Museu da Pessoa

Multiplicar meu conhecimento pro mundo

autoria: Museu da Pessoa personagem: Juraci Maria da Silva

P/1 – Boa tarde, dona Jura.

R – Boa tarde.

P/1 – Dona Jura, qual o nome da senhora completo, o local e a data de nascimento?

R – Juraci Maria da Silva. Nasci em Lagoa de Itaengá, dez de março de 59.

P/1 – E o nome dos pais da senhora?

R – É Josefa Maria da Conceição e José Mariano da Silva.

P/1 – O que eles faziam, dona Jura?

R – Eles eram agricultores.

P/1 – E como eram seus pais?

R – Meus pais eram muito interessantes. Eu baseio uma parte da minha vida neles, uma parte eu aprendi depois que eu saí da presença deles. Mas meus pais eram muito interessantes porque era bem contraditório. O meu pai era bem pacífico e a minha mãe era aquela pessoa determinada, decidida, em busca das coisas, de lutar pelas coisas e também enfrentar as coisas com bastante seriedade. Meu pai já era mais pacífico. Então, eu aproveitei um pouco de cada, porque tem um momento que a gente precisa ser pacífico, precisa escutar, precisa parar, coisa que minha mãe não fazia. A minha mãe não analisava o que ela ia falar. Ela era muito momentânea, as coisas com ela, ela não parava pra analisar as consequências das coisas.

P/1 – E eles eram de lá, desse município?

R – Eram. A minha mãe é de Lagoa de Itaengá e meu pai é de Glória do Goitá, uma cidadezinha bem próxima, eles eram bem próximos um do outro. Eles se conheceram lá. A gente nasceu lá e depois a gente foi pra uma cidade que não ficava muito próxima de lá, foi onde eu me criei, que é Feira Nova.

P/1 – E você teve quantos irmãos?

R – 12, era 12 comigo. Eu sou a mais velha dos 12. Até meus 17 anos eu era analfabeta, com 17 anos eu comecei a estudar a Carta de ABC que eu não sei, acho que vocês nem sabem a Carta de ABC. Foi muito rápido. A gente se criou em um local que não tinha escola, aí na época veio o Mobral pra região. Só que só os adultos podiam estudar no Mobral, as crianças não podiam estudar. Como eu sempre fui de participar das coisas do local, acabou que eu comecei a aprender dentro do Mobral, mas eu não podia ser cadastrada no Mobral porque parece que tinha uma idade, na época criança ou adolescente não podia, só adultos. Mas eu aprendi porque a gente ia junto e eu acabei aprendendo a Carta de ABC.

P/1 – Isso em qual cidade?

R – Em Feira Nova. Com meus quatro, cinco anos a gente foi pra Feira Nova. Eu praticamente me criei lá e fiquei até os 17 anos. Com 16 anos e pouco eu comecei a estudar e depois que eu estudei, eu sempre tive aquela curiosidade de conhecer o mundo, a cidade grande, as coisas diferentes, só pra quem não sabe ler isso era difícil. Então eu me angustiava muito.

P/1 – E seus pais, eles sabiam ler e escrever?

R – Meu pai sabia ler. Ele não tinha nenhum grau porque naquela época o pessoal aprendia a ler, mas não tinha nenhum grau de escolaridade, a não ser aqueles que migravam, iam pra cidade grande. Quem estudava lá nos locais não tinha grau de escolaridade, eles aprendiam a ler, escrever, inclusive meu pai lia muito bem, ele contava muita história pra gente, que hoje eu vejo nos livros, nas coisas. A minha mãe era analfabeta de tudo, nem assinava o nome dela.

P/1 – E como foi a infância de vocês lá em Feira Nova?

R – Olha, eu costumo dizer... Espera só um pouquinho (emocionada). Eu costumo dizer que eu não tive infância. Eu fui criança, depois jovem e adulto. Eu sou irmã de 11 irmãos, então eu peguei a responsabilidade de cuidar dos meus irmãos com a minha mãe muito cedo. Muitos irmãos pequenos. E acabou que o fato de eu ter pego essa responsabilidade, eu nem lembro da minha infância. Eu não brinquei de boneca porque eu tinha que cuidar deles, tinha que olhar. A minha mãe trabalhava. E como eu era mais velha, eu e o meu outro irmão que faleceu, era a gente quem assumia a maioria das coisas, de ir em busca das coisas, de levar os recados pra minha mãe, de cuidar de buscar remédio pros pequenos. Até hoje a gente ri que precisava fazer, a gente fazia um tratamento da malária e passava um pessoal que tirava o sangue da gente e colocava num vidrinho, lá na região que a gente morava, que eles estavam derrubando mata, então tinha muito...

P/1 – Muita incidência de malária.

R – É. Inclusive, a gente fez tratamento por muito tempo de malária. Aí teve uma época que passou um pedido, eu nem lembro quem foi, a gente era criança ainda, que era pra todo mundo fazer exame de fezes porque tinha muitos problemas de verme, de muitas coisas. Nós éramos em 12, juntamos as fezes de todo mundo pra levar. Só que fazia isso em Limoeiro, numa cidade mais avançada. Juntamos as fezes de todo mundo, separamos em vidrinhos e não colocamos o nome (risos). Quando cheguei lá... E era uma viagem. O horário a gente via pela lua, a minha mãe ensinava, que a gente não tinha rádio, não tinha televisão, muito menos relógio. Aí minha mãe falava que era pela lua, quando a lua estivesse não sei onde, porque hoje nem lembro mais, eu era bem criança, aí a gente saía. Nesse dia a gente ia fazer farinha de mandioca, a gente tinha que arrancar mandioca, raspar e arrancamos a mandioca durante o dia e à noite ia raspar mandioca. A gente estava raspando um monte de mandioca, deixamos lá e fomos dormir um pouco pra depois ir pra Limoeiro levar essas fezes que era pra fazer exame. Era de todo mundo, já fazia o pacote de todo mundo. Só que não colocamos as etiquetas. Aí saímos de casa acho que não era nem 11 horas e cada vez que eu ia pra um lugar, por eu ser a mais velha...

P/1 – E como vocês iam? Vocês iam a pé?

R – A gente andava a pé por volta de uma hora, uma hora e meia, dependendo do lugar.

P/1 – Pra chegar em Limoeiro?

R – Pra chegar na pista e de lá pegava um carro pra gente ir. E tinha que chegar em Limoeiro antes das cinco horas, senão era muita gente, acabava a gente indo, chegava lá e não conseguia ser atendido porque a demanda era grande, era muita gente que vinha de cidades da região. Aí tinha que chegar lá muito cedo. Aí minha mãe falou: “Tem que ir de madrugada e pegar a primeira Rural que passava”. A primeira Rural passava na pista às quatro horas. Fomos. A minha irmã era menor e nesse dia eu tinha escolhido ela pra ir comigo e com a idade de ir, cada vez que eu ia eu determinava, um dia um ia prum canto comigo, outro dia ia outro. E nesse dia era a vez dela ir. Quando eu deitei, acho que não dormi nem 20 minutos, ela chegou chamando que já era hora da gente ir. E desorientada que a gente não tinha nada, saímos. Nossa, nesse dia a gente ia pra pegar a Rural, a gente tinha que ir pra pista nova porque ele não passava na pista velha.

P/1 – E vocês pegavam carona ou vocês pagavam?

R – Pagava a Rural. A única coisa que a gente pegava carona quando eram os carros de fazendeiros. Otaviano, que era um grande fazendeiro, tinha fazenda lá no Cumbi, era a região já do Limoeiro, não era nem de Feira Nova. Quando a gente pegava carona de fazendeiro a gente não pagava não, mas Rural sim. Tinha Rural e Jipe.

P/1 – E a senhora estava levando os potinhos.

R – Levando os potinhos de fezes que era pra fazer exame. Resultado, saímos de casa eu acho que não era nem 11 da noite. Tinha uma pista nova e a estrada velha e pra gente pegar a Rural de quatro horas tinha que ir pra pista nova porque eles não passavam na estrada velha de madrugada porque tinham medo porque acontecia muita violência. A gente morava lá e não tinha medo como acontece hoje. Volta e meia eu falo pro pessoal, tem gente que fala: “Você não tem vontade de mudar de Heliópolis?”. Eu não me preocupo em morar em Heliópolis porque eu moro aqui, então a gente tá acostumado. Talvez quem vem de fora tem essa preocupação. E outra que não tinha outra alternativa mesmo. Aí fomos pra pista nova. Quando chegamos na pista nova esperamos a Rural mais de duas horas e a Rural não aparecia. Aí fomos perceber, e do lado tinha uma cocheira, o pessoal tirava o leite das vacas. Fomos perceber que não era hora da gente vir porque eles estavam juntando as vacas pra tirar o leite e eles começavam isso às três da manhã. Então, acho que a gente chegou lá uma hora da manhã. E o mais interessante disso tudo: fizeram uma desova lá de uns oito corpos e a gente tava daqui ali desses corpos, que até hoje quando eu lembro...

P/1 – Corpos, pessoas?

R – Pessoas. Eles mataram lá em Chão de Alegria e foram desovar lá, até dentro de um saco. E a gente tava próximo. Até hoje eu falo pras meninas, no meu vocabulário não tem medo porque a gente já passou por tanta coisa que você acaba cicatrizando, se tiver que acontecer... Eu não procuro...

P/1 – E no final vocês chegaram lá...

R – Então, amanheceu...

P/1 – Vocês ficaram esperando bastante.

R – Quando eu vi que não era cedo, a gente foi se esconder atrás de umas moitas de capim, tinha uns capins grandes, a gente ficou com medo porque passava carro e ali ninguém sabe. E eu acho que esses corpos desovaram lá, a gente até viu porque chegaram, muito silêncio, pararam, ficaram um bom tempo e a gente ficou com medo deles pegarem a gente. Na época a gente tinha medo do ‘papa figo’ não sei se vocês já ouviram falar.

P/1 – De quê?

R – Papa figo. Diziam que tinha um lobisomem que pegava as crianças e tirava o fígado. A gente não chamava papa fígado não, era papa figo. E a gente tinha medo, quando a gente era criança a gente tinha medo disso. E aí eu falei: “Vamos nos esconder aqui porque aquilo pode ser papa figo, aquele carro”. Porque veio o reflexo do carro, parou e ficou um bom tempo lá, acho que tirando os corpos. Só que na hora a gente não ficou sabendo, a gente só ficou sabendo quando a gente voltou do Limoeiro que a notícia tinha se espalhado, que encontraram esses corpos lá.

P/1 – E quando vocês voltaram de Limoeiro, vocês chegaram a entregar lá os potinhos?

R – Então, ficamos atrás. Resultado: a minha irmã, com sono, dormiu no meu colo. E como a pista era nova, então tinha a pista em cima e pra gente descer prum lado e pro outro era barranco. A gente desceu o barranco pra não ficar na pista, só eu e ela, porque poderia acontecer uma coisa porque tava muito cedo. Na hora da gente sair, o dia foi clareando, a hora da Rural vir, ela dormiu no meu colo atrás da moita. E para eu subir com essa menina no barranco? Nossa, foi o maior sacrifício. E ela não acordava. Ela era pequena. E quando chegamos lá já atrasadas porque com esse processo todo passamos do horário. Se tivesse ido reto tinha chegado no horário. Um mundaréu de gente. Aí tinha umas fichas, terminava as fichas não podia ser mais atendida. Mas eu acho que porque a gente era criança deram a vez pra gente.

P/1 – A senhora tinha quantos anos, mais ou menos?

R – Na época eu tinha de sete pra oito anos. Deram a vez pra gente. Quando chegou na nossa vez: “De quem é quem aqui?”. Quem era que sabia? Tinha misturado tudo os potinhos dentro da sacola. Aí esse sacrifício todo pra nada, pra nada, pra nada. Voltamos. Tinha uma feira lá, eu fazia a feira e colocava na Rural. Na volta o meu pai ia esperar na pista lá.

P/1 – Dona Jura, a senhora estava falando da sua irmã? A senhora teve 11 irmãos. A senhora foi a primeira, e em seguida qual o nome dos irmãos da senhora?

R – Tem Juraci, Jurandir, Jucedique. Depois veio o Mariano, que é José Mariano, mas chamamos ele de Mariano. Depois veio o Antonio, a Marlene, Iva, Edmilson, Edilson, Edgar e a Maria José, que é essa que você viu. Marlene e Maria José praticamente se criaram comigo. A Marlene saiu da minha companhia aos 17, 18 anos, ela tava aqui e foi pro Pernambuco. Quando ela foi a Maria José veio, que é essa mais nova. A Maria José veio pra cá com seis anos, ficou comigo até os 12, foi pra lá, ficou um ano e voltou com 13 e até agora ela não voltou, está por aí. Só não mora mais comigo.

P/1 – Dona Jura, mas na infância da senhora, a senhora estava cuidando dos irmãos, a senhora fazia o quê? Fazia tudo? Comida, arrumava casa, passava roupa?

R – Eu sempre tive mais as tarefas de rua. Eu cuidava deles em casa, de comida, mas as tarefas de rua, eu costumo dizer que meus pais não tinham dinheiro, mas eles me deixaram uma herança muito interessante, que é saber como buscar as coisas, onde chegar, como buscar. Eu aprendi isso desde cedo. E a gente sempre precisou, se era pra ir pra médico, se era pra procurar uma escola, se era pra levar pra lazer, porque a gente também tinha lazer do jeito lá. “Ó, vai ter alguma brincadeira em tal lugar”, então eu era responsável por fazer essas coisas. Minha mãe não gostava de estar no meio de muita gente, ela tinha um problema sério porque ela tinha um gênio muito forte. E ela era gaga. Se ela chegasse em qualquer lugar e alguém brincasse, se ela escutasse alguém imitar ela... Então, desde o começo eu fui dominando a situação. A gente precisava de lazer.

P/1 – E qual é o lazer que tinha?

R – Eu gostava de cantoria de viola, tinha muito na minha região, eu ia bastante. Festa junina, ciranda. Tinha bastante coisa que a gente fazia. E muitos forrós. Só que forró eu nunca gostei porque saía muita encrenca. Eu nunca aprendi a dançar, sou nordestina. Engraçado que ironia do destino, meu pai era sanfoneiro e o pai dos meus filhos é um sanfoneiro pé de serra. Até hoje a gente ri que ele tem sanfona e dependendo da ocasião ele já anda com a sanfona, pandeiro, tudo dentro do carro. Mas eu nunca aprendi a dançar porque eu nunca entendi, nunca aceitei. Acho que a gente tem que ter a liberdade de fazer aquilo que você gosta e o que você quer na hora que você quer. E lá eles tinham tradição que se você estivesse no forró, na sala de dança, você tinha que dançar com todo mundo, com bêbado, tudo. E tinha uns bêbados enjoados, tinha uns que queriam mandar e volta e meia saía confusão. Eu gostava de ir, mas eu não dançava.

P/1 – Mas você ia pra essas festas desde pequena, então?

R – Desde pequena.

P/1 – Acompanhava seu pai que era sanfoneiro e levava as crianças.

R – Era... Acompanhava meu pai e aqueles que não dormiam porque os pequenos também tinha vez que iam e eu tinha que ficar olhando. E também eu já tinha a missão, se a gente ia em alguma diversão, algum lugar, eu já ia conhecer o lugar antes, se dava pra levar eles, se tinha lugar pra acomodar. Apesar que o pessoal lá é muito acolhedor. Onde você chega eles te acolhem muito bem. É pouca gente espalhada, mas o pessoal nordestino é muito acolhedor. Você conhece o Nordeste?

P/1 – Conheço, meus pais são nordestinos.

R – Ah, eles são de lá!?

P/1 – É.

R – De que lugar?

P/1 – Da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Mas dona Jura, a senhora ficou até com que idade lá em Pernambuco?

R – Eu fiquei no Pernambuco até meus 18 anos, aí eu vim pro Recife e fiquei quase dois anos. Cheguei no Recife com 18...

P/1 – Por que a senhora foi pro Recife?

R – Fui pro Recife porque meus irmãos eram menores do que eu e na nossa região não tinha expectativa, chega uma hora muita gente dentro de casa. A gente não tinha como ter uma expectativa de estudar, de trabalhar pelo menos porque lá não tinha emprego, você trabalhava na roça, criava, mas aquilo não era suficiente, então, alguém tem que conhecer o outro lado pra ver como...

P/1 – Dona Jura, seus pais eram agricultores, vocês plantavam e aquilo que vocês plantavam dava pra vocês viverem?

R – Dava, tinha época de dificuldade.

P/1 – E o que vocês plantavam?

R – A gente plantava mandioca, milho, feijão, banana, algodão, que o algodão era o que dava pra gente guardar dinheiro. A safra de algodão era quando a gente comprava as roupas de final de ano, guardava pra fazer as festas, era sempre o algodão. Farinha também, tanto que até hoje eu não aprendi, eu tenho 35 anos de São Paulo e eu não aprendi a comer arroz não, eu só como farinha com carne e feijão, eu como farinha com o que tiver na minha frente, eu faço farofa, eu não aprendi a gostar. Se eu chegar na tua casa e tiver arroz eu como, não tenho problema, mas quando eu faço o meu prato tem que ter farinha. Na minha casa eu sempre faço alguma coisa que possa acrescentar farinha.

P/1 – E na sua casa lá, quando você tava ainda lá em Feira Nova, você aprendeu a cozinhar lá?

R – Não. Eu fazia comida de casa. Só que era muito restrito, às vezes pra comer a gente tinha que matar. E era assim, alguém tinha que matar para eu fazer porque se eu visse...

P/1 – Matar galinha, porco?

R – Matar galinha, porco, cabrito.

P/1 – Vocês criavam porco também?

R – Criava. A gente tinha as vacas de dar leite. Eu não tomei, eu me criei com leite de cabra, só que depois foi evoluindo, inclusive eu arrumei uma, lá dizia bezerra, os filhotes, eu arrumei uma bezerra pra criar e depois a bezerra virou vaca, porque a vaca é quando tem os filhotes. Eu arrumei uma bezerra e essa bezerra se transformou numa vaca. Os meus irmãos mais novos tomaram leite de vaca, eu nunca gostei de leite de vaca, até hoje não gosto. Quando eu vou pra lá, que eles tiram, até hoje eu não gosto. Mas a gente criava bastante, a gente tinha fases, a fase de seca, e a gente tinha dificuldade. Mas a gente teve uma infância bem farta, graças a Deus.

P/1 – Dona Jura, como surgiu essa ideia de ir pra Recife?

R – Eu tinha uma tia que morava numa cidadezinha perto do Recife. Eu terminei a Carta de ABC e aí eu comecei a segunda série lá em Feira Nova. Só que lá eram muito disputadas as vagas, não tinha vaga, é como se fosse uma escola particular, se você tivesse dinheiro, se você tivesse posse, você conseguia estudar, se não tivesse não conseguia. E lá no Recife já era mais avançado. E aí eu convenci meus pais, porque como minha mãe costumava dizer que eu era a cabeça de casa e ela não queria que eu fosse. Eu falei pra ela que eu ia estudar (emocionada).

R – É tão interessante eu lembrar disso, parece que a gente vai rodando um filme. Eu fiquei uns seis meses ensaiando pra falar pra minha mãe que eu ia. Primeiro eu fiz uma visita na minha tia, inclusive ela hoje está paraplégica, nem levanta da cama mais, mas eu lembro dela com muito carinho. Primeiro eu fiz uma visita pra minha tia, e essa visita que eu fiz, que eu acho que minha mãe temia isso. Essa visita que eu fiz eu não contei pra minha mãe que eu ia pra lá. Falei pra ela que eu ia pra Lagoa do Itaengá. Não misturando as coisas, mas eu tenho um neto que quando ele tem um espaço ele foge da gente, sabe? Ele já me deu tanto susto. E aí as meninas falam: “Se eu fosse você eu dava uma surra nele”, mas aí eu lembro quando eu era adolescente, criança, quando eu sabia que as pessoas não iam deixar eu fazer, eu ia, mesmo depois sabendo que eu ia ter que arcar com as consequências, mas eu ia. E dessa vez que eu vim pro Recife eu falei pra minha mãe que eu ia pra Lagoa do Itaengá. Todos os nossos familiares, nossos tios, moravam lá, então pra ir pra Lagoa do Itaengá não tinha o menor problema, mas pro Recife era uma cidade grande que até assustava o pessoal.

P/1 – Mas você foi sozinha? Você tomou a decisão e foi.

R – De ir pro Recife?

P/1 – Isso, pro Recife.

R – Foi. Fui eu e um irmão, o Mariano, que eu sempre levava alguém comigo... Até mesmo porque às vezes os pais se preocupam, ah vai aprontar, vai fazer tal coisa, e você estando com alguém já alivia mais as coisas.

P/1 – Mas você disse pros seus pais que você ia fazer só a visita.

R – Quando eu saí de casa eu falei que eu vinha pra Lagoa do Itaengá, era a região onde eu nasci e meus tios todos eram de lá. Mas eu peguei o ônibus em Feira Nova e passei direto pra São Lourenço da Mata, que era onde minha tia morava. A minha tia já morava lá há uns cinco, seis anos, porque quando ela saiu lá de Feira Nova a gente era criança. Passou cinco, seis anos, a gente já tava maior. Passei direto pra lá, mas a gente tinha saído de casa pra ir pra Lagoa de Itaengá. Fui lá, fiz a visita pra ela, quando já tava na hora de sair ela queria que eu ficasse mais tempo, até trouxe umas coisas pra ela, que a gente plantava, a gente trouxe feijão verde, milho, abóbora, lá a gente chamava de jirimum, aí trouxe pra ela. Ela falou assim: “Zefinha é doida?”, ela chamava minha mãe de Zefinha, “Zefinha é doida deixar vocês dois virem sozinhos?”, eu falei: “Mas ela não deixou, a gente tá aqui escondido”, ela: “Misericórdia! Menina, tua mãe vai endoidar!”. Ela só tinha um filho e o filho dela não podia sair, mas a minha mãe, pelo fato de ter muitos e porque eu também saía bastante, ela não tinha essa preocupação. Eu tinha saído pra ir num dia e voltar no outro, que, às vezes, a gente vinha na sexta e voltava só na segunda, então nesse intervalo. Mas não levava muita sorte não, viu? Todos os perdidos que eu dava acabavam sendo descobertos até eu chegar em casa, aí tinha que levar uns seis meses para minha mãe esquecer e eu poder dar outro perdido, eu dava muito perdido nela. Por isso que, às vezes, quando minha filha fala que vai prum lugar, os meus filhos ficam enchendo o saco, como ela é mais nova: “Ah, a senhora sabe que ela foi pra lá mesmo?”, aí eu lembro. “Se ela não foi eu não vou nem me preocupar”.

P/1 – E como você foi pra Recife? Você deu um perdido?

R – Dei um perdido e fui. Nesse dia, a gente foi num sábado, eu dormi na minha tia, aí no domingo cedo eu peguei um ônibus, porque tinha dois ônibus por dia do Recife pra Lagoa de Itaengá. Voltei e fui pra Lagoa de Itaengá, não deixei de passar.

P/1 – Quanto tempo mais ou menos era, de ônibus?

R – Dava umas quatro, cinco horas. Agora dá menos porque melhoraram a pista, mas naquele tempo era só estrada de barro, naquela época dava umas cinco horas. Eu saí de Feira Nova era umas sete da manhã, quando eu vim pro Recife, a gente chegou no Recife já era quase duas da tarde. Até chegar em São Lourenço, subir Penedo.

P/1 – Aí chegando em Recife, qual a primeira impressão que você teve?

R – Primeiro eu vim fazer a visita pra minha tia. Aí eu cheguei lá e falei pra tia: “Tia, se eu quisesse vir pra cá, será que tinha como eu estudar aqui?”. Nossa, ela ficou... Eu achei até que ela não ia aceitar. Mas ela ficou muito feliz, foi tanto que quando eu saí da casa dela, até hoje quando eu lembro eu ainda sinto tristeza de como ela ficou. Ela falou que nunca mais ela ia deixar ninguém ficar na casa dela (emocionada). Eu perguntei pra ela, mas isso foi em junho ou julho, eu perguntei pra ela se eu quisesse vir pra lá pra estudar, eu estava ainda estudando em Feira Nova, só que depois da segunda série a gente não tinha mais escola pra ficar lá. Ela falou que eu podia ir, só que eu cheguei em casa e eu não falei logo pra minha mãe que eu tinha falado aquilo.

P/1 – Que tinha acertado com a tia.

R – Que tinha acertado. Ela falou que o tempo que eu quisesse ir pra lá eu podia ir. Isso foi em junho, julho, e eu só fui pra casa dela no outro ano, em fevereiro.

P/1 – E sempre em Lagoa de Itaengá?

R – Em Feira Nova.

P/1 – Mas a sua tia?

R – Não, essa tia que eu to falando ela morava no Recife. Eu acho que você não entendeu.

P/1 – Ah, ela tava em Lagoa de Itaengá, você encontrou com ela, você não foi diretamente pro Recife?

R – Eu acho que você não entendeu.

P/1 – Então me explique.

R – Eu morava em Feira Nova e falei pra minha mãe que vinha pra Lagoa de Itaengá, só que fui pro Recife.

P/1 – Pois é, e qual foi a primeira impressão que você teve quando você foi?

R – Quando eu cheguei lá na minha tia?

P/1 – Porque cidade grande...

R – Porque ela não morava mesmo na cidade grande, de onde ela morava que era um bairrozinho, como se fosse São Paulo, ela morava como se fosse Santo André, que dessa vez que eu fui lá eu infernizei meu primo e ele me levou na Praia de Olinda. E o meu irmão que tinha ido comigo ficou com medo da água do mar. Nooossaaa, não deu nem para eu curtir menina, nem para eu entrar na água porque ele acabou ficando com medo, chorando e a gente acabou indo embora.

P/1 – Então ela morava num município próximo a Recife.

R – Morava num município próximo, São Lourenço da Mata, ela não morava bem no Recife, não.

P/1 – Entendi agora.

R – Entendeu?

P/1 – Hunrum.

R – Eu saí de casa falando que vinha, mas isso foi o passeio, não foi o definitivo, não. Foi como começou, como surgiu a expectativa pra eu vir pro Recife. Aí quando voltei lá de São Lourenço da Mata e fui pra Lagoa do Itaengá porque eu tinha ido pra Lagoa do Itaengá, só que eu fui pra lá na volta, na ida eu não entrei lá não. Eu fiquei uns seis meses planejando, organizando as coisas como era que ia deixar, como era que ia fazer, parecendo mulher quando vai ganhar neném, não tem que fazer todo o enxoval? Assim foi. Tinha hora que minha mãe estranhava. Mas eu não podia falar pra ela antes, senão ela ia ficar o tempo inteiro falando que eu ia largar ela. O meu pai, ele é um pai maravilhoso que eu acho que todos os filhos queriam ter, mas como marido ele era muito sossegado, a maioria da responsabilidade, as coisas, era com ela, quem tinha que decidir. Então ela reclamava muito e cobrava da gente, de mim e do meu outro irmão mais velho, que faleceu, fez dois anos agora em julho que ele faleceu. Eu e ele éramos os dois mais velhos.

P/1 – Então, depois que a senhora foi lá e visitou sua tia, decidiu depois de seis meses, aí a senhora foi pra Recife.

R – Aí foi que eu voltei, que já tava tudo certo, eu já tinha falado pra ela: “No começo do ano eu venho pra cá e pelo menos já estudo”.

P/1 – Como foi sua experiência lá no Recife?

R – No Recife foi onde eu aprendi, foi a base da minha vida porque lá no Recife eu fui pra casa da minha tia, ela não tinha nenhum filho e foi uma fase que eu achei que eu não ia superar.

P/1 – Quanto tempo a senhora ficou lá em Recife?

R – Dois anos. Não chegou a dois anos, mas foi próximo, que eu vim pra cá.

P/1 – Aí a senhora foi sozinha? Ou foi com um irmão da senhora?

R – Quando eu tava lá, depois, eu tinha uma irmã, que ela só não é minha filha de leite, a Marlene, aquela que tava na foto ali do meu aniversário, ela só não é minha filha de leite porque na época eu não amamentava, mas quando a minha mãe ganhou ela, minha mãe passou mal e eu já fiquei cuidando dela. E ela nunca se desligou de mim, agora não que ela já é avó, eu também, aí agora cada uma tá com sua vida. Mas até ela ter filho, até minha mãe falecer, depois que minha mãe faleceu que eu fiquei chateada, uns meses antes, porque ela “maltratava” a minha mãe, aí acabou chateando e a gente se distanciou. Mas durante o tempo que eu tava no Recife ela ficou comigo um ano e pouco. Eu só não trouxe ela pra cá porque eu não sabia pra onde vinha, o que é que eu ia encontrar, mas ela ficou comigo lá no Recife.

P/1 – E no Recife, a senhora chegou a estudar, trabalhar?

R – Estudei! Meu primeiro emprego, eu trabalhei nas Clínicas, lá no Imip, foi numa lanchonete, lá no centro do Recife, na rodoviária velha. Eu estudava lá na Avenida Caxangá, comecei a estudar lá.

P/1 – A senhora estudava em qual período? À noite?

R – Estudava à noite. Lá no Recife eu trabalhei em foto, eu saía vendendo poster na rua, trabalhei numa lanchonete de um hospital lá na Santa Casa, que era lá no Imip. E no final, antes de eu vir pra cá, eu trabalhei numa loteria esportiva, ficava na Herculano Bandeira, lá no Pina, esquina com a Boa Viagem.

P/1 – E dona Jura, qual foi a impressão que a senhora teve do Recife quando a senhora chegou mesmo pra ficar? Qual foi o impacto?

R – Nossa, outro mundo. No primeiro dia mesmo que eu fui no Recife, é tanta coisa pra você ver, tanta coisa pra você admirar, que parece que você está em outro planeta. Foi muito, foi assim, muito especial. E mais interessante, eu sempre fui curiosa, o mais interessante disso é que eu gravava na memória passo a passo até o ônibus, como era, pra chegar em casa e falar pros meus irmãos. Era uma atitude assim de descoberta e aí eu falava pra eles, como a gente sempre fazia, eu falava pra eles. O Mariano, a gente chamava de Dadinho, eu falava: “Dessa vez o Dadinho foi, da próxima vez, quando eu for, aí eu levo”, escolhia um pra ir comigo. Só que acabou não dando tempo de eu vir antes de eu vir definitivo. Mas quando eu tava lá, cada vez que eu ia no interior eu trazia um, o que acabou depois vindo todo mundo, porque hoje eles moram no Recife. Nesse meio tempo quando eu tava no Recife, minha mãe sofreu uma agressão muito séria, aí ficou na Restauração. Porque lá no Nordeste tem muito capanga, fazendeiro, igual tava falando, a minha mãe tinha um gênio muito forte e a gente tinha um sítio...

P/1 – As terras eram de vocês?

R – Tinha o sítio, tinha as terras. E a minha mãe não permitia que animal dos vizinhos ficasse no nosso, ou vice-versa. Então, tinha muita briga de vizinho por causa de terra, de animal que estragava a lavoura do outro. E na época mesmo eu não tava lá porque fazia um ano que eu tava no Recife, quase um ano e meio, aí minha mãe sofreu uma agressão, ela ficou três meses no Hospital da Restauração.

P/1 – Que tipo de agressão?

R – Ela levou 42 cortes de foice. Até ela falecer, que depois disso ela ainda viveu quase 20 anos, mas quando ela faleceu um braço dela não tinha movimento, era travado.

P/1 – Por causa desse?

R – Porque cortou. Ela tava sentada, alguém tinha que levantar, ela viveu 20 anos nessa situação. E foi uma coisa que foi o que fez eu vir pra cá, porque lá no Recife eu tava me arrumando, eu não ganhava muito, mas quando eles vieram pra cá eu tive que vir pra cá porque o que eu ganhava lá não ia dar pra sustentar. Porque enquanto eu tava lá eu ajudava e tava próximo, eles estavam no interior, mas com essa agressão que aconteceu com a minha mãe, e a minha mãe era quem buscava as coisas, quem mais decidia, sem ela trabalhando não dava pros meus irmãos ficarem lá. Foi quando a gente vendeu as terras. E até mesmo a gente tinha que sair de lá porque a gente ficou com medo porque ficou falando que teve reportagem, isso foi pra mídia. E como ele era capanga de um fazendeiro.

P/1 – O agressor era um capanga de um fazendeiro?

R – De um fazendeiro. Ele era capanga do Otaviano, que tinha um monte de fazenda no Paraná, lá, em tudo quanto era lugar ele tinha fazenda. Então, eles tinham carta branca pra fazer o que eles tinham vontade e depois ele saía daí.

P/1 – Poderia ameaçar a família de vocês.

R – É, então. Lá no Recife tem um programa Bandeira 2, do rádio, como se fosse o Cidade Alerta aqui. Saiu na televisão, saiu muito, teve comentário lá do pessoal, não sei se é verdade, que ele ia vir pra matar a família porque tinha sido divulgado. Aí a gente teve que sair, minha mãe foi agredida e quem tava lá, eu não tava mais lá nessa época, mas meus irmãos, meu pai, todo mundo teve que sair de lá.

P/1 – Vocês venderam as terras?

R – Vendeu, vendeu.

P/1 – Aí todo mundo foi pra Recife?

R – Aí todo mundo veio pra Charneca, que é uma cidadezinha de Cabo de Santo Agostinho, aí todo mundo foi pra lá, isso foi em 79. Aconteceu isso com a minha mãe em 78, em 79 foi quando eles foram pra Charneca e eu vim pra cá. Meu irmão já era maior e eu falei pra ele: “Eu vou pra lá”.

P/1 – Por que você veio pra São Paulo?

R – Eu vim pra cá pra buscar emprego porque lá no Recife eu fiquei quase dois anos, mas lá eu nunca consegui registrar a minha carteira. E desde a minha adolescência que o meu maior sonho era ter registro em carteira, eu não sabia nem como funcionava porque meus pais nunca descobriram como era isso. Depois que a gente explicava, que a gente falava, mas eles não sabiam o que era os direitos, os deveres de carteira registrada. E eu sempre tive um sonho de me aposentar. E isso começou quando eu fui estudar em Feira Nova, na segunda série, a minha professora era aposentada de Vitória de Santo Antão. E ela fala que recebia da aposentadoria e recebia por dar aula como professora, ela já era aposentada do município de Vitória de Santo Antão e dava aula em Feira Nova. E ela dava essas explicações, foi quando eu comecei a ser curiosa pra saber o que significava. Aí você vai buscando informação e você vai tendo a base. E o meu maior sonho era ter o registro em carteira e eu me aposentar, e isso eu realizei porque eu aposentei com 50 anos.

P/1 – E dona Jura, como surgiu a ideia de ir pra São Paulo? Tinha algum familiar aqui?

R – Uma amiga. Quando eu fui pro Recife eu saí de São Lourenço, porque São Lourenço é uma cidade como Santo André, acho que até mais longe, e para eu estudar ficava muito longe pra ir pra casa da minha tia e por causa da escola que eu estudava eu descobri que eu tinha uma prima lá no Pina, lá em Boa Viagem. Aí, o que eu fazia? Eu ficava a semana, eu trabalhava, aí à noite eu ia pra escola e ficava a semana lá em Boa Viagem, lá no Pina e no final de semana eu ia pra minha tia em São Lourenço da Mata. Essa minha amiga trabalhava em Boa Viagem, em casa de família, e nas folgas dela, ela ia pra lá, que era minha amiga de infância também, que morava lá em Feira Nova com a gente. Nesse período ela arrumou um namorado, que o namorado veio pra cá, aí com o tempo ela veio pra ficar com o namorado aqui. A gente ficava muito junto lá, quando ela chegou aqui ela começou a me convidar para eu vir pra cá.

P/1 – E o que ela fazia, escrevia cartas pra você?

R – Ela escrevia cartas, naquela época era só carta. Ela mandava carta para eu vir pra cá, falou que quando eu chegasse aqui iria arrumar emprego e ganhar mais. Porque na época, lá, eu ganhava meio salário mínimo na loteria. Como tava próximo, dava pra ajudar em alguma coisa com meus irmãos, como eles trabalhavam, tinham as coisas lá, dava. Agora pra viver na cidade a gente tinha... E nessa época meu irmão também já tava ficando maior, aí eu combinei com meu irmão, eu vou pra lá, quando eu chegar lá depois você vai, a gente começa a trabalhar e dá pra ajudar mais meus pais com os pequenos. Eu to com 55, meu irmão mais novo tá com 38, então, quando eu vim pra cá, na época que minha mãe sofreu a agressão o meu irmão mais novo tinha dois anos, era pequeno. Eu e meu irmão mais velho tínhamos o compromisso de ajudar a criar o mais novo. E a gente tinha que sair da toca porque não dava pra ficar um monte de gente dentro de casa.

P/1 – Dona Jura, a senhora tá falando do namorado da sua amiga. E nessa época você tinha namorado?

R – Tinha.

P/1 – Quando você começou a namorar?

R – Nossa, essa história de namorado é melhor a gente sair dela porque (risos). Eu comecei a namorar com 12 anos e a minha mãe não suportava, não gostava dos pais dele e transferiu a rixa pra ele. Ela não queria nem ouvir falar no nome por ironia. Até hoje é a sogra que eu queria ter, porque a minha sogra de verdade eu não cheguei a conhecer, é de lá também, mas eu não cheguei a conhecer. Até hoje a gente tem uma relação como se fosse sogra e nora. Eu ainda volto lá por causa dela, quando eu fico muito tempo sem ir ela reclama e fala que vai falecer e não vai mais me ver. Então, a gente tinha uma relação muito boa. E minha mãe não suportava eles. Na época eu não entendia, mas eu acho que era por ciúmes. Só que a minha mãe não sabia demonstrar quando amava. Agora eu entendo que ela achava que eu colaborava, então a gente tinha uma relação muito segura uma com a outra. Se uma saísse a outra ficava desprotegida. Eu acho que o que ela fazia, porque tem hora que hoje eu enfrento essas mesmas coisas, mas hoje eu já entendo que, às vezes, é a maneira da pessoa amar, não é todo mundo que sabe demonstrar amor. Então, quando ela via que alguém se apegava a mim, que tava bem próximo, ela falava que mãe do meu namorado queria roubar.

P/1 – Tinha medo de te perder?

R – Ela não falava isso, mas ela queria roubar os filhos dos outros, se ela já tinha os dela porque ela queria roubar os filhos dos outros. Acabou que eu namorei ele por oito anos e a gente veio terminar depois que eu cheguei aqui, foi aí que você descobre que foi outra coisa também, que eu superei. Eu achava que jamais eu ia me interessar por outra pessoa.

P/1 – Vocês se correspondiam por carta lá em Recife?

R – Porque carta. Quando eu estava lá no Recife ele vinha me visitar, ou eu ia pro interior porque meus pais estavam lá também, eu ia sempre, a cada dois meses eu tava indo. Os meus irmãos vinham também, às vezes ele vinha com meus irmãos.

P/1 – E vocês iam pras festas em Recife? Carnaval?

R – Eu nunca gostei de carnaval. Cada carnaval eu ia pro interior, até hoje eu não gosto, eu nunca gostei de carnaval, não. A gente ia muito pros parques. E tinha uns bailinhos naquele tempo, era tempo do Dancin’ Days, então a gente ia muito. Mas como eu não dançava, eu não gostava de ir muito, mas a gente ia muito lá nos parques. Dessa última vez que eu fui, tem um ano que eu fui lá, na Praça do Derby, era o lugar que eu mais gostava, tinha o peixe boi, tinha um monte de coisa pra gente ver, eu gostava muito de ir lá. Aí ia também onde tem os navios... no porto, era meu passeio predileto, gostava muito de ir pro porto. E pra praia também, pra praia eu ia muito, quando eu cheguei aqui eu parecia uma jaboticaba porque eu morava bem do lado e eu ia no meu horário de almoço quando eu trabalhava na loteria. E onde eu morava, morava do lado da loteria praticamente, que era onde minha prima morava, pra praia eram cinco minutos. E a gente tinha duas horas de almoço, que o pessoal de lá é bem... Enquanto aqui a gente não tem nem dez minutos. Vocês estão sem almoço.

P/1 – Não se preocupe.

R – Mas lá a gente tinha duas horas de almoço e eu ia pra praia. A nossa diversão era mais praia, parque, eu nunca gostei muito de baile, não.

P/1 – A senhora estava falando desses passeios que a senhora fazia lá em Recife...

R – Então, o nosso passeio predileto era a Praça do Dercy, que fica bem do lado da Restauração, que dessa última vez que eu fui, eu fui só pra recordar. Mas depois que minha mãe ficou lá quase três meses. Quase não, foi dez de junho que ela internou e ela saiu dia três de setembro do hospital, então ela ficou praticamente três meses lá internada. Quando fala na Restauração eu sempre lembro com muita angústia.

P/1 – E a senhora ia ao porto também?

R – Era.

P/1 – Era um passeio que a senhora gostava, ir à praia?

R – Ir ao porto, ir à praia. A praia, eu levantava pensando em ir pra praia. Tinha que ir na praia antes, voltava, tomava café, organizava o almoço. Isso quando

o pessoal vinha do interior, que a minha prima sempre foi muito acolhedora. Até hoje, quando eu vou lá, primeiro eu passo na casa dela pra poder ir pra casa dos outros.

P/1 – Dona Jura, a senhora lembra da primeira impressão quando a senhora viu o mar?

R – Lembro.

P/1 – O que a senhora sentiu?

R – Nossa! É uma sensação. Você acredita que até hoje eu não gosto de tomar banho de mar aqui? Mas eu desço com meus filhos. E na hora de eu vir embora eu tenho que ir lá ver as ondas porque é uma sensação de infinito, de não ter fim. Como a natureza é bela, como as coisas são tão belas. Eu admiro muito, eu acho muito interessante o mar. Até hoje eu tenho. A primeira vez é uma coisa que você não sabe, não tem explicação. O que será isso? De onde vem? Onde é o fim? Por que existe essas coisas? E o pessoal não acredita em Deus, que tem muito. Por que será que as pessoas não acreditam em Deus? Tem tanta coisa pra gente acreditar porque o homem não é capaz disso. A primeira vez que eu vi eu tive essa mesma sensação, do infinito, de olhar e não ter fim, uma sensação de paz. Não sei se você sente também, mas quando eu chego na beira do mar, que eu olho, você viaja. Ali você só vê água, o vento, aquela brisa... E aquele momento é só teu. Nossa, como a natureza é bela. A mesma sensação eu sinto hoje, só que o impacto foi maior porque eu nunca tinha visto. Mas até hoje eu tenho essa sensação. É mar e montanha. Quando eu to descendo a serra, é infinita a montanha. Daí você fica: “Nossa, como é que pode existir tanta árvore, tanta coisa, como será ali dentro?”. Porque onde eu morava no começo foi explorado também. Quando a gente foi pra lá, que eu era bem criança mesmo, meu pai trabalhava fazendo carvão. E tinha uma história de esperar a carvoeira sair o fogo porque se não esperasse, aí apagava e parece que não queimava o carvão. E eu dormi muito com ele. Uma coisa que eu tenho, meus filhos riem, eu tenho uma rejeição muito grande com cobra porque eu era muito criança e eu via muita cobra, muita cobra. E como eu era criança, acabou eu não trabalhando isso, de não ter medo. Eu lembro que eu ficava bem pertinho do meu pai, ele forrava uma lona lá e a gente dormia pra esperar o fogo da carvoeira e eu falava assim: “Pai, e se a cobra vir?”, e meu pai falava: “Eu pego ela e jogo no fogo”, mas eu imaginava, até ela vir não vai dar tempo pra ele pegar. E às vezes ele matava, às vezes eu dormia, quando eu acordava ele tinha matado. Ele me chamava de Fifi e dizia: “Fifi, eu acabei de matar uma cobra”. Aí tinha uma história de cobra macho e cobra fêmea, que quando matava uma a outra vinha. E eu falava: “E a outra, pai?”, parece que quando matava fêmea, o macho viria. Ele falava: “Não, eu matei o macho, a fêmea não vai vir”. Ele inventava uma história, mas até hoje eu tenho uma rejeição muito grande, eu não gosto de cobra. Até na televisão eu tenho receio.

P/1 – Dona Jura, e quando a senhora saiu de Recife e foi pra São Paulo, qual foi a primeira impressão quando chegou em São Paulo?

R – Solidão, insegurança (emocionada). Nossa, se eu não tivesse saído de lá determinada, eu teria voltado no outro dia porque a gente, aqui em São Paulo, hoje não, que tem uma grande mistura. Hoje, acho que nem pagando, eu acho que dinheiro nenhum me paga, dinheiro nenhum, eu teria que ter um motivo muito forte, eu só mudaria pro Nordeste hoje se os meus filhos fossem todos, porque se ficar um eu ainda fico com eles. Agora se todos irem, porque a minha base são meus filhos.

P/1 – A senhora foi morar onde?

R – São Caetano do Sul. Eu cheguei aqui dia 26 de janeiro de 79. A sensação já foi horrível porque, como hoje acontece, quando chegamos na Dutra estava dando enchente que a menina que tava me esperando lá, tava marcado para eu chegar, a rodoviária era até no Glicério e ela foi me esperar lá. E quando a gente conseguiu chegar na rodoviária era 2:15 da manhã, e tava previsto pra gente chegar na rodoviária às 16:30. Porque tem um horário que sai de lá pra bater com o daqui, só que tava tudo ilhado, aí não deu. Começou na Dutra, eu nunca tinha visto tanta água na minha frente. A chegada foi muito marcante assim porque atrapalhou da menina estar me esperando. Inclusive ela não estava mais me esperando porque tinha acabado o transporte, não é igual a hoje. Ela tinha chegado recentemente, não tinha a mesma facilidade que a gente tem hoje. Ela não tava lá me esperando, eu amanheci na rodoviária, de manhã foi que ela voltou lá. A gente não tinha telefone, naquela época ninguém tinha telefone e eu fiquei lá na rodoviária esperando que alguém aparecesse. O pessoal que veio comigo até me convidou, porque a gente faz amizade, são três dias dentro do ônibus e deu mais de três dias porque as estradas não são como hoje. Aí eu fiquei lá, a gente chegou 2:15 e eu fiquei lá esperando. Ela chegou cedo, no primeiro ônibus que voltava pra São Paulo, porque ela morava em São Caetano, e quando chegou lá eu tava lá. Mas aquela angústia de você estar num lugar que não conhece ninguém. Eu nunca fui de ter muito medo das coisas, mas aquela angústia, como é que ia enfrentar o frio. Muito frio. Você vem despreparado, não tem agasalho, não tem dinheiro suficiente. Até mesmo a comida, eu demorei muito pra me adaptar com a alimentação daqui. E as pessoas. As pessoas aqui não são como lá. Até hoje quando eu vou pra lá eu acho muito esquisito porque o pessoal tem uma curiosidade, uma preocupação de chegar. Como vocês chegaram agora, entraram com o equipamento, lá não é assim. Se alguém ver um carro parar, todo mundo já se aproxima pra saber quem chegou, de onde veio, por que veio. E a gente acostuma com isso. Hoje já não, tem vezes quando eu vou pra lá, a minha cunhada, meus irmãos vão me buscar no aeroporto, antes de chegar em casa tem que parar em vários lugares: “Gente, vamos chegar em casa, a gente desfaz as malas, toma um banho, depois a gente recebe”. Não, o pessoal começa a te acompanhar. E é normal, até mesmo eu sabendo disso porque eu vim de lá, mas com o passar do tempo você acaba perdendo. Porque aqui todo mundo cuida da sua vida e isso pra mim foi muito angustiante no começo.

P/1 – E você conseguiu emprego logo, dona Jura?

R – Consegui.

P/1 – Qual foi o primeiro trabalho da senhora aqui?

R – Meu primeiro emprego foi numa cerâmica, o nome dela Cerâmica Sulamericana, que foi meu primeiro registro em carteira. E na cerâmica os pisos vinham lá dos fornos e a gente tinha que escolher o quebrado, o que tinha defeito e os que não tinham defeito. Eles vinham quentes de lá e a gente tinha que dar produção. Primeira coisa que me aconteceu: queimei toda minha barriga, caiu o couro mesmo. Porque a gente encostava. Daí quando eu evitava...

P/1 – Vocês não tinham uma proteção?

R – Não tinha. Porque não é como hoje que tem CIPA. Foi uma coisa que eu aprendi porque a gente aprende muita coisa com o sofrimento. Depois que eu comecei a trabalhar eu fiz parte de Comissão de Fábrica, fiz parte de Sindicato. E aqui no Heliópolis foi onde eu superei todas e hoje o meu tempo eu dedico a buscar conhecimento, a buscar melhoria porque quando a gente não sabe de nossos direitos e dos nossos deveres a gente sofre muito, a gente passa por coisas. Porque quando não conhece você não tem como pedir ou como exigir seus direitos. É igual você tá falando aí, aquilo era um crime, não era só comigo; quem tinha experiência conseguia fazer o trabalho sem se machucar, mas quem não tinha, eu e outras meninas que entravam novas, todas nos queimávamos, a nossa roupa era tudo... E queimava o couro da barriga, uma coisa que chegava a machucar.

P/1 – E a senhora ficou trabalhando quanto tempo lá?

R – Eu trabalhei lá por 11 meses. Aí surgiu outra cerâmica que pagava mais.

P/1 – A senhora estava falando do trabalho da senhora, a segunda cerâmica.

R – Então, foi na empresa Matarazzo. Eu trabalhei lá só quatro meses porque nesse período eu pedi pro meu pai vir pra cá. As despesas aumentaram, foi a última vez que eu vi meu pai. Eu me lembro com grande recordação. Eu saí da Matarazzo pra receber alguma coisa, que era pra aumentar a nossa remuneração, foi o tempo que meu pai ficou aqui. Eu entrei numa metalúrgica, que foi onde eu conheci o pai dos meus filhos.

P/1 – Qual foi a metalúrgica?

R – Metalúrgica Cofran. Depois da Matarazzo. Lá da Matarazzo eles mudaram meu horário e eu não gostava de trabalhar de duas às dez porque eu sempre fui de receber visita e de duas às dez, o final do dia era justo o horário que eu não tava em casa. Quando eu passei da experiência até faltei uns dias para eles me mandarem embora, porque quando faltava sem justificativa eles mandavam embora. Como eu já tinha passado da experiência tem direito a um aviso prévio, foi que eu juntei um pouco esse dinheiro e foi até quando o meu pai ficou aqui com a gente e o que ele foi embora. Ele ficou quase dois meses aqui com a gente. Eu entrei na metalúrgica, lá pagava mais, a gente tinha mais benefício. Na época a gente não tinha nem cesta básica, mas tinha comida no local, então já economizava. Eu entrei na metalúrgica pra aumentar nossa renda porque a família tinha aumentado, vieram meu pai e meu irmão mais novo e ficou com a gente aqui por quase dois meses. Lá na metalúrgica foi onde eu conheci o pai dos meus filhos. Eu trabalhei com ele quase cinco anos, depois que eu saí da metalúrgica entrei em outra, trabalhei 14 anos em metalúrgica.

P/1 – E qual era a função da senhora na metalúrgica?

R – Quando eu entrei, entrei como ajudante geral, depois eu fui promovida a prensista. Até eu sair de lá eu era prensista. Eu saí da metalúrgica quando o Collor entrou.

P/1 – Foi em 90.

R – Em 90. Foi quando eu saí da metalúrgica.

P/1 – Por que você saiu da metalúrgica?

R – Porque quase todas as empresas fecharam. E eu costumo dizer com as meninas dos grupos quando a gente tem qualquer dificuldade, qualquer desafio, que todas dificuldades vêm pra você crescer. Porque até eu trabalhar dentro de uma metalúrgica, que eu até me orgulhava referente a outros salários. Porque eu tenho dois filhos metalúrgicos, não sei se é destino, meus filhos são metalúrgicos, o pai deles foi metalúrgico, ele se aposentou com 30 anos. Meus dois filhos também são metalúrgicos, tem um que trabalha em outro ramo e a minha filha trabalha em uma faculdade, mas eles são metalúrgicos. Eu sempre falei pra eles que o salário, benefício, tudo, os metalúrgicos sempre tiveram mais vantagem, na época que eu trabalhava. Hoje já tem a gráfica que hoje é campeã.

P/1 – Dona Jura, quando a senhora conheceu o pai dos filhos da senhora, o companheiro da senhora, a senhora já tinha terminado aquele namoro lá da infância? Como foi isso?

R – Eu nunca terminei com ele porque a gente nunca se viu. Na época não decidimos, depois com o tempo se viu que ultimamente, que as irmãs dele são as cunhadas que eu não tenho, a gente tem uma relação muito boa. Nesse período que a gente tava até planejando, se organizando pra que a mãe dele viesse porque eu sempre falava que eu queria a mãe dele presente porque ela sempre defendeu a causa, sempre aceitou. E eu falava pra ele. Quando eu cheguei aqui em 79 ele sugeriu da gente arrumar um local e morar junto. Só que eu tinha que, se eu fosse morar junto com ele não ia dar certo de eu trazer meus irmãos porque já ia virar uma confusão, a gente não teria a vida da gente independente, meus irmãos já viriam pra dentro da casa dele. Ai eu falei para ele. O que não foi desculpa.

P/1 – Seus irmãos tinham quantos anos? Já eram adolescentes?

R – Eu cheguei aqui com 19, o meu irmão tinha uma diferença de um ano, mais velho tinha feito 18. Depois de cinco meses que eu tava aqui meu irmão veio pra ficar comigo. E na época que eu cheguei aqui ele sugeriu da gente morar junto.

P/1 – E você morava com seu irmão. E a sua amiga?

R – Eu fiquei 15 dias só com a minha amiga. Ela morava num cômodo só, aí tinha um pernambucano que era dono de uns quartos, tipo um cortiço, ele perguntou de onde eu era, o que eu tava fazendo aqui sozinha, que aqui era muito difícil. Eu falei: “Eu vim pra arrumar um emprego, depois eu vou buscar meu irmão. Ele não veio comigo porque eu to na casa da minha amiga Mocinha”. A Mocinha morava em um dos cômodos dele. “E onde ela tá não dá pra trazer meu irmão, mas quando eu arrumar um serviço”, eu cheguei aqui dia 26 de janeiro, acho que dia 10 de fevereiro eu já comecei a trabalhar. Eu fiquei com ela uns 15 dias, três semanas. Quando eu falei pro dono dos cômodos lá que quando eu arrumasse um lugar, meu irmão ia vir. Eu falei nisso um dia, quando foi no outro dia ele falou assim: “Olha, se você quiser mandar buscar seu irmão você pode mandar buscar porque está desocupando um quarto e eu alugo pra você. Mas eu costumo pedir”, como é que ele falava?

P/1 – Referência?

R – Não, que a gente paga com adiantamento, como é? Depósito! “Eu costumo pedir depósito, mas não vai nem adiantar eu pedir isso pra você porque você não tem, mas depois você vai me dar o depósito”. Eu sabia que eu não ia dar porque tinha que mandar o dinheiro pra ele vir. Eu falei: “Quando meu irmão chegar eu pago o aluguel e quando ele chegar a gente dá o depósito”, aí ele aceitou. Aí pronto, eu já pedi pro meu irmão vir. O dinheiro que eu recebi também nem dava pra fazer despesa, eu paguei uma parte pra minha colega que pagava aluguel, ajudei ela e o que sobrou eu pedi...

P/1 – Qual era o nome da sua amiga, dona Jura?

R – A gente chamava ela de Mocinha. É Irene, mas só que a gente chamava ela de Mocinha porque ela era a menor da família dela, ela também tinha uma família. O pai dela ficou viúvo, a mãe dela morreu no parto dela. Ela era a mais nova e a mais danada, foi quem bateu asa também. Ela era mais danada. Ela tava no Recife, trabalhava em casa de família e lá a gente era muito parceira. Quando ela veio pra cá ela veio me convidar para eu vir.

P/1 – Dona Jura, a senhora optou então pela família.

R – Optei. Não foi uma opção, eu imaginei de dar um tempo. E ele falou: “Se der depois a gente vai vendo aí, arruma”. Só que também ele era muito “cabecinha”, então eu nunca caí de cabeça nas coisas com dúvida. Eu falei, primeiro eu vou arrumar um emprego, porque se depois não der certo, o que acontece muito, pelo menos eu não preciso. Eu falei pra ele que meu irmão ia vir e ele falou assim: “Tá na hora de começar deixar...”. Primeiro, quando minha mãe ficou lá no Recife, o fato da minha mãe não aceitar ele, mesmo quando a minha mãe ficou doente, também ele não cedeu não. Durante o tempo que minha mãe estava no Recife ele não foi visitar nenhum dia, isso já me magoou bastante. Porque foi o momento que a gente mais precisou, principalmente eu que estava com ela lá, tinha que estar correndo. Nem na casa da minha prima onde eu morava ele não vinha porque se ele viesse ele achava que tinha obrigação de ir ao hospital comigo. Eu já comecei a imaginar, se ele não aceitou da minha mãe naquelas condições que a gente achava que ela não iria sair do hospital e ele não aceitou, imagina se a gente for casar, for viver junto? A gente já vai ter conflitos. E eu tinha responsabilidade e o dever de naquele momento ajudar a cuidar dos meus irmãos que estavam lá, que tinham os menores de quatro, cinco anos. O Edgar na época tinha uns quatro, cinco anos. A minha mãe estava praticamente paraplégica, meu pai nunca foi muito de atitude, então eu e meus irmãos mais velhos tínhamos que abraçar a causa. Aí foi quando meu irmão veio, aí tudo se encaminhou. Ele arrumou um serviço, ele nem tinha muita... Na época eu comecei a estudar, quando eu cheguei aqui eu comecei a fazer a quinta série, que eu saí de lá eu tinha terminado a quarta série e aqui eu comecei a fazer a quinta. E meu irmão nem isso tinha. Ele arrumou um emprego que ganhava mais do que eu. A gente somava e o que a gente fazia? O meu a gente pagava um pouco o aluguel e nós dois tínhamos refeição, então a gente nem fazia compra, a gente decidia só comprar algum lanchinho e mandava o salário dele praticamente ia lá pros meus pais. E o meu eu controlava aqui. Isso a gente ficou vir pro Heliópolis, eu vim quando eu engravidei do meu primeiro filho.

P/1 – Voltando um pouquinho pra gente já chegar em Heliópolis. A senhora teve o filho da senhora, com o companheiro da senhora, lá em São Caetano?

R – Não. Eu vim pro Heliópolis pelo fato de eu ter engravidado. Minha irmã morava comigo, fui morar na Prosperidade. Acordei um dia com o povo gritando: “Sobe as coisas!”, mas subir o quê? Quando eu abri os olhos a casa da gente tinha uns degraus assim, quando eu abri os olhos, a água já estava passando. Deu enchente e eu me apavorei. Eu já tinha o trauma que o primeiro dia que eu vim, quase que não cheguei na rodoviária. E o pessoal que morava lá, ninguém tinha nada, nada porque a enchente era na Prosperidade, não sei se vocês conhecem, lá perto de Utinga. Eu trabalhava nessa empresa. Nesse dia eu ia trabalhar de sábado e nem fui, fazia muito extra pra acrescentar o salário, nem deu pra ir. Foi quando eu vim morar aqui na Rua São Paulo, em São Caetano. Eu morei em São Caetano uns dois, três anos, depois que eu vim aqui pro Heliópolis. Aqui em Heliópolis eu tenho o mesmo tempo que o meu filho.

P/1 – Como surgiu Heliópolis? A senhora já tava com o companheiro? A senhora chegou a morar com ele ou não?

R – Moramos 26 anos. Tem uns quatro anos que ele decidiu que não dava pra continuar porque o ponto de vista dele de viver, ele é muito família, tanto que os filhos são igualzinhos a ele. Se vocês chegassem lá e ele estivesse, a primeira coisa que eles fazem, eles correm tudo pro quarto. Eles não são de receber, e o pai deles é igualzinho. Essa história de receber gente... E sempre onde eu estive sempre teve muita gente e ele nunca aceitou isso. Tanto que a gente ficou 26 anos e o nosso principal problema era esse, de eu estar acompanhando movimento, eu participar das coisas, de estar trazendo gente. A minha família sempre morou comigo, agora depois que meus filhos cresceram, pelo fato dele ser assim, acabou eles mandando esse lado aí porque hoje eu não faço mais muita movimentação, a casa nem dá porque hoje eles já estão homens, “assumiram” a casa, porque eu me aposentei, nunca deixei de trabalhar, então a gente soma. Mas eu tenho uma família que eu pedi a Deus, foi aquela que eu planejei. Mas esse lado eu não consegui trabalhar. Eu acho que isso vem desde, porque a minha mãe, desde que eu tava em casa, minha mãe meu Deus, me perturbava, ela se irritava muito com o movimento de gente que eu tinha. Eu era de muitas amizades, de participar das coisas, descobrir as coisas, então minha mãe se irritava muito com isso. Quando eu vim morar, o meu mais velho até que não, mas tinha determinadas coisas que ele não concordava também. E o principal motivo da gente não estar junto até hoje, eu com o pai dos meus filhos, é esse também. E agora são os meus filhos. Mas eu não desisto porque é mais forte do que eu, eu não consigo pôr uma panela no fogo e fazer uma comida só para mim, eu tenho que ter alguém que eu possa pensar, eu estou fazendo pra mim e pra mais alguém. Eu acho que isso já vem desde a infância que a gente foi criada com muita gente, então tudo o que você ia fazer, você já ia pensar, se fosse pouco dividir, ou pensar de fazer com fartura. Eu não consigo estar em casa sozinha, ir lá e fazer comida pra mim. Agora a gente não janta, os meus filhos não têm mania de jantar, mas eu só faço comida de manhã que é pra ele levar, é tanto que a minha filha, às vezes, come comida de manhã.

P/1 – Dona Jura, nós vamos volta um pouco, como surgiu Heliópolis na vida da senhora?

R – Heliópolis. Foi um dos pesadelos no começo, que foi a mesma coisa de quando eu saí, acho que foi até pior porque na época que eu vim pra cá era muito violento. Então, eu fui trabalhar em metalúrgica, conheci o pai dos meus filhos. O pai dos meus filhos é casado, até hoje ele não se “descasou” até mesmo porque eu sempre falava pra ele que se quisesse se “descasar”, divorciar não era pra casar comigo porque eu não tinha o menor interesse, se a gente tivesse que ficar junto, a gente ia ficar pelo resto da vida, mas eu não tinha nenhum interesse em casamento. Quando eu conheci ele, ele já era pai de três filhos, já era casado eu acho que há 15, 20 anos. Só que como ele casou lá e veio pra cá, a relação deles não era uma relação conjugal.

P/1 – Ele é de onde?

R – De lá também, ele é de Glória do Goita, bem próxima a minha cidade. Glória do Goita não, Chã de Alegria. Lagoa de Itaengá de Chã de Alegria, hoje dá 40 minutos. Porque dessa última vez que eu fui, eu fui lá pra levar a minha filha pra conhecer a região dele. Lagoa de Itaengá até lá são 40 minutos, até menos, dependendo do caminho que você faz. Eu conheci ele e ele foi... não, ele é, porque ainda está vivo, é o homem com as qualidades que eu sempre procurei. É uma pessoa amiga, companheira, amorosa, mas muito possessiva, o que é dele, é dele e não existe essa história de... Até mesmo com os filhos, a menina mais nova, nossa, até hoje, quando ele fala é isso, tem que ser assim, pelo menos ela faz de conta que obedece, porque não fica direto com ele. Ela acabou de tirar carta esses dias e ele decidiu que ela tem que aprender a andar em São Paulo, então todo sábado e domingo, tem dia que ela fala: “Mãe, hoje eu não queria ir”, “Então fala pro seu pai”, ela não fala que não quer ir porque ela não quer contrariar ele. Até eu mesma nunca gostei de contrariar ele, nunca fiz tudo o que ele quis, mas não gosto de contrariar ele também porque ele nunca fez nada, a gente sempre se respeitou, sempre foi companheiro. Inclusive pra eu vim aqui pro Heliópolis, se não fosse ele na época eu não teria tido condições de vir porque foi ele que me ajudou a comprar um barraco.

P/1 – Vocês compraram então um barraco.

R – Compramos. Ficamos quase dois anos namorando, mas eu não pensava da gente levar uma relação, só que era difícil da gente terminar e decidir porque a gente trabalhava no mesmo local, inclusive ele era meu chefe. Aí nesse período eu engravidei. Quando eu engravidei morávamos eu e dois irmãos, porque depois veio outro irmão pra cá. Só que o custo de vida em São Caetano é muito caro, nem se compara aqui, até mesmo aluguel. Então quando eu fiquei grávida, primeira coisa

eu surtei. Como eu pagava o aluguel, trabalhávamos eu e mais dois irmãos, quando a gente pagava o aluguel, água e luz, o que sobrava não dava pra fazer uma despesa pra ficar a quinzena. Eu falei: “Como é que vai ser quando eu tiver com a criança?”. E eu também não acreditava que ele fosse, até por ele ser muito possessivo, eu falei: “Quando a criança nascer ele vai querer mandar em mim também”. E tinha meus irmãos que dependiam, a gente sempre foi muito família. E meus irmãos dependiam de mim, a casa era no meu nome, era sempre eu que corria atrás dessas coisas, eu cozinhava, passava, lavava. Eles estavam lá comigo, como se eu tivesse obrigação de cuidar deles. Minha vida sempre foi uma confusão porque eu sempre fiquei dividida entre família, entre meus parentes e minha família. Mas com isso tudo eu acertei, viu? Hoje eu faço o que quero, como quero e quando quero.

P/1 – E vocês mudaram pra Heliópolis.

R – Quando eu fiquei grávida, tava com um mês e pouco, meu irmão nem sabia que eu tava grávida. A gente precisou mudar de casa porque o pessoal ia fazer uma obra. Era um prédio, um sobrado, aí eu fui procurar outra casa. Eu andei quase três meses, minha irmã morava comigo. Na época minha irmã tinha nove, não... tinha dez anos, quando meu filho nasceu ela fez 11 anos. A minha irmã morava comigo, eu arrumei uma casa, levei toda a documentação, quando chegou lá na imobiliária que perguntaram se tinha criança e eu falando que era eu e três rapazes: “Não tem criança, né?” “Tenho uma irmãzinha com dez anos”. Rasgaram o contrato na mesma hora e falou que não alugava pra criança. Eu falei: “Mas ela não é criança”. Só que eles não sabiam que eu tava grávida. “Ela não é criança, ela já tem dez anos” “Só deixa de ser criança depois dos 18”. Eu já recebi a mensagem, se ela que tem dez anos eles não estão alugando casa, imagina quando eu estiver com uma criança? Eu vou pra debaixo da ponte! Eu falei pra ele. Inclusive pra arrumar essa casa tinha que ter um fiador e ele foi que tinha arrumado, lá em São Caetano. Não foi nem ele porque ele não tinha escritura na época, parece que foi um cunhado dele, só sei que ele conseguiu um fiador que eu tava alugando a casa. Quando falaram que não dava pra alugar porque só alugava quem não tinha criança eu falei, “Então quando meu filho nascer a gente vai pra debaixo da ponte!”. Eu falei pra ele, aí ele falou: “Mas isso é verdade, ninguém quer alugar a casa com criança não”. Eu comecei a me preocupar. E a versão também, quando eu tivesse meu filho eu não queria morar com meus irmãos que era pros meus filhos, apesar que eles não eram de maltratar, mas eu falei, que não vou começar a ter filho, criar meus filhos com os outros porque aí todo mundo vai gritar, todo mundo vai mandar e meus filhos não vão precisar passar por isso. O eu era pra fazer? Se o que eu ganhava não dava pra pagar um aluguel, aí eu falei pro pai deles: “Eu tenho que arrumar um lugar e aluguel, porque a gente não está conseguindo, o que a gente arrumou eles não aceitam criança, e quando esse aqui nascer?”. Aí eu tinha uma amiga que morava no mesmo quintal comigo, ela arrumou um namorado, e esse namorado morava pra cá.

P/1 – Aqui em Heliópolis?

R – Aqui. O nome dele é Damião. Nossa, a gente era muito parceiro. Ele começou a namorar ela, a gente era amiga. Ela era até paraibana e era amiga de uns meninos que moravam lá também, lá no cortiço junto com a gente. Ela morava aqui, aí eu vim um dia visitar ela, quando eu cheguei aqui eu tava grávida de poucos meses, e até vim falar para ela porque meus irmãos não sabiam. Quando chegou aqui o marido dela que estava morando junto, falou: “Você não quer vir morar aqui? Se você quiser”. E é tão engraçado que o terreno que eles marcaram pra mim é ali debaixo do viaduto, aquele pedacinho ali até a descida. Ele marcou um terreno pra mim como se fosse daqui até o portão, se fosse hoje dava pra fazer uma mansão. Naquela época tinha muito...

P/1 – E como que funcionava? Aqui ainda estava no início. Tinha muita gente, muitas casas?

R – Não, não tinha. Isso aqui onde a gente tá agora, isso era uma mina, era como se fosse um rio, só que tinha plantação. Tinha uns portugueses na época que criavam porco, plantavam, faziam, então tinha uns barracos ali pra cima, mas não era ativado como agora.

P/1 – Que ano era, mais ou menos?

R – Foi quando eu engravidei do meu filho, foi 83.

P/1 – 83.

R – É, eu ganhei ele em 84. Quando eu vim pra cá eu tava de um mês de grávida dele. Eu engravidei dele em outubro, eu ganhei ele em julho e estava um mês de grávida. Eu mudei para cá 15 de novembro de 83.

P/1 – Vocês compraram o terreno?

R – O terreno não precisava comprar, não. O terreno estava ali e você podia construir. Mas como eu é que eu ia construir?

P/1 – Então vocês só chegavam, ocupavam?

R – Era. E fazia. Só que eu não tinha condições na época. E eu falei pro pai dos meninos, nisso estava grávida. Ele até veio comigo... não... eu vim só, eu saí do serviço e vim visitar ela porque ela tinha ganhado um bebê. Não tinha muita gente sabendo, só quem sabia era eu e o pai dele, aí eu cheguei e falei pra ela. Falei da dificuldade que eu estava tendo de casa e tudo.. E o marido dela falou: “Você não quer vir fazer um barraco ali? Eu arrumo o terreno pra você”. Foi lá, me mostrou, aí já me animou um pouco. Mas até você comprar o material, fazer a construção era muito difícil. E aí depois ficar sem água, sem luz. Cheguei em casa e falei pro meu irmão: “Olha, o Damião”, que ele conhecia,

“arrumou um terreno pra gente bem grande”. Eu lembro como se fosse hoje, eu tava embaixo, na beliche, e meu irmão tava em cima. Meu irmão pôs a cabeça pra baixo e falou assim: “Eu já sou muito civilizado, morando em favela. Tu tem noção do que é favela?”, eu falei: “Olha, eu tenho noção de faltar as coisas”, porque tudo o que eu vou fazer tem um contra e isso, às vezes, me irrita. E quando me irrita, aquilo me dá mais força ainda. “Eu sei o que é não ter as coisas pra comer. Eu sei o que é trabalhar o mês inteiro, chegar no final do mês, pagar o aluguel e não poder fazer uma compra”. Ele falou: “Se você quiser ir sozinha, você vai, só que não conta comigo”. Só que a gente fazia as coisas tudo junto. Cheguei no outro dia no serviço, que eu trabalhava com o pai dos meus filhos, cheguei lá e falei pra ele. Ele ficou emburrado porque eu tinha vindo e não tinha falado pra ele que vinha. Porque você vai visitar uma pessoa que está de dieta, você quer chegar lá, conversar. Aí leva o namorado atrás e não dá. Volta e meia eu dava meus perdidos também, deixava ele sair do serviço e vinha visitar ela. Só que diante das circunstâncias eu tive que chegar lá e falar pra ele, não adiantou nada ter vindo, mas já tinha vindo. Ele ficou emburrado de manhã, quando foi à tarde ele falou assim: “O teu irmão tem razão”. Eu falei o que meu irmão tinha falado, aí ele falou: “O teu irmão tem razão. Sabe o que é favela?”. Aí eu falei assim: “Quando a gente não sabe é uma oportunidade de conhecer. O pessoal que tá morando lá, tá todo mundo vivo, ninguém morreu ainda”. Ele falou: “Se você quiser a gente vai ver. A gente vai ver se compra uns blocos, umas coisas, levanta um cômodo depois e aí vai levantando”.

P/1 – E vocês fizeram isso?

R – Começamos, mas não fizemos não. Quando foi no outro dia ele falou: “A gente vai lá ver”. Quando chegou aqui, a gente viu, ele falou que era um lugar bom, que não dava enchente, era perto do centro, aí me animou. Ele me deixou super empolgada. Só que naquela época a gente não tinha facilidade de crédito que a gente tem hoje. Hoje a gente tem cartão de crédito. Naquela época não tinha a facilidade de crédito. Ele falou: “Vamos fazer um crediário e comprar os materiais”. Quando foi ver, quando chegava lá era 100% de juros. Fomos fazer o nosso orçamento e nem passou, juntou o meu e o dele e não passou. Não dava. Aí o que vai fazer? Esse mesmo amigo falou assim: “Olha, tenho um amigo lá em cima que tá vendendo o barraco dele porque quer ir pro Nordeste”. Ele foi lá ver, dessa vez eu nem fui porque eu tava com muito enjoo. Eu passava mal, minha pressão baixava. Aí o amigo falou: “Vamos olhar lá”, e eu falei: “Vou não”. Eu tava lá pra morrer de enjoo. Ele foi olhar com o meu amigo. Quando chegou lá ele viu e falou assim: “Não é, mas pra começar... Tá meio acabadinho lá, é pequeno, mas pra começar. Se você quiser”, porque eu queria qualquer preço, eu queria me livrar do aluguel.

P/1 – E no final vocês conseguiram comprar e vocês montaram...

R – Aí fomos, no outro dia eu fui lá olhar. Não me agradei muito porque o ambiente, as coisas, mas você não tem muita alternativa nessas horas. Eu falei que queria, ele: “Você tem certeza que quer? Então vou fazer o empréstimo”, porque fazendo o empréstimo dava pra pagar o valor que o homem queria vender. Ele fez um empréstimo no nome dele porque o meu salário não dava. E o meu irmão foi contra. Tanto que ele não veio morar aqui no começo. Ele ficou lá em São Caetano e eu vim pra cá. Só que meu irmão colaborou com um pouco do dinheiro porque ficou faltando um pouco. Na época a gente comprou por dez mil, eu nem sei se era dez cruzeiros, nem lembro da moeda naquele tempo. A gente teve que pegar 20 e o que passou lá no empréstimo foi 17. Eu não lembro qual era a moeda na época, sei que a gente pagou 100% de juros praticamente. Ele fez o empréstimo, passamos pro homem e fomos morar no barraco. Você não faz ideia, aqui a gente tinha dificuldade porque não tinha água, não tinha luz. No barraco lá já tinha, era gato como eles falavam.

P/1 – Era mais em cima então?

R – Era bem aqui na Almirante Delamare.

P/1 – Vocês tinham energia elétrica de gato. E água?

R – Tinha água emprestada que eles pegavam de umas casas. Aí já tinha. A gente foi pro barraco mais por isso, porque já tinha chuveiro, água encanada, mas era um barraco. O barraco, o madeirite dele a minha irmã entrava e saía sem precisar da chave porque o madeirite estava podre. Um ano depois a gente construiu de bloco.

P/1 – Dona Jura, então a senhora constituiu a sua família aqui.

R – Constituí.

P/1 – A senhora teve quantos filhos?

R – Quatro.

P/1 – O primeiro foi o...

R – Alexandre.

P/1 – Depois?

R – O Adilson.

P/1 – Em seguida?

R – O Ailton.

P/1 – E uma menina.

R – E a menina. Eu tive o Alexandre em 84.

P/1 – Dona Jura, a senhora estava falando dos filhos. Qual o nome e o ano em que eles nasceram.

R – O Alexandre nasceu em 84. Aí fiquei até em 86 sem engravidar. E era um conflito que eu tinha com o pai dele, que trabalhava na mesma empresa. Eu pensei: “Eu vou ter que arrumar mais um filho pra fazer companhia pro Alexandre”. O Alexandre já tava com dois anos e meio quando o Adilson nasceu. O Alexandre fez dois anos em julho e o Adilson nasceu em janeiro. Depois quando eu tinha o Alexandre eu fiquei imaginando, mas o pai dele discordava. Eu pensava em sair da empresa para parar e imaginei, eu vou ter mais um filho dele, pelo menos fica dois irmãos, não fica um irmão só. Porque eu sempre tive essa preocupação de ter filho de duas pessoas, porque isso interfere muito na vida deles quando adulto, pelo menos é o meu ponto de vista, na tua vida uma confusão, um dia um vem pegar pra passear. Na época eu tive o Alexandre com 25 anos, na época eu tava com meus 26, 27 anos e é fato que a gente vai se relacionar com outras pessoas quando não dá certo com a primeira. Eu tenho que ter um filho do mesmo pai porque não vou ter filho de pais diferentes. Engravidei do Adilson, pra fazer companhia pro Alexandre, pra ele não ficar só. Aí engravidei do Adilson, foi uma gravidez maravilhosa dele, eu já tava estabilizada, não tava pagando aluguel. Quando eu ganhei do Adilson, eu voltei pra trabalhar, já tava grávida do Ailton, que é o terceiro. O Adilson e o Ailton são do mesmo ano, um é de janeiro, o Adilson nasceu dia 19 de janeiro, dia 20 de dezembro do mesmo ano o Ailton nasceu. Três meninos, duas crianças pequenas, eu trabalhava fora, uma correria.

P/1 – Quem é que ficava com as crianças?

R – Na época tinha uma creche domiciliar. Como sempre eu acompanhei os movimentos, sempre ajudei a buscar recursos pra dentro, então não foi difícil.

P/1 – A creche era aqui.

R – Era. As creches eram domiciliar. Cada mãe cuidava de sete crianças, seis crianças e um bebê. As mães que eram candidatas a ser mãe crecheira.

P/1 – Mas vocês pagavam?

R – Não, era a prefeitura que pagava. Todos os três até a idade de irem pra escola, pro EMEI, eles ficaram na creche. A Andreíse já não foi, ela já pegou outro processo. Aí eu tive os dois meninos no mesmo ano, nessa época foi quando eu saí da metalúrgica onde o pai deles trabalhava, foi quando eu pensei de engravidar pra não ficar com um filho só. Eu pensava comigo, a gente só tá junto porque tá trabalhando no mesmo lugar, agora vai ser uma oportunidade de cada um pro seu lado, mas não foi não, não foi dessa vez. Eu engravidei do Adilson, aí depois veio o Ailton. Quando o Collor entrou foi quando parou mesmo o serviço de metalúrgica, foi quando eu superei o que eu sou hoje, que eu tinha falado aquela hora. A gente tem que aprender a tirar vantagem, no bom sentido, das dificuldades. Porque eu acho que se não tivesse acontecido isso com o Collor eu até hoje eu estaria aposentada como metalúrgica, mas não tinha descoberto o que eu descobri, não teria me envolvido tanto.

P/1 – E o que a senhora descobriu, dona Jura? Depois que a senhora saiu da metalúrgica.

R – Quando eu saí da metalúrgica eu tive que trabalhar em casa de família, eu tive que ser empreendedora, comecei a vender Avon, Natura, lingerie. Trabalhava meio período porque meio período eu garantia meu registro em carteira e o outro tempo eu trabalhava como empreendedora. Eu enchia uma sacola de lingerie, de revista da Avon, Natura e acrescentava na nossa remuneração. Descobri muita gente, aprendi a viver em comunidade, a vender, a cobrar, a perdoar. Porque você que vende também tem muitas perdas porque quando você não lida com essas coisas você também não aprende, quando alguém não te retribui com um bom dia você já acha que tá em falta. E quando você cai nesse mundo você tem que aprender também a perdoar. As pessoas compram as coisas de você, elas passam por você e fazem de conta que não tá devendo nada, você tem até que cobrir. Uma coisa que eu sempre me preocupei também, não tem restrição no meu nome, nem ninguém veio nunca na minha porta cobrar, eu sempre tive aquilo que eu pude pagar. Mas também não é todo mundo que pensa assim e quando você pensa, você acha que as pessoas também têm que ser igual e aí você acaba tendo dificuldade de entender. Perdoar não, porque essa história de perdão é muito de... mas de entender. E eu superei tudo isso. Depois que eu saí da metalúrgica, fui trabalhar à noite na Expresso Brasileiro, lá foi um período bem gratificante, foi onde eu descobri que eu precisava ter outros meios pra viver, que só trabalhando registrada não ia dar.

P/1 – O que é o Expresso Brasileiro?

R – Tem até hoje, é uma empresa de ônibus. É. Eu trabalhei lá por dez anos à noite e foi onde eu engravidei da minha filha. Eu engravidei lá, ganhei ela. Depois de oito anos que eu ganhei o terceiro, eu tive dois no mesmo ano, aí eu falei: “Agora chega, tá na hora de tomar cuidado”, fiquei sete anos tomando todos os cuidados que alguém poderia ter, até mesmo a dificuldade com eles pequenos trabalhando, tudo. Porque eu determinei pra mim mesmo, foi uma questão de honra que eu não iria pegar um centavo do pai deles a não ser que ele chegasse e desse. Até hoje, quando ele quer ele presenteia a filha principalmente, porque a filha é o xodó da vida dela, mas eu determinei que eu não iria pegar um centavo dele porque ele tinha outros filhos antes de mim e os filhos dependiam dele. Como eu sempre tive a responsabilidade e o deve de ajudar e colaborar a criar meus irmãos mais novos, tinha chegado a hora de eu cuidar dos meus. E a preocupação, porque a gente sabe que nenhum homem que não tenha muito dinheiro pode administrar duas famílias, então, se eu tinha me metido nessa enrascada, o deve era meu de criar meus filhos. E hoje eu tenho orgulho de falar pra eles, e eles sabem disso, que ele nunca precisou dividir um pão com os outros irmãos que não eram filhos da minha mãe.

P/1 – E no Expresso Brasileiro você trabalhou em quê?

R – Lá trabalhava como ajudante. A gente limpava os ônibus, lavava, tinha lavanderia. Tinha que lavar e trocar as capas, limpava os ônibus quando chegavam que eles faziam excursão pra Santos. E tinha a linha Santos, pra Baixada. Então tinha um grupo de mulheres que trabalhavam à noite e eu era uma delas. E lá eu fiquei dez anos porque lá dava para eu trabalhar de diarista, vendia minhas coisas e tinha o registro lá.

P/1 – Em carteira.

R – Em carteira. Lá foi que me deu mais tempo de serviço na mesma empresa, eu fiquei dez anos lá. Foi quando eu consegui juntar dinheiro, o que dava pra juntar, nunca faltou pros meus filhos, eles sempre foram nos passeios de escola que eles gostariam de ir, viajaram, foram em lugar que eu nunca fui.

P/1 – E sempre estudaram aqui em Heliópolis?

R – Sempre estudaram em Heliópolis, todos os quatro. A única que faz faculdade é a menina agora. Os meninos fizeram Ensino Médio, fizeram curso técnico, e graças a Deus meus filhos...

P/1 – Qual curso que ela faz?

R – Ela faz Ciências Contábeis. Ela estuda e trabalha também numa faculdade, ela trabalha lá no Tatuapé. Ela fez 20 anos na semana passada. Depois que eu saí da Expresso, eu fiquei lá por dez anos e nessa fase eu não tinha Natal...

P/1 – A senhora trabalhava sempre.
R – Trabalhava sempre porque lá tinha uma folga na semana. E essa folga eu optava em ter ela durante a semana porque era o dia que dava para eu trabalhar de dia e à noite eu dormia. Quando eu saí de lá eu entrei numa gráfica, lá eles me deram oportunidade de eu viajar, a gente acompanhava feiras.

P/1 – O que a senhora fazia na gráfica?

R – Na gráfica eu era copeira.

P/1 – E dona Jura, a senhora fala que começou a trabalhar, a ter o serviço registrado e trabalhar como diarista e ao mesmo tempo tendo os empreendimentos da senhora vendendo Avon, fazendo esse serviço de porta em porta também.

R – De porta em porta e no serviço, eu vendia muito no serviço.

P/1 – E atualmente a senhora tem um empreendimento.

R – Tenho.

P/1 – Qual é o nome do empreendimento da senhora?

R – Ambrosia Lanchonete e Restaurante.

P/1 – E o que a Ambrosia faz?

R – A firma foi aberta como alimentação. A gente faz comida pra uma escola particular, a Mater, ela tem 30 anos no mercado, é uma escola de japoneses. Isso foi o Prêmio do Ano que eu ganhei porque está dentro daquela escola é um presente. As meninas que estão lá acho que nem se conscientizam disso. Eu falo muito, mas eu até parei de falar porque as pessoas têm que fazer suas descobertas, mas a escola que a gente tá lá é uma escola muito conceituada, de muitos valores porque dentro da escola você só tem a aprender. Tem pessoas falhas, que perfeição não tem, mas a gente tem muito a aprender e eu acho que eu ganhei o troféu de toda minha vida. Não sei se de lá vai sair outras coisas que já estão saindo. Mas pelo menos foi a superação porque quando eu pensava em aposentar eu queria fazer aquilo que eu gosto, eu fiz esse planejamento durante toda minha vida, até mesmo abri mão de hoje fazer natação com meu companheiro, a gente fazer os passeios que ele faz. Ele é 12 anos mais velho que eu e se aposentou bem antes do que eu. Ele vive a vida de terceira idade. E eu não acho, pode ser que amanhã ou depois eu decida porque é desgastante também, tem dia que eu queria nem imaginar que existia isso que eu estou fazendo porque é bem desgastante.

P/1 – E como começou esse negócio da Ambrosia?

R – A Ambrosia começou quando eu conheci o Consulado da Mulher, que foi outra coisa.

P/1 – E como a senhora conheceu o Consulado?

R – O Consulado eu conheci através de... Tenho que começar uma história, terminar uma e começar outra. Eu fiz um planejamento na minha vida que quando eu estivesse aposentada, eu teria que estar fazendo alguma atividade, aquilo que eu gosto de fazer. E meu planejamento é ser multiplicadora porque não adianta você aprender as coisas, fazer e você morrer e levar aquilo com você. Multiplicar meu conhecimento, minhas atividades, como foi que eu cheguei, as descobertas que eu tive, teria que passar isso pras outras pessoas. Durante a vida em Heliópolis, que praticamente sou fundadora de Heliópolis, a gente teve que ter muitas atividades. Nossa primeira busca foi por habitação, pra gente conseguir urbanizar, depois foi a moradia entre aspas “digna” porque tem muitas coisas que está faltando ainda, mas era moradia. Depois a gente teve aquela mesma comissão de moradia teve que ir atrás de escola, de água, de luz.

P/1 – E a senhora fez parte dessa comissão?

R – Fiz parte de todo esse movimento, porque é um movimento de comissão de moradores que têm que ir em busca porque ninguém vai te levar nada se não sabe da tua necessidade. Se eu tivesse comida pronta agora eu ia te dar um almoço porque eu sei que você tá aqui e não almoçou. Ninguém vai te levar nada se não for...

P/1 – Dona Jura, a senhora estava comentando agora do Consulado e também da participação da senhora aqui no movimento em Heliópolis, como a senhora ajudou.

R – Aqui dentro de Heliópolis tem muitos projetos, tem uns que eu nem conheço porque não participo mais, se desviou cada um pro seu lado. Mas no começo eu participei de quase todos. Primeiro a gente foi em busca de água e luz, depois a veio a busca de urbanização pra fazer as moradias com esgoto e tudo o mais. Depois veio a parte de creche. Aí as crianças vão crescendo. Depois que dá a creche, a escola, porque aqui dentro a gente tem duas escolas. Hoje a gente tem até uma ETEC, tem curso técnico. Eu sempre fiz parte de trabalho, porque dentro desses movimentos têm que ter o trabalho social, e é uma coisa que eu me identifico muito, o trabalho social. Porque o trabalho social trabalha com toda a família, com toda a comunidade, não tem restrição de idade, nem de classe social, todo mundo tem a necessidade de um trabalho social. E eu sempre fiz parte de trabalho social. Antes de eu conhecer o Consulado, aqui neste salão tinha uma assistente social que fazia um trabalho socioeducativo que trabalha com toda família, criança, idoso, com todo mundo. Ela encaminhava pra posto de saúde, pra escola, moradia, advogado, ela fazia os encaminhamentos. Ela ficou aqui comigo uns seis meses fazendo esse trabalho socioeducativo. E durante esse trabalho a minha maior dificuldade, vinha bastante gente pra ser atendido cada semana que a gente decidia, essa semana vai atender encaminhamento pro advogado, em tal lugar tem advogado de graça. Na outra semana era pros postos de saúde. Durante esse período vinha muita gente, tinha vez que eu fazia uma garrafa de café e em dois tempos acabava. Eu comprava pão, bolacha, juntava as coisas pra trazer, mas não dava muito. Eu pensava, se a gente soubesse fazer, até falava com as meninas, se a gente soubesse fazer vinha mais cedo e a gente fazia um pão, bolo. Isso me despertou o interesse de trazer um projeto de Gastronomia. Falando com os meninos do movimento, que cada um lida com uma coisa, e eles falaram: “O Gilberto conhece uma menina que tem projeto de Gastronomia”, que era o CEAT, que nesse tempo estava instalado lá no Jabaquara. Eu falei pro Gilberto, ele falou: “Olha, eu vou lá falar com a Teresa”. E a Teresa tava com uma verba que veio do Governo Federal, de Brasília, que não tava sabendo onde usar, caiu na hora certa, e eu tava com necessidade de ter, foi quando eu conheci o Consulado.

P/1 – Dona Jura, só pra entender. A senhora fazia parte de uma organização?

R – De um movimento social, uma organização de moradia.

P/1 – Tem um nome específico?

R – Movimento Social de Heliópolis. Começamos com a UNAS [União de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco], que é referência hoje. Só que nessa altura, quando eu conheci o Consulado, a gente já não fazia porque cada um foi montando seus grupos e foi se identificando com aquilo que fazia. A UNAS hoje, que é a referência de Heliópolis, ela faz grandes projetos, ela não ocupa mais o tempo dela em reunir meia dúzia de pessoas. Eles se reúnem com grandes projetos pra executar, não faz mais esse tipo de trabalho que a gente faz. Então a gente é que fica montando nossos grupos de acordo com a nossa necessidade.
P/1 – A UNAS é uma sigla?

R – É.

P/1 – O que significa UNAS?

R – É União...

P/1 – Dos moradores de Heliópolis?

R – Não... Olha, eu vou ficar te devendo, eu tenho escrito. Depois tu busca na internet que tu encontra. Eu tinha isso até certo tempo, só que depois você vai se envolvendo com outras coisas e acaba ficando pra trás.

P/1 – Dentro do movimento social de Heliópolis a senhora teve contato com essa pessoa, a Teresa.

R – É. O Gilberto me indicou e falou assim: “A Teresa tem uma verba que vem do Governo Federal, ela trabalha com Gastronomia”. Eu falei: “Esse grupo de mulher que tem aqui, dá pra gente aproveitar pra gente aprender a fazer as coisas, pelo menos pra gente atender as pessoas quando se reúne”. Ele me deu o telefone dela, ela me ligou. Marcou uma visita aqui, ela veio, quando chegou aqui, nessa época a gente só tinha um fogão, isso é o começo do Ambrosia. A gente só tinha um fogão, mas mesmo assim, como ela tava com a verba, ela falou assim: “Você faz a mobilização?”. Tinha que ter no mínimo 40 inscritos e eu entregar essas fichas pra ela. Eu falei: “Faço”.

P/1 – Quando foi isso mais ou menos?

R – Em 2009. Porque em 2010 foi a Copa. Em 2010 foi quando eu comecei o trabalho, final de 2009, começo de 2010 foi quando eu conheci o Consulado. Ela veio e começamos um curso de Gastronomia e ela mandou uma pessoa pra dar o curso, que inclusive é uma pessoa que eu admiro muito, tenho muito carinho por ela. Ela veio pra fazer o curso e quando chegou aqui ela se identificou com a movimentação, com as buscas. E ela passou a querer se envolver, a ajudar: “Não, dona Jura, a gente tem que fazer e acontecer”.

P/1 – Quem era essa pessoa?

R – Heloísa e a Cris. Elas são professoras, elas têm formação em Gastronomia e têm várias formações. Foi quem me ajudou bastante para eu continuar no Consulado. Só que depois elas não se identificaram com o Consulado, elas me apresentaram e em pouco tempo elas deixaram porque não era o perfil delas, o trabalho do Consulado, ela fala até hoje que não se identifica porque o Consulado dá uma assessoria pra gente e ela acha que a assessoria do Consulado não se identifica com a metodologia delas. Aí foi quando ela falou: “Olha eu conheço”, que estudava com ela na faculdade, “Eu conheço um rapaz, um amigo nosso, que está no Consulado. E o Consulado é uma ação social da Consul que trabalha com mulheres. Eles têm um projeto que ajuda, eles dão equipamentos”. Eu, nossa, eu falei assim: “Não, traz ele pra conhecer”. Ela convidou ele, ele veio. Quando chegou aqui foi uma paixão à primeira vista, o Alessandro. Não sei se vocês já conhecem ele, mas vocês vão conhecer. Foi o primeiro educador. O Consulado só assessora os grupos por até dois anos, eu já vou fazer cinco anos com ele porque eu fiquei como representante e acabou que eu estou há mais tempo.

P/1 – E como foi esse primeiro contato com o Consulado, com o Alessandro. Como foi a assessoria?

R – O Alessandro veio, explicou como era. A assessoria era assim, ele já começou trazendo eventos. A Whirlpool, que é a Consul, libera uma verba pra gente comprar as primeiras coisas.

P/1 – Os equipamentos?

R – Os equipamentos.

P/1 – Todo tipo de equipamento?

R – Não, o mais necessário. O resto a gente vai adquirindo conforme vai precisando. Mas o que você precisa no começo, igual no nosso caso eles assessoraram com forno de bolo, trouxe uma máquina de bater massa pra fazer pão. Trouxeram um fogão industrial que tá aí até hoje. Trouxeram uns armários para guardar as coisas direitinho, que não tinha nada disso e agora já tem até sobrando. Conforme você vai desenvolvendo, de acordo com a sua necessidade, “a gente precisa fazer uma demanda pra Páscoa”, aí eles trazem as forminhas. Inclusive tem os cortadores, muitas coisas, tem umas coisas que eu comprei depois porque com o passar do tempo vai acabando, outros grupos foram surgindo e eu fui levando, aí eu mesmo, com a minha remuneração eu vou fazendo investimento. Algumas coisas que têm aqui já fui eu que comprei, mas com o que eu ganhei dentro do Consulado. Eles começaram a trazer demanda, inclusive eu fiquei um ano lá na Faculdade Cruzeiro do Sul, a gente fornecia doce pra cantina de lá. Começamos a fazer eventos lá, no início com as meninas que estavam junto comigo. Depois, por motivos pessoais, as meninas não quiseram continuar, aí eu fiquei sozinha. Só que eu não sabia fazer nada e o Alessandro foi meu suporte porque eu falei: “Alessandro, se eu arrumar um grupo de mulheres você me assessora e a gente continua?”. Ele falou: “Demorou, dona Jura. Arruma as mulheres que a gente tá junto”. Só que as meninas eram formadas, onde elas chegavam, chegavam chegando. Quando elas saíram começou meu sofrimento. Menina...

P/1 – Que tipo de sofrimento? Foram aparecendo desafios então?

R – Os desafios.

P/1 – E quais foram os desafios?

R – O maior desafio que eu tenho até hoje, porque a gente tá sempre trabalhando com pessoas novas. Porque é assim, as pessoas entram, quando aprendem, falam: “Se eu for trabalhar sozinha eu ganho mais”, aí sai e vai embora, e você não pode segurar, por razão nenhuma você pode segurar as pessoas a ficarem em um lugar onde elas não querem. E as vantagens porque tem muita gente que pensa assim: “Se eu for trabalhar sozinha, se eu for abrir meu empreendimento, vai ser do meu jeito”. Porque o que elas mais me perturbam é porque elas não aceitam assessoria. Porque pra gente ser assessorado, fazer parte do Consulado, existe uma regra.

P/1 – E quais são as regras?

R – As regras são: Em primeiro lugar é comprometimento. Responsabilidade de você estar nos lugares nos horários. As coisas com qualidade que é uma coisa que eu aprendi, minha maior dificuldade de passar pras outras pessoas, mas quem está dentro do Consulado tem que ter essa responsabilidade de qualidade. Porque não é só você fazer a comida, você tem que ter qualidade, tem que ser feito com higiene, com responsabilidade, tem que ter apresentação. Hoje eu vim desse jeito, mas a gente é ensinado a receber as pessoas com as coisas organizadas, com boa apresentação. Como você se apresentar pra fazer os eventos, que a nossa maior demanda são os eventos, coffee-break, festa. Eu acho que o único empreendimento que está em um lugar fazendo alimentação é a nossa empresa, que o Consulado assessora.

P/1 – Vocês têm um contrato com a escola.

R – Tem um contrato com a escola.

P/1 – Esse contrato vocês têm que cumprir é uma demanda diária?

R – Diária. A gente tem em média, por dia, 120...

P/1 – O que vocês fornecem?

R – A gente fornece alimento pras crianças, pros funcionários, pra todo mundo, donos da escola. A gente executa a produção de comida lá na Rua Vigário Albernaz e tem umas filiais que não são berçário, mas é integral, crianças de um a quatro ou cinco anos que a gente fornece a comida. Faz na Vigário e leva pra outra filial. Lá a gente tem uma demanda diária, semanal com horário, com jornada, com cardápio.

P/1 – São quantas refeições diárias que vocês fornecem?

R – Na faixa de 150, 160 refeições. Tem também os lanches da tarde que a gente oferece pras duas unidades.

P/1 – É a unidade de Vigário...

R – Tem a Vigário Albernaz e a Aloef, que fica na Rua Santa Cruz. Essas duas.

P/1 – Todas as duas são escolas.

R – Sim, são escolas.

P/1 – E como foi estabelecido esse contrato? Foi o Consulado que trouxe esse contato com as escolas, ou vocês que estabeleceram diretamente?

R – O Consulado tem a missão de ser captador de recurso, ele captura as demandas. Porque durante isso a gente montou vários grupos. Depois dos grupos a gente montou uma rede, que o Consulado tem grupo em Cubatão, no Guarujá, no Jardim Capela, em Guarulhos, Campo Limpo, Caobi, Heliópolis que é aqui, São Bernardo do Campo e tem os espaços solidários, na Berrini, na Whirlpool, tem vários espaços solidários que eles abrem um espaço de lanchonete. Lá na Berrini, não sei se a Tati conheceu, o último encontro da gente foi lá. E eles têm esse espaço que a gente pode estar produzindo e levando nossos produtos pra lá. Eu consegui entrar na escola, todo final de ano a gente tem um encontro, que é um encontro de confraternização. Aí a gente vai fazer a avaliação de onde a gente acertou e errou. Ele traz as novas demandas que o pessoal procurou. Por exemplo, a “Eliete se interessou pra ter um trabalho na Rede...”, em vez de grupo agora a gente virou uma rede. A rede trabalha como? Pegamos um evento lá na Funarte que durou três dias, aí vai todos os grupos. A gente vai, quem sabe fazer bolo, vai pra parte de bolo; quem sabe fazer salgado, leva a parte de salgado; quem sabe cozinhar, vai cozinhar; quem sabe servir, vai servir. Então é uma atividade que tem espaço pra todo mundo.

P/1 – Pra todas as competências.

R – Pra todas as competências, ninguém fica sem fazer nada. Da Contabilidade até limpar o chão. Como no grupo que a gente tá agora, tem uma menina que ela supera na limpeza, então a gente se divide. Hoje eu to aqui, tem a cozinheira, tem a menina que a gente tá aprendendo, eu e ela junto, a gente fazer a contabilidade, a emitir os boletos, a lançar as coisas na planilha. A gente está aprendendo isso agora, que é outro desafio. E esse aí eu acho que meu cabelo vai ficar todo branco dessa vez (risos), que até agora não estava branco, mas é uma superação porque é um aprendizado que você não adquire dentro de uma faculdade, você adquire na prática. Quando eu era criança o meu maior sonho era estudar. Mas eu não pude estudar na minha infância, na minha adolescência, mas eu acho que eu to aprendendo, e cada dia eu aprendo mais, o que eu preciso. Porque a gente não precisa de muito. O que eu preciso pra vida. Apesar de cada dia eu descobrir que tem mais coisa pra aprender, eu tenho uma necessidade de aprendizado que até foge

do meu controle. Mas eu aprendi muito na prática. E o Consulado superou muito as minhas expectativas porque mesmo durante a minha estrada de vida aqui dentro de Heliópolis foi de acordo com a minha necessidade. E o Consulado tá sendo uma via de mão dupla, eu dou, mas também recebo, fazendo o que eu gosto, no tempo que dá, que eu posso me dividir. Em outros tempos eu não estaria aqui com vocês porque quando você marca cartão, quem decide o teu tempo é o patrão, agora não, eu posso cozinhar, eu posso limpar o chão, eu posso organizar, eu posso atender, eu posso servir, posso escutar e posso falar. E isso é o que mais me interessa, que eu acho que cada um tem a sua... O que mais interessa não, é muito interessante pra qualquer pessoa, não é todo mundo que tem essa oportunidade que eu tive. E eu to tendo isso dentro do Consulado. Quando eu comecei no Consulado, você perguntou se eu sabia cozinhar. Eu sempre cozinhei pros meus filhos, pro pai dos meus filhos, pros meus irmãos e pra quem me visitava porque eu sempre tive minha casa cheia. Hoje não é dentro da minha casa, mas é onde eu estou, onde eu estou sempre tem bastante gente. Mas eu nunca tive a especialidade de descobri as especialidades como você cozinhar, como servir. Porque de tudo eu aprendi um pouco. Não sei tudo porque tem muita coisa pra aprender, mas de tudo eu aprendi um pouco e essa oportunidade eu tive dentro do Consulado. A diversidade de pessoas que você conhece porque você conhece pessoas humildes como eu, como eu já fui a encontros, conferências e participei junto com pessoas que vieram dos Estados Unidos e que a gente falou de igual pra igual porque ela veio falar do que ela vive lá e eu fui falar do que eu vivo e do que a gente faz e das pessoas que estão a nossa volta. Porque dentro do Consulado cada um tem a sua função. Como os grupos, todos esses grupos têm um representante, todo representante tem a sua missão. Tem umas que são encarregadas em fazer as coisas diferentes, tem outras que são de como armazenar, outras de como vai servir, a montagem das mesas, cada um tem sua atividade específica.

P/1 – Dona Jura, a senhora tá falando o Ambrosia faz parte de um grupo. É um grupo?

R – É.

P/1 – Quantas pessoas fazem parte da Ambrosia hoje?

R – O Ambrosia começou com umas dez pessoas, depois resumiu e eu fiquei sozinha. Sozinha, sozinha não porque sempre tem alguém de suporte, eu nunca fiquei sozinha, nem vou ficar. Ficamos eu e mais outra pessoa. Depois a gente reconstruiu porque eu acredito, as pessoas não são obrigadas a acreditar no que eu acredito, mas eu acredito que o Consulado é um grande projeto pra quem acredita nele. Agora o Ambrosia está com oito pessoas. Tem quatro pessoas lá na escola e tem quatro pessoas que a gente tá encaminhando pra prefeitura de São Bernardo. Lá vai passar um carrinho. Porque também tem uma atividade de passar os carrinhos dentro das empresas.

P/1 – Que atividade é essa de passar o carrinho?

R – Tem um carrinho que leva alimentos, lanche natural, doce..

P/1 – Que vai vender diretamente?

R – Salada de frutas. Você trabalha no escritório, como se estivesse aqui. A pessoa vem com o carrinho e você pega o que você quer. E é fornecido pelos grupos da rede. O Ambrosia hoje é uma empresa, é a primeira empresa, tenho até o prazer, a humildade de falar, é a primeira empresa que surgiu dentro da rede, acho que agora tem 11 grupos e o Ambrosia foi a primeira empresa que surgiu dentro da rede. Eu acredito que várias vão surgir porque as outras são só MEI. A nossa empresa é de pessoa física. E os outros que já emitem nota fiscal e tudo, mas é MEI, não é empresa de pagar imposto.

P/1 – Ter CNPJ.

R – Ter CNPJ e tudo. Apesar que o MEI tem CNPJ, mas eles só podem ter um, por exemplo, ele só pode pegar uma pessoa e registrar. E a nossa empresa não, pode ter quantos sócios quiser. E a nossa empresa funciona com sócias, todas as sócias têm o mesmo direito e mesmo dever, a remuneração é igual. A escola pegou pelo sistema de Economia Solidária, você sabe que o nosso projeto é de Economia Solidária, a rede. É a União dos Sabores Solidários. A gente entrou na escola como Economia Solidária, o que ajudou muito a gente porque era o que a escola tava procurando e se identificou com o nosso trabalho.

P/1 – O Ambrosia acaba canalizando também outros produtos que são fornecidos pela rede, dos grupos?

R – O nosso carro chefe do Ambrosia, não sei se você viu, tem uma plaquinha ali, “Doces e Saúde”. Porque a gente começou fazendo doce, os nossos primeiros produtos. Então o nosso carro chefe quando a gente não atendeu alimento são os doces. A gente faz tortas, bolos, pudins, o carro chefe mesmo é pudim de leite em pó e torta de chocolate, bolo também a gente faz. E os salgados. Conforme vão chegando as meninas, de acordo com o que elas sabem a gente vai praticando, mas as minhas maiores encomendas são de doce.

P/1 – Dona Jura, a senhora estava falando que o carro chefe do Ambrosia são os doces.

R – Doces. Mas a nossa empresa foi aberta como Alimentação, que é Lanchonete e Restaurante. Os doces permanecem e eu espero, porque doce é bom pra adoçar a vida. Depois de uma refeição tem que ter um bom doce pra acompanhar. Isso nem estava nos meus planos. E a Mater, que é o nome da escola que a gente tá lá.

P/1 – Fornecendo doces também?

R – Não.

P/1 – Lá é alimentação.

R – Mater a gente fornece doce de sobremesa. Porque a gente fornece comida e depois da comida tem a sobremesa, mas geralmente é fruta. A gente só pode servir doce uma ou duas vezes no mês porque a gente trabalha com criança e tem que ser uma alimentação saudável e com nutrição. A gente não pode estar fornecendo doce direto não. Mas uma vez ou duas no mês a gente fornece. As sobremesas são mais frutas, sucos naturais, tem todo esse cuidado. Exigência da escola e dos pais porque como é uma escola particular a gente tem que estar apresentando um cardápio, que é avaliado pelo nosso nutricionista e o da escola também, tem todo esse processo. Eu não esperava que a gente fosse chegar nesse nível. Eu sempre acreditei, mas em tão pouco tempo, eu não tava nem com o grupo na época, mas eu me candidatei. Porque vêm as demandas e cada um se candidata praquilo que é teu perfil. E eu sempre quis uma demanda fixa pra dar estrutura pro grupo, porque quando essas demandas, quando vêm avulsas, as pessoas não têm um suporte porque não é registrado, não tem fundo de garantia.

P/1 – Os direitos trabalhistas.

R – Os direitos trabalhistas, o pessoal não tem. E como empresa tem que ter.

P/1 – Desde quando vocês são empresa?

R – Como empresa, dia 24 do dez de 2013. Tem pouco tempo que estamos como empresa. Mas valeu a pena a busca, acreditar e os desafios. Porque é um desafio, viu? Pra quem não tem nem noção do que é empresa, lidar com empresa é um desafio. Mas é dentro dos desafios que a gente supera as dificuldades.

P/1 – Dona Jura, se a senhora não fosse empreendedora, o que a senhora estaria fazendo hoje?

R – Eu estaria envolvida até o pescoço com trabalho social, conhecendo os projetos. Eu me identifico muito com projeto. E como empreendedora estou aqui um pouco presa porque nenhum projeto funciona quando não tem um retorno. E esse aqui dá retorno. Porque os projetos que eu participei até agora acaba não tendo muito retorno pra nossos grupos de mulheres. Porque se você pega um projeto com adolescente, você tem que ter formação. E nesse projeto aqui não precisa, você só precisa aprender a ética, você tem que saber seguir o regulamento, ter ética, mas não precisa ter formação, não precisa passar por uma faculdade. E se eu não estivesse nesse projeto aqui eu estaria até hoje acompanhando os projetos, buscando melhorias pra adolescente, pra criança e pra minha classe, que é a terceira idade que está começando. Porque a vida é feita de passado, presente e futuro, não adianta eu viver o hoje se eu não me basear no passado e se eu não pensar no futuro. As crianças que a gente acompanha hoje a gente tem que passar uma base para elas. E o projeto social é a minha base de vida porque foi dentro desses projetos que eu aprendi a lidar com as pessoas, com a diversidade, com as dificuldades e também com as vitórias porque eu não só tive dificuldade não. Cada dificuldade que eu tive na minha vida se transformou em muitas vitórias. Eu criei meus filhos aqui dentro, nenhum é analfabeto, todos eles têm uma formação, a única que está fazendo faculdade é a mais nova, mas todos fizeram o segundo grau e depois fizeram os cursos técnicos. Dois são metalúrgicos, um trabalha dentro do grupo da Ford e já viajou bastante. pelo segundo ano ele tirou como primeiro garantista do Brasil. E ele não precisou sair de dentro de Heliópolis, não. O que ele aprendeu...

P/1 – Foi aqui.

R – Ainda agora eu estava conversando com o Juvenal e ele falou que quando, “Eu só conheço por reportagem e a gente só vê merda...” E realmente, eu nunca tive vergonha em falar que eu morava em Heliópolis (emocionada) porque eu sei que Heliópolis foi quem me deu uma vida digna com realização.

P/1 – A senhora ajudou a construir esse lugar e isso é muito. Isso também é bonito, a história da senhora e a gente registrar.

P/1 – Dona Jura, a gente tá encerrando agora, a senhora falou de que se a senhora não estivesse trabalhando a senhora estaria no movimento social aqui em Heliópolis.

R – Não só em Heliópolis porque Heliópolis eu tenho que deixar uma marca aqui, mas eu pretendo, até mesmo quando eu tiver alguém que encare esse desafio, eu pretendo levar o meu conhecimento, minhas atividades, até mesmo o projeto Consulado da Mulher porque é bem interessante pras mulheres, para outras regiões e até mesmo para outros estados. A gente não pode ter as coisas só pra gente. E se a gente faz só pra gente cai no esquecimento, aquilo vai embora, então, você tem que deixar. Que tenha saído de Heliópolis, mas também que vá para outros lugares. Se eu tiver oportunidade ainda, que a gente não sabe o dia de amanhã não pertence a gente, mas se eu tiver oportunidade ainda eu quero levar essas atividades, às mulheres daqui ainda, o conhecimento, como agora já temos quatro empreendedoras formais que já têm o seu CNPJ, sua remuneração todo mês sem precisar de ser, que essa faz a diferença. E isso eu não quero só pra mim, nem vale a pena ser só pra mim ou só pra elas, a gente precisa ser multiplicadoras. A hora que aparecer alguém que queira assumir esse papel de continuar as coisas que eu preciso estar em outros lugares com o mesmo objetivo, que a gente tá tendo aqui. Com muita dificuldade porque não é fácil, têm muitas mães que têm que sustentar a casa e não têm a oportunidade de participar do projeto porque o projeto é lento, de acordo com o que a gente faz. Mas também é a oportunidade praquelas que não conhecem o mercado de trabalho, que não têm oportunidade. Porque aqui você pode também dividir as suas horas, de manhã eu levo meu filho pra escola e tenho que fazer o almoço, à tarde eu to desocupada, tem uma oportunidade também de participar.

P/1 – Dona Jura, como foi contar sua história?

R – Pra quem, pra vocês?

P/1 – Pra gente, é. O que a senhora sentiu contando a história da senhora agora?

R – Uma terapia, como se eu estivesse passando no psicólogo. Se vocês não tivessem vindo até aqui eu não teria tido a oportunidade de lembrar (emocionada). Não só vocês, como outras oportunidades que eu tive é uma terapia porque não tem coisa mais importante do que você falar de você, você falar de sua vida. E tem coisas que se você não para pra falar, se alguém não te pergunta, se alguém não busca, você não tem essa oportunidade de parar e até lembrar. Hoje você me fez lembrar do exame que eu fui fazer com meus irmãos. Talvez eu nem tivesse de oportunidade de estar lembrando disso hoje.

P/1 – Que exame?

R – O exame de fezes.

P/1 – Ah sim! Claro.

R – São coisas que ficam pra trás, que você até resgata. Até tem umas ações diferentes porque o tempo não dá pra gente lembrar do tempo que a gente brigava por lugar pra dormir, essas coisas. A gente só lembra dessas coisas quando a gente para ou quando alguém solicita.

P/1 – Bom, dona Jura, foi um prazer ter a história da senhora registrada. Em nome do Museu da Pessoa a gente agradece a sua participação.

R – Eu que agradeço. Não só eu, se vocês quiserem fazer outro dia com alguém, eu apresento uma pessoa. Quando quiser conhecer a história de Heliópolis, outros fundadores, outros companheiros, que a gente tem bastante companheiro por aí, que também seria interessante falar da história deles porque tem muitos historiadores que têm mais bagagem do que eu. A hora que vocês precisarem é só falar que eu apresento outras pessoas pra vocês, tá?

P/1 – Tá certo, muito obrigada.

R – Obrigada vocês.