Museu da Pessoa

Eu fui a morta num enterro encenado

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria de Vênus de Andrade Cunha

P/1 – Inicialmente, eu gostaria de dizer que é um prazer estar aqui e agradecê-la por sua disponibilidade em participar desse projeto.

R – Obrigada, Daniel.

P/1 – Eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – Eu me chamo Maria Vênus de Andrade Cunha, sou de São Gonçalo do Amarante, Ceará, e nasci no dia 22 de outubro de 1971.

P/1 – E antes de entrar realmente na sua trajetória, eu queria que você contasse um pouco sobre as suas origens. Você conheceu seus avós?

R – Sim.

P/1 – Você sabe a história da sua família, como eles vieram parar em São Gonçalo? Conta um pouco.

R – São Gonçalo, na verdade, era uma família. Os primos se casavam, todos moravam perto, a família era muito junta, acabava acontecendo uma irmandade aqui dentro. Em 1971, o meu pai e a minha mãe, um da família Andrade e a outro da família Soares, mas que, ao mesmo tempo, dentro de cada família tinha os seus parentescos. O meu pai casou com a família Ferreira Lima Andrade, que é da minha mãe. O meu pai tinha um parentesco muito forte com a família da minha mãe. Quando eu nasci, fiquei como Maria Vênus Lima de Andrade. E tinha muita gente em São Gonçalo que chamava, por exemplo, Zé Iris Lima de Andrade, Célia Lima de Andrade, existia uma junção muito forte das famílias aqui dentro. Éramos uma família muito pobre. Inclusive, quando eu nasci, morávamos numa casa de tapera de barro. O meu pai e a minha mãe se juntaram porque, naquela época, tinha a questão de se juntar - a minha mãe com 15 e o meu pai com 18 anos. Eles foram se preparando: “Vamos ter o primeiro filho’. Naquele tempo, os avós tinham um poder muito grande dentro das famílias. A palavra final era deles. E eu, sendo a primeira neta, o meu avô disse para os meus pais: “É a primeira e vai se chamar Vênus: se for homem será José Vênus, devido à nossa religião católica; se for mulher, Maria Vênus”. Isso ficou muito esquisito para eles: Vênus, um planeta. Mas, como meu avô escrevia muito seus poemas, os seus cordéis ligados aos astros, ele entendia muito bem o que era isso. Ele tinha um estudo, pequenininho, mas era um estudo. Quando ele disse que Vênus na mitologia grega era Afrodite, a deusa do amor, da formosura, da beleza, acabou convencendo o pai e a mãe que esse seria o meu nome. E, quando eu nasci, acabaram registrando Maria Vênus de Andrade Cunha. É o nome de batizado mesmo, o nome registrado, não é o nome artístico (risos).

P/1 – Só pra entender, quais são essas famílias antigas? Fale-me desses sobrenomes das famílias que devem estar até hoje, imagino.

R – Nós temos a família Soares, a família Andrade, a família Ferreira, também em São Gonçalo do Amarante.

P/1 – São nomes antigos.

R – Nomes antigos, Soares, Ferreira. Alcântara também muito forte, Procópio. Então tudo isso...

P/1 – Eles eram os donos das propriedades, das fazendas?

R – Sim. São Gonçalo, naquela época, era pouco habitado. Existiam essas fazendas, esses espaços. Os Alcântaras tinham um poder aquisitivo melhor na cidade, e a família Procópio também. Mas os Alcântaras foram tomando mais espaço. Teve uma época que quase São Gonçalo todo era da família Alcântara. E hoje, depois de algum tempo, em que as coisas foram se emancipando, as pessoas foram chegando, recebendo doações de terrenos, comprando seus hectares e montando suas casinhas, seus espaços. Eu nasci em 1971, e no dia 22 de outubro de 1972 nasceu a minha irmã. Nascemos no mesmo dia e mês, mas no ano diferente. Quando a minha irmã nasceu o meu pai se viu um pouco aflito, aperreado: como ele ia cuidar de duas meninas, se era difícil cuidar de uma? Ele me ofereceu para o meu avô e a minha avó disse: “Fica com ela e eu fico com a mais nova”. Eu não perdi o vínculo, sempre fui muito abençoada porque, como morávamos todos no mesmo quintal, um juntinho do outro, eu fiquei com dois pais e duas mães. Tive essa oportunidade de conviver com dois pais e duas mães. Particularmente, a minha infância eu brincava dentro do cemitério. Eu me lembro muito bem disso: quando eu trocava as cruzes de defunto, botava a cruz de um na outra, levava flor de defunto para casa. O dia mais feliz era o Dia de Finados, porque era o dia que passava mais gente na minha porta (risos). Porque era só o cemitério e a nossa casa. Eu aprendi muito com o meu avô todas as histórias de assombração que tinha aqui nessa região. Ele era o verdadeiro contador de histórias. Como não se tinha energia, fazíamos aquela roda, a fogueira e sentávamos a partir de cinco e meia da tarde junto com o meu avô para ouvir as histórias. Toda a meninada da região ia para lá. Brincávamos muito, tinha um rio que, quando eu me lembro, chego a me arrepiar. Era a água fria daquele rio que tínhamos perto de casa, mas o rio acabou, hoje não existe mais. Esse rio era próximo. Quando vinha uma enchente ele ia para perto do meu quintal, bem pertinho. Íamos comer as frutinhas do cipó desse rio. Procurávamos guabiraba, fazíamos os piqueniques. Eu organizava, porque era sempre a mais velha e influenciava mais: “Vamos fazer o piquenique hoje?”, e todo mundo: “Vamos”. Eu levava um pouquinho de arroz, um pouquinho de farinha, feijão e fazia um foguinho; perto da água, brincava, comia, tomava banho e vinha embora. Depois, vieram as outras irmãs e irmãos. Eu perdi um irmão com sete anos - essa foi a parte mais triste da minha vida. Foi quando ele era bem pequenininho. Estávamos fazendo um piquenique e ele acabou sentindo uma dor na perna. Fizemos um baião de dois, mas o povo disse que foi por causa desse baião de dois que ele comeu e depois foi tomar banho no rio. Não sei. Eu sei que ele tomou esse banho, sentiu uma dor na perna, veio para casa e em 24 horas faleceu. Foi muito rápido. Foi uma bactéria que ele adquiriu no pulmão. Naquela época não tinha tratamento para isso e o médico disse: “Comprem essa medicação”, era meia-noite de um domingo, no dia 03 de maio: “Corre, pai, compra isso aí”. Quando meu pai voltou ele já tinha falecido. Foi uma coisa rápida. O meu avô tinha um chiqueiro de cabras. Fui criada tomando leite de cabra; hoje, eu procuro leite de cabra em São Gonçalo e não encontro mais. Meu avô tinha um chiqueiro de cabra e íamos buscar essas cabras no mato, comíamos camaleão e ovo de camaleão (risos). O que meu pai pegava, pescava, caçava os jacus. Vinha jacu, rolinha e todo tipo de pássaro. A minha mãe era costureira e o meu pai era pescador, agricultor e caçador. A minha mãe virava noites inteiras numa máquina de costura para dar conta de umas encomendas de um rapaz que pedia a ela e levava para Fortaleza. Mas ela nunca me ensinou a costurar. Eu dizia: “Mãe, deixa eu te ajudar?”, “Não quero você nessa vida. Não quero você costurando, minha filha”. Mas eu sempre fui quem cuidava dos irmãos mais novos, sendo a mais velha eu sempre cuidava. E eu gostava muito de ter as minhas coisinhas. Então, eu fazia dindim e vendia nos campos de futebol. Eu inventava umas bodeguinhas dentro de casa, comprava os pacotinhos açúcar, de Ki-Suco e oferecia para as colegas os bombonzinhos. Eles compravam. Eu procurava a minha independência financeira. Minha mãe, como ela costurava, ela fazia as roupas. Todo mundo tinha as roupinhas iguais - eu e as minhas irmãs. Quando saía era um time: todo mundo igual (risos). Íamos para as festas do padroeiro, que era a única coisa que tinha em São Gonçalo. Tinha festa de padroeiro com parquinho, uma radiola com aquelas músicas antigas tocando Genival Santos. Sem contar que o meu pai era muito trabalhador, mas quando ele bebia ele se transformava num monstro, num louco. Quebrava tudo o que tinha dentro de casa. Ele cortava com a faca os punhos da rede e, assim, caíamos. A minha mãe saía correndo no mato, porque o pai tinha chegado: “Vamos sair daqui.” Em outro dia, quando ele se dava conta de que tinha feito tudo aquilo, ele se arrependia, tentava rever tudo de novo. Era muito trabalhador, um pedreiro de mão cheia aqui em São Gonçalo do Amarante. Mas mesmo assim, nunca deixei de amá-lo e de respeitá-lo. Porque minha mãe não falava mal dele para nós. Ela dizia: “Seu pai chegou, vamos fazer silêncio, vamos sair e deixa-lo só”. Nunca foi aquela mulher que botou os filhos contra o pai. Existia um respeito muito grande, mesmo com ele daquele jeito. E quando ele tomava as pingas - aqui tinha umas bodeguinhas, uns botecos. Quando eu o via, ficava sentada na calçada, esperando ele terminar a bebida para tentar levá-lo para casa. Eu ficava danada quando a escola dizia que eu era filha de uma família desestruturada, que eu não percebia isso. Nos amávamos muito. Família desestruturada é quando não tem amor, quando não tem respeito. Acontece que ele estava passando por um momento, uma fase. E ele conseguiu se recuperar. Quando ele passou por um baque muito grande - ele quase matou um amigo-irmão na hora de uma brincadeira dessa, de uma farra dessas. Isso foi muito chato e mexeu com a rua inteira. Meu avô chegou e contou a ele no outro dia, no dia da ressaca, do arrependimento. Aí, ele falou para o meu avô: “Nunca mais vou beber”. E, a partir daí, começamos a crescer e a construir a nossa vida. Ele resolveu colocar uma rinha de galo e um bar. Minha mãe ia para o bar e ele ia para a rinha, porque ele gosta de criar galo de briga. Eu fazia as tapiocas com fígado para vender às pessoas que estavam na rinha. Acho que trabalhou uns dez anos nesse negócio. Aí, ele resolveu acabar e colocou um mercantil, que hoje é o Mercantil Vovó Beta, aqui em São Gonçalo, que é a nossa galinha dos ovos de ouro (risos). De lá, ele começou a comprar as coisas e a construir as casas. Meu avô deixou uma herança boa. Eram muitos terrenos aqui em São Gonçalo que ele herdou e hoje tem muitas casas de aluguel por aqui. E, assim, a nossa vida foi caminhando. Eu era sempre aquela menina muito caseira, procurando trabalhar e ajudar a minha mãe. Depois, aconteceu o momento de decidir o que eu iria ser: “O que eu vou fazer da minha vida?” O meu avô dizia assim: “Minha filha, você pode ser Irmã Josefina, porque você é muito da missa, você gosta demais da missa”, e ele sempre me colocava com as irmãs Josefinas. Eu só inaugurava uma roupa dentro da igreja. E pensei: “Sabe de uma coisa? Acho que vou ser Irmã Josefina”. Essa história de ser Irmã Josefina passou. Comecei a desfilar no desfile de Sete de Setembro da escola, a fazer aqueles desfiles de miss na sala de aula. Pensei: “Sabe de uma coisa? Eu vou é ouvir mais músicas, vou dançar, vou me divertir.” Aprendi muito com o meu avô as músicas regionais. Eu sabia de tudo naquela época: recitava alguns cordéis, alguns versos, alguns poemas. “Deixa pra lá”. Começaram os namoricos e encontrei uma pessoa que hoje é o meu marido. Nessa época, eu já estava concursada, já trabalhava na Escola da Passagem como diretora – que fica bem distante daqui, na periferia de São Gonçalo. Já estava lá como diretora da escola. Assim, eu comecei a ver como poderia fazer mais pela população. Eu ficava inquieta: como é que tinha uma comunidade daquela, com tantas crianças, idosos, moradores mas não tinha água encanada, nem iluminação. Não tinha nenhuma pracinha ou quadra de esportes. Eu pensei: “Puxa vida, que situação crítica”. Então, comecei a reivindicar políticas públicas, propostas para aquela comunidade. Mas meu tempo lá foi somente cinco anos. Eu me casei nesse período e decidi ter filhos. Pedi para sair de lá porque todo dia eu ia de bicicleta. Era muito dedicada e ia até no final de semana. Depois, pedi para sair da Passagem, da escola. A secretária de educação da época concordou e me trouxe para a parte de supervisão pedagógica. Eu fiquei perto de casa. Tudo na minha vida é muito planejadinho, mas às vezes dá certo - imagina quando não tem planejamento? Com o planejamento, veio o Pedro Emanuel. Depois, nasceu a Maria Eduarda. O Pedro tem o sangue do vaqueiro. Com quatro anos ele já montava. Hoje eu tenho cavalos para vaquejada de pé de moura, com pega de boi no mato. Quando ele sai todo encourado, vai pegar o boi no mato. E o vaqueiro tem toda uma história bonita também da nossa família porque o meu sogro era um dos principais vaqueiros da região, um vaqueiro destemido, que entrava no mato fechado e pegava o boi lá dentro. O nome dele era Raimundo Onça. Depois do Pedro nascer, com dois anos, chega aqui em São Gonçalo do Amarante uma seleção para coordenador pedagógico do Sesc, o Serviço Social do Comércio. Eu me inscrevi e fui fazer a seleção. Era uma vaga, acho que tinha 28 concorrentes e deu certo para mim. Então, fui trabalhar com o Sesc. Fui cedida da prefeitura e o Sesc me contratou. Eu comecei no Sesc em 2000 e fiquei até fevereiro de 2014. Lá no Sesc eu tive oportunidade de sonhar, de colocar os meus sonhos, meus desejos e projetos em prática. Como eu tinha essa história dos contos de assombração, que era muito forte na minha infância - quando eu sentava com os adultos do Sesc Lê, de alfabetização de jovens e adultos, eles começavam a contar as histórias deles e tinham histórias de arrepiar. Aí eu disse: “Puxa vida, vamos juntar. Agora é uma engrenagem. Vocês gostam de conto de assombração e eu também. Vamos fazer uma Maratona de Contos de Assombração em São Gonçalo?”. Eles toparam e todo mês de outubro, na unidade do Sesc, fazíamos - não sei se as meninas vão continuar, porque eu pedi o desligamento para vir para a Secretaria de Cultura. Cada adulto tem uma história mais interessante para contar. Os idosos. Com isso, começamos a fazer também a cavalgada, com os vaqueiros no Sesc. Fazíamos a cavalgada do Raimundo Onça, o mais antigo. Nas rodas de conversa do Sesc nós começamos a resgatar, a difundir e a fomentar a cultura do reisado de São Gonçalo. Começamos a pesquisar. Eu visitei a região do Cariri, tentei fazer uma ponte Cariri-São Gonçalo, mas cada vez que eu procurava saber a história, vivenciar alguns momentos lá fora de histórias do reisado, eu me distanciava da nossa, da minha. Porque o reisado já é uma vivência daqui, que perpetuou na memória de muita gente, só que ele estava esquecido, adormecido e, agora, estamos vivenciando o reisado novamente em São Gonçalo. Então, criamos lá no Sesc o Boi, Metamorfose do Sertão, em homenagem a esse vaqueiro que hoje não consegue mais entrar nessa mata fechada. Claro que mudou muita coisa em São Gonçalo, mas existe muita mata para o vaqueiro. Mas há muitos locais em que ele corria atrás do boi, mas não existe mais. Hoje, temos outras oportunidades nesse espaço. O reisado Metamorfose do Sertão foi feito com muitas mãos, o boi, os entremeios – estudamos cada um desses. Apresentamos e ganhamos o prêmio Mais Cultura, do Governo do Estado, em 2011. Ganhamos o prêmio com o Reisado Metamorfose. E hoje esses grupos estão caminhando. Depois de tanto tempo no Sesc, depois que começamos a trabalhar com toda a programação do Sesc, todos os programas de Educação, Saúde, Lazer, Cultura - tudo estava bem bacana, fluindo, bem firme -, eu recebi o convite do prefeito para estar à frente da Secretaria de Cultura do município de São Gonçalo. Como meu ciclo de vida tem duas pontas e quando essas pontas se juntam não tem jeito, eu tenho que sair. No Sesc, as minhas pontas já tinham se juntado cinco vezes e eu estava esperando uma oportunidade. E aceitei. O governo municipal disse: “Vênus, e o Sesc? Concilie!”, “Não. Ou faço uma coisa ou faço outra.” Pedi o desligamento dessa minha empresa que eu adoro e saí do Sesc, mas ele não sai da minha vida nunca. E vim para cá. Até porque, quando São Gonçalo se desenvolver, eu resolvi me tornar uma mulher empreendedora. Lembra-se que na minha história eu sempre gostei de vender algumas coisas? Vendia Ki-Suco, batatinha e dindim? Eu tenho o comércio no meu sangue. Quando eu vi que estava chegando gente de todos os lados em São Gonçalo, com uma miscigenação de cultura tremenda, maravilhosa, e com as oportunidades para que eu pudesse crescer e também realizar meus sonhos de consumo, eu disse: “Sabe de uma coisa, eu vou colocar algo para mim em São Gonçalo.” E comecei a me inquietar com isso. “Eu vou colocar”. O quê eu não sabia ainda. Para começar, aluguei um espaço aqui no calçadão. Disse à minha mãe, que tem um comércio: “Aluguei um ponto”, “Um ponto, filha?”, “Sim mãe, um espaço que eu vou colocar alguma coisa”, “Mas o que você vai colocar?”, “Não sei, mas está alugado. Eu vou passar três meses pesquisando o que São Gonçalo precisa e, aí, eu coloco e lhe digo”. Ela disse: “A Vênus é doida”. Eu sou a doida da família porque ela acha que eu não tenho mais espaço para mais nada na minha vida. Ela acha que o meu trabalho aqui me consome, mas eu tenho como me organizar e fazer mais e melhor. O que aconteceu? Eu pesquisei e resolvi colocar uma sorveteria: “Vou colocar um milk-shake, banana split, colegial, brownie, porque não tem aqui em São Gonçalo.” E montei. Afrodite é o nome do meu espaço (risos). Tem tudo a ver. Montei o espaço Afrodite no calçadão aqui da Lagoa. Mas o espaço não era meu, porque eu não tinha o prédio. Eu fui trabalhando e disse: “Vou trabalhar para construir o meu espaço”. Depois de dois anos, hoje eu tenho o meu espaço, a minha Afrodite, que fica na minha rua, numa esquina, no terreno doado pelo meu pai, que herdou do meu avô, que era a casa da minha avó, onde eu fui criada. Eu tenho incrementado muito o meu comércio. Eu coloquei um sushi tentando atender a esse pessoal que vem de fora, que tem um paladar diferente do nosso, e também para dar oportunidade à São Gonçalo. Eram poucos comedores de sushi, mas hoje temos muitos. A minha Afrodite é visitada por muitos jovens. A pessoa chega aqui em São Gonçalo: “Onde é que fica a Afrodite que vende sushi, sashimi, yakisoba?”, tudo isso eu tenho. Foi complicado porque em São Gonçalo não tem profissional para isso. Eu não tenho o sushiman. Então, andei em Fortaleza visitando vários locais, comendo sushi de manhã, de tarde e de noite, me aproximando das pessoas e querendo saber como é que eu trazia um sushi para São Gonçalo. Até que eu encontrei um rapaz que foi muito receptivo sorrindo pra mim. Eu disse: “Eu adoro sushi.” Eu não disse que eu tinha um comércio em São Gonçalo: “Eu adoro sushi. Agora eu queria aprender a fazer sushi, mas ninguém me ensina”. Ele pegou: “Eu lhe ensino. Onde é que você mora?”, “Em São Gonçalo do Amarante. O que eu preciso para você me dar uma aula?”. Ele disse: “Você me paga esse cachê e eu faço”, “Tudo bem”. Marcamos o dia e deu tudo certo. Ele veio à São Gonçalo, e, quando eu abri a porta da Afrodite, ele disse: “Bichinha, você não quer só aprender. Você quer ganhar dinheiro com o sushi.”, e eu disse: “Sim. Então vamos, me ensina”. Ele passou o dia inteiro e às quatro horas da tarde eu tinha uma mesa completa de sushis com as barcas, tudo muito bonito, de encantar. Porque sushi é, acima de tudo, uma arte. Saboreamos o sushi e eu disse: “Como é que eu vou fazer?”. Ele disse: “Você tem três opções: uma é colocar o que você sabe e aprendeu em prática, fazer o sushi e vender.” “Mas eu não tenho tempo”, eu disse pra ele. “A outra é comprar o meu sushi, porque eu tenho um delivery em Fortaleza. Você vai buscar, eu fabrico o sushi e você vende aqui.” “Isso é arriscado porque, para um alimento desse vir de Fortaleza... Posso matar um cliente meu, é horrível. Isso acabaria comigo.” “A outra opção é você mandar uma pessoa ir capacitar.”

P/1 –Você tinha a chance de aprender ou de levar alguém para ser formado.

R – Exatamente. Então, eu achei que eu tinha que conseguir alguém, capacitar essa pessoa e trazê-la para vir trabalhar comigo. Só que eu não encontrei pessoas em São Gonçalo disponíveis. Isso inquietou-me e me deixou mais preocupada ainda. Eu continuei andando. Nas minhas andanças em Fortaleza, encontrei um rapaz chamado Júnior. Eu disse: “Júnior, você quer mudar de vida?”, ele disse: “Eu quero”, “Pois vamos morar em São Gonçalo do Amarante? Lá é uma terra promissora, onde está todo mundo correndo para lá porque, além de ser receptiva e acolhedora, você vai ter muitas oportunidades”. Ele disse: “Eu quero”, e topou. Meu pai tem casa de aluguel, e eu reservei logo uma para ele: “Meu pai, segura essa casa aí que eu vou trazer um sushiman para morar em São Gonçalo e trabalhar comigo na Afrodite”. Meu pai reservou a casa, eu trouxe o rapaz, ele gostou do ambiente, gostou da família e disse: “Agora é o seguinte: eu não tenho como buscar minha mulher, meu filho e a minha mudança”, e eu disse: “Eu vou buscar”. Eu trouxe, hospedei, e hoje ele está comigo. É o meu sushiman, só tem ele em São Gonçalo. Eu não tenho concorrente, mas já estou pensando nisso. Acho que a concorrência é bacana, é importante. Eu já penso até o final do ano ter um sushibar, porque eu vou construir em cima. Penso que todas as pessoas aqui em São Gonçalo, se ampliarem a sua visão, conseguem se dar bem. Tem muita gente que não consegue tirar a venda, está parado no tempo, no passado. Eu percebo muita gente com iniciativa de colocar o seu espetinho na calçada, comprar ou vender roupas de marca - porque não é mais a roupa da feira, você tem que ter um ambiente climatizado, cuidadoso, para dar mais qualidade às pessoas de São Gonçalo. E falta muito? Falta. Mas é importante que o povo de São Gonçalo tenha iniciativa, que está vindo muita gente com esse olhar holístico para São Gonçalo e está se dando muito bem. Então, as pessoas aqui de São Gonçalo tem de ter coragem para investir. Eu sou uma mulher empreendedora, e cada vez mais eu me sinto bem nesse meu município de São Gonçalo do Amarante. Eu tenho um círculo de amizades muito bacana, que me visitam quase toda noite. Segunda-feira eu implantei a maquineta do Visa, do Master, justamente para dar mais oportunidades a eles. Estou fazendo o Cartão Fidelidade, as datas temáticas, como o Dia dos Namorados - estou pensando como vai ser na Afrodite. Eu acho que estou no rumo certo. Porque, a Secretaria de Cultura é maravilhoso, é o trabalho de deixar um legado, colocar o artista no braço. Eu estou aqui como instrumento de aproximação, não é como instrumento de divisão. Eu já disse isso para o prefeito Cláudio: estou aqui para aproximar as pessoas. E o artista, a cultura de São Gonçalo, estava um pouco parada por ter passado por algumas quebra.

P/1 – Quais são as quebras?

R – As quebras que eu digo é quando se chama uma pessoa e essa pessoa não fica, não concluiu nada ou não começa nada, vai embora e entra outro, que também não conclui. Então, precisamos trabalhar com projetos sustentáveis, como eu estava falando antes, para que possamos fazer com que isso se perpetue por 20, 30, 40 anos e para que minha criança hoje de dez anos, a minha Maria Eduarda, possa vivenciar com 20 anos um projeto que foi criado hoje, aqui, na gestão onde eu, a Maria Vênus, começou. E não ficar com aquelas coisas só pontuais, mas algo mais consistente, sustentável, para que as pessoas possam vivenciar isso muitos e muitos anos em São Gonçalo. E tentar apoiar o artista da terra. Nós temos em São Gonçalo um celeiro de cultura. Não é difícil trabalhar a cultura em São Gonçalo do Amarante, até porque nós, seres humanos, somos produtores de cultura, somos sujeitos de cultura, que é a nossa essência. Trabalhando isso, valorizando cada potencial, cada habilidade na nossa gente, sem esquecer também de dar oportunidade para aquelas pessoas que estão chegando aqui. Tem pessoas aqui que estão vindo da Coreia, de outros estados e países, e que procuram um local onde possam se reunir e comer um pouquinho do que eles comiam lá. Aqui em São Gonçalo eles tentam encontrar um espaço próprio.

P/1 – Vênus, você está falando dessas ações da Secretaria de Cultura, que é uma coisa muito rica e que teve quebras na política cultural. Conte um pouco dessas ações. O que é essa pluralidade, essa riqueza cultural? Conte alguns causos, me dê alguns exemplos.

R – Por exemplo, nós temos as prata da casa. Tem o Coco do Pecém, com os mestres Mirandinha, mestre Aldenor, seu Chico da Rosa. Nós temos a Dança de São Gonçalo, que nós estamos trazendo novamente - ela tinha parado de sair, inclusive os índios Anacés, os meninos lá dos Matões, eles fazem a Dança de São Gonçalo. Não sei se vocês chegaram a vê-los dançando. É fantástico e conhecido quase no Brasil inteiro. Através do Sesc, eles foram para a Mostra Sesc Cariri e outras ações, como os Povos do Mar. E a nossa terra de São Gonçalo ainda não tem a Dança de São Gonçalo bem estruturada. É isso que eu estou lutando para agora, em julho, conseguir trazer novamente. Temos cordelistas em São Gonçalo, na área da literatura, poetas, temos o povo que se manifesta com outros ritmos, há uma mistura de ritmos muito grande como o popular e o contemporâneo, que é o hip hop, o free step. O jovem está se organizando e trabalhando esses ritmos. E isso, sem contar, na questão do engenho, na questão da culinária. Nós temos a tapioca, que é muito forte e que precisa de mais estímulo em São Gonçalo do Amarante. Estamos numa terra em que temos uma praia aqui do lado. Na praia você encontra o coco, tem as casas de farinha que vão produzir a farinha e transformar isso em tapioca. Com isso tem a geração de emprego e renda para São Gonçalo do Amarante. Nós temos o artesanato que também precisa de incentivo. Falta um espaço para que esse artesanato possa ser exposto, ou uma feirinha todo sábado, ou mesmo um local, “Espaço do Artesanato de São Gonçalo”. Há dois meses que eu entrei nessa gestão. Eu entro de corpo, mente, alma e coração, mas tem muita coisa para fazer no campo da cultura.

P/1 – Todos esses exemplos que você passou, eles já vêm de uma tradição bem antiga na cidade?

R – Bem antiga.

P/1 – Todos?

R – Todos, todos.

P/1 – Cordelistas, ceramistas... E as festas, tudo já vem desde que você é criança.

R – Desde que eu era criança. Inclusive, a questão do bordado, do crochê, da renda. Nós ainda temos rendeiras em São Gonçalo. Essas pessoas estão no anonimato, mas queremos tirá-las. Assim, São Gonçalo passar a ser referência no estado, no país. Quando eu estou buscando o Festival Internacional de Folclore para São Gonçalo do Amarante, é para dar essa oportunidade de outras pessoas virem apreciar e ver as nossas potencialidades, colocar no nosso jovem, fazer acontecer as oficinas de malabares, de circo. O circo está distante de nós, ao mesmo tempo que não, porque se quisermos puxar lá de Maracanaú para vir aqui dar um oficina e em Fortaleza, nós conseguiremos. Nós temos aqui dois grupos bastante organizados, que é o Grupo de Teatro da Taíba. Quando eu cheguei nesta pasta, logo me sentei com todos esses artistas da Taíba e elaboramos um convênio, que deu oportunidade para que esses artistas realizarem a Paixão de Cristo itinerante. Assim, colocamos a Paixão de Cristo só com o povo da Taíba, e não só Taíba porque eles conseguiram colocar o pessoal da Parada - eram 89 jovens participando da Paixão de Cristo. Então, temos muitas potencialidades.

P/1 – Descreva um pouco como é aqui em São Gonçalo, por exemplo?

R – Eles têm um centro e fazem a concentração para o ensaio. Eles produzem todo o espetáculo, até o figurino - tudo é feito por esse grupo. Através desse convênio, fazemos a itinerância. A Prefeitura Municipal colocou a estrutura de iluminação, palco, som, tudo o que era necessário, até o banheiro químico, as tendas, em quatro espaços. Porque quando eu entrei, disse: “Vou encher as praças, as bibliotecas e os bairros de arte e cultura.” Não dá mais para trabalhar só num local, e marcar um território: “a cultura só vai acontecer nessa praça”. Temos que levar para o Sertão. Tem muita coisa boa, e que está lá, muitas vezes, esquecido. Vamos fazer itinerância, colocar duas apresentações no sertão e outra para cá. Então, colocamos no Serrote a Paixão de Cristo, com todo esse cenário, com toda essa estrutura e produção, levando eles até lá. Convidamos e convocamos a comunidade através do Planejamento de Mídia, que sentou nas arquibancadas e assistiu ao espetáculo, lá no Serrote. Fizemos aqui na Sede, na Taíba, que foi o local que eles fizeram com uma emoção que você não imagina: gigantesca. E lá no Pecém e na Taíba. Quem estava na arquibancada eram as famílias da Taíba, os nativos. Eles diziam assim, quando entrava uma atriz: “Essa daí é a minha tia! Ei!”, e aquela emoção, todo mundo aplaudindo. Fizemos esse momento com o teatro. Agora, há todo tempo procuramos com o teatro fazer outros momentos, não somente pontuais, como esse, mas estamos tentando trazer para aqui os Doutores da Alegria, com o Teatro da Taíba, para que possamos ir aos hospitais, para as unidades de saúde com os meninos que são de Teatro de Rua e que são bons demais. Temos outro grupo que está em destaque, que é o Arte Fio, que são as mulheres do Curral Grande e que está aqui com essas plantas ornamentadas para a Copa do Mundo. Ele é um grupo de 70 mulheres, que estão trabalhando com a arte do crochê e estão ganhando dinheiro para colocar dentro da casinha delas o que elas não conseguiam. Hoje, a comunidade do Curral Grande tem uma outra cara. As mulheres têm um brilho no olhar. Elas se maqueiam, se perfumam e já estão mais felizes. Elas conseguem dizer: “Eu vou comprar um micro-ondas”, e vão comprar um micro-ondas, mas porque todos os dias elas estão fazendo os crochês e vendendo. Conseguimos fazer também um convênio com essas mulheres, que enfeitaram todas as praças do município. São 293 árvores, estão vestidas com a arte delas agora para a Copa. São essas associações que queremos. Lá no Violete também tem outro grupo de teatro. Inclusive, juntamos o grupo do Violete com o grupo da Taíba e fizemos a Paixão de Cristo. Mesmo aceitando que o Grupo Violete quando ia fazer lá, só eles, mas quando foi para a itinerância, eles estavam juntos. E uma coisa interessante é que a Paixão de Cristo do próximo ano será na Taíba, porque a maioria é de lá. Eu acho até melhor do que fazer a itinerância, porque fica mais cansativo com aquela coisa toda. E nós temos esse grupo de teatro, temos a Arte Fio e muitas outras associações. Eu fundei duas outras associações, sou doida por essa história de associação, pois acho que elas têm um poder fantástico, tanto na vida de cada um como para a sociedade como um todo. A Associação Metamorfose do Sertão, que é essa dos reisados, fui eu quem criou. A segunda associação é a do Movimento Artístico Reunido de São Gonçalo do Amarante, uma associação dos movimentos artísticos reunidos. Através dessa associação, queremos fazer esse festival de dança, de música. O objetivo dela é integrar e trabalhar com todas as linguagens artísticas. Estamos agora num trabalho de organizar o show de música ao vivo aqui na praça, através da associação do movimento artístico reunido. Outra questão também importante sobre as Quadrilhas Juninas. Comecei a me reunir com todo o povo que está nas quadrilhas e encontrei cinco quadrilhas juninas, em São Gonçalo, sendo que duas são infantis e três adultas. Fui para dentro dos ensaios, para sentir as dificuldades dos coordenadores, ensaiei junto lá na Taíba, no Pecém - fui quatro vezes pae lá e daqui da Sede. Sentimos uma necessidade urgente, emergencial, de fazer um convênio para dar um incentivo financeiro a essas quadrilhas. Mas a importância de tudo isso era integrar, porque tem algumas quadrilhas que criam uma rivalidade que elas levam para o resto da vida delas, jovens que começam a competir, numa competição acirrada. E eu comecei a pensar: “Como faremos para juntar todo mundo? Eu queria todos num cantinho só. Pensamos num Simpósio Junino de São Gonçalo, que aconteceu domingo. Consegui trazer todas as cinco, além da Federação União Junina, que deu uma palestra com o sentido de fortalezar os movimentos juninos: “Unam-se e fortaleçam. Tem mais pessoas que devem participar do movimento junino’. A palestra é mais na questão do incentivo mesmo. À noite, viemos para a praça e fizemos um quadrilhão. Eu consegui fazer com que todo mundo dançasse junto. Eu acho que a proposta para o público é com muita gente na praça. Fiz uma queima de fogos, porque geralmente os fogos são mais utilizados para as autoridades, e naquele dia, os fogos eram pra eles. Foi grande a festa nessa praça. E todo mundo dançando junto. O emocionante é ver que conseguimos, que é possível fazer e quebrar paradigmas.

P/1 – Pensando na sua juventude, tinha esses eventos?

R – Sim.

P/1 – Os mesmos que você está me falando?

R – Sim.

P/1 – As quadrilhas, os teatros... Você lembra de algumas?

R – O teatro eu não lembro, sou sincera. Fazíamos show de calouros debaixo das mangueiras. Juntávamos a turma, as amigas e íamos para a tamarineira da minha avó. Cada um cantava uma música. Eu cantava sempre a música da Kátia, que era aquela: (cantando) “Quanto tempo que eu deixei, não sei o quê de coisa importante pra você”. E eu com um violãozinho, colocava os óculos. A minha irmã cantava um tal de: (cantando) “Xô, xô gafanhoto, xô xô”. São coisas que ficaram na memória. Brincávamos, cantávamos e fingíamos que éramos artistas, que estávamos num show. Na minha casa, eu mesma fazia a quadrilha. Tínhamos a rua que não tinha calçamento, era de chão batido e nós fazíamos o São João todos os anos. O meu pai gostava, a minha mãe, eu chamava os vizinhos e fazia a festa. Eu sempre era a noiva. Casei-me várias vezes nas quadrilhas. Paramos quando o meu irmão faleceu. Ele morreu em maio e estávamos preparando para junho. Depois desse baque, não fizemos mais. Mas era bonito. Hoje, a festa junina tem outro formato. Eles estão tendo gastos imensos, com vestimentas, figurinos. Antigamente era chito, chitão, já era o suficiente. A noiva precisava só estar com a roupinha branca. Hoje eles alugam roupas. Nessa quadrilha ela já gastou mais de 38 mil reais só com figurino. Então, está ficando cada vez ficando mais sofisticada, um espetáculo.

P/1 – O público entra nas festas ou fica só olhando?

R – Ele fica assistindo a festa mesmo, só olhando. Ele não entra...

P/1 – E antes o pessoal entrava?

R – Entrava. O pessoal entrava. Os protagonistas mesmo eram os convidados porque aí na hora do casamento, na hora de fazer uma brincadeira, o vizinho fazia parte da brincadeira; o pai da noiva também estava dentro da brincadeira, era uma coisa mais integrada. Hoje, as quadrilhas são lindas, elas emocionam, trazem uma energia maravilhosa. É fantástico o que elas fazem. Elas são para cima, conseguem voar. Antigamente, o nosso passo era aquela coisinha matuta. Quando tinha um danado, um gaiato no meio que fazia as macacadas, dava um sucesso imenso. Sempre tinha alguém engraçado no meio. Como o reisado: quanto mais feio e mais papa-angu estiver no reisado, mais bonito ele fica. O papa-angu tem que estar feio para ficar bonito. O papa-angu, o puxa boi, ele brinca com o boi, ele diz os relaxos perto do boi. E fica a festa super engraçada e as pessoas não param de apreciar.

P/1 – Consegue descrever uma festa do boi, do reisado, que você acompanhou e ficou muito tocada? Você consegue descrever pra gente?

R – Sim. Vou falar do Reisado Metamorfose do Sertão. Somos convidado pelas famílias para tirar o reisado no terreiro. O reisado, como reza a tradição, vamos para o terreiro e fazemos a brincadeira do reisado. O ponto forte do reisado é o boi. Nós fomos para o aniversário da dona Isaura, que é uma catirina do nosso reisado, o aniversário dela é um dia muito esperado. Ela preparou espetinho, convidou os filhos, a vizinhança toda e fez aquele círculo na frente da casa. Esse episódio foi há dois anos. Nós nos organizamos todos e saímos em cortejo para a casa da dona Isaura. Chegando lá já tinha aquele monte de gente, a vizinhança toda, a comunidade esperando, a maior expectativa: “Lá vem o reisado, lá vem o boi”, porque, no final, matamos o boi - partindo e ressuscitando o boi. Então, a criançada adora ver o boi dançar. O boi dança valsa e o xote. O miolo do boi é o artista principal. Entramos na festa e eu pedi ao reisado para ficar calminho, que eu só ia avisar que iríamos entrar. Só que, desde cedo, já estavam distribuindo umas bebidas por lá.

E tinha um rapaz que estava aplaudindo. Ele avistou o boi antes do que o restante da festa. Ele já estava bem alto. E fomos entrando na brincadeira mas, de repente, esse rapaz voou, em cima da cabeça do boi e fez assim: buf buf buf, e derrubou o boi no chão. Todo mundo ficou desse jeito, com essa cara (risos). E o miolo do boi, que não sabia o que tinha acontecido, ficou sofrendo lá. Porque o boi, ele tem mais de um metro de tamanho e é pesado. Então, a pessoa tem que ter um equilíbrio muito grande para estar aqui dentro, brincando. De repente você levar um susto desse, pegar aqui, fazer isso e jogar. Então a festa acabou. Todos os brincantes ficaram chateados. Por que aquele senhor fez aquilo? E o senhor chorando, emocionado. Os filhos da dona Isaura correram até de uma forma agressiva para tirar o rapaz. E ele chorando, emocionado, dizendo que estava lembrando a infância dele, que ficou tão emocionado que quando ele era criança ele brincava com o boi daquele jeito. Ele ficou emocionado e fez aquele estrago com o boi da gente. Inclusive o boi ficou todo molinho, porque ele é um boi de costela, é feito com vara. Então, quando ele fez todo aquele movimento, o boi desabou no chão e ficou todo torto. Foi engraçado, mas também foi muito engraçado para quem estava dentro do boi. Já andamos muito com esse reisado. Fizemos brincadeiras em locais abertos, como também em locais fechados, mas para brincar reisado não tem lugar melhor do que uma fazenda, um terreiro de uma fazenda, para depois terminar com o povo comendo a galinha caipira com o pirão escaldado que eles adoram, que o dono da fazenda sempre oferece a eles. Temos dentro do reisado várias gerações: a criança, o idoso, o jovem e o adulto, todo mundo está contemplado dentro do reisado. E, além de tudo isso, temos que focar muito bem na questão da culinária de São Gonçalo. Porque, na minha época, comíamos muita tapioca com a galinha caipira. Hoje, nós organizamos o cenário para que ela esteja, mas não tem essa iniciativa no nosso cotidiano. Organizamos o cenário para que ela possa aparecer. A tapioca, o engenho, a buchada, a cabeça do boi, a cabeça do bode, tudo isso acontecia. O meu avô comprava o escorredor de boi, cozinhava aquilo num panelão e fazia o pirão. Sentava todo mundo numa tábua, colocava ali uma bacia, entregava uma colher para cada neto e comíamos juntos.



P/1 – Eu queria voltar porque eu vejo que tem muita história. Só pra fechar essa questão que já havia uma tradição de muitas coisas e a Secretaria de Cultura está num movimento de fortalecer movimentos que já existiam.

R – Sim.

P/1 – Eu percebi que São Gonçalo tem essa coisa da Sede, do Sertão, Litoral. O que há de tradicional em cada ponto? O que é peculiar de cada região?

R – Eu já pensei em trabalhar numa cultura regional geograficamente. Eu acho que está tudo mesclado, misturado. Aqui na Sede, onde encontramos os artesãos – eles estão mais fortes lá na Taíba. Já a Associação Arte Fio, lá no Sertão se destaca. Então, temos um pouquinho em cada local. A questão do teatro é mais forte na Taíba. Ao falar de teatro eu me lembro da Taíba, dos meninos do grupo Representantes da Vida. A proposta é que eles façam, caminhem, jogando essa sementezinha aqui e lá no Sertão. Na questão da música, hoje nós temos aqui na Sede uma banda de música muito boa com 54 componentes e temos dois maestros trabalhando com as oficinas para os iniciantes. Inclusive, eu conversei com a CSP [Companhia Siderúrgica do Pecém] sobre uma oportunidade que eu tive, que foi muito bem recebida. E o Ricardo Parente - eu não sei se ele continua na CSP -, quer ajudar a criarmos numa orquestra aqui em São Gonçalo, em que estarão os jovens da região do Siupé, da Paraipaba, do Paracuru, da Caucaia e todo mundo daqui, sendo um polo da música. E temos aqui na sede também uma escola de dança. É uma escola de dança que nós temos 120 crianças. Lá no Pecém também temos a dança, mas inda falta trabalhar o jazz. Temos o balé clássico, a dança moderna – nós abraçamos essa escola de dança. E o que eu posso dizer da questão da culinária? O que é forte na culinária? A localidade dos Cardeiros é muito forte na questão da tapioca. Quando tem festa lá, todo mundo vai comer a tapioca com galinha dos Cardeiros. Na questão do engenho, temos aqui o Córrego do Coelho e tem também casa de farinha. O Sertão também tem casa de farinha. O Sertão hoje está se destacando na cultura popular com os reisados, quando surgiu na Lago Nova e nos Espinhos, grupos de reisado. O Pecém está se destacando na quadrilha junina. Lá tem três quadrilhas, uma infantil e duas grandes, de muito destaque. Temos a música em todos os cantos. Que se eu quiser um forró pé de serra eu vou buscar no Pecém. Lá, eu encontro a Pisada Forrozeira. Se eu quiser ir para o Sertão eu encontro a Caatinga do Mameleiro; se eu quiser ir para o lado do Croatá, para a BR, eu encontro os Meninos do Violete, que é outro grupo bom; se eu quiser ficar aqui, eu encontro Moraes do Acordeon. Tem grupos tanto do tradicional, como também eles estão colocando o mais novo, o estilo mais jovem - não sei se estou me expressando bem -, e tem muita gente que já tem músicas de suas autorias. Mas, quando eu quero fazer um show – no dia 14 vai ter um show acústico aqui na praça - vendo aquele povo que os nossos jovens tocam e cantam; tem as músicas autorais, que não estão gravadas e que pretendemos colocar todo mundo no estúdio e sair com um CD com um pouco de cada um nesse CD de Música de São Gonçalo do Amarante. Nós temos música. Temos a capoeira, que está se manifestando em todos os espaços, porque a escola está aberta para isso. Temos capoeira na Parada, no Pecém, no Croatá, aqui na Sede, no Sertão. Então, tem um pouquinho de cada um. Cada localidade tem um pouquinho. O que destacaremos mais?

P/1 – Você se lembra de algum cordelista do passado que encantava as pessoas daqui? Tinha alguém que era referência em São Gonçalo?

R – O Zeferino, lá do Siupé. Ele é uma referência. Ele ainda está produzindo. E junto com o Zeferino podemos citar o João Tito, que é um senhor, acho que ele é mais antigo do que o Zeferino. E, agora, no Dia das Mães, eu pedi para o seu João Tito que fizesse um cordel ou um poema para que eu pudesse homenagear as mães com um poema dele. E ele produziu e nós começamos a espalhar. Coloquei tanto nas páginas sociais, como mandei a gráfica mandar fazer os cartões. Eles fizeram os cartõezinhos e nós saímos. O mais importante daquela homenagem das mães é ter o autor João Tito. Ele fez muitos. “Seu João, vamos escolher só um poema para fazer aquela homenagem para as nossas mães de São Gonçalo”. Ele colocou Mãe Rainha, Mãe Amada, Mãe Sagrada, e foi colocando: o Edifício da Vida...

Mandamos fazer e foi nas páginas da internet, no Facebook. O cordel dele foi o mais acessado na homenagem ao Dia das Mães (risos). Tem o Joãozinho. Eu acho que o que está precisando ainda é ir para a sala de aula e perguntar: “Quem gosta de poesia aqui?”, para a galera jovem. “Quem quer se arriscar? Quem aceita desafio de ter uma aula ou duas, uma oficina com um cordelista para começarmos a brincar de fazer cordel?”. Porque na região do Sertão tem cordelistas, tem o Evangelista na região do Sertão. A região do Sertão, na área do Salgado, a professora de lá já ganhou o “Professora Nota 10” da Revista Nova Escola, com um projeto sobre cordel. Lá tem muitos cordelistas, tanto da sala de aula, dos pequenininhos que ela fez um trabalho, até o seu Evangelista, que foi para a sala de aula e deu todo o suporte para as crianças. Eu acho em toda parte que esse projeto que eu quero lançar é uma tenda Itinerante. E, nessa tenda, quando chega na comunidade, ela muda a rotina das pessoas. Tudo vai ser tirado do chão da comunidade. Eu penso a tenda transformadora. A tenda vai motivar muita gente a despertar o seu potencial, as suas habilidades, tanto na sala de aula como na comunidade. Quem não está na sala de aula vai ter oportunidade porque ela vai estar no centro da comunidade. Começaremos com a tenda, levaremos o seu João Tito para dar a oficina de cordel. Levaremos a dona Conceição para ensinar o crochê para quem quiser, o Teatro da Taíba para dar oficinas durante o dia. Quando chega no finalzinho da tarde todos os grupos que temos aqui, desde a banda de música, o violino, o violão, o reisado - vão fazer um cortejo dentro de cada localidade e convidar todo mundo para dentro da tenda. Lá na tenda tem as apresentações locais. Passamos dois dias numa localidade e, aí, vamos para outra. E nesse dia que a tenda vai estar lá, fazemos uma pracinha de alimentação do lado para que tenha a cabeça do bode, a buchada. O que vamos pedir é isso: um arroz com creme, essas coisas mais fáceis deixa para outra oportunidade, mas a tenda tem o foco bem no regional mesmo, na raiz. E, do outro lado, colocaremos o artesanato. Aí fica uma festa, o povo vai vender o artesanato, a buchada e o artista vai ser valorizado. O projeto é esse, eu o acho lindo. E quando conseguirmos rodar São Gonçalo inteiro com a tenda, vamos dar a oportunidade do Sertão conhecer o que a Taíba tem, o que o Pecém tem, e vice-versa. Eu considero isso um projeto sustentável, até porque a tenda é nossa. Vamos comprar a tenda porque conseguimos uma emenda parlamentar para isso, e o projeto já está todo prontinho. Só falta colocar em prática.

P/1 – Eu queria que você contasse quem é o seu avô, com quem você aprendeu e que lhe contava histórias na fogueira?

R – Ah, meu avô! Um homem bastante trabalhador, um homem grande. Andava com um cajado na mão. Era moralista que só. Menino não tinha vez com ele, não. Se não fosse o que ele queria não fizesse. Então meu avô era assim, ele mandava na rua, naquela região. Mas, se ele tivesse 100 cabeças de cabra, bode, ele anotava no livro dele o dia que a cabra nasceu, o nome daquela cabra, quantos cabritos ela tinha, a data e tudo direitinho. Ele era muito organizado nessas questões. E outra questão importante também é que ele cuidava muito bem de nós. Ele era muito família. A questão de namoro: só se fosse escondido, porque se o ‘vô’ soubesse ele pegava o rapaz e ia conversar com ele. Era dessa forma. E ele gostava muito de nos contar histórias de lobisomem, da mulher que chora, da mula sem cabeça, da perna cabeluda. Tudo isso ele contava. Ele faleceu segurando na minha mão e na mão do meu pai. Ele me tinha como uma filha e o meu pai, que tinha me passado a ele, era o filho único e a filha única, porque os outros foram embora. Quando eu casei, que eu disse que não ia ter filhos, o meu pai disse assim: “Minha filha, pelo amor de Deus, vá ter filhos”. Eu disse: “Não pai, é que às vezes tem pais que tem 10, 12 filhos, vai todo mundo embora e permanece só. Por que eu estou preocupada com isso?”. Ele disse assim: “Olhe para a minha vida: quantos filhos o pai teve?”, aí eu disse: “Nem sei, cinco.” “Eu sou o primeiro, os outros foram todos embora. Porque quando ele batia, era com a vara, então, quem não aguentou foi embora, mas eu fiquei. Então, quando se dá amor, quando se dá carinho, quando se dá atenção faz isso”. Mas o meu avô nunca fez isso comigo, ele só me ensinava o caminho da igreja, me ensinava a rezar o Credo, a Salve Rainha; me acompanhava na primeira eucaristia: “Vênus, você vai se confessar, minha filha. Você não sabe a Salve Rainha, reze a Salve Rainha aqui pra mim”. Aí eu começava a esquecer de algumas partes e ele: “Amanhã de manhãzinha eu vou colocar você ali sentadinha, você vai decorar a Salve Rainha”. Eu não aprendi a Salve Rainha ainda, mas por causa da pressão dele eu consegui dizer a Salve Rainha a ele. Fui aos pés do padre para a confissão, naquela época (risos) e falei a Salve Rainha. E ele tinha muito disso. Ele matava porco, matava bode e dividia com todo mundo da família: “O fígado é para o Fulano, o coxão é para Cicrano. Vai distribuir lá, menino”. E íamos na casa do pessoal. Era muito trabalhador, daquele que saía de casa e me levava: “Vamos plantar o roçado.” Eu ia com ele plantar o roçado. Ele ia cavando o buraco e eu ia colocando a quantidade de milho que ele pedia. Tinha que ser a quantidade certa, não podia ser mais, nem menos, porque quando nascia ele contava. Se eu colocasse cinco grãos ia nascer cinco pezinhos, mas se ele só pediu quatro, se aparecesse o quinto pezinho, ele brigava comigo. Só bastava isso para eu ficar murchinha, triste, porque o ‘vô’ deu ‘carão’. Ele era muito forte, precisava só olhar pra você. O meu avô escrevia, ainda tenho alguns caderninhos dele guardados. Escrevia os poemas, escrevia o nome de toda família na árvore genealógica. Ele tinha tudo anotado. Era aquele que adorava levar os padres para dentro de casa para servir o almoço, para cuidar. O meu avô era muito religioso. E faleceu assim, como uma criança, dentro de uma rede, segurando a minha mão e do meu pai. Eu pedia a benção e todo mundo tinha que pedir a benção que ele abençoava. De manhã, acordando, era a mesma coisa. Na hora do almoço, todos tinham que estar na mesa e rezar com ele, agradecendo ao alimento. A mesma coisa na janta. A minha formação religiosa, a questão de valores éticos, aquela coisa de ter só uma palavra e dizer: “Você tem uma palavra, você não vai dizer uma coisa a alguém e depois dizer: “Não foi isso que eu disse, não é assim que eu quero”. Não. Se você deu a sua palavra, está dada. Então, eu carrego essa formação, do que está lá atrás. Marcou mesmo. E com relação às histórias, você quer que eu conte uma história? (risos) Olha, tinha uma história que era muito fantástica. Ele dizia assim: “Olha, existia uma mulher que morava num lugar bem distante daqui e que essa mulher tinha um anel de herança, caríssimo. Ela recebeu da avó um anel de grande valor. Ela não queria que tirassem esse anel do dedo dela. Esse anel era cobiçado por muita gente, inclusive por um vizinho que morava do lado dela e esse vizinho sonhava e desejava muito ter esse anel. Com o tempo, ela adquiriu uma doença e acabou falecendo. E o vizinho imaginou: ‘É agora, vou conseguir roubar o anel dessa mulher’, porque ela não o tirava do dedo nem para dormir. E ela morta, achou que iam tirar. Só que ela pediu aos familiares em seu leito de morte: ‘Não tire o meu anel do dedo, eu quero ir para a minha cova, para o meu túmulo, com o anel’. A família aceitou o pedido dela. E quando ela faleceu, o vizinho soube logo e foi para o velório. Hoje, as funerárias tomaram conta, mas antigamente as pessoas ficavam em casa, com a família toda ao redor, velando aquele corpo a noite inteira. Colocaram a mulher no caixão, no meio da sala, e o vizinho ficou o todo tempo ao lado do caixão, velando a mulher. E ela com as mãos postas, mas com o anelzão que chegava a brilhar. Ele, com aquele olhar focado, desejante o tempo todo de uma folga, um espaço, para poder puxar o anel do dedo dela. Mas sempre tinha alguém da família ao lado. Essa mulher era muito querida e não faltava quem ficasse do lado dela velando o seu corpo”. E ele contava: “Minha filha, o negócio foi muito sério porque, a cada hora que passava, mais aumentava o desejo do vizinho de roubar o anel da mulher. Ele se plantou mesmo. Não ia para casa, não ia almoçar, não ia dormir e deu o tempo de levar a mulher para o cemitério. E ele junto. Fecharam o caixão, a levaram ao cemitério. Quando chegou lá ele começou a armar um plano: “Hoje eu venho buscar esse anel”. Ele ficou muito triste vendo a mulher sendo enterrada com aquele anel e não o tirou da cabeça. Voltou para casa e, na calada da noite, conseguiu uma faquinha, um martelo, uma machadinho, colocou dentro de uma sacola e se mandou para o cemitério. Ele sabia onde ela estava porque ele acompanhou tudo, até a hora de colocá-la dentro da cova. Chegando ao cemitério, à meia-noite, ele entrou, tirou toda a areia, cavou, cavou e encontrou o caixão; tentou sozinho, pegou uma corda, puxou o caixão, conseguiu abri-lo e lá estava, do mesmo jeitinho, toda rodeadinha de flores. Ele foi com a faquinha e, mais do que depressa, cortou o dedo dela, que não tinha mais como tirar o anel devido a como estava o corpo. Cortou e saiu correndo dentro desse cemitério. Quando ele chegou lá fora, tinha um táxi esperando por ele. Imediatamente ele disse: “Corre, sai daqui motorista!” Ele estava nervoso, até porque estava frio tremendo, que acabava possuindo ele, que se arrepiava todo. Quando ele entrou no carro, olhou para o lado mas não tinha o motorista. Ele escutou uma voz: “Devolva o meu anel”. Esse homem ficou louco. Soltou o dedo da mulher dentro do carro e saiu correndo. Até hoje ninguém sabe o que foi que aconteceu com ele (risos).

P/1 – Boa!

R – O meu avô contava cada coisa e nós, crianças, ficávamos: “Meu pai do céu”. O dia que eu peguei flores do cemitério - no Dia de Finados tinha uma famílias ricas que levavam aqueles ramalhetes, aquelas coisas linhas de roseira para dentro do cemitério -, eu dizia: “Olha mãe, hoje é Dia de Finados. Eu vou dar uma volta no cemitério mais tarde”. E a mãe: “Menina, o que vais fazer lá?”, “Eu vou dar uma voltinha”. Cinco e meia da tarde eu dava uma volta no cemitério, as flores, as coisas mais lindas. Eu trazia duas, três rosas e colocava numa latinha que ficava em cima da mesa com água. A minha mãe dizia que aquilo não estava dando certo, porque os mortos estavam vindo lá em casa, jogando areia e pedras em cima da casa. Dizia para eu não fazer aquilo, que na noite anterior ela já ouviu uma pessoa jogando uma mão cheia de areia, que ela tinha certeza que era do cemitério. Não sei se ela estava me fazendo medo, mas eu não via isso. Certo dia, ela disse que estava deitada, já de madrugada quando começou a bater na porta lá fora. A casa era bem baixinha. Ela foi e levantou. Quando ela abriu a porta, não tinha ninguém. Voltou e, quando ela passou pela cozinha, viu a florzinha dentro d’água, que começou a balançar: “É a dona das rosas que a Vênus foi pegar no cemitério e que veio buscar”. Tudo isso ela imaginava e, de manhã, ela me contava: “Minha filha, pelo amor de Deus, vai deixar essas rosas que a mulher já vem buscar”. E eu voltava de novo. E nessa minha história eu vi muito enterro primitivo, que é aquele enterro que você leva o defunto numa rede para o cemitério. E esse enterro, hoje eu procurei reviver, quando eu fui para a Mostra no Sesc Cariri, levei as carpideiras que têm aqui na região do Marco e na região dos Cardeiros. As carpideiras cantavam excelência nos velórios. Naquela época, como não existia a funerária, a carpideira tanto ajudava o sujeito a morrer, como ela vestia esse sujeito. Ela deixava ele todo bonitinho, arrumadinho, para leva-lo ao cemitério. Ainda faziam um cordãozinho que só ela sabia fazer, que era o cordão de São Francisco. E a família chamava: “Fulano vai morrer, chama a dona Maria Silvina, chama o seu Zé, que ele já está querendo se despedir”. E ela vinha, sentava ao lado da redinha dele, ou num cantinho, num tamborete, e começava a cantar as excelências encomendando esse corpo para outras pessoas, tanto as pessoas choravam como ela encomendava o corpo a Deus, a Nossa Senhora, a São José. Ela fazia toda aquela oração. Quando ela sentia que ele estava fazendo a viagem, falava: “Chamem a família, traguem a vela que ele vai fazer a viagem dele.” Ela sentia isso. Colocava a vela na mão, e às vezes ainda dava tempo da família chegar e pedir a benção para ela abençoar. E pronto: morreu. Era assim. Depois disso, ela ia cuidar das vestimentas, do cordãozinho de São Francisco. A família ficava apreciando aquele corpo a noite inteira. Tinha um café, uma bolacha e, às vezes, uma cachacinha para eles tomarem. Eles passavam a noite inteira e, no outro dia pela manhã, iam deixa-lo no cemitério. Eu vi muito isso: elas passando com o defunto, levando ao cemitério. Enterro primitivo. Quando eu fui para a Mostra Cariri eu convidei a dona Maria Silvina e todos eles. Ela está bem velhinha, mas foi. “Vamos fazer o enterro primitivo lá na mostra Sesc Cariri?”, ela topou. Só que ela disse: “Minha filha, quem é que vai na rede?”, porque nós estamos encenando, “Quem é que vai na rede, quem é que vai fazer o papel do morto?”, ninguém queria. Na hora eu coloquei o reisado todinho, eram 36 brincantes: “Quem é que vai fazer o morto na rede?”, e ninguém queria. Eu disse: “Eu vou. Tem que acontecer”. Deito na rede, me fecho aqui e vocês me levam. Elas orientou que os meus pés não podiam ir par o nascente, e sim a cabeça: “Tenham o cuidado, vocês vão levando ela, mas vocês vão levando”, todo o ritmo, toda a tradição estava voltando ali, mesmo sendo uma encenação, mas ela não permitia que não fosse do jeito que ela queria que fosse. Ela sabe mais do que todo mundo, e quem ia discutir? Quem ia duvidar? Fizemos e foi muito bonito. Fomos a segunda vez. Fizemos aqui na Maratona de Contos de Assombração, numa casa com um contador de história encenando; fizemos a encenação do cortejo com enterro primitivo e ela vinha atrás com eles, cantando as excelências na Maratona dos Contos de Assombração. Ficou muito bacana.

P/1 – Como foi essa maratona, quem foram as pessoas que contaram as histórias?

R – Os contadores de história.

P/1 – Quem eram essas pessoas? São as pessoas mais velhas?

R – Eram da comunidade. Deixa eu ver se eu me lembro. Convidamos o seu Ismael. Na época, o Sesc também tinha um grupo de contação de histórias. As meninas se preparam com as histórias. Eu também conto histórias. Vêm as senhoras idosas, o seu João Tito, a dona Mazé Barbosa, e esse povo todo. Contar história é fácil. Todo mundo sentado, fazemos uma roda de história. A dona Mazé Barbosa conta uma, eu conto outra, o seu Ismael conta outra, a Diana conta, a Fernanda, a Maria Luísa, a mãe da Maria Luísa. No final, temos que acabar, porque senão ninguém para. E a criançada adora. Todo mundo assiste a Maratona dos Contos de Assombração.

P/1 – E vai bastante gente?

R – Sim.

P/1 – Vocês fazem ainda?

R – Eu quero ver se eu consigo trazer. Porque já foi um projeto do Sesc, que tem que fazer. Eu quero ver.

P/1 – Você fala muito do seu avô, mas e a sua avó?

R – Ah, minha avó! Hoje ela está deitadinha numa rede, bem fininha. Era uma mulher trabalhadeira também, daquela que cuidava, não ficava atrás do meu avô. Ela veio embora para cá porque a família dela morava numa Serra do Rato. Ela dizia: “Minha filha, minha família toda é da Serra do Rato”. Ela veio embora para São Gonçalo e quem a trouxe foi o meu avô. Todo mundo de lá morreu com tuberculose. Ela viu todos os seus familiares morrendo com tuberculose. O meu avô a trouxe porque, se ela ficasse naquela casa, ela seria a próxima vítima da tuberculose. Morreram o pai, a mãe e todas as irmãs e irmãos. Imagina, você ver todo mundo morrendo ali? Ela foi resgatada, trouxeram-na pra cá. Ela foi construir a história dela conosco. Mas era aquela mulher que plantava, que cuidava, zelava muito do quintal, gostava de ter o quintal sempre limpinho, tirava tudo quanto era folha. Gostava disso. Botava muita água na cabeça, muito feixe de lenha, que a gente cozinhava a lenha, então ela fazia uns cafés, café com manjerioba, que é uma folhinha, uma sementinha, ela ia buscar no mato, ela torrava manjerioba e ela fazia o café. Ela fazia remédio caseiro de todas as formas, tinha um remédio pra dor de dente, tinha um remédio pra dor de barriga, pra inflamação, conhecia todas as ervas e aquelas cascas de árvores que curavam, então, ela fazia isso. Ela também gostava de rezar nas crianças. Se chegasse uma criança que estava doente: “Chama a dona Terezinha”. Ela vinha com raminho, batia ali na criança, fazia a oração dela - ela nunca contou que oração era essa que ela fazia, mas ela dizia que era um dom, que veio uma mulher toda de branco num sonho e a ensinou a rezar. E disse que ela ia curar. Então, ela fazia isso e dizia: “Minha filha, eu vejo, olho ali, eu lembro da oração que a mulher me ensinou e eu curo”. E muita gente procurava ela com as crianças no colo. Às vezes, era uma, duas horas da manhã, quando alguém batia na porta e ela acordava. Ela dormia sempre pertinho da porta: “Quem é?” “Dona Terezinha, o meu filho está muito mal, está molinho. A senhora pode rezar nele?”, “Sim”. Levantava, vestia a roupinha dela, batia nela, pegava a folhinha lá no mato mesmo, pertinho de casa, e fazia a oração. E tinha muitas pessoas aqui em São Gonçalo que faziam isso, mas é uma cultura que já está se perdendo, se já não se perdeu aqui na nossa região, das mulheres que curavam, que faziam essas orações nas crianças. Até em cachorro ela rezava. Rezava nas cabras do meu avô, quando ele dizia que a cabra estava doente. Teve uma coisa muito interessante: o meu irmão faleceu com sete anos, teve um problema sério logo com quatro anos de idade. Ele pegou uma doença em que foi definhando e ficou cada vez mais molinho. O meu avô olhou para ele, nós tínhamos um cachorro que chamava Provedor. Esse cachorro era a paixão da família. Era aquele cachorro antigo que estava sempre no pé do pai, da mãe e de todo mundo. Ele protegia a casa. Meu irmão adoeceu e, no final da tarde, meu avô olhou para o meu irmão, nos braços da minha mãe, que dizia: “Meu Deus, antes o meu cachorro do que ele”. No mesmo dia do outro dia, mesmo dia mesmo, sol escaldante, eu vi o meu avô de joelho no terreiro lá da casa, de mão posta, de joelho, olhando pro céu e rezando. Quando foi a tarde ele foi de novo, meu irmão cada vez pior. Ele foi de novo e disse: “Meu Deus, mas antes esse meu cachorro do que meu neto”. E o cachorro morreu. O cachorro morreu na mesma tarde. Achamos que era a oportunidade dele fazer a viagem naquele dia, com quatro anos de idade, mas não deu certo. Foi um animal com a dor dele. E eles acreditavam muito nisso. Eles acreditavam que um cachorro, um animal, poderia adquirir a doença e as coisas maléficas dos adultos. Então, tinha que ter um cachorro porque qualquer coisa batia no cachorro e não no adulto. E ele fez isso. São situações muito fortes. A minha avó adorava arear as panelas. Com o fogo de lenha fica tudo sujo. Ela areava, deixava a panela para se ver o rosto, sabe? E ela fazia galinha caipira como ninguém. A galinha caipira, o pirão, ela era a dona, a chefe da cozinha. Como sempre a mulher naquela época era mais forte nisso. Hoje, graças a Deus, conseguimos ocupar um espaço de maior poder na sociedade, mas antigamente a mulher era só para ter filhos, para ser dona de casa e para casar. A minha avó fez muito bem esse papel, ela cuidava muito bem dos filhos, dos netos e de tudo. Buscava água no rio, limpava os potes, plantava, cozinhava, fazia os remédios, curava as crianças, me levava muito para Canindé. Ela era muito católica na época. Hoje ela não sabe mais o que está acontecendo, porque ela está dentro de uma redinha, morando com a minha mãe. Numa certa altura da vida ela passou a ser evangélica, mas não deixava de rezar nas crianças. E acreditava, de vez em quando ela soltava: “Minha Nossa Senhora, tomara que Nossa Senhora nos proteja”, então ela era um pé aqui e outro acolá (risos). Ela tinha muito disso. Quando eu ou alguém saía, ela dizia: “Vá em paz, vá com Deus”, começava a fazer oração e enquanto ela não nos via dobrar a esquina ela não parava de rezar. Ela ficava no meio do caminho, no meio da estrada, e era assim. Sempre foi desse jeito.

P/1 – Outra coisa que você me falou e que me chamou a atenção foi que você descreveu um pouco onde você morava. Disse que tinha um rio que não tem mais.

R – Não tem mais.

P/1 – Pensando no pessoal que vai ouvir essa história, São Gonçalo mudou muito, eu imagino.

R – Mudou. Mudou muito.

P/1 – Você consegue descrever um pouquinho como era essa praça central aqui quando você era mais nova, ou o bairro em que você mora ou morava?

R – São Gonçalo tinha apenas uma praça na matriz. Todo município começa a partir da praça, da matriz, a igreja. E não tinha ruas, era só estrada de terra batida. E a nossa rua lá na frente com o cemitério. Haviam pouquíssimas casas. O povo descia para o rio, lá embaixo, que se chamava rio da Miquelina, que tinha areinha e dava para ver as pedras. O povo ia pescar: pescava aratanha e peixes de todas as formas. Tinha peixe à vontade. E era o nosso ambiente de lazer, era o nosso lazer e, às vezes, tirava de lá o sustento de algumas famílias. Na minha rua só era a minha casa e o cemitério. Hoje, tem um quarteirão, com muita gente morando naquela rua. Quando eu pensei em colocar a Afrodite foi para dar mais valor ainda àquela rua, porque recebemos muita gente à noite. Mas a rua hoje tem um fluxo de gente muito maior.

P/1 – A casa é a mesma?

R – A casa?

P/1 – É no mesmo lugar?

R – Não é a mesma. O terreno lá onde meu avô morava, nesse espaço tinha a casa dele, uma casinha afastada, que era do meu pai, depois do meu avô. Onde eu moro hoje era só um terreno fechado com muito mato e uma reserva, uma água, como se fosse um poço lá no meio. E aí foi povoando e hoje não tem mais nem campo para colocar a casa. Eles estão subindo, fazendo a parte de cima de todas as casas. E eu percebo que as pessoas pensam em melhorar seus espaços. E estão melhorando. Tem poucas casas antigas nessa rua que permanece do jeito de quando eu era criança. A minha avó Mercedes fez algumas reformazinhas, mas a casa dela ainda é uma das mais antigas aqui nessa rua. E as pessoas hoje têm essa preocupação, de ampliar, de fazer uma área, um alpendre, de fazer uma pintura diferente na sua casa, de fazer um muro e de cercar. Acho que aumentou em 200% a quantidade de pessoas naquela rua onde eu moro desde que eu era criança. Até o cemitério, que era pequenininho, já foi ampliado quatro vezes. Do muro dele pra cá tem muitas casas, e antigamente era só a minha casa. Foi crescendo porque, cada vez mais, o povo está vindo para São Gonçalo.

P/1 – Eu queria saber um pouco a história da rinha. Isso era uma questão da tradição daqui, tal? Porque hoje não tem mais...

R – É proibido.

P/1 – Como era na época, era uma tradição? Descreva como era isso.

R – Ainda tem muita gente que tem essa tradição de criar galos e treiná-los para a briga de galo. E como é algo errado, fora da lei, então, sempre é feito em locais afastados.

P/1 – Mas isso hoje ou naquela época.

R – Hoje está proibido, mas naquela época eles se reuniam, criavam seus galos. Não só tinha briga de galo, mas de passarinho, de canário. Eles faziam as brigas aqui na praça, botavam as gaiolas uma perto da outra e deixavam os bichinhos brigar. E ficava aquela torcida: qual é o canário melhor, qual o que bateu melhor. E com o galo é a mesma coisa. Eles faziam a rinha. Então, como o meu pai gostava, ele ainda cria galos, não para brigar, mas ele tem um espaço. Como eu estava te dizendo, eles aproveitavam para se reunir, colocavam os galos para brigar e aproveitar também como uma forma de lazer. Eles bebiam, se encontravam, comiam e chamava muita gente.

P/1 – Onde era essa rinha?

R – Lá na minha casa. O meu pai fez um espaço, colocou um bar e, depois do bar, ele fez a rinha, que é um tanque. Ele preparou um tanque todo forrado de esponja, onde o galo é treinado. Eu lembro que ele fazia muito esses treinos colocando o galo no sol, pulando o galo. Vinham os amigos antes para ver o galo, se ele realmente tinha potência para poder apostar. Eles faziam aquela brincadeira simples sem ir para a aposta. Quando eles iam para dentro da rinha, aí eles faziam as apostas. Era muito arriscado. Eles faziam aquela brincadeira de jogar dinheiro. Geralmente, um deveria estar mais aperriado que o outro, então, a tensão era maior. Alguns, às vezes, vinham para rinha armados e a polícia tinha que estar perto. Era um negócio... eu dei graças a Deus pelo meu pai ter acabado com aquilo. Não tinha condições, porque era um momento tenso. Eles ficavam o dia todo e entravam pela noite toda bebendo e botando o galo para brigar. Era uma crueldade com o bichinho muito forte.

P/1 – E discussão? Já teve situação de briga?

R – Sim. A situação de briga mais grave foi quando um puxou a arma para o outro. Essas situações que não valem a pena lembrar e continuar com um trabalho desses, porque ela é perigosíssima.

P/1 – Uma das questões também que você falou foi da festa da padroeira, que é uma coisa que tinha desde que você era criança. Como era isso?

R – A festa do nosso padroeiro mudava a rotina do município de São Gonçalo do Amarante. Chegava o parquinho de diversões, que ficava no lugar em que o padre desejasse: “Coloque aqui perto da igreja”, ou então: “Fique mais afastado”. Teve uma época que o parque ficou dentro da lagoa, que estava seca. Teve uma época que o parque ficou depois do centro da cidade, lá atrás - não sei o que foi que aconteceu. Mas aqui ficava todo mundo bem próximo e, terminando a novena, todos iam para a praça e para o parque. A minha expectativa era, além de estar com o meu avô, tinha o hasteamento da bandeira do São Gonçalo. Eles soltavam os fogos, tinha o sorvete que o meu avô dava, tinha a história da espalha brasa, que era um brinquedo do parque. Então, quando terminava, ele tinha que me dar dinheiro para eu brincar no parque. Ele dava dinheiro só para ir duas vezes, porque ele tinha pouco. Ficávamos só com a corda e o barco nos levava para um lado e para o outro. Tinha dia que não tinha dinheiro, aí ele dizia assim: “Minha filha, vá pra sua rede, taca o pé na parede que dá o mesmo efeito. Você se diverte do mesmo jeito” (risos). E assim, dava muita gente. E tinha as barraquinhas de vender bijuteria. Eram nove noites, a novena. Vínhamos para a abertura, num dia das nove novenas, mas no último dia ele não deixava, porque dizia que tinha muita gente, então, ninguém podia ir. Mas, no outro dia, pela manhã, ele vinha comigo para as bancas de sorte, que era esse local onde vendiam as bijuterias. Quer dizer, depois do último dia festa, tinha que ter uma bandinha daqui da região. Hoje são bandas de nível nacional, mas antigamente eram bandinhas da região que ficavam tocando. As pessoas dançavam, bebiam, se divertiam e iam para as suas casas. Assim era o encerramento da festa. E hoje cresceu. Quando acabava a festa, o meu avô ia comigo na banca da sorte e dizia: “Compre qualquer coisinha para você”. E eu comprava um brinco, uma pulseira. Ele não me deixava pintar a unha de vermelho, porque ele dizia que essa era cor do cão. Não podia. Ou pintava a unha clarinha ou não pintava, porque ele dizia: “Você não nasceu com a unha vermelha”. E eu gostava tanto de vermelho. Eu pintei a minha unha de vermelho depois que ele faleceu. Eu disse: “Meu avô, não tem jeito, agora eu vou pintar a minha unha de vermelho” (risos).

P/1 – Como os jovens se divertiam e namoravam nas festas?

R – Ah, eles iam para o banco da lagoa - tinha os banquinhos lá na lagoa e nós ficávamos sentados. Era um namoro muito inocente. Ou, então, namorava escondido, por trás do muro de uma escola, numa caixa d’água. Os pais não deixavam, tinha a época de namorar. Mas sempre tinha aquele que fugia da regra. E tinha as festas no sábado. Sempre tinha uma banda que fazia uma música mais agitada e, depois, tinha a música lenta. Toda vida era assim: a banda começava com forró, com um dance, e quando dava uma hora da manhã, quem ainda estava na festa ou o pai tinha deixado, mas que não estava mais, depois da uma hora da manhã vinha a música lenta. Aí os casais se encontravam, dançavam, pegavam na mão, saíam e iam deixar a dama em casa ou dar alguns abraços por aí afora. Mas era assim. Na minha época era muito inocente.

P/1 – Tinha um tal de black?

R – Tem o black.



P/1 –

O que era o black?

R – (risos) O black era o local onde nos reuníamos, era um ponto de encontro com música. Não banda, mas música eletrônica. Era como se fosse uma boate. Nós tínhamos o black; tinha outra que esqueci o nome, que tinha mais um forró e esse black era mais música eletrônica.

P/1 – E onde eram esses lugares?

R – Eram aqui na entrada de São Gonçalo, ao lado do Banco do Brasil. Tem a Solar Magazine, aqui na esquina. É nesse local.

P/1 – Tinha Lago’s Copa Hotel? Um hotel na lagoa.

R – Não lembro.

P/1 – Eu tenho impressão que essa lagoa foi usada mais no passado do que hoje.

R – Sim.

P/1 – Por quê?

R – Não sei.

P/1 – O que aconteceu?

R – Eu sei que ela ficou poluída, e por esse processo de seca total, muitas festas. As pessoas não respeitavam, jogavam vidro, garrafa de todo jeito. Então, tem um risco muito grande tomar banho numa lagoa dessas. Antigamente não tinha essas festas no seu entorno e ela era mais preservada, mais cuidada. Eu já tomei banho na lagoa. Vínhamos para a Educação Física, e na nossa escola fazia aqui, às cinco horas da manhã. A professora ou professor, não me lembro na época, terminava a Educação Física e ia tomar banho conosco na lagoa. Ela era tão limpa, maravilhosa. E, no domingo, também se reuniam os grupos que iam para a lagoa tomar banho. Mas o povo deixou de fazer isso, depois que a lagoa ficou com esse fluxo grande de pessoas no entorno. As pessoas não têm a consciência disso e vão jogando tudo dentro dela. Agora houve uma limpeza, houve uma organização melhor, mas que não encheu e eu não sei se o povo está utilizando. Mas houve uma limpeza nela todinha.

P/1 – Hoje o pessoal não usa mais para nadar. Ela está poluída?

R – Está poluída.

P/1 – E isso faz pouco tempo.

R – Faz pouco tempo.

P/1 – Como foi o seu casamento? Como você conheceu seu marido?

R – Meu marido é amicíssimo do meu pai, da família. Inclusive, eu namorava outro rapaz, que o meu namoro era de três anos, quatro anos, aquela pessoa que chegou, gostou e que ficava conversando, sentava, todo dia ele ia lá pra área da minha casa, aquela história do namorar em casa. E a minha mãe não gostava desse meu namorado, não gostava; meu pai também não gostava desse namorado: “Minha filha, esse menino não dá pra você. Esse menino não é a pessoa”. Aí um dia eu, no bar, fazendo a tapioca com fígado pro pessoal que estava na rinha, chega o meu marido. Ele chegou com outro amigo, sentou lá no bar, bebeu uma cerveja, não sei o que foi na época. Era aquele homem namorador, que namorava todo mundo em São Gonçalo e na lista dele eu estava faltando, daí ele se aproximou. Se aproximou, brincou comigo e eu não dei satisfação, até porque eu tinha namorado, mas o meu pai viu que ele tinha se interessado por mim. Aí foi, me chamou depois de tudo: “Minha filha, aquele menino é o mesmo que ser meu filho. Olha aí, aquele rapaz é o mesmo que ser meu filho. É um menino trabalhador, é um menino bom, não sei o quê, não sei o quê”. Ele foi fazendo a minha cabeça. De repente, eu dei uma oportunidade para esse rapaz. Comecei a namorar com ele e dispensei o outro. Porque o meu pai me deu todo... Namoramos seis anos, casamos no dia 31 de dezembro, não lembro nem que ano. Já passamos por várias provações, várias dificuldades, mas hoje eu sei que eu vou me aposentar com ele (risos). Temos dois filhos, é um companheirão. Ele é policial da Polícia Militar, está se aposentando agora. Dois temperamentos totalmente diferentes, uma professora e um policial. Porque o policial parece que, vai cortar muita coisa que eu vou falar (risos). O policial é uma lavagem cerebral, que tem que ser policial 24 horas por dia. Se você estiver fardado é policial, se não estiver fardado não é para ser policial. É um sujeito comum. Mas não, são policiais. Temos um temperamento diferente, mas hoje eu tenho um marido que eu fui moldando, que eu fui organizando bem direitinho. É o parceiro, é o companheiro, o pai dos meus filhos - pai e mãe, parece até que é mais do que eu. Eles são muito mais apegados a ele do que a mim, porque eu não paro, eu ando muito, eu corro muito. O meu casamento foi muito interessante porque, como na época ele era polícia montada, trabalhava na cavalaria, ele queria casar todo de policial nas vestimentas oficiais, todo de branco, com aqueles enfeites na roupa. Os amigos vieram todos a cavalo. Imagina: o noivo a cavalo - eu não monto coisa nenhuma -, todo de branco e a polícia, os amigos todos de cavalo também fazendo um cortejo. Entraram, chegaram em São Gonçalo assim. E eu? Eles chegam na igreja, o meu marido desceu do cavalo. Ele queria que fosse assim o casamento dele. Entrou na igreja e ficou me aguardando lá dentro. Eu já tinha brigado muito com ele, que eu era muito imatura naquela época, porque no dia do casamento eu queria que alguém tivesse do meu lado me ajudando, irmão, irmã, tudo para me ajudar, mas ele não estava. Então, eu imaginei que existia aí uma despedida de solteiro, alguma coisa desse jeito. Resolvi, estava decidida que eu não queria mais casar. Em cima da hora. Minha mãe já estava com as panelas de comida, tudo pronto, com o aluguel da roupa, tudo organizado. Eu disse: “Mãe, eu não quero mais me casar”, e ela dizia: “Agora, você vai se casar”, “Mas como é que eu caso com um homem que eu estou com raiva?”. Eu discuti com ele. Vou fingir, é o jeito. Acabei entrando na igreja. Eu era a noiva mais triste de São Gonçalo. O povo dizia: “Sorria, Vênus!”, as amigas sorriam e eu ficava: “Vou casar, é o jeito” (risos). E assim eu fui para o altar. No meio do casamento eu consegui pegar na mão dele, mas foi uma coisa super esquisita, eu nunca pensei uma situação daquela comigo. Acabei casando, mas eu disse: “Agora eu vou até o fim”. E fui resolvendo algumas coisas, preenchendo algumas lacunas na minha vida, na vida dele e hoje estamos bem, graças a Deus.

P/1 – E seus filhos? Têm quantos anos?

R – O Pedro tem 17 anos e a Maria Eduarda tem dez anos. O Pedro é natureza, é o vaqueiro. O Pedro não liga se o celular dele não está na onda da moda. Já a Maria Eduarda é mais preocupada: “Mãe, sabe que está passando”, diz aí uma marca de uma sandália. E eu digo ao Pedro: “Filho, vamos trocar essa havaianas? Vamos comprar uma nova?” “Mas eu sou vaqueiro. Eu preciso que a mãe compre uma bota, um chicote”. É um menino leve, que não está aí dentro dessa modernidade. Ele gosta de andar bonitinho, arrumadinho, mas não é de shopping. Já a Maria Eduarda é do shopping. Quando eu digo: “Vamos, Maria Eduarda?” Ela me acompanha no teatro, no cinema, ela gosta de ir para um museu. Já o Pedro se for a pega de boi no mato ele vai, se não: “Vamos para o shopping, para o cinema”, “Não, interessa não, eu vou para uma pega de boi. Eu vou com a vaquejada a tal local”. No Dia das Mães ele me deu um presente. Ele disse: “Mãe, eu vou para uma vaquejada, eu queria que você fosse porque eu vou derrubar um boi para você na vaquejada”, “Ô filho, eu vou. Pode deixar”. E fui. Quando eu estava chegando ele disse: “Vem, vem, vem!”, já estava no cavalo, já tinha pago a ficha dele, se inscreveu e já estavam chamando: “Pedro Emanoel agora com o batedor”, o amigo dele lá: “Vai entrar na pista”. E eu fiquei só: “Filho, vai!”. Ele foi, sorriu para mim, entrou lá no meio e derrubou o boi. Saiu gritando de alegria. Ele é esse menino que gosta de estar no meio da vaquerama. A maioria das amizades dele são da idade do pai dele ou para cima. Não tem muita amizade de jovem, só da escola, mas ele convive mais é com pessoas mais idosas do que ele. E é querido, todo mundo gosta. Todo mundo sabe quem é o Pedro Emanoel dentro da cultura do vaqueiro. E a Maria Eduarda gosta também de contar história, brinca reisado comigo. Porque eu brinco reisado, eu faço o meu de boi, eu sou catiringa, eu sou papa-angu, eu brinco na burrinha. Quando eu estou, é a hora do meu desencantamento, de estar com o reisado. E ela brinca na burrinha. Eu comecei brincando na burrinha. Eu ia lá em casa, brincava com a burrinha e ela dizia: “Mãe, deixa eu ver aqui”. Ela se identificou. É mágico! Você vê aquele animal deitadinho, a burrinha é feita, é artesanal, é com a madeira. Faz a madeira e coloca uma saia e vestimos ela. Então, quando você veste e pega nela aqui, você se transforma, porque tem a bana que puxa e você vai brincar com a burrinha. E a Maria Eduarda me via brincando: “Mãe, deixa eu pegar?”. Quando ela pegou: “Filha, brinca, eu vou cantando e tu vai dançando”, aí ela se encontrou. Eu disse: “Eu vou fazer uma burrinha para você. Eu danço na burra maior e você dança na burrinha pequena”. Quando eu comecei a andar e a burrinha comigo, eu disse: “Maria Eduarda, a burrinha é mais lúdica, eu vou deixar para você tomar conta dela no reisado”. Hoje é só ela que brinca na burrinha. Porque eu me encontro mais nos papa-angu, que se vestem com luva e tudo. Eu fico no meio do povo brincando. Isso é encantador porque ninguém sabe quem é. Às vezes, eu toco nas pessoas, eu falo no outro dia que eu a vi, que eu conversei com elas, mas elas não sabem: “Como foi que me vistes, Vênus? Onde é que estavas?”. Ninguém viu e ninguém vê.

P/1 – Descreve esses personagens, como é esse reisado?

R – O reisado tem os entremeios, que são os animais. Têm alguns reisados que tem mais do que outros. Aqui, o Metamorfose do Sertão, tem a burrinha, tem o jaraguá, tem a ema e tem o boi. Tem uns que tem o bode, tem outros que tem o urubu. São personagens importantíssimos dentro de um reisado. O boi é o ponto alto do reisado. Nosso boi é um boi de costela, como eu disse anteriormente. Coloca-se uma cabeça realmente de um boi, faz o preenchimento, junta com o outro espaço que é o corpo e, dentro, colocamos uma roupