômades... Eles eram nômades e depois com o contato eles foram ficando nas aldeias, eles foram se fixando nas aldeias, as mulheres pararam de fazer essas coletas que chamavam zoomore, que eram andanças que eles faziam de dia no cerrado por trilhas já em lugares onde tem caju natural, onde tem baru, onde tem vários tipos de fruta. Então de acordo com o tempo elas sabiam que determinadas regiões elas vão coletar essas frutas. Macaúba que é um coquinho de uma palmeira. E são todas frutas muito importantes na alimentação, principalmente da vitamina das crianças, para o crescimento das crianças. E a gente descobriu no projeto, uma das coisas que todos os Xavantes só comem arroz. Você chega nas casas xavantes de manhã cedo tem uma panela grande no fogo, agora eles têm fogão, mas até pouco tempo eles cozinhavam na fogueira. Um panelão de arroz branco sem nada. E aquela comida é o café da manhã, é o almoço, é o lanche, é a janta. Só arroz. Que eles comiam, enchia a barriga, falavam: “Que coisa boa essa comida de branco, enche tudo”. Só que é puro amido, então as pessoas começaram a engordar, começaram a ter problemas de diabete, começam a ter problemas de coração por conta de só comer amido e de não comer mais proteína, que era a comida natural deles, e as vitaminas das frutas. E aí a gente viu esse desequilíbrio, a gente levantou todo esse desequilíbrio com a pesquisa das nutricionistas, com a conversa com as mulheres mais velhas que os Xavantes têm essa tradição, as pessoas mais velhas são as pessoas que mais sabem e sempre estão passando esses ensinamentos pras meninas mais jovens e pros jovens, os homens passam pros meninos, as mulheres passam pras meninas. Nessa coisa da alimentação era muito importante a mulher, mulher mais velha. Tanto é que a mãe do Cipassé, a dona Fernanda, que era uma velhinha que andava assim com um pauzinho que ela nem andava direito, ela explicou numa das conversas dela essa história dos zoomores, das andanças que elas faziam durante o dia pra coletar frutos pra aldeia e que elas não estavam mais fazendo isso. E aí nós perguntamos: “Mas por que vocês não estão mais coletando as frutas?”. Aí a dona Fernanda falou: “Porque nós mudamos a aldeia de lugar e ficou muito longe da onde a gente coletava antes. Então pra gente ir a gente tem que andar muitos quilômetros e ficou difícil pra gente”. Eu falei: “Mas, gente...” aí eu dei uma, falei: “Dá licença, mas escuta dona Fernanda, vocês têm caminhão, vocês têm caminhonete, porque os homens não levam vocês de caminhão?”. Eu perguntei pro cacique: “Cipassé, por que vocês não levam?” “Elas nunca perguntaram”. E aí elas olharam pra ele: “Ah, pode?” “Pode”. Aí eu falei: “Gente, então está resolvido o assunto, vocês vão de caminhão e eles levam vocês de caminhão até perto da estrada, aí vocês entram no cerrado e fazem a coleta”. A dona Fernanda mais que depressa, era uma velhinha bem velhinha, ela se animou toda e falou: “Bom, então vamos amanhã. Podemos ir amanhã, Cipassé?”. O Cipassé falou pode. “Então amanhã cedo nós vamos colher macaúba”. E aí, menina, no outro dia cinco horas da manhã o caminhão lá buzinando pó pó pó: “Vamos Rosa, vamos pessoal”. A gente subiu em cima da carroceria do caminhão, lá fomos nós e as mulheres com as cestas. E aí nessas andanças a gente percebeu como é difícil, por exemplo, esse dia da macaúba os homens deixaram a gente, o caminhão, na estrada que corta a reserva, deixaram a gente na estrada, nós descemos e fomos lá atrás da dona Fernanda. Dona Fernanda era meio gordinha, mas ela andava rapidinho, menina. E eu assim de filtro solar, chapéu. Lá é quente, é muito quente, você anda no cerrado na época da seca é seco, mas é um calor que você... É muito quente. E elas estão acostumadas, elas descalças andando rapidinho, eu correndo atrás da dona Fernanda pra fotografá-la porque além de tudo eu fotografava. E ela rapidinho, tal, andou, andou, andou aí ela olhava umas árvores grandes, a macaúba é uma palmeira bem alta que dá uns cachos de coquinho, uns cachos gigantes de uns coquinhos. Aí ela olhava, pensava que ela ia pegar e ela falava que não tava bom, andava mais pra frente. Menina, andei quilômetros atrás dela naquele calor e eu esbaforida morrendo de calor, morrendo de sede e a dona Fernanda na boa. Aí chegou lá um lugar lá com as crianças, as mulheres, algumas mulheres, ela foi lá, tirou um bambu bem comprido assim de uns, sei lá, uns 15 metros o bambu, aí amarrou uma faquinha na ponta do bambu e aí lá debaixo ela pá. E eu só olhando, ver o que ela tava fazendo. Ela cortando com a faquinha o cacho de macaúba, é gigante o cacho, ele deve pesar uns 30 quilos, ele é muito grande e muito alto. Aí ela lá com o maior esforço com aquela faquinha amarrada no bambu, pá, pá, aquele treco pá, cai no chão aí eu vi o tamanho do negócio. As crianças vão com as cestinhas, catam tudo, enche aquele monte de cestinha, a macaúba é um coco assim desse tamanho. E aí enchia tudo as cestinhas e aí pá, aí andava mais um tempo, aí olhava outro cacho e pá, pegava a criançada, todo mundo correndo catando as... Nesse dia eu senti na pele o que é você coletar, o que é o trabalho de você buscar comida, cara! Sabe, eu já tinha acompanhado eles em caçada, em pescaria também que é outro... Por exemplo, um homem Xavante pra conseguir uma caça ou conseguir uma pesca ele anda uma base de 40 quilômetros num dia naquele cerrado espinhento, seco, descalços. Gente, tem que ser muito resistente. A gente não consegue. Tanto é que quando eles foram na caça eu queria ir fotografar eles não deixaram, eles falaram: “Não, Rosa, você não aguenta. A gente te leva de caminhão até um pedaço e quando os homens vieram com a caça você fotografa, mas você não vai com a gente”. Eles não deixaram porque a gente não aguenta, é um esforço muito grande. Então eu ficava lembrando, eu falei gente, São Paulo você vai no supermercado, vai lá e compra o peixe, já vem limpo, você só paga e vai embora. Essa facilidade que a gente tem eles não conhecem e aí você percebe como é difícil a vida, sabe, de um índio no Brasil. Pra eles não é difícil porque eles estão acostumados, mas pra gente, a gente não tem pique, a gente não acompanha. E você conseguir, sei lá, ficar o dia inteiro pescando, de repente volta com três peixinhos pra uma família de 15 pessoas, de 30 pessoas, a comida é pouca. Tudo é muito difícil. Aí assim pra mim foi um aprendizado muito grande fazer esse trabalho porque eu aprendi muito sobre o cerrado assim que eu nem imaginava. Por exemplo, o Cidaneli que é o tio do Cipassé, ele andava comigo ele falava, ele é um conhecedor de plantas, ele falava: “Rosa, está vendo essa planta aqui? Isso aqui é bom pra dor de barriga. Aquela ali, tesá vendo? Aquela ali é boa pra dor de cabeça. Ah, está vendo aquela árvore lá? Aquela lá a gente tira o negócio da picada da raia”. Eles têm remédio, pra vocês terem ideia, eles têm remédio até pra picada de jararaca, sabe? Eles têm remédio pra tudo, eles conhecem tudo. É um conhecimento, a gente não tem ideia o conhecimento que os índios têm. Eu tive assim um pouco de ideia andando com eles, andando com o Cidaneli principalmente de como é rico o conhecimento que os índios têm do habitat deles. A gente não valoriza, a gente não sabe nada. É impressionante o que eles conhecem.

P/1 – E Rosa... Desculpa, você quer terminar e eu... Queria entender um pouco melhor assim, ao longo desse um ano, foi um ano de projeto, você falou, se você foi sentindo mudanças assim, desse contato talvez tanto na equipe de vocês quanto na realidade, no cotidiano deles ali e que tipos de mudança, se houve, se teve alguma mudança. E também esse registro, o que vocês foram registrando? Você falou desse conhecimento desse processo de um registro em vídeo, né, depois gerou também uma publicação. Como é que era esse registro assim?

R – Então, na verdade foi uma coisa que foi se construindo aos poucos. A primeira viagem foi um contato pra todo mundo se conhecer e a gente acertar como que ia fazer. Quer dizer, a gente percebeu que tudo que nós levamos pronto da cidade nada funciona, que a gente tem que ouvir os índios e em cima do conhecimento deles adaptar o trabalho da gente e juntar forças pra fazer um novo trabalho. O começo de tudo pra fazer trabalho com os índios é isso. Nada do que a gente sabe serve pra eles porque a cultura deles é diferente. Não funciona o que a gente acha que é. A gente tem que ouvi-los e fazer o trabalho com o ponto de vista deles, porque senão não funciona. Isso foi a primeira coisa que nós aprendemos. Aí em cima disso o trabalho tem que ser prático. Então o trabalho do doutor Marcos, do doutor Darcy primeiro, com as crianças foi fazer um levantamento das crianças, de todas as doenças que tinham, se tinha alguma criança que tava... Fez o fichamento, na verdade, de todas as crianças e da aldeia inteira, porque eram 60 pessoas, era uma aldeia bem pequena, era um projeto piloto, então na parte de saúde o primeiro momento foi fazer fichas de todo mundo, levantamento de saúde de todas as crianças, vacina, que ninguém tinha feito, a gente organizou pra vir fazer depois. Uma grande coisa que tinha na área de saúde que o médico não ligava, mas que pra mim era um horror, era sarna e bicho do pé e como o doutor Darcy tava acostumado a trabalhar com crianças terminais no hospital, pra ele sarna e bicho do pé, pros médicos isso não é nada, mas pra gente que vem da cidade, eu achava um horror. Então eu fiquei pegando no pé dele pra ele incluir isso também que não estava no projeto. Ele só assim concordou quando os índios pediram, porque eu falava, ele não ligava. Eu via lá as mães se coçando, a criança toda cheia de roupa e tirava a roupa, toda cheia de sarna, entendeu? Ele achava que isso não era problema e realmente pros médicos é um problema mínimo isso, né? Mas assim, nós descobrimos uma criança que tinha um problema muito grave que depois o doutor Darcy a levou, o menino, pra cidade. Era um menino de uns três anos, ele teve que ser internado, o doutor Darcy conseguiu internação pra ele lá em Cuiabá. Ele tinha uma doença, eu não sei o que era exatamente, mas ele tinha uma doença bem séria. Mas no básico foi um treinamento, os médicos fizeram durante todo o ano um treinamento com agente de saúde e com as mães primeiro ouvindo as mães e depois adaptando os cuidados médicos nossos com os cuidados das mães Xavantes e aprendendo com elas como se fazia, na cultura Xavante, e ensinando pra elas como elas cuidavam das nossas doenças, o que eram as nossas doenças. Então foi levantado as doenças que mais matam bebês pneumonia e diarreia, foram coisas que nós introduzimos através dos micróbios, das bactérias. Então imagina explicar pra uma mãe indígena que não fala português o que é um micróbio e uma bactéria, que é uma coisa que você não enxerga e que não existe na cultura deles. Então eram coisas simples assim. O doutor Marcos, como é que é um micróbio, uma bactéria da pneumonia, sei lá, como é que é a imagem disso? Dá pra desenhar? Como é que olha no microscópio? Doutor Marcos: “Dá, Rosa. É um negócio redondo assim cheio de perninha”. E eu desenhava, ele desenhava pequeno a gente fazia grande na cartolina: “É assim, Marcos?”. Aí o Marcos falava é. Então quando ele começava a falar a gente falava: “Gente, é isso aqui”. Aí elas olhavam, o Marcos explicava o que era isso, que tava no sangue, pegava no sangue, que elas não enxergavam, mas que entrava na corrente sanguínea do neném, que isso ia pro pulmão. Imagina explicar isso pras pessoas que nunca ouviram falar disso. Então o nosso trabalho foi esse. O Marcos explicar pras mães o que eram as doenças dos brancos, diarreia, pneumonia. A diferença entre... Nós descobrimos que o ponto X era falta de entendimento, falta de comunicação. Por quê? O que é a diferença entre gripe e pneumonia? A gripe que a criança... Não. Resfriado e pneumonia, resfriado e gripe que chega na pneumonia. O resfriado a criança vai tomar banho frio e pega um friozinho fica com o nariz escorrendo. Aí dá um chazinho Xavante melhora. E a pneumonia que a criança também fica com o nariz escorrendo e as mães davam chazinho, chazinho, chazinho, depois de uma semana o neném morria, né? Porque é muito parecido. Na cartilha tem isso. Então o que é, por exemplo, a diferença entre a gripe pneumonia, entre a dor de barriga de você comer uma manga e ficar com dor de diarreia e depois no outro dia ficar bom, porque você comeu manga verde, e a diarreia de bactéria que vem na água e que mata um neném depois de uma semana. E aí a gente percebeu que elas não tinham ideia o que era isso, nem eu pra te dizer a verdade, também aprendi aí. Porque a gente aqui o neném fica doente você chama um médico, o médico dá o remédio tal, nunca tinha pensado nisso. E aí a gente percebeu por que os nenéns morriam. Por quê? Elas tratavam o neném como se eles tivessem resfriados, com os chás Xavantes de resfriado e depois de uma semana a pneumonia crescia e mata o neném em uma semana. E sempre vem junto pneumonia e diarreia porque o neném está fraco começa a ficar com diarreia, fica fraco e aí uma semana morre. E aí quando o Marcos explicou isso pra elas a gente percebeu que existia aí uma falta de comunicação e uma confusão entre as coisas. O que é um resfriado e o que é uma pneumonia, o que é uma dor de barriga de comer manga e o que é uma dor de barriga de água contaminada. Quando elas perceberam essa diferença foi o X da questão, tá? E aí o que era sarna, por exemplo, a minha irmã que é médica me explicou, que nem eu tinha ideia, que a sarna é um bicho que vai comendo a tua pele por dentro da pele. Eu não tinha a mínima ideia que a sarna é um bichinho tipo um carrapato minúsculo que come a pele. Então a gente pra explicar isso pra elas que tinha um monte de bicho comendo a pele do neném delas, quando elas entenderam nunca mais elas deixaram de cuidar da sarna. O que era o bicho do pé? A gente conseguiu fotos de microscópio do bicho do pé, aí mostramos pra ela. O que é o bicho do pé que entra no pé que entra no pé da criança e vai chupando o sangue da criança? Você tinha crianças totalmente com os pés cheios de bicho, com as mãos cheias de bicho que eles tiveram que dar remédio pra criança tomar que é muito forte, porque o remédio de passar não funcionava. Aí o pediatra explicou que os bichos vão chupando o sangue das crianças, quando tem muito bicho do pé ou quando tem muita sarna, a criança vai ficando fraca porque aqueles milhares de bichinhos vão chupando o teu sangue. E isso deixa a criança fraca pra entrar outras doenças. Então quando elas entenderam toda essa parte de saúde, que esse foi o nosso trabalho, explicar em Xavante o que era tudo isso. Quando elas entenderam o nosso trabalho ficou pronto. E fazer um treinamento com o Cacau que era o agente de saúde, porque eles recebem muitos remédios, então o Marcos pegou a caixa de remédio que era gigante, uma caixa tinha um monte de remédio, explicando pra ele pra que era cada remédio, quando ele tinha que usar, quando ele não tinha. Porque quando não tinha ninguém lá sobrava pro Cacau, alguém doente o Cacau tinha que ver lá que remédio que ele ia dar e ele nem tinha uma formação, mal tinha formação de agente de saúde. Ele tinha uma formação assim muito de que ele via, tal, e ele queria ajudar. Aí o Marcos fez um curso com ele sobre isso e assim falando também do lixo, de não deixar o lixo na aldeia, de queimar o lixo, de enterrar o lixo orgânico, o Juan explicando que o lixo orgânico era bom como adubo. O Juan na área de reforço das roças, de plantar mudas do cerrado pra reforçar as roças. Nós conseguimos da universidade de perto lá, de Canarana, nós conseguimos 300 mudas de plantas de frutos do cerrado, nós fizemos uma micro... Nós plantamos em volta da aldeia inteira todas essas árvores frutíferas. A gente fez esse reflorestamento. Nós plantamos baru, quilos de baru, o Juan tinha muita semente do cerrado, eles plantaram quase cem quilos de semente de frutos do cerrado. Fizeram um pedido de frutos que eles queriam nossos, tipo laranja, limão, coisas que eles não tinham lá, nós compramos as sementes, eles plantaram lá, fizemos pomar. E na área da nutrição ficou bem claro a diferença da comida tradicional e a diferença da comida do que se está comendo hoje. Lista do supermercado, o que as mulheres hoje compram no supermercado? Aí perceberam, compravam muito biscoito, muito açúcar, muita farinha branca, muito sal que eles não usavam na comida, tem gente com pressão alta. Então o que faziam essas coisas na saúde. Muito refrigerante, os Xavantes tomam muito refrigerante, aí explicar que num copo de refrigerante tem nove colherzinhas de açúcar. Quando eles começaram a entender tudo isso, eles começaram a refazer as listas de supermercados, a gente refez com eles. Então ao invés de comprar biscoito compra laranja, compra limão, compra outras coisas, compra frango. Fazer criação de frango já que não tem caça, pra fortificar a parte da proteína. Então assim, foi um trabalho nesses três focos e paralelo a isso os meninos gravando tudo e fazendo o vídeo. Aí os meninos vieram pra São Paulo pra fazer a edição de vídeo na Metodista, ficaram aqui um mês editando, fazendo curso de vídeo, edição de vídeo, editaram sozinhos o vídeo. Então a gente formou as pessoas, esse que foi acho que o grande barato do projeto, pra eles fazerem sozinhos porque o que adianta a gente ficar ensinando tudo, os caras lá com o livro, depois na prática não sabe fazer.

P/1 – Em que ano que foi isso, Rosa?

