Museu da Pessoa

Líder pai, líder filho

autoria: Museu da Pessoa personagem: Rubens Muszkat

P/1 – Seu Rubens, eu vou pedir para o senhor falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Eu sou Rubens Muszkat, eu nasci em São

Carlos, estado de São Paulo, no dia oito de julho de 1934. Porque São Carlos? Meu pai veio da Europa como imigrante e foi para lá, trabalhar como imigrante. Tem toda uma história. Eu morei em São Carlos até 1944.
P/1 – Como é o nome dos avôs paternos?
R – O pai do meu pai se chama Sija David Muszkat, que é o nome do meu irmão, segundo na linha, o médico. A minha avó se chamava Chifra Muszkat, que é também o nome da minha mãe, em iídiche. Os pais da minha mãe se chamavam Abrão e minha avó que seria Ana Raquel, em português, com o mesmo sobrenome do meu avô: Migdalec. Todos eles poloneses.
P/1 – Tanto por parte de mãe como por parte de pai?
R – Todos eles, radicados há muitos anos na Polônia.
P/1 – Os seus avós paternos faziam o que?
R – Minha avó paterna, de acordo com o que dizia o meu pai, era trabalhadora de casa, era quem provia. Ela tinha um armazém de tecidos, comida, pele, ela era uma grande comerciante. O meu avô era muito religioso e só rezava. O meu pai, embora teve uma formação religiosa, não era nada religioso, e dizia que o pai dele era um vagabundo que não trabalhava, apenas a sua mãe. Mas as informações que eu tenho do meu avô é que ele era considerado um justo dentro da cidade. Era ele quem resolvia as questões jurídicas e os conflitos entre judeus e entre judeus e não judeus. Ele era respeitado também dentro da comunidade não judaica. Isso era piada do meu pai, porque o meu avô só rezava e nos anos em que viveu na Europa, tinha que rezar também.
P/1 – Quantos filhos os seus avôs tiveram?
R – Cinco incluindo o meu pai. Quatro homens e uma mulher.
P/1 – Todos nascidos lá?
R – Todos. O meu pai conseguiu trazer o irmão mais velho, a irmã e o caçula. Mas o outro irmão não conseguiu, devido a guerra.
P/1 – Em que ano eles vieram para cá?
R – O meu pai chegou em 1929 e o primeiro irmão dele em 1934.
P/1 – Então ele foi o primeiro a vir?
R – Foi o primeiro. Depois, em 1935, veio a irmã e em 1936 o outro irmão. E então não deu mais para sair da Polônia.
P/1 – Os seus avós ficaram lá?
R – Sim. O meu avô paterno morreu antes da guerra. Todos os outros morreram durante a guerra.


P/1 – E como o seu pai veio? Como foi a decisão de sair de lá?
R – Essa é uma pergunta importante. Embora o meu pai pertencesse a uma família muito religiosa, ele não era. Era comunista, gostava e participava de teatro. Diz ele que em uma manifestação de primeiro de maio, teve que sair correndo dos cossacos, que vieram com aquelas espadas e ele ficou assim, entre um portal e uma casa. O cossaco passou, mas cortou o casaco de couro dele. Todo comunista usava um casaco de couro. Ele não conseguia fazer escola, não conseguia faculdade e não tinha trabalho, isso pelo fato de ser judeu e também por ser comunista. Então resolveu ir embora. Nisso ele tinha 18 anos. Chegou ao Brasil com 19 anos e começou a trazer os irmãos, que também não tinham nenhuma chance lá.
P/1 – E ele veio de navio?
R – Veio. Agora eu não me lembro o nome do navio, mas logo que ele chegou, o colocaram para trabalhar em uma cidade chamada Trabiju, no estado de São Paulo, para abrir o esgoto de rua.
P/1 – Mas como ele foi parar lá?
R – Ele foi para a Hospedaria dos Imigrantes e lá foram pegar trabalhadores para diversos serviços. E então ele foi designado para este, onde ficou apenas um dia. Ele disse que não dava para aguentar, não só pelo serviço, mas também pelas acomodações. Então ele voltou para a Hospedaria dos Imigrantes, ficou por lá um tempo até que veio um senhor, estabelecido em São Carlos, chamado Salomão, que tinha uma loja grande lá e estava procurando empregados. Esse senhor foi a Hospedaria e contratou três empregados. Dois deles estão naquela foto que eu mostrei aqui, onde meu pai foi um dos selecionados. Eles combinaram que trabalhariam por casa e comida e o salário seria pago depois de um ano, para ele ter um montante e se estabelecer. É evidente que ele teve casa e comida, mas não teve salário. Em São Carlos ele morava numa pensão e fez um grande amigo, que chegou a ser deputado estadual, Miguel Petrilli, não sei se você já ouviu falar neste nome, ele foi um político. Miguel emprestou para ele 20 mil réis. Ele veio para São Paulo e comprou gravatas, tecidos e começou a trabalhar.
P/1 – Ele revendia?
R – Sim.
P/1 – Mas em algum lugar específico?
R – Não. Ele vendia de porta em porta, e foi bem sucedido. Ele era um empreendedor e melhorou o trabalho. Ao invés de carregar a mercadoria nas costas, começou a andar de bicicleta, depois uma charrete e ai abriu uma loja. Ele ficou em São Carlos até 1942, quando veio para São Paulo e abriu um estabelecimento comercial.
P/1 – E os seus avós maternos?
R – A minha mãe comentava muito pouco sobre os meus avós maternos, mas o meu avô materno também era uma homem muito religioso, daqueles que você vê aqui em São Paulo, usando aquelas roupas tradicionais. O trabalho dele consistia em vender raspadinha nas ruas. A minha avó cuidava da casa para que a tradição judaica fosse respeitada.
P/1 – Isso era na Polônia?
R – Isso. Eles não saíram de lá. Pelos meus avós, a minha família foi muito religiosa.
P/1 – Quantos filhos eles tiveram?
R – Eram três mulheres e um homem. Por sinal, todas as mulheres muito bonitas. A minha mãe era muito bonita, e era prima do meu pai. O meu pai a viu e quando veio para o Brasil, precisava casar. Como não tinha ninguém em São Carlos com quem ele pudesse casar, mandou trazê-la.
P/1 – Então eles se conheceram na Polônia?
R – Isso. Ele a trouxe em 1933.
P/1 – Ele eram primos mesmo?
R – Primos irmãos! A mãe dele era irmã da minha avó paterna.
P/1 – Ele chegou aqui e logo mandou trazer ela?
R – Não. Ele chegou em 1929, começou a trabalhar e quando estava relativamente estabelecido, primeiro trouxe a minha mãe para se casarem.
P/1 – Mas eles namoraram lá?
R – Conheceu. Era um desses casamentos arranjados. Por isso que a minha mãe dizia que tinha dez anos a menos que meu pai e eu não acredito, porque o casamento foi arrumado quando ela já estava sendo passada para titia . Ela tinha quase que a idade do meu pai. Mas era uma mulher realmente muito bonita. Tinha uma voz maravilhosa, cantava muito bem. Veio para cá em 1933, chegou aqui em julho e se casou em agosto.
P/1 – Isso em São Carlos?
R – Isso. Eu não encontrei a foto do casamento, mas foi no Dante Alighieri de São Carlos, uma instituição italiana de lá. Tinham muitos italianos em São Carlos. Ela nunca precisou trabalhar. O meu pai foi progredindo na cidade e tinha um grande estabelecimento comercial.
P/1 – Só para eu entender melhor a história. Como foi o crescimento a partir da venda das gravatas?
R – Bom, ele vendia gravata de porta em porta, fez muita amizade em São Carlos, foi muito respeitado. O fato de ser uma pessoa honesta, facilitou a vida dele naquela época, no sentido de poder se estabelecer. E então montou uma loja. Primeiro vendia tecidos e depois móveis, confecção, como todo imigrante que chegou por aqui, seja sírio, libanês, judeu, grande parte alfaiate. Meu pai ficou em São Carlos até 1942 e veio para São Paulo porque disse que queria um ambiente mais selecionado culturalmente para os filhos.
P/1 – Vocês chegaram a nascer lá?
R – Eu sim, o meu irmão médico e um que já faleceu, sim. Mas o meu irmão caçula, que hoje está com 64 anos nasceu em São Paulo.
P/1 – Você viveu quanto tempo lá?
R – De 1934 a 1944. Vim para cá com dez anos, um ano antes de terminar a segunda guerra mundial.
P/1 – Nesses dez anos você morou sempre na mesma casa?
R – Morei sempre na mesma casa.
P/1 – Como era essa casa?
R – Na frente tinha um estabelecimento comercial, uma loja de tecidos, e ao lado uma loja de móveis bem grande. Era numa esquina que, depois de uns 40 metros, começava a residência. Você entrava pela chamada Rua Episcopal. Era uma casa confortabilíssima, tinha três dormitórios, sala grande, banheiro, cozinha, um quintal enorme. Ficamos lá até nos mudarmos para São Paulo.
P/1 – Você tinha um quarto só seu ou dividia com os seus irmãos?
R – Eu dividia com o meu irmão. Naquela época éramos em dois. Eu nasci em 1934 e meu irmão em 1936.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – Sija Davi Muszkat. É o nome do meu avô. Depois do meu irmão teve um intervalo e então nasceu o terceiro filho, em 1942. Oito anos e de diferença comigo. O caçula veio em 1948 já em São Paulo. Portanto houve um espaço bem grande. O meu pai saiu de São Carlos e deixou um nome muito tradicional lá. Um dos irmãos que ele trouxe para o Brasil ficou em São Carlos e constituiu família lá.
P/1 – O que o seu irmão fazia?
R – Trabalhava na loja com o meu pai. Eram sócios.
P/1 – Ele também se casou?
R – Sim. Mais um casamento arrumado. Ele casou com uma moça de São Paulo, também solteirona. Se deram muito bem, tiveram quatro filhos: três mulheres e um homem. Ela já faleceu e os filhos estão todos vivos. Um é medico, a outra bibliotecária e mora em Florianópolis, um é advogado e o outro comerciante.
P/1 – Mas moraram em São Carlos?
R – Todos. Mas hoje só o advogado mora lá.
P/1 – Do que vocês brincavam em São Carlos?
R – Olha, os meus vizinhos eram Sírios e tinham filhos e filhas perto da minha idade. Eu vivia lá comendo quibe e qualhada. Era uma festa! Era um terreno muito grande que saia na outra rua. A loja principal era na Rua General Osório e a entrada na rua Episcopal. Tinha um pé de laranja lima lá que a gente vivia trepando no pé para comer as frutas. Lá você fazia muita amizade com o pessoal da escola. Tinha uma piscina pública na cidade, onde eu ia todos os dias nadar com o meu pai. A gente jogava futebol na rua, era gostoso.
P/1 – Brincava com os primos também?
R – Os primos não porque vieram bem mais tarde. Quando eles vieram eu já morava em São Paulo. A maior parte dos amigos que eu tinha por lá vieram estudar em São Paulo e aqui ficaram. Tem muitos engenheiros, advogados, médicos. A escola em São Carlos era muito boa e o pessoal tinha vontade de seguir carreira.
P/1 – Quem exercia autoridade na sua casa, o seu pai ou a sua mãe?
R – O meu pai. Ele era o chefe. Era obedecido, ouvido e mandava na casa. Mandava em tudo. Mas era uma pessoa correta, muito boa e com muita sensibilidade. Eu não me lembro do meu pai ter negado nada para nenhum filho, mas ele dizia uma coisa: “vocês estudam. Eu não pude estudar. Se quiserem ser comerciante, é muito fácil”. Ele não negava nada os filhos nem a mulher. Era muito liberal. Meu pai saiu de São Carlos um pouco antes da gente. Meu pai saiu em 1942 e nós em 1944. Ele fez muita amizade com pessoas que, quando vieram para São Paulo, foram secretários de segurança pública, secretários de educação, e ele tinha muita amizade por essas pessoas. Respeitava e era respeitado. Então ele veio para São Paulo para preparar as coisas, ver casa e tal e depois, em 1944, resolveu trazer a família. A minha primeira escola aqui foi na Rua Augusta quase com a Rua Estados Unidos, se chamava General Couto de Magalhães. Até que a minha memória ainda está boa! .


P/1 – Deixa eu voltar um pouco. Em São Carlos vocês tiveram algum tipo de formação religiosa?
R – Todos nós tivemos uma formação religiosa, mas não a formação de um judeu ultra religioso. Éramos em quatro homens e todos nós fizemos a circuncisão, nem me lembro como foi. Fizeram em todos nós com oito dias de idade. Mas eu e todos os meus irmãos fizemos o bar mitzvah. Cada um seguiu o seu caminho, mas ninguém seguiu no caminho da religião. Existiam festas religiosas que meu pai fazia, e fazia muito bem feito, principalmente pela minha mãe. Respeitava-se os feriados judaicos, o dia do perdão e a páscoa, coisa que eu também respeito. Fora isso, não se fazia nada. Mas meu pai era muito respeitado dentro da colônia judaica e também contribuinte para muitas entidades.
P/1 – Existia uma colônia judaica em São Carlos?
R – Tinha sim. Tinham umas quinze famílias. Para que os judeus se reúnam para rezar é preciso ter dez homens. Em São Carlos congregava-se judeus de todas as regiões: Catanduva, Taquaritinga, que vinham lá para as festividades. Eu me lembro bem das festas judaicas.
P/1 – Como eram?
R – Tem uma que as crianças adoram, que é o final da leitura da Torah. Você começa a leitura no ano novo e quando termina, recomeça-se a leitura. Quando se termina a leitura, você tem uma festa com bandeirinhas, recebe-se balas e bombons, canta-se, e eu me lembro dessas festas. Isso lá em São Carlos, aqui em São Paulo não mais, a vida mudou completamente. Eu voltei a ter contato com o judaísmo aqui em São Paulo aos 15, 16 anos. Antes disso eu fiz o meu bar mitzvah, mas não tinha muita ligação.
P/1 – E as comidas na sua casa? Tinham comidas polonesas? Do que você se lembra?
R – Na minha casa tinha feijão, arroz, bife e batata. . Era todo dia! Mas nas festividades tinham as comidas tradicionais, a minha mãe fazia o famoso gefilte fish, mas não fazia muito. Ela não sabia muitos pratos. As vezes até vinham alguns parentes que sabiam mais. O meu pai era um grande apreciador da comida judaica e de teatro. Ele era estabelecido no Bom Retiro, onde tinham alguns restaurantes. Então os donos dos restaurantes passavam no comércio dele e diziam: “hoje eu tenho isso e estou reservando para você!”. Tipo ovos de peixe, coisas bem delicadas, e eu fui aprendendo com ele a comer essas coisas. Antes de vir para o Brasil ele fez teatro amador na Europa. Quando o teatro iídiche para o Brasil, o primeiro lugar que eles iam era À loja do meu pai, que comprava uns 30, 40 ingressos e distribuía, para o teatro não ficar vazio. Essas peças aconteciam no Teatro Cultura Artística.

P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu fui precoce, entrei com seis, sete anos. Eu sei que tive que fazer um teste de admissão porque não me deixavam entrar no ginásio. Eu estava preparado, mas não tinha idade. Entrava-se com onze anos e eu tinha dez, com o curso primário já terminado.
P/1 – Como foi esse curso primário? Teve alguma professora que te marcou?
R – A cidade era pequena. Veja, o meu pai tinha essa loja, que era muito importante. Todos os professores, delegados, compravam lá e pagavam da forma que podiam. O meu pai atendia todo mundo. Lá eu fiquei do primeiro ano primário até o terceiro. No quarto ano eu vim pra cá. Nesses três anos eu tive aula com a mesma professora.
P/1 – Você lembra do nome?
R – Não lembro. Lembro da bedel que ficava tomando conta de gente, Dona Ifigênia, mas dela eu não estou lembrado. Só lembro que essa professora me tratava na palma da mão.