R – Foi 2005, 2006. E aí assim, eu queria, a minha ideia desse projeto era implantar o projeto, porque pra vocês terem ideia, hoje existem 15 mil Xavantes no Brasil, eles estão divididos em nove terras indígenas. Pimentel Barbosa é uma das terras indígenas e a aldeia Wederã é uma das 13 aldeias dentro da terra indígena de Pimentel Barbosa. É uma aldeia minúscula porque uma aldeia normal Xavante tem umas 300 pessoas, essa tinha 60, por isso que eu escolhi essa que era bem pequena. Aí a ideia era fazer esse projeto piloto e implantar esse projeto nas outras aldeias. Eu tentei de todas as formas conseguir ampliar esse projeto através da Unifesp, que entrou dentro do projeto e como eles têm uma equipe superespecializada que trabalha com os índios do Xingu há 50 anos, o nosso sonho era que a Unifesp encampasse esse projeto e trabalhasse com os Xavantes dentro das outras aldeias Xavantes. A gente lançou esse projeto, a cartilha que é essa cartilha bilíngue Xavante / português, o vídeo que é um vídeo também bilíngue Xavante / português, a gente fez também em inglês. Nós lançamos isso aqui pra 600 médicos na Unifesp, num evento aqui na Unifesp em São Paulo e assim, o meu sonho era que os médicos conseguissem através da Unifesp implantar esse projeto nas outras aldeias. Por quê? Durante esse ano eu percebi que não era a minha praia saúde, eu sou da área de comunicação, pra mim foi muito difícil gerenciar esse projeto porque... Não assim nessa parte prática, porque pra mim é simples, mas porque eu vi o tamanho da encrenca. O tamanho da encrenca de saúde que é assim cuidar nessa área dos povos indígenas contatados, sabe? Eles precisam de tudo e eu vi que eu não ia dar conta disso que não é a minha praia a área de saúde. Eu percebi que tinha que ser uma equipe de saúde gerenciando essa coisa maior. Então assim, eu consegui que a Unifesp... Eu trouxe no lançamento da cartilha e do livro aqui pros médicos na Unifesp, a gente conseguiu trazer os três caciques das três grandes aldeias de Pimentel, que é Pimentel Barbosa, Etênhiritipá e a Wederã, que participou do projeto, então nós trouxemos três. Os três vieram pra mesa do lançamento do projeto com os 600 médicos tentando convencer essas pessoas de ampliar esse projeto pras terras Xavantes, começar por Pimentel Barbosa, nas 13 aldeias de Pimentel e depois pra todas as outras cento e tantas aldeias das outras reservas. A única coisa que eu consegui foi uma promessa da Unifesp de que teria outra viagem pra atender essas duas outras grandes aldeias, que era Pimentel Barbosa e Etênhiritipá que foram as aldeias que originalmente era uma aldeia só que eu trabalhei no meu projeto do livro e dos rituais. E eles me cobravam muito, eles começaram a achar que eu ia resolver toda a situação deles de saúde, eu comecei a entrar em pânico porque, gente, é um negócio muito gigante demais. E aí a Unifesp voltou lá depois de dois anos, 2008 o doutor Marcos mandou uma equipe de dois médicos, três enfermeiros, foi a Ana que trabalhava comigo na nossa tribo, fui eu, então a gente montou uma equipe de cinco pessoas, seis pessoas e fomos pra atender as três aldeias. Eram 600 índios. Então nós ampliamos o nosso atendimento de 60 índios pra 600 índios. Em dez dias nós fizemos um trabalho com eles de levantamento, de tudo, dessa área de saúde que era a coisa mais punk que eles estavam precisando. Assim, a minha vontade era replicar esse projeto nas outras aldeias, mas eu não consegui fazer isso. A gente esteve em Brasília, a gente tentou com a Unifesp, a gente assim, tentou passar esse material didático pro governo comprar pra distribuir nas outras terras Xavantes, a gente não conseguiu. Nós vimos que essa questão indígena, a questão de saúde é uma questão muito difícil, a questão de saúde indígena é muito mais difícil ainda do que a questão de saúde, porque como os índios tem um monte de gente pobre no Brasil que também sofre com o atendimento de saúde. Assim, eu vi também, eu descobri que tem muito desvio de dinheiro da saúde pública por meio das prefeituras, nos hospitais das pequenas cidades. O dinheiro de seis Xavantes era desviado pra compra de material que eles não precisavam, muita gente enriquecendo com o dinheiro dos índios, com o dinheiro dos Xavantes e eu fiquei muito desanimada pra falar a verdade, com tudo isso. Eu vi que durante um ano eu trabalhei assim quase assim, fiquei doente de tanto peso pra fazer esse trabalho e eu percebi que por mais que a gente faça, o problema não é a gente fazer, o problema é o que está aí, o que está em volta, sabe? Assim, eu acho que o Brasil pra mudar teria que mudar na base de muita coisa na política dos pequenos municípios, das pequenas cidades, as pessoas tinham que mudar o modo de pensar. Então você vê assim, por mais que você queira fazer as coisas, é complicado. Agora, o resultado legal do projeto foi que as médicas que foram no projeto não tinham participado do projeto antes, então elas fizeram um relatório pra mim, que eu tinha que mandar um relatório pra Unesco e eu fiz o relatório de todo esse trabalho, e aí eu deixei a equipe lá e nós tínhamos começado outro projeto na favela aqui do Real Parque em São Paulo que era um recorte desse projeto Nutrição, que nós fizemos Mais Saúde e Nutrição pro Povo Pankararu. Nós fizemos um recorte da parte de comunicação desse projeto Xavante e aplicamos junto com a Unifesp que já fazia a parte médica aqui na favela do Real Parque com os índios Pankararu que são do interior do Pernambuco. Então esse projeto aqui saiu enquanto a gente tava paralelo ao projeto dessa viagem que a gente voltou em 2008. Então eu voltei pra São Paulo pra organizar esse projeto aqui e a equipe ficou lá atendendo os índios os dez dias junto com a Ana que trabalhava comigo na nossa tribo. E aí foi assim, eu fiquei muito surpresa quando eu vi o relatório da médica. A médica colocou no relatório assim, quando ela chegou a aldeia Wederã, elas atenderam primeiro Pimentel Barbosa, que tinha 300 índios, depois Etênhiritipá que é outra aldeia que está do lado que tem mais 300 e depois foi pra Wederã onde nós fizemos o projeto durante um ano que é essa aldeia de 60 pessoas. E aí a médica quando chegou na Wederã, conversando com a dona Fernanda que era mãe do Cipassé falou: “Dona Fernanda, que aconteceu aqui nessa aldeia? Porque depois de dois anos do projeto nenhuma criança morreu, não morreu mais criança aqui, não estou vendo ninguém doente, não tem ninguém com sarna, não tem ninguém com bicho do pé, não tem lixo nessa aldeia. Essa aldeia tão organizada, cheia de fruta, vocês comendo de tudo. O que aconteceu aqui?”. Aí a dona Fernanda explicou pra essa Fernanda, era doutora Fernanda também, que não sabia direito o que tinha acontecido, a dona Fernanda, mãe do Cipassé, falou: “É que aqui na aldeia Wederã nós fizemos o projeto Nutrição Infantil com a nossa tribo e isso, depois do projeto nutrição a gente entendeu o que acontecia com as nossas crianças. Agora a gente cuida, a gente aprendeu direitinho no projeto a diferença entre resfriado e pneumonia, entre dor de barriga e diarreia que mata. Os nossos bebês quando começam a ficar doentes depois de um, dois dias a gente corre pra cidade porque aí eles vão ter que tomar antibiótico”. Aí ela explicou tudo pra doutora Fernanda e a doutora Fernanda escreveu o relatório seguinte, falou assim: “As outras aldeias são o Brasil e a Wederã é a Suíça”. Aí quando eu li isso, que eu continuava desanimada porque eu queria continuar o projeto e estava meio desanimada, quando eu li o relatório dela eu chorei porque eu não imaginava assim que ia dar tão certo. Deu muito certo. E aí eu percebi mais ainda que não era muito dinheiro, mas a gente gerenciou bem o dinheiro, todo mundo, todos os índios que plantaram, que trabalharam lá, que gravaram, todos ganharam dinheiro, todo mundo ganhou um pouquinho, sabe? A gente dividiu pra todo mundo, a gente fez uma agrofloresta, eu fui lá o ano passado a aldeia está verde, os pés de caju que nós plantamos estão dando caju. As frutas que nós plantamos estão todas dando fruta. Isso, sabe, faz poucos anos, então a gente teve um resultado prático do projeto. E aí eu percebi mais uma vez, sabe, não é difícil você mudar as coisas, você mudar uma realidade. Quando as pessoas querem mudar a realidade elas mudam, elas aprendem, elas veem os ensinamentos, elas adaptam os ensinamentos e elas fazem uma coisa melhor.

P/1 – Rosa, eu queria saber desse seu contato da cultura Xavante, pode ser dentro desse projeto piloto ou pode ser anterior nessa experiência que você teve de cobrir os rituais e tal, se teve algum episódio, alguma história, uma situação que tenha te marcado assim do contato com a cultura mesmo. Que você tenha vivenciado de repente fotografando esses rituais.

R – Olha, cada assim... Eu fiquei 15 anos fotografando pensando no enquadramento, na cor, porque eu trabalho tudo cor, né? Na cor, na cor do céu, na cor da pintura das pessoas e olhando aquilo ali como se fosse manifestações deles muito longe de mim. Quando chegou o Darini, que é esse ritual que acontece de 15 em 15 anos, que eu fui pra aldeia e aí se reuniam essas três aldeias, porque eles são todos parentes, essas três aldeias. Porque o Xavante é assim, a aldeia começa a crescer muito, fica grande demais, eles dividem. Porque é impossível você organizar toda a coisa da comida, a coisa da convivência e tudo numa aldeia muito grande. Então naturalmente eles se dividem e fazem outra aldeia. Então essas três aldeias que originalmente eram a aldeia de Pimentel Barbosa que eu trabalho até hoje, eles se juntam pra fazer os rituais. Então quando eu cheguei lá em Pimentel pra fechar o livro várias pessoas, turistas que estavam em Wederã inclusive queriam ir pra cobrir o Darini. Aí o Supitó que é o cacique da aldeia não deixou, falou: “Não. A gente não quer ninguém aqui”. E aí eu me dei conta que só estava eu. Eu com 600 índios durante 15 dias, noite e dia fotografando e acompanhando tudo, só eu de waradzu. E aí me caiu a ficha, eu pensei, cara, eu sou uma pessoa privilegiada porque um monte de gente quis vir, o Supitó não deixou. Eles sabiam que era importante a gente terminar o trabalho pra fechar o ciclo, fechar o livro, fechar o vídeo que o Caimi tava fazendo paralelo ao livro, o Caimi Waiasse tava fazendo um vídeo, ele gravou tudo, que foi o vídeo Darini, foi outro vídeo. Então assim, eu me dei conta numa noite assim estrelada depois de uma reunião, os Xavantes têm uma reunião que eles fazem ao amanhecer todos os dias, os homens Xavantes se reúnem ao amanhecer e no fim da tarde, chama warã que é no meio da aldeia que só vão os homens. E quando eu vou lá eu sou chamada pra ir lá nessa reunião porque eu sou de fora, eu sou mulher, mas eu sou de fora. E aí eu tenho que falar as coisas que eu quero, tal. Aí eu falo, eles traduzem, aí eles resolvem lá: “Como é que vai fazer, a Rosa quer ir lá fotografar não sei o que, não sei quem...”. Eles organizam tudo nesse warã. E aí a gente tava lá no warã, eu falei o que tinha que falar, aí eu sentei lá e fiquei escutando eles falando Xavante, aquele céu estrelado, fim de tarde assim, começou o céu, aquele céu do Mato Grosso que é fantástico, eu sentada lá e pensando: “Cara, eu sou escolhida de estar aqui escutando esses caras que eu não entendo nada que eles falam e eu aqui, a única mulher nesse aqui nesse meio”. E de repente, assim, eu sou uma pessoa especial pra eles, do jeito que eles são especiais pra mim. E aí o Sereburã, que é um grande chefe que é um bem velhinho, eu gosto muito dele, ele gosta muito de mim, ele é bem grandão, fortão e todo mundo morre de medo dele. O Sereburã falou pra mim: “Rosa, vamos comigo”. Que a aldeia é circular assim, são umas 40 casas assim, a dele fica bem no meio do círculo, assim meio círculo, né? Aí ele falou: “Vamos comigo porque os cachorros de noite podem te atacar se você for pelo meio da aldeia. E você vai aqui por trás, vai pela pista do avião...” que tem uma pista de terra pra escola onde eu tava hospedada lá na frente, uns 800 metros assim. Aí ele falou: “Vamos que eu te acompanho lá na estrada”. Ele me levou até a estrada, até a antiga pista de pouso, deixou-me lá e falou: “Agora você vai. Vá Rosa”. E tava assim uma noite de muita estrela, mas não tinha lua. E ele voltou e me deixou, eu tava com a lanterna e eu fui andando aí eu escutei um som de flauta, eles têm uma flauta transversal, os Xavantes, que ela é bem assim um som grave, sabe, faz uuuuuuuuuuu, que é um som que eles chamam as pessoas pra virem pros rituais, certos rituais e tal. Só que nessa noite eu presenciei uma coisa que eu nunca tinha visto, nunca tinha ouvido na verdade, porque eu não vi nada. Depois o professor me explicou, a aldeia é redondo assim, em volta da aldeia os guerreiros ficam longe da aldeia dentro do cerrado, assim de 50 em 50 metros fica um cara com uma flauta dessa, em volta da aldeia inteira, no círculo inteiro da aldeia em volta. E a noite inteira os dois clãs têm que tocar essa flauta transversal e é uma coisa tipo um toca, o outro toca pra ver quem que vai dormir antes, porque chega uma hora que eles ficam tão cansados que alguns dormem. E é tipo uma competição assim entre aspas, ganha quem conseguir tocar mais bonito. E eles ficam a noite inteira tocando. Só que é uma vibração assim uuuuuuuuu e era uma coisa em volta da aldeia assim, então tinha uma energia subindo no ar e um barulho forte de todas essas flautas em volta dessa aldeia tocando ao mesmo tempo. Eu fui andando pra casa, eu não tinha escutado, eu escutando isso eu pensei, cara, realmente foi a coisa mais incrível que já me aconteceu. A energia desse som, naquele céu estrelado, com essa gente que tava lá dentro daquele mato que eu não tava vendo ninguém, mas ao mesmo tempo eu estava sentindo-os. Eu olhei pro céu e pensei, cara, realmente eu sou sortuda demais, sabe, porque eu tenho esse som na minha cabeça até hoje assim, eu gostaria de ser uma pessoa tecnicamente avançada pra essa coisa de gravação e tudo pra ter gravado isso, porque era uma coisa mais incrível assim que eu já escutei. E aí me deu um insight que eu comecei a entender tudo, por que eu estava ali, durante todos esses anos porque eu estava ali, entendeu? Por que eu fui lá, às vezes eu ia de ônibus sem dinheiro, eu pensava, cara, eu aqui nesse ônibus, tanta coisa para fazer em São Paulo eu indo lá pro meio do mato. E aí eu me dei conta de que eu era uma pessoa escolhida por eles, pra fazer essa ponte, que eles precisavam de mim, eu era uma pessoa importante pra eles pra trazer toda essa cultura pra cá e pra levar as coisas pra lá pra eles. De fazer essa ponte e que isso era uma coisa espiritual, não era uma coisa física. Aí eu comecei a perceber a espiritualidade deles que eu não percebia antes, porque eles são muito pão, pão, queijo, queijo. Eles são muito assim, organizados, eles são muito assim, sabe, vamos, não vamos. E aí eu percebi esse lado que eu não percebia nesses rituais, no Darini. Chama iniciação espiritual dos meninos Xavantes. Eu acho que pra mim foi uma iniciação espiritual também de certa forma. Eu percebi a importância dos rituais na cultura e na formação de uma criança, de um ser Xavante. Os rituais são como se a gente for na escola, mas é mais do que isso, é como se a gente fosse na escola rezando, eu acho, ou meditando, melhor. Eles aprendem tudo nos rituais, os rituais são passagem de conhecimento, então quando a criança tem dois anos alguns conhecimentos são passados pra ela nesse ritual dos dois anos. Aí quando ela tem cinco, dez, 15, 20, quando eles têm 50, 60, eles estão ainda aprendendo com os mais velhos coisas que só os mais velhos podem aprender. Por isso que eles falam que quando morre um velho a comunidade chora e fica num luto profundo, porque morreu uma enciclopédia viva ali, um cara que sabia muito de coisas tradicionais de muitos séculos. E é incrível todo esse conhecimento na cabeça desses caras. É fantástico. Pra gente é uma coisa que a gente não imagina. E aí eu percebi isso, que o meu papel ali não era ficar tirando foto, o enquadramento, a cor e tudo. O meu papel ali era muito mais do que isso, era entender aquilo tudo, entender por que eles faziam aquilo tudo e entender que aquilo tudo ali fazia parte assim de construir um ser, de construir uma pessoa. E pra mim assim, foi um momento muito especial porque eu descobri que eu tava com câncer de mama nesse ano, um pouco antes de ir pra esse Darini. E aí quando eu falei pro médico, falou: “Olha, você tem que operar daqui a 15 dias”. Eu falei: “Não, doutor, eu não posso. Eu tenho que fotografar o Darini”. O médico era um alemão, o cara me olhou, ele pensou: “Essa mulher pirou. Eu estou falando pra ela que ela está com câncer de mama e pode morrer e tem que operar daqui a 15 dias, a mulher quer ir lá fotografar os índios”. Aí eu expliquei pra ele, eu falei: “Olha, eu estou esperando faz 15 anos acontecer esse ritual, se eu não for... Tem certas pessoas me esperando, não tem como eu não ir”. Aí o cara falou: “Putz, o que eu faço com essa mulher? Então o seguinte, você faz os exames, enquanto espera o resultado dos exames você vai, em 15 dias eu quero você aqui de volta. Dia tal eu quero você aqui.” “Tá bom, doutor, eu volto”. Porque a minha ideia primeiro era ficar o mês inteiro. Aí eu fiquei no começo depois voltei por causa disso. Eu estava lá no meio e eu tava apavorada porque eu nunca tinha ficado nem resfriada e de repente eu descobri que eu estava com câncer de mama e que eu podia morrer. Aí eu fui lá fotografar e essa noite quando eu escutei esse som eu pensei: “Cara, e agora? Será que eu vou morrer?”. Eu deitava na rede eu chorava assim de noite sozinha, porque eu não tinha falado pra eles, eu não tinha falado pra ninguém que eu estava doente porque eu não queria estragar a história deles, entendeu? E eu não queria que eles ficassem com pena de mim também. E aí eu fiquei lá e lá, um amigo meu, o Jurandir falou pra mim, o Siridiwe, eu falei: “Jurandir, eu estou com câncer, eu estou com câncer de mama”. O Jurandir falou: “Rosa, nada vai te acontecer depois que você passar pelo Darini”. Ele me falou assim eu indo, atravessando a quadra pra fotografar lá o negócio, atravessando o campo de futebol. Ele falou: “Nada vai te acontecer depois que você passar o Darini. Fica tranquila”. Eu falei: “Jurandir, eu estou morrendo de medo de morrer.” “Você não vai morrer. Fica tranquila que quem passa pelo Darini não acontece nada, você vai ficar numa boa, você vai ficar bem”. E pra mim foi uma força espiritual muito grande isso porque eu tava, digo-te sinceramente, eu tava apavorada. Eu tinha levado um susto assim, o cara falou: “Você está doente.” “Imagina, esse exame não é meu.” falei pro médico. O médico falou: “Pô, a mulher pirou”. Então aí eu fui, fotografei o início, voltei pra São Paulo, operei, saiu a biopsia do meu câncer, aí o médico falou assim: “Olha, se você tivesse esperado seis meses você tinha morrido. Você teve um câncer altamente invasivo, você é uma sortuda”. Eu falei: “Eu sei que eu sou sortuda”. Aí ele falou: “Rosa, você não tirou na loto, você tirou na quina da loto, porque o seu câncer estava encapsulado dentro do canal do leite do peito então por isso que não espalhou. Então você é uma sortuda cinco vezes”. Eu falei: “É, doutor, eu sei, os Xavantes...”. O cara não entendeu nada. Aí eu fiquei boa e depois no final eu voltei, acabei de fotografar o ritual e depois nós fizemos a exposição aqui em São Paulo, trouxe os índios, veio um ônibus de índio, lançamos o livro, tal. Depois eu levei pro médico que me operou o livro, aí ele entendeu um pouco assim o que era. Pra mim foi uma coisa... Eu nunca tinha contado isso pra ninguém assim. Foi uma coisa muito especial porque aconteceu exatamente esse Darini justo quando eu fiquei doente e aí eu pensei: “Cara, será que eu vou sair dessa?”. E aí realmente eu saí dessa. Passaram-se cinco anos, tal, eu estou curada do câncer. Então eu tenho certeza que pra mim foi também uma cura ter passado por tudo isso, ter feito esse trabalho, ter feito esse contato com esse povo que hoje é a minha família. Então não consigo me... Assim, por mais que a gente não tenha replicado o projeto em outras aldeias, a gente não desistiu da ideia. Eu até tava falando a exposição desse projeto dos rituais está hoje lá no Sesc Itaquera, ela abriu o mês passado, a gente continua circulando com essa exposição dos rituais, a gente traz os Xavantes pra falar, a gente passa os vídeos Xavante. Então eu continuo fazendo o meu trabalho. Agora, nessa parte da saúde realmente eles têm que fazer de um jeito que eles levem isso pra frente, porque eu já expliquei pra eles, não sou eu que vou fazer. Eu não tenho cabeça pra fazer porque eu não sou uma pessoa dessa área, eu sou uma pessoa da área de comunicação, mas a gente continua o trabalho de divulgação e de formação das crianças. A escola nesses anos duplicou dez vezes, tinha uma escola de 50 crianças, hoje tem 500 crianças estudando em três turnos. Eles estão indo pra universidade, Cipassé acabou de ser formar na universidade, o Caimi está fazendo Pedagogia, forma-se o ano que vem. Então eles estão tendo acesso a educação, eles estão estudando, eles estão se formando e é o que eu falo: “Cipassé, vocês têm que formar médicos”. Os médicos Xavantes têm que implantar esse projeto nas aldeias porque os médicos waradzu por mais que queiram fazer, os waradzu não entendem toda a diferença que existe entre nós e eles. É muito grande.

P/1 – Eles têm algum estudante de medicina hoje, você sabe?

R – Não. Eles têm estudante, que eu saiba, de enfermagem, mas medicina ainda não tem nenhum. Mas eles vão ter. Eles estão se formando advogados, eles estão indo pra universidades, eles estão fazendo Geografia, estão fazendo Biologia, estão fazendo Ecologia. Eles perceberam, eles estão aprendendo e estão percebendo que se eles não forem fazer ninguém vai fazer por eles. Porque só eles sentem na pele o que é um filho teu morrer de pneumonia, um filho teu morrer de dor de barriga hoje no século 21, morrer de diarreia.

P/1 – Rosa, o contato que você tem com eles hoje é pela Nossa Tribo? A Nossa Tribo continua ativa?

R – A Nossa Tribo continua ativa. A gente assim, eu fiquei três diretorias, diretora eu não posso mais ser diretora, a gente está repassando essa diretoria, mas a gente continua fazendo um projeto de divulgação tanto com os Xavantes como com os Guarani Mbya em São Paulo a gente faz esse trabalho. A gente fez um projeto de mandar os Guaranis pra aldeia Xavante, mandar os Xavantes pra aldeia guarani. Agora os Xavantes estão indo no Sesc Itaquera, as crianças guaranis vão encontrar os Xavantes no Sesc Itaquera, a gente está conseguindo fazer essa ponte de novo, levar as crianças que já forma pra aldeia. Então assim, ampliar o contato entre eles, ampliar essa comunicação das aldeias mesmo de São Paulo, como é o caso dos Guaranis, com a gente aqui de São Paulo que ninguém os conhece.

P/1 – É um trabalho mais de cultura assim o que vocês fazem hoje? Só pra eu entender melhor qual que é...

R – É um trabalho mais de cultura. Esse trabalho na área de saúde foi esse projeto e a gente assim, o projeto virou referência, a Funai pede o material do projeto, o Ministério da Educação, todo mundo achou bárbaro, achou lindo, maravilhoso. Nós tentamos vender esse material pra ser distribuído nas aldeias, mas nós não conseguimos. É tudo muito complicado, o Brasil é muito grande, é muita política, é muita gente aí no meio das histórias. Os índios têm pouco poder em Brasília, esse governo que a gente tem agora não liga muito pros índios, foram feitas pouquíssimas demarcações nesse último governo. Eles têm uma dificuldade de comunicação. Então eu não sei, é difícil, é muito difícil.

P/1 – Rosa, eu fiquei com uma curiosidade, você falou, é Dariê, o nome do ritual que você cobriu? Qual que é... Tem uma faixa etária e são só homens?

R – Não. A iniciação espiritual dos meninos Xavantes é só pros meninos. A maior parte... Todos os rituais Xavantes são rituais feitos com os meninos. As meninas tinham um ritual, as mulheres, que não existe mais. As mulheres recebem os conhecimentos nas casas com as mães. Os meninos recebem os conhecimentos através dos rituais com os pais e padrinhos. O Darini participam crianças de dois anos até jovens de uns 17, porque eles são obrigados a passar por esse ritual. Então se eles quando eram pequenos não foram, eles crescem, depois de 15 anos eles vão estar com 17, então eles têm que participar.

P/1 – Entendi. Eu vou encaminhar então pras perguntas finais. Queria falar um pouquinho só dessa relação com o Criança Esperança, saber desde quando você conhece o Criança Esperança e o que você sabe do projeto de uma maneira geral. E qual que você acha que é a importância desse tipo de recurso pros projetos sociais, no seu especificamente, né, pra esse projeto da Nossa Tribo, e de uma maneira geral.

R – Eu já conhecia o Criança Esperança, que é superdivulgado pela Globo. A gente mandou o projeto, realmente a gente não imaginava que ia conseguir aprovar esse projeto assim de primeira. Pra nós foi superimportante. Foi numa época que a comunidade Xavante estava precisando muito de uma força na área de saúde, porque depois com os outros governos a área de saúde melhorou, mas naquela época assim eles estavam morrendo mesmo igual moscas. Então assim, foi crucial pros Xavantes ter feito esse projeto, foi crucial pra eles aprenderem que eles podiam reverter as situações que aconteciam com eles. Pra mim também de perceber que tem tanta coisa que a gente não conhece que a gente pode aprender. Eu acho que o Criança Esperança como deu ajuda pro Nossa Tribo que era uma ONG recém formada, eu fundei a Nossa Tribo em 2004, em 2005 nós conseguimos aprovação do projeto, quer dizer, foi o primeiro projeto que a gente conseguiu aprovar. Deu uma superforça pra nós e eu acho que é imprescindível. Eu acho que o Brasil deveria ter muito mais projetos Criança Esperança. Eu acho que mudou muito a situação da população com menos recurso, nesses últimos anos. Eu vejo isso com os índios, eu vejo que a área de educação melhorou bastante, a área de saúde está bem melhor, eu tive lá na aldeia o ano passado, eu realmente vi, está bem legal, tem pessoas bárbaras trabalhando lá agora, tem um esquema mais legal. Assim, é imprescindível dar força pras pequenas ONGs, que fazem trabalho como a gente faz, porque às vezes a gente percebe coisas que as grandes entidades não percebem, por exemplo, o tratamento de saúde feito pros índios tem que ser um tratamento diferenciado, tem que partir de escutar as pessoas. A gente, o branco, a gente acha que a gente sabe tudo. A gente não sabe nada. E é muito complicado, a gente tem mania de chegar impondo as coisas. Quando a gente chega impondo a gente acha que vai fazer, muitas vezes tem tanto dinheiro direcionado pra certos projetos que é jogado pela janela, pelo ralo porque as pessoas não entendem o que elas estão fazendo, porque elas não têm a humildade de escutar as outras, de escutar a sabedoria do outro. Não só dos índios, dos negros, dos favelados, caras que moram no meio da floresta. São outras culturas, o Brasil é muito grande, e são jeitos de fazer as coisas diferentes e não são jeitos nem melhores nem piores, são só outros jeitos. Então existe uma falta de comunicação e as pequenas ONGs trabalham assim com projetos porque elas percebem essas coisas que os grandes não percebem, que às vezes o governo não percebe, às vezes pessoas que querem fazer trabalhos, que têm dinheiro, de repente não entendem como é que elas têm que fazer aquele trabalho na verdade. Porque elas acham que porque elas estudaram nos Estados Unidos ou fizeram pós-graduação na França elas vão mudar uma realidade. Não muda. Tem que escutar as pessoas. Eu acho que o diferencial todo, o segredo é esse, você partir do princípio de que as pessoas abracem o teu projeto, de que elas queiram fazer. Quer dizer, a gente ficava dez dias lá, mas os outros 20 dias os xavantes ficavam lá sozinhos fazendo as coisas. Eles faziam porque eles queriam. Eles plantaram porque eles quiseram, eles foram coletar porque eles quiseram, porque eles entenderam que aquilo era bom pra eles. Eles queriam melhorar uma situação e aí eles perceberam, opa, com o que eles ensinaram mais com o que a gente sabe vamos juntar tudo, fazer uma dobradinha e vamos reverter essa situação de gente morrendo aqui. E eles fizeram. A gente só gerenciou, eles que fizeram. Eu acho que esse é o diferencial.

P/1 – Tá certo, Rosa. Eu vou fazer a última pergunta então. Antes eu queria saber se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado ou que você gostaria de acrescentar.

R – Acho que não. Acho que eu falei demais, pra quem ia falar meia hora eu acho que eu já estou aqui umas duas horas falando.

P/1 – Mas foi ótimo. Então pra gente encerrar eu queria saber quais são seus sonhos hoje.

R – O meu sonho é que essas populações indígenas, não só os Xavantes como todas os 260 povos indígenas que existem diferentes no Brasil hoje, tenham acesso a educação e saúde. Eles tenham acesso a informação porque na hora que esses caras que são mais ou menos um milhão de pessoas tiverem acesso a informação, tiverem o acesso ao nosso conhecimento e puder juntar com o deles, o Brasil vai ser outro Brasil. O Brasil se escutasse os índios seria bem melhor. O Brasil mudaria, sabe? Porque eles sabem o que é bom pro equilíbrio da natureza, que hoje você vê, estamos ferrados aqui sem água. Por que a gente estraga tanto a natureza? Por que a gente estraga tanto o mundo? Por que a gente faz tanta guerra? Por que a gente briga? Por que tem tanta violência? Esses caras não têm nada disso, qual que é a diferença? Eles têm uma sabedoria que a gente não respeita. Se a gente escutasse mais eles a gente ia ser primeiro em tudo assim, qualidade de vida, ecologia, equilíbrio, natureza, felicidade, alegria, saúde, família. Seria tudo melhor. Mas a gente se acha muito superior, esse que é o problema. Enquanto a gente pensar assim as coisas não vão mudar. Mas eu acredito muito assim, eles estão fazendo uma revolução, de dez anos pra cá eu estou percebendo uma revolução só vendo essa moçada na escola, na internet, no Facebook, filmando, fotografando. Olha, esses vídeos, esse vídeo foi selecionado... Esse vídeo do Nutrição Infantil ganhou o primeiro prêmio de vídeo nas Américas num festival no México chamado Vozes do Silêncio. Ainda ganharam três mil dólares de presente, ainda foi ótimo, além de ganhar o prêmio ganharam o dinheiro. Ele foi selecionado pra mostra de cinema de Gramado, esse vídeo, feito por dois meninos que nunca tinham feito um vídeo na vida. O outro vídeo Darini que o Caimi fez foi selecionado pra Mostra de Cinema de São Paulo, sabe? A gente mandou achando que de repente de curiosidade o vídeo foi selecionado, entrou no livro da mostra de cinema. Quer dizer, esses caras começam a fazer as coisas eles fazem direito, eles fazem certinho, eles fazem com o olhar deles, uma coisa diferente, uma coisa pra gente aprender. Eu acho que se a gente parasse pra pensar, se realmente o Brasil parasse pra pensar, os políticos brasileiros não fosse o que eles são, se tivesse outra formação, mas eu acredito ainda que as coisas vão mudar. Eu acho que grande parte disso vai se dever aos conhecimentos indígenas e aos conhecimentos dos negros no Brasil quando eles tiverem mais voz.

P/1 – Tá certo, Rosa. Muito obrigada, viu.

R – De nada.

P/1 – Foi ótimo.


FINAL DA ENTREVISTA