P/1 – Você gostava da escola?
R – Gostava.
P/1 – Tinha alguma coisa que mais te chamava a atenção?
R – A escola chamava Escola Normal Doutor Álvaro Guião. Era uma escola Normal, tinha curso primário e curso normalista. O que tinha de bom eram as amizades que a gente fazia e iam se perpetuando. A cidade era pequena e, mesmo os que moravam longe, a gente ia quase que a pé.
P/1 – Vocês iam a pé?
R – Na volta sim. Na ida, ia-se de bonde. Porque quando estava-se atrasado, tomava o bonde que deixava na porta. Mas voltar, eu voltava brincando pela rua, junto com outros coleguinhas. Era uma cidade que aos seis anos de idade você poderia andar na rua. Não se conhecia atropelamento e violência por lá.
P/1 – Em que momento o seu pai decide vir para São Paulo?
R – Eu já estava com oito anos, terminando o curso primário. Então ele resolveu se mudar porque ali não se teria muito espaço. Então achou melhor que fossemos para São Paulo, também para conhecer melhor a cultura judaica. Naquela época houve o estabelecimento do estado de Israel, então a gente conviveu muito com essa violência da segunda guerra e do nazismo.
P/1 – Como isso repercutia na sua casa?
R – Com muita tristeza. A minha mãe chorava muito, o meu pai sempre procurava saber dos sobreviventes, era doloroso.
P/1 – Que imagem você tinha quando se falava em guerra.
R – A gente sofreu mais com o pós guerra, com a divulgação das imagens dos campos de concentração e algumas cartas recebidas de poucos sobreviventes da família que foram para Israel. Era muito triste não ter conhecido a família e os parentes. Quando surgia a oportunidade de conhecer alguém, a gente ia atrás para tentar manter contato. Ficava-se sabendo de casos, por exemplo, da minha avó materna, que foi queimada deitada pois não conseguia se movimentar. Um dos irmãos da minha mãe era partizan. São civis que lutavam conta o nazismo. Tinham os parquizans judeus e poloneses. Eram guerrilheiros. Na véspera de terminar a guerra, eles pernoitaram no galpão de um fazendeiro polonês, que os denunciou e todos foram mortos. Saber que todos morreram é uma coisa, saber que aquele morreu é outra. Na época do comunismo sobraram alguns. Tem um livro que aparece um parente meu, um Muszkat, como ministro da suprema corte. Depois de uns anos veio para cá um primo irmão do meu pai, sobrevivente de guerra também, e a gente conversava muito. Era uma alegria conversar sobre as coisas boas, mas as conversas eram dolorosas. Não era só a minha família, todo mundo conhecia alguém que sofreu na guerra, principalmente na Polônia, que era um país muito antissemita. Muita gente morreu lá porque foi denunciada. Em outros lugares até houve maior número de sobreviventes, protegidos pela população. O meu pai conseguiu trazer aquilo que deu e o que não deu, deixou para trás.
P/1 – Ele escolheu qual bairro aqui em São Paulo?
R – Nós fomos morar na esquina da Rua Oscar Freire com a Rua Peixoto Gomide, uma rua sem calçamento, sem asfalto. Eu jogava futebol na rua.
P/1 – Na mudança foi a primeira fez que você veio a São Paulo?
R – Não. Eu vim uma outra vez com o meu pai, minha mãe e o meu irmão, para visitar a cidade. A gente descia na estação da Luz. A Rua Mauá era cheia de caixeiro viajante. A gente ficava nesses hotéis enquanto o meu pai ia fazer compras na Rua José Paulino, depois voltávamos.
P/1 – Que impressão você tinha de São Paulo?
R – A primeira vez que vim, pegamos um taxi e eu olhava para os prédios na Avenida Ipiranga e achava que aquilo estava caindo. Era impressionante, parecia que aquilo vinha em cima de mim. Isso eu me lembro perfeitamente, foi a primeira impressão do centro da cidade.
P/1 – E o seu pai? Deixou a loja para o seu tio?
R – Deixou a loja para ele e veio para São Paulo abrir outros negócios.
P/1 – O que ele abriu?
R – Ele tinha aqui uma sociedade com dois amigos italianos de São Carlos. Um era gerente das máquinas de costura Fafe. Lembra dessa marca? E o outro era presidente da associação dos alfaiates do estado de São Paulo. Eles se davam bem e abriram uma loja na Rua Santa Ifigênia para atacado de casimiras. Chamava ‘Casimira Bristo’. Durou alguns anos, mas estes dois italianos brigaram. O meu pai, para não tomar nenhum partido, saiu e montou uma loja de tapetes. Se transformou em um grande comerciante deste ramo. Vendia tapetes nacionais e importados.
P/1 – Como chamava a loja?
R – O rei dos tapetes.
P/1 – Ficava aonde?
R – Na Rua José Paulino.
P/1 – Na própria José Paulino?
R – Sim. Depois abriu uma filial aqui no Itaim Bibi. Fora isso ele entrou no ramo de construção, foi banqueiro, cresceu muito.
P/1 – Que banco?
R – Se chamava banco, banco, como era o nome? Banco Brasão! O banco mineiro.
P/1 – E na loja de tapetes ele tinha funcionários?
R – Isso, funcionários de confiança que trabalhavam para ele.
P/1 – A sua mãe trabalhava junto com ele?
R – Não. A minha mãe não.
P/1 – Como ele chegou a abrir um banco?
R – Ele era uma pessoa muito conhecida e respeitada. Então alguns amigos que tinham negócios também se reuniram sabendo que banco era um bom negócio e fizeram uma sociedade. Casa um entrou com 10%, formando uma sociedade. Ele topou e entrou. Até tem um episódio interessante ai: entre os amigos tinha um que ele conhecia mais ou menos e que chegou no dia de subscrever e pediu para dar um cheque para trinta dias. O meu pai disse que não, porque banco tinha-se que cobrir o negócio na hora, e que então ele não serviria para ser sócio, e então não deixou o cara entrar. E ele estava certo, não é? Sem dinheiro não entra. Ele era muito positivo. Na construtora tinha um grande amigo que veio do interior com ele, chamado David, um dos sócios da PBK. O meu pai e ele eram sócios, ficou muito doente e o David formou a PBK. Mas as primeiras construções, os primeiros imóveis, era o meu pai que trabalhava com ele. Foi uma pessoa que se fez sozinho. Era o homem do fio do bigode, respeitadíssimo.


P/1 – Quando você chegou aqui, chegou com dez anos, você tinha alguma expectativa quanto a mudar de cidade e morar em São Paulo?
R – Nenhuma. Nenhuma mesmo. Mas eu me dei bem. Na redondeza de onde nós moramos, esquina da Rua Peixoto Gomide com a Rua Oscar Freire, tinha um grupo de doze amigos.
P/1 – Você chegou e já se enturmou?
R – Não. Logo quando cheguei, estava à porta e vi um menino mais ou menos da minha idade brincando num terreno vazio, que ficava ao lado da minha casa. Perguntei se ele queria ser meu amigo e ele falou que queria. Depois de um tempo nós formamos um grupo que se chamava ‘a turma da Oscar Freire’, com exceção de dois ou três, todos estudaram, se formaram e hoje são bons profissionais. Eu tinha dez anos e hoje estou com 79, portanto há 69 anos nós nos encontramos todos os anos. Isso com os que ainda estão vivos, porque alguns já faleceram. Quando alguém marca este encontro a gente faz de tudo para não faltar. A reunião dessa turma era na porta da minha casa e a gente saia todas as noites, ai ao cinema, fazia bailinhos, foi uma época legal.
P/1 – Você morava em casa?
R – Eles?
P/1 – Não, você. Como era a sua casa aqui?
R – Era uma casinha germinada nessa esquina. Era uma boa casa. Tinha três dormitórios, terraço bem grande, duas salas e cozinha enormes, uma copa. Era uma boa casa. O meu vizinho era um grande esportista, que têm o nome do ginásio do Ibirapuera. Ele saltava à altura no Paulistano, foi campeão brasileiro, campeão daqui, de lá, era um cara muito legal.
P/1 – Você praticava esporte?
R – Ô! Mais da metade dessa turma fazia ginástica olímpica. Entre nós tinha campeão paulista e sul americano de natação. Eu também nadei, fui campeão infantil de natação, jogava futebol, mas como brincadeira. Sério mesmo era com a natação. Um dos nossos amigos era o Paulo Catunda, tio da Leda Catunda, artista plástica.
P/1 – E na escola, como foi aqui em São Paulo?
R – Primeiro eu entrei no grupo escolar e depois fui para o Mackenzie. Como eu já nadava, no Mackenzie eu participei do diretório como diretor de natação. Fui diretor até o colegial. No colegial fui diretor e depois do presidente centro colegial. Na faculdade eu cursei engenharia e fui líder estudantil. Primeiro tesoureiro e secretário, depois vice presidente e presidente do centro acadêmico Horácio Leme, em 1954. Memoráveis lembranças do Getúlio Vargas se suicidando e as arruaças aqui em São Paulo, manifestações que a gente tinha dentro da universidade e na Rua Maria Antônia.


P/1 – Deixa só eu voltar só um pouquinho. Você disse que tinha essa turma que ia a bailes e festinhas, como era isso?
R – Os bailes e festinhas foram até os nossos dezoito anos. Depois que entramos na faculdade as festas mudaram.
P/1 – Mas até os dezoito, como eram essas festas?
R – Era na casa dos amigos. Além do grupo, vamos dizer, masculino, tinha um grupo feminino, que vinha para os bailinhos.
P/1 – Qual foi a primeira vez que você se apaixonou por uma menina?
R – Isso já é meio complicado. . Nós tivemos várias paixões.
P/1 – Teve alguma que tenha te marcado?
R – Lembro uma de São Carlos.
P/1 – Como era o nome dela?
R – O apelido dela era Cila, o nome era Yosita Martutti. Ela foi rainha lá em São Carlos e eu gostava muito dela. Como até os dezoito anos eu passava as férias em São Carlos, a gente namorou e teve uma ligação até que forte. Fora isso, aqui em São Paulo a gente teve ‘n’ namoradas.
P/1 – Você gostava de dançar?
R – Eu era um bom dançarino.
P/1 – O que você dançava?
R – O que você quisesse. De tango a foxtrot, swing, tudo!
P/1 – Com quem você aprendeu a dançar?
R – A turminha aprendia vendo filmes e entre nós. As meninas ensinavam e você ia se desenvolvendo. Tango, bolero, esses negócios, já foi num lugar muito particular onde as nossas amigas não entravam, apenas os meninos . Eu era um bom dançarino.
P/1 – Que tipo de música você ouvia?
R – Desde cedo eu gosto muito de música clássica. De música popular eu gosto de coisas mais antigas, tipo Noel Rosa, Francisco Alves. Essa metaleira desses dias eu não consigo ouvir.
P/1 – Tem alguma música que tenha te marcado?
R – Algumas do Noel Rosa, como ‘Mulher Apaixonada’ e outras que eu não me lembro o nome.
P/1 – Você sabe cantar um trechinho? Pode cantar?
R – “Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago. Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago”. Tá bom? . Quando já na faculdade, a gente ia para a Rua Major Sertório, naquelas boatezinhas. Um dos meus amigos de faculdade, que inclusive estavam na minha festa de noivado, tocavam muito bem piano e bateria. Então eles tocavam de graça e a gente bebia de graça.
P/1 – Nessa juventude, em que momento você disse para si mesmo que queria fazer faculdade?
R – Fazer faculdade é uma coisa que nunca saiu da minha cabeça. Desde que eu me conheço por gente eu sabia que ia cursar.
P/1 – Mas já tinha alguma expectativa?
R – A expectativa era ser engenheiro. Hoje eu sou advogado. Acho que deveria ter sido advogado desde o começo, mas deu tudo certo.
P/1 – Tinha uma expectativa para você cursar engenharia?
R – Na realidade essa escolha teve influência do meu pai, que dizia: “eu tenho quatro filhos e você vai ser engenheiro, porque tem cabeça boa para matemática”. Para o outro, dizia que seria médico, porque não fica impressionado com sangue e nada disso. Para o terceiro, que já faleceu, ele dizia ser muito malandrão e que seria advogado. E ele foi mesmo, da faculdade São Francisco! O caçula não se formou mas é o milionário da família. Foi o que mais deu certo! .
P/1 – E então você fez engenharia.
R – Isso, no Mackenzie.
P/1 – Você fez cursinho?
R – Não. Fiz colegial no Mackenzie e era bom aluno. Entrei entre os dez primeiros colocados. Eu sabia que queria fazer Mackenzie porque já estava radicado lá. Eu era pessoa conhecida lá dentro. Todo lugar que eu andava, as pessoas me conheciam. Há pouco tempo atrás eu fui lá para resolver o assunto de um amigo meu e sai horrorizado. Nunca faria uma faculdade daquelas hoje em dia. É outro ambiente, outra coisa.
P/1 – Como foi o curso de engenharia?
R – Bom.
P/1 – Você fez engenharia do que?
R – Civil, mas dentro da faculdade eu acabei fazendo mais política do que engenharia.
P/1 – Logo você entrou no movimento estudantil?
R – Eu nunca sai dele.
P/1 – Quando você começou a ser militante?
R – Desde o primeiro ano de faculdade. Eu tive colegas importantes, grandes militantes. Depois fui sócio de um deles, o Rubens Paiva, violentado e assassinado na revolução e muitos outros. Tanto o pessoal da nossa faculdade como o da politécnica, direito e escola paulista de medicina eram ativos politicamente. Os maiores políticos estavam na Poli (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo), no Mackenzie e na faculdade de direito. Naquela época também não existiam tantas faculdades.


P/1 – Como o seu pai via essa sua militância?
R – Muito bem. Ele também foi um militante e então se sentia muito orgulhoso.
P/1 – Qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Como engenheiro, mas eu nunca trabalhei como empregado, sempre trabalhei por conta própria.
P/1 – Como foi a primeira experiência?
R – Quase morri! . Cai do quarto andar no poço do elevador. Eu estava conferindo as ferragens, passei em cima do poço, que estava com a taboa solta e vim para baixo: tum! Quatro andares! Fui para o hospital e graças a Deus não quebrei nada. Eu já namorava a minha atual esposa, que na época foi a minha casa perguntar ao meu pai como eu estava. E ele disse: “não tem problema. Não se preocupe que ele vai poder trabalhar direitinho”. . Eu não me esqueço disso.
P/1 – Mas que trabalho foi esse?
R – A construção de um prédio.
P/1 – E como você trabalhava por conta própria?
R – Meu pai era engenheiro. Ele e esse amigo Davi queriam construir um prédio. Eu cuidava de toda administração, mandava fazer os cálculos, fazia toda administração de comprar o terreno e levantar o prédio. Eu já tinha tido prática porque depois do terceiro ano de faculdade trabalhei num escritório de engenharia, então a gente adquire prática.
P/1 – Qual escritório foi?
R – Bernardo Rzezac. Ele tinha um escritório de engenharia.
P/1 – Como foi esse estágio, você se lembra?
R – Lembro. Tinham três secretárias bonitas e eu saia com as três. O duro era fazer com que uma não soubesse da outra! . Aliás isso não pode aparecer ai! . Nisso eu adquiri muita prática.
P/1 – Depois desse empreendimento que você fez com o seu pai, o que você fez?
R – Montei uma empresa e trabalhamos muito com obras públicas.
P/1 – Qual o nome da empresa?
R – Construtora Japurá. Construímos muito na cidade universitária. A faculdade de polícia, história e geográfica, o alojamento dos estudantes. Fora isso, no estado de São Paulo fizemos muitas pontes.
P/1 – Você era o único dono?
R – Eram três sócios: eu, o Rubens Paiva e o cunhado dele, Rafael. Isso em 1959 e 1960. Naquela época muitos colegas meus foram trabalhar em banco. Engenheiro era um coringa, que podia ser aproveitado em várias áreas. Na construção não iam muitos. Todos que foram se saíram bem, mas a grande parte ia para as indústrias ou bancos, faziam uma especialização fora e tal. Nós já estamos no final da entrevista?
P/1 – Não. Estamos só ajeitando as coisas. O senhor está cansado?
R – Não. Apenas gostaria de fixar um tempo para o término.
P/1 – Agora são quatro e quinze da tarde. Que horas você gostaria de parar?
R – Sei lá, cinco horas está bom para você?
P/1 – Tá. Se a gente não terminar o senhor volta?
R – Ai temos que marcar um dia.
P/1 – Tá. O senhor está cansado?
R – Sabe o que acontece? Eu estou no processo de recuperação de um câncer, ainda em tratamento. Então certos esforços ainda me deixam cansado. Por enquanto eu não estou, mas estou me prevenindo para não ficar.
P/1 – Tudo bem. Podemos para quando for melhor para o senhor.
R – Tudo bem. Eu estava tentando me lembrar de alguma coisa mais importante.
P/1 – Você estava dizendo que engenheiros naquela época eram aproveitados em outras áreas de serviço que não só na construção.
R – Eu vou tentar me lembrar disso. Ao mesmo tempo em que eu tinha o meu escritório de engenharia, eu participava muito do movimento estudantil. Depois que sai da faculdade comecei a participar de movimentos comunitários que eu achava importante.
P/1 – Quais movimentos?
R – Por exemplo em 1956, 1957, a vinda de imigrantes judeus perseguidos na República Árabe Unida e no Líbano. Como o meu pai também era líder comunitário, ele me puxava junto. Eu fazia isso com prazer e aprendia muito. Tinha uma associação da qual o meu pai fazia parte que distribuía para esses imigrantes iniciarem a vida. Muitos as vezes vinham com dinheiro, mas outros não. Também tinham os que diziam não ter, mas tinham dinheiro. E dizia isso para o meu pai, sobre o fato dele dar dinheiro para pessoas que não conhecia e não sabia se estavam mentindo ou não, e ele me dizia que isso não importava, que a gente deveria ajudar. Que esta pessoa deveria formar na cabeça dela que aquele dinheiro recebido deveria ser devolvido, pois isso ajudaria outras pessoas. Se não devolvesse, nós não iríamos fazer nada. Isso realmente ficou marcado em mim, dar sem a expectativa de retorno. As vezes eu ia com ele fiscalizar a pessoa que tinha chegado, se as coisas estavam funcionando ou não, foi um grande aprendizado. Eu tinha um vinte e poucos anos. Eu aprendi muito com o meu pai. Não sei se pelo fato dele também ter sido um militante ou por ter saído as dezoito anos do seu país sem nunca mais ver os país. Ele dizia que era mais brasileiro do que eu, porque havia escolhido o país e eu nasci aqui. Quando morávamos em São Carlos, o meu pai fez parte da maçonaria. Em cidades pequenas eles sempre procuram os comerciantes, e o meu pai alcançou alto posto na maçonaria, chegou ao grau trinta e três. Eu não sou maçom, um irmão meu é. Ele é venerável na maçonaria de São Paulo. Quando saímos de São Carlos o meu pai deixou de frequentar as lojas maçônicas, acredito que muito pelo novo trabalho, viagens, novas ideias. Nos anos 50, quando houve a grande imigração dos países árabes para o Brasil, especificamente para São Paulo, ele fazia parte de uma equipe de ajuda para estes imigrantes. Era uma comissão formada por meu pai e mais meia dúzia de pessoas.

E como funcionava esta ajuda? O imigrante ou responsável pela família que estava chegando, contava a sua tragédia e recebia um empréstimo para abrir algum negócio. Então muitos deles abriram mercearias, lavanderias, não eram grandes negócios, mas quase todos possuíam formação universitária. Muitos deles cresceram e formaram grandes fortunas aqui no Brasil. Eu fui com o meu pai várias vezes em alguns lugares de São Paulo verificar como eles estavam aplicando este dinheiro, cheguei a perguntar para ele como ele tinha certeza que este dinheiro retornaria, afinal, a ideia é que o dinheiro fosse emprestado e posteriormente devolvido, para que outras pessoas pudessem ser ajudadas. E ele me disse que isso dependia da consciência de cada um. Se a pessoa devolvesse, ficaríamos satisfeitos. Se não, paciência. Esse dinheiro, ele dizia, era fundo perdido, era pra isso mesmo. E com isso muitas e muitas famílias que hoje estão ai com grandes empreendimentos e indústrias tiveram este tipo de auxílio. A partir daí eu também comecei a ficar ligado nesta questão de filantropia e comecei a fazer parte de organizações para auxílio de pessoas necessitadas, todas elas pertencentes a comunidades judaicas. Pois na Europa já havia esta tradição e seus estatutos, então acabei tralhando e ocupando cargos elevados nestas organizações.
P/1 – Quais organizações?
R – Por exemplo, a tradicional, que significa ‘filhos da união’. É como uma maçonaria. A finalidade é de auxiliar pessoas doentes, desamparadas, viúvas, é inclusive uma organização que ajudou muito na fuga de judeus durante a perseguição nazista. O seu ramo principal na Alemanha era formado por pessoas de formação cultural elevada, professores, advogados, médicos, que conseguiram tirar muitos judeus da Alemanha. Trabalhei nesta organização e nos anos 60, quando veio a repressão, passei a militar em organizações políticas nacionais.
P/1 – Quais organizações?
R – Nesta época existiam basicamente duas, PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e Arena. Sendo que o PMDB não era ligado ao governo. A Arena sim, era totalmente ligada ao governo. Então nós tentamos ajudar tudo o que era possível, mas não se podia ajudar em muitas coisas. Tudo estava na mão dos militares, não se tinha mais habeas corpus, nem direito a contestação. Às vezes você tinha que provar que tal pessoa não era ligada a terrorismo, mesmo quando esta pessoa tinha certa participação, seja ela ideológica ou prática. Eu tive dois sócios, deputados federais, caçados pela revolução, caçado simplesmente porque manifestou apoio a um deputado que falou contra a revolução em uma manifestação no congresso. No dia seguinte ele estava caçado. O outro foi o Rubens Paiva, que foi caçado, perseguido e assassinado. Então a gente procurava dar auxílio e colaborar de alguma forma, até a vida dessas pessoas se normalizar novamente. Hoje eu exerço a presidência de uma instituição também de auxílio, Associação Cemitério Israelita; quando a pessoa falece e não tem condição de ter um enterro decente, ou um local no cemitério, a gente auxilia. Na religião judaica, para que um enterro seja completado dentro da tradição, cada pessoa deve ter o seu lugar, que não é uma gaveta, é um lugar único, corpo colocado deitado e uma pedra de mármore. Isso não pode deixar de ter, é quase uma obrigação da família. E quando esta não pode, a sociedade faz tudo. Existem quatro cemitérios judaicos, dos quais a gente cuida: Vila Mariana, Butantã, Embu e Cubatão, que era das prostitutas da baixada santista. É um cemitério pequeno, deve ter uns sessenta, setenta túmulos, que também contam com o nosso auxílio.
P/1 – Porque vocês incorporaram este cemitério de Cubatão?
R – Porque estão enterradas lá as prostitutas judias. Elas tinham a sua associação. Lá você encontra não só o corpo delas, mas também os seus amiguinhos cafetões, que elas enterravam. Existe a história dessas mulheres, chamadas ‘polacas’. Nem todas mulheres vinham para cá já como polacas, muitas delas tinham a ilusão de se casar com um homem bonito, mas quando chegavam aqui, eles às colocavam na vida. Existia gente fazendo isso aqui no Brasil e também na Argentina. Então, para que elas não ficassem abandonadas, elas também passaram a ser cuidadas. É um cemitério bonito e limpo.

O cemitério aqui do Butantã é todo ajardinado. O de Cubatão segue uma tradição europeia. Os túmulos estão todos um atrás do outro, apenas com as pedras de mármore. Neste cemitério, quando as prostitutas enterravam os seus amiguinhos, elas deixaram escrito no mármore uma mensagem para eles, quando eles às enterravam, faziam o mesmo.


P/1 – Que interessante isso!
R – E tinha outro cemitério delas aqui em São Paulo, no Chora Menino, mas a prefeitura encampou e foram todos os corpos transladados para o Butantã. Este era o primeiro lugar que tinha uma homenagem, em forma de escultura, aos mártires do nazismo. Elas que fizeram. Olha que coisa. E depois a coletividade fez também uma homenagem lá no Butantã. Eu participei disso porque quando comecei a trabalhar nesta organização com trinta anos, são quase cinquenta anos de participação ativa. Depois eu vou trazer um livro da Sociedade para você ter aqui no seu arquivo. O que a gente não tem é dinheiro, de resto, temos um monte de coisas que podemos fornecer. Acredito que assim se encerra a minha participação dentro da coletividade. Continuo trabalhando mas não sei até quando, pois não sei como a minha doença vai evoluir. Fiz agora uma biópsia para saber se é algo simples, se tem tratamento ou não. Por enquanto me sinto bem e apesar de tudo isso fui convidado novamente a ser presidente desta entidade. Deixa eu ver se eu me lembro de mais algum fato importante. O meu pai fez parte desta sociedade. Quando ele morreu eu tinha trinta anos e me convidaram para entrar. Foi quando eu iniciei a atividade dentro desta sociedade. Eu já trabalhava em outras, mas nesta, foi neste ponto em que comecei.
P/1 – Você tinha uma sociedade com o Rubes Paiva, não tinha?
R – Quando eu me formei engenheiro eu acabei fazendo esta sociedade. Éramos em quatro. O Rubens Paiva era sócio, ajudava em algumas coisas, mas quem dirigia mesmo a empresa era eu e o Rafael, os outros tinham o nome e concorreram com o capital para início da empresa. Concorremos muito para obras públicas. Construímos boa parte da cidade universitária.
P/1 –

O que você construiu na cidade universitária?
R – A escola de polícia, logo na entrada da cidade universitária, ao lado esquerdo e o prédio da faculdade de história e geografia.
P/1 – Como foram estes projetos? Eles eram pioneiros na época?
R –O projeto da cidade universitária começou com o Arlindo Carvalho Pinto. A ideia era transferir todas as universidades para lá e a escola de polícia era um caminho novo para a formação de delegados. Era uma senhora construção, que está lá até hoje. Foram lançados projetos de construção pública com arquitetos que ficaram famosos após a criação da cidade universitária. Faziam-se projetos, discutia-se e lançava a concorrência, e então as construtoras entravam na concorrência, ganhavam ou perdiam. Tinham grandes construtoras na época. A nossa também era grande, mas tinha a Camargo Correa, a Companhia de Construtores Associados – CCA, a Heleno Fonseca, um monte!


P/1 – Como era o nome da sua empresa mesmo?
R – Engenharia e construção Japura limitada. Então construímos muito na cidade universitária, fizemos também pontes por ai e alguns prédios no bairro do Higienópolis e Jardins. Tínhamos uma inovação com concreto, que é o concreto protendido, onde faziam-se grandes vãos e então não era necessário se fazer colunas nem nada disso. Hoje em dia se faz muito disso, mas naquela época éramos pioneiros. Depois eu sai da empresa.
P/1 – Porque?
R – Pela seguinte razão: o meu pai faleceu e tinha uma empresa grande, então a empresa ficou sem ninguém para cuidar. O meu irmão, o terceiro na escala, ainda era muito jovem para assumir e a família pediu para que eu assumisse. E eu assumi. Fiquei lá durante alguns anos, a firma cresceu.
P/1 – Como se chamava a firma que ele estava?
R – Era ‘O rei dos tapetes’. Mas esse era o nome fantasia. O nome real era MA Muszkat sociedade anônima. Depois que ele faleceu, eu assumi, porque um irmão meu é medico, o outro advogado e o outro estava estudando ainda. Mas depois eles entraram para a firma. Casou um, casou o outro e eu acabei discutindo com os meus irmãos e sai da empresa, pelo motivo de não se profissionalizarem na área. Para a minha tristeza, o meu irmão que assumiu, o terceiro na escala, nascido em 1942, era viciado em jogo. Quando viemos a descobrir que a coisa estava ruim, eu já nem fazia mais parte da empresa, mas ele perdeu tudo jogando.




P/1 – Perdeu a empresa?
R – Tudo. É pra ficar de boca aberta mesmo. Era uma empresa grande, muito renomada.
P/1 – Mas isso abalou as finanças da família?
R – Abalou as finanças dele, pois eu já tinha saído. Mas de certa forma abalou a todos, porque ele perdeu aquilo que futuramente seria parte da herança da minha mãe. Quando o meu pai ficou muito doente eu ainda estava na empresa e transferi para a minha mãe 95% das ações. O meu pai veio a falecer e ela passou a ser a titular. Porém, pela preservação da capacidade financeira da empresa, ela só poderia ter acesso a 50% das ações, sendo os outros 50% pertencentes aos filhos. E ai começou a encrenca, viu. Porque ela achou que era dona dos 100% e eu, para não criar muito caso, sai. Mas eu não tinha conhecimento desse problema do meu irmão, que era muito sério mesmo. Ele jogava grandes cartadas. Incrível isso, mas ele perdeu tudo.
P/1 – E ai?
R – Ele começou a trabalhar fazendo uma coisinha aqui, outra lá e nós ajudávamos dentro das possibilidades. Hoje em dia o que está melhor é o caçula, que tem uma grande construtora e eu fui para a advocacia.
P/1 – Em que momento você deixa a engenharia?
R – Há trinta e cinco anos.
P/1 – Porque você decidiu deixar a engenharia?
R – Eu comecei a não gostar mais de lidar com peão, mestre de obras, empreiteiros, cheguei a ter muita briga. Um dia eu dei uma ordem dentro de uma obra e o mestre de obras não obedeceu. Eu tinha duas opções, ou mandava ele embora na hora ou abaixava a cabeça e ninguém iria mais me respeitar. Então mandei ele embora e ele veio com um pedaço de ferro para me dar na cabeça. Na época eu era jovem, forte, peguei um caibro desses de obra, de três metros, então eu estava mais perto dele do que ele de mim, com o ferro. Então ele largou o ferro, ficou quieto e foi embora. Era um bom mestre de obras, o pior de tudo era isso. Eu cansei da engenharia. Era também uma época de inflação muito grande. Então veja, na época do Carvalho Pinto foi legal. Você fazia as medições, tudo, acertava e recebia. Depois dele, quando veio o Ademar de Barros, você tinha que dar vinte por centro para a carriola dele, se não ele não soltava o dinheiro. Era corrupção pura! Os meus sócios ficaram e estão até hoje com a Japura, se bem que ela diminuiu bastante. E então fui trabalhar na firma do meu pai, sai e fui fazer outras coisas.
P/1 – O que você foi fazer?
R – O meu pai tinha uma série de negócios. Tinha esta loja de tapetes muito grande, eu montei uma sessão grande de cama, mesa e banho uma das maiores de São Paulo.
P/1 – Como se chamava?
R – Era O rei dos tapetes. Eram dois prédios grandes na Rua José Paulino, depois aqui na Avenida São Gabriel e na Avenida Liberdade. O meu pai também tinha um banco, junto de alguns sócios, chamado Banco Brasão, então eu passei a assumir a função dele dentro do banco. Três vezes por semana eu ia lá para verificar as operações e depois vendemos o banco para o Banco Comércio e Indústria de São Paulo, o COMIND. Fora isso ele tinha uma fábrica de tapetes de pele de carneiro, o qual eu assumi. Até que um dia eu disse “não quero nada disso ai” e fui fazer vestibular. Nem precisaria, porque eu tinha faculdade de engenharia e de letras, então não era necessário o vestibular. Então eu fui aprovado na PUC (Pontifícia Universidade Católica) e no Mackenzie. Não prestei USP (Universidade de São Paulo) porque era fora de época.
P/1 – E porque Direito?
R – Na época da construtora eu tinha um grande advogado, amigo meu, que era o Arlindo Carvalho Pinto, não sei se você conhece. E então muitas vezes discutindo eu falava para ele que faria Direito para saber tudo o que estava fora das negociações e tomar conhecimento. E ele falou para eu fazer e ir trabalhar com ele. E aquilo ficou encasquetado aqui dentro e resolvi fazer. E então fiz por diletantismo. De noite eu ia a faculdade e comecei a gostar. Modéstia a parte, eu sou um bom advogado.
P/1 – Você fez na PUC?
R – Isso, a noite. E pela manhã trabalhava nos negócios do meu pai. Eu tinha condições de não trabalhar, mas nunca consegui ficar parado. Para você ver, hoje eu poderia estar repousando, mas não estou.
P/1 – E quando você começou a exercer a advocacia?
R – Logo quando eu decidi ir para a advocacia eu fui assessorar uma empresa que estava pedindo concordata. Logo no meu primeiro ano de direto e dela pra cá eu não sai mais. Fiquei e sempre que aparecesse algo que eu não soubesse, fazia parcerias.


P/1 – Você tem o seu próprio escritório?
R – Tenho. Sou eu e mais uma advogada, a secretária e advogados que nós fazemos associações em áreas específicas, como tributária. Eu só não faço criminal. Trabalhista eu só faço a parte da empresa, do empregado eu não faço. A minha advocacia é como médico de família. Você começa a trabalhar e atendendo um caso empresarial e daqui a pouco o cliente te diz que está querendo se separar da esposa e pede para fazer a separação. Ou esta para comprar um imóvel e quer que assistência com a documentação. Então se abrange hoje quase toda área. Eu gostei muito do Direito porque não é monótono. A discussão pode ser parecida, mas a forma de agir tem as suas peculiaridades.


P/1 – Durante a sua faculdade teve algum professor ou matéria que te marcou?
R – Teve o professor de Direito Penal o qual ficamos muito amigos, mas eu não faço penal! Teve um de Direito Civil que virou desembargador e fomos amigos também. Eu sempre fui respeitado, sabe porque? Eu já tinha uma certa idade, não era criança. E os professores, na sua maioria, eram mais jovem do que eu. Então eles me respeitavam e a gente discutia. Eu resolvi ir mesmo para o Direito numa discussão que eu tive com esse professor de Direito Civil. Nós começamos a discutir um caso referente a área de Direito Civil e de repente eu disse para ele: “para, para. Você está certo e eu estou errado. Eu estou discutindo com você como engenheiro, e não como advogado. O meu raciocínio está sendo a de um matemático, e não juridicamente”. Foi com isto que eu tomei mais gosto pela advocacia. Engraçado isso, não é?
P/1 – Nisso você já estava casado?
R – Já. Eu estou casado a 54 anos.
P/1 – E já tinha filhos então?
R – Já tinha filhos. Eu tenho três filhos: duas mulheres e um homem. A mais velha é casada e já tem três filhas, sendo duas gêmeas. Ela tem cinquenta e três anos. Depois tem o meu filho, também casado e com três filhas, ele tem cinquenta e dois anos. Depois vem a caçula, artista plástica de cinquenta e um anos. E eu estou casado a cinquenta e quatro anos com a mesma mulher, que também é uma grande profissional. É uma psicanalista com livros publicados.
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Alvina Muszcat. Se eu ainda tiver algum livro dela eu te trago também.
P/1 – Você deve ter muita história dentro do Direito. Cita algum marcante.
R – Esse marcou até a mim. Eu fui contratado por uma emprega grande, nova, que eu não vou citar o nome. Eles me mandaram todos os processos da empresa e evidentemente, minha sócia e eu começamos a examiná-los e encontramos um processo trabalhista que nos chamou a atenção. A ação inicial, feita pelo reclamante, dizia que ele era gerente geral para todo o Brasil e recebia 5% de comissão sobre a venda global. Só que a empresa faturava seis milhões por mês, o que dá 300 mil por mês, e ele declarava que ganhava de quatro a quatro mil e quinhentos mais 5% das vendas globais. A juíza pergunta neste processo para o representante da empresa se realmente esta pessoa ganhava estes 5%. O representante da empresa responde que, se a pessoa estava falando, é porque ganhava. E então a juíza não teve dúvida e sapecou lá a condenação. Só que essa condenação, por cinco anos de trabalho, dava a bagatela de 18 milhões de reais. Essa era a condenação da firma à pagar. Quando eu li aquilo fiquei assustado e fui falar com a firma, porque não era possível! E então o advogado contrário me chamou para fazer um acordo e eu fui. Eu propus 100 mil para ele e 100 mil para o reclamante, e ele me respondeu que por menos de um milhão de dólares ele não faria o negócio. E era um advogado tarimbado, hein, não era qualquer um, e me disse que nunca havia visto um processo daquele tipo voltar para trás. E então eu disse que para tudo havia uma primeira vez na vida. Eu levei sete anos neste caso. Quando fui fazer a defesa no tribunal eu apresentei cinco questões para provar que ele não poderia ganhar aquele valor. Primeiro, ele ganhava mais que o Silvio Santos, mais que o presidente nacional e internacional da General Motors, e ai eu dei uma sacada, falando que ele ganhava mensalmente mais que os cinco desembargadores do tribunal, somados anualmente. Esse foi o pingo d’água no negócio. Examinaram e anularam toda a sentença, recalcularam e foi passado que ele só teria que receber um mil e trezentos reais. No tribunal tem o elevador com batentes grandes. O advogado dele saiu do tribunal, foi entrar no elevador e bateu a cabeça no batente. O coitado ficou tonto! Quando eu fui ver o processo o pessoal do cartório me gozava, dizendo: “ih doutor, o seu adversário ganhou na loteria!”. Esse processo me marcou porque a firma não conseguiria pagar a sentença final. Esse é um, mas existem outros.


P/1 – Ah, conta!
R – Ih, tem cada caso! Eu vou encerrar com este. Um cliente meu construiu uma casa no Pacaembu. Uma casa muito bonita, construída numa área tombada pelo CONDEFAT (Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador). Quando foi feito o tombamento, dizia-se que não seria possível desmembrar os lotes, que deveriam ser padrão, de quinhentos a seiscentos metros e construção uniresidencial. O meu cliente comprou dois lotes e quis uni-los para construir a casa. Analisando os documentos da FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), que é um monte de papel, eu descobri que, por acaso, aqueles dois lotes poderiam ser unificados. Os outros não podiam, mas aqueles sim. A vila Pacaembu entrou com uma ação civil contra o meu cliente, querendo que derrubasse o que estava sendo construído e eu consegui entrar na justiça, com sentença favorável no tribunal. E está lá a casa construída. Sempre que eu encontro com este cliente eles me cumprimentam, a mulher dele me dá um beijo agradecendo por estarem morando na casa. As vezes a gente se encontra em concertos, ou em festas na casa deles e ela sempre diz: “eu estou aqui nessa casa por causa dele”. Isso me orgulha.




P/1 – Onde fica o escritório?
R – Na Avenida Angélica. Entre a Rua Pará e a Rua Goiás.
P/1 – Sempre foi lá?
R – Não. Antes eu tinha um escritório na Rua Silvia. Um sócio meu que veio a falecer, bem mais jovem, nos conhecemos na faculdade e nos demos bem. Ele morava na Rua Silvia, em um prédio antigo que ele administrava. Ficamos com uma sala enorme, mas depois que ele morreu eu vim aqui para a Avenida Angélica e a minha mulher, que também tem consultório, veio para o mesmo prédio. Estamos no mesmo andar, metade para cada um. Estamos lá a mais de dez anos.
P/1 – Tem algum outro caso? Está ótima esta parte.
R – Quando eu estava fazendo engenharia eu fui fazer o CPOR (Centro de Preparação de Oficiais de Reserva) e fui para a tropa de engenharia, cerca de 50 alunos, todos da Poli (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo) e Mackenzie. Todo ano em julho e dezembro a gente fazia um acampamento e, como engenheiros, fazíamos acampamentos para construção de pontes. Nós estávamos em Pindamonhangaba, no Rio Paraíba e eu fui destacado para comandar o encontro de pontes. Tinham as pessoas que construíam a saída e a ponte e quem construía o encontro. Quem estava fazendo a construção da ponte era o capitão, um cara burro como a mãe da peste. Burro, burro! Ele vinha fazendo a construção para baixo, sendo que deveria ser levada para cima, calculando a velocidade da água. Eu dizia: “Capitão, o senhor está fora do rumo”. Eu me lembro como hoje, ele dizia com sotaque nordestino: “faz o teu serviço que eu faço o meu!”. Quando terminou o serviço e as partes da ponte não se encontraram eu disse a ele, que tinha o alertado e ele disse que eu não havia coordenado o encontro das pontes corretamente e nos mandou carregar vigotas. Cada vigota pesava setenta quilos. Nós tínhamos começado a trabalhar as seis da manhã e já era sete horas da noite. O pelotão que eu estava coordenando disse que não iria carregar vigota. Os coloquei em forma e perguntei quem não carregaria as vigotas. Todos levantaram a mão. Então atravessei a ponte marchando, me apresentei ai capitão como comandante da tropa e disse: “Capitão, nós não vamos carregar vigotas”. Ele vira para a minha direção e diz: “quem não vai carregar vigotas?”. O meu batalhão estava atrás de mim e eu levantei a mão. Percebi que ele estava com um sorrisão e quando olhei para trás, ninguém havia levantado a mão! . Peguei um ano de cadeia. Toda noite eu tinha que botar a farda e ir até Santana responder pernoite.
P/1 – É mesmo?
R – É. Durante um ano.
P/1 – Você dormia lá?
R – Não. Só ia e me apresentava. Meia noite era hora de responder pernoite. Imagina, todos os dias do ano. Nos fins de semana eu tinha que ir de qualquer jeito porque estava fazendo o segundo ano. Esses caras que não levantaram a mão me deram uma boa. Ninguém levantou o braço! E com essa vamos encerrar por aqui porque eu estou sentindo uma dorzinha meio esquisita. Quanto tempo faz que eu estou aqui?
P/1 – Tem quarenta e quatro minutos.
R – Você viu que eu trouxe uma foto do meu avô materno?
P/1 – Vi!
R – Tem outras fotos. Mas quando os meus pais faleceram o meu irmão e minha cunhada passaram a mão em muita coisa. Eu, para não criar caso, não fui atrás. Mas eu gostaria de ter a foto do casamento de minha mãe. Lá em São Carlos, no colégio Dante Alighieri. Estão todos os convidados sentados, formando um semicírculo e ela no meio, com o meu pai. É uma foto bonita. Se eu arrumar, trago aqui para vocês. Eu acho que isso resume bastante a minha história.
P/1 – Quando você descobriu que tinha câncer?
R – Ah, foi um grande presente de aniversário. Foi no ano passado, no dia do meu aniversário. Eu estava com uma viagem marcada e tudo pago. Eu gosto muito de música clássica e eu ia para o festival de Salzburg, na Áustria para assistir a Orquestra Filarmônica de Berlin, com Daniel Baremboim e uma ópera, que agora eu me esqueci o nome. Tinha tudo reservado e pago, e então começo a ter uma dor tremenda. Me meteram no hospital e descobri estar com câncer. Entrei no hospital no dia que eu estava com as malas prontas para viajar. Não foi fácil descobrir o meu câncer, levou um mês para descobrir.


P/1 – Você operou?
R – Não, fiz apenas a quimioterapia. Agora no mês de maio eu mudei de médico. O meu médico, que era um médico conceituado, o Rene Gans, chefe da equipe do Hospital Albert Einstein, mas há algum tempo a minha mulher queria que eu fosse assistido. Ai um médico amigo nosso conseguiu arrumar uma vaga com ele. Nós estávamos tentando, mas ele não tinha agenda livre. Esse amigo arrumou mesmo a vaga. Este médico imprime uma confiança que você não faz ideia. Ele fala coisa com coisa. Eu levei todas as coisas e ele me disse: “o seu câncer era raro. Eu só tive um caso desses até hoje e esse cliente eu curei. Mas eu preciso fazer uma biópsia do seu pulmão para saber se é realmente câncer”. Eu tive um tipo de nódulos desses que aparecia nos exames quando operei a próstata, há dez anos. Mas tive alta. Se realmente fosse câncer, ele me levaria para Hilton para operar, porque ele não faria. Na operação de pulmão você cai para uma outra qualidade de vida e tende a piorar. Eu estou me sujeitando a fazer a quimioterapia, mas depois de dois dias eu já estou normal, faço a minha ginástica, faço tudo. Mas eu descobri no dia oito de julho do ano passado.




P/1 – E o que mudou na sua postura diante a vida?
R – Mudou uma série de coisas. Fazer químio três semanas no mês faz com que você perca uma viagem como a que eu perdi, por exemplo. Até agora eu não recuperei o dinheiro que eu paguei. E foi caro! Depois, com o monte de medicação que eu tomo, parece que eu estou de porre todos os dias. Fico tonto. Outra coisa é a família insistindo com você uma série de situações. A minha filha caçula é muito ligada a espiritismo, esses negócios e insistiu comigo que eu fosse para Goiânia, no João de Deus. Ela já tinha ido para pegar informações. Eu fui porque acho que se ela se interessou por isso ai, o mínimo que eu poderia fazer era dar atenção ao trabalho dela e a dedicação. Fui e não vi nenhum resultado. Me deram um remédio para tomar lá que eu passava mal todos os dias que tomava. Depois o meu neto, único neto homem que eu tenho, andou fazendo um monte de pesquisa ai e descobriu uma engenheira química formada pela Poli (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo), com pós graduação em San Diego, que tratava de doentes de câncer apenas com alimentação. Supostamente não deveria fazer mal algum. Eu comecei a tomar porque achei que não teria nenhuma interferência e passei uma semana com diarreias fabulosas. Ai ela diminuiu as quantidades, mas não passou. Até que eu parei. Apenas a primeira aplicação de quimioterapia que me deixou transtornado. Eu fiquei com a boca toda deformada, tive que fazer aplicação de laser com o dentista para melhorar. Eu descobri o seguinte: o tratamento de câncer é empírico. Então quando ele foi me dar a primeira dose ele viu qual era o meu peso e altura, multiplicou um pelo outro e, para não correr risco, deu 30% a menos do que este índice indicava. No fim mudou para apenas 20% da dose inicial, porque a minha reação foi violentíssima. Depois foi adaptando e tal e hoje estou nesta situação. Os índices que indicam a gravidade e agressividade da doença diminuíram. No pâncreas abaixou de um mil para trinta.


P/1 – Nossa!
R – Ótimo.! No sangue também, tudo normal. Mas apareceram os nódulos no pulmão e agora eu estou fazendo esta pesquisa para saber se esses nódulos são ou não cancerígenos. Eu, querendo ver pelo bom lado, acho que são os mesmos nódulos de quando fiz a operação da próstata. A única coisa é que eles cresceram. O meu pneumologista, olhado os exames, diz que não são cancerígenos. Por dentro não cresce nada, apenas por fora.
P/1 – A sua postura diante da vida mudou quando você descobriu o primeiro câncer?
R – Não. Tanto é que eu estava programando com a minha mulher para ir a Nova Iorque, para assistir ópera. Não fui porque mudei de médico e tive que fazer isso aqui. Quando estava tudo pronto para ir, ela descobriu que o visto dela tinha vencido na segunda feira, sendo que a gente embarcaria na terça. Ai não deu! O visto só saiu ontem. . Então se der para viajar, eu viajo. Mas agora que eu fiz isso, não posso tomar avião por um mês e meio, porque o pulmão está furado, no voo há compressão e isso solta todo o ar. Estou com um curativo aqui atrás.
P/1 – Você quer encerrar?
R – Eu acho que não tenho muitas outras coisas para contar?
P/1 – Você tem sonhos?
R – Ah, essa de sonhos eu preciso te contar. Quando a minha mulher entrou na faculdade de Psicologia ela tinha um professor que analisava os sonhos. Era um Húngaro chamado Senior, se não me engano. Isso lá na PUC (Pontifícia Universidade Católica). Ai eu fui lá fazer terapia com ele e ele pediu para que eu contasse os meus sonhos para ele. Depois disso eu não sonhei mais! . Não consigo lembrar dos sonhos. Agora voltou, mas quando ele pediu para que eu levasse os meus sonhos, eu não me lembrava mais. Parei.
P/1 – Mas eu estou perguntando sobre sonhos no sentido de desejos.
R – De vez em quando eu sonho. Quando a minha neta casou eu sonhei com o casamento dela. As vezes eu sonho com algum processo que eu vou ter que defender no tribunal. Gozado, porque quando eu fiz vestibular para engenharia eu passei um tempão com um problema de física que eu não conseguia resolver. Eu era bom aluno, mas aquele eu não conseguia. Eu tinha o meu escritório com uma escrivaninha na casa do meu pai. E então um dia eu sonhei que tinha resolvido. Eu acordei, sentei e escrevi. E realmente, eu resolvi o problema no sonho. Quando acordei no dia seguinte ele estava lá resolvido. Isso já tem cinquenta anos.
P/1 – Olhando para trás, para a sua trajetória de vida, se você tivesse que mudar alguma coisa, o senhor faria alguma coisa diferente?
R – Acho que sim. Eu iria para o Direito desde o início. É uma coisa que eu não reclamo, não se pode cuspir no prato que comeu. Eu consegui fazer Direito a noite porque fiz engenharia e consegui formar um capital. Não tinha necessidade de trabalhar feito louco para sustentar a família. E eu também fiz letras na USP (Universidade de São Paulo).
P/1 – Eu ia te perguntar sobre isso. Quando você fez letras?
R – Antes de fazer Direito. Mas era de letras orientais, o curso de hebraico. Eram quatro anos. Tive bons professores, Renato Mezan, gente super bem conceituada. Foi um curso legal. Aprendi muita coisa sobre judaísmo e religiões orientais. Mas este foi mesmo por diletantismo. Eu não ia seguir esta profissão. Apesar de formar base para ensinar, eu não queria ser professor. Ensinei netos e coisas do tipo. Nunca parei nada no meio.
P/1 – O que você achou da experiência de contar a sua história aqui no Museu da Pessoa?
R – Quando o Hélio perguntou se eu estava disposto disse que eu faria, pois tenho muito respeito por ele. Mas eu não sabia o que contaria. Eu não sou nenhuma pessoa que possa demandar tanto interesse para ter a vida registrada num museu. Mas eu achei super interessante e o trabalho de vocês fantástico. Não é fácil manter isso aqui. Eu trabalhei como advogado da casa de cultura de Israel, que vive apenas de subsídio de patrocínios. A coisa mais difícil é você conseguir estes patrocínios. Eu fui diretor da casa brasileira de ópera e tivemos que encerrar as atividades. A ideia era formar um corpo operístico com tenores, contraltos e sopranos nacionais, que ganhassem relativamente bem para ter um nível de vida de qualidade. Quando vinha um cantor de fora para cá, recebia 50 mil dólares em cachê e os nossos recebiam 500 reais. Então conseguimos muitos subsídios, até que num momento parou e não se conseguia mais nada. Quando o Marcos Mendonça saiu da secretaria de cultura secou. Não conseguimos mais nada. Entrou lá a Cláudia Costin, depois veio o João Sayad e não conseguimos mais nada. Então eu falo, conseguir patrocínio para esta área aqui não é nada fácil. Eu imagino.


P/1 – Eu gostaria de agradecer. A sua história com certeza vai enriquecer o acervo do museu da pessoa.
R – Eu que agradeço. Depois disso gravado eu gostaria de mostrar para os meus filhos.
P/1 – O senhor vai ganhar uma cópia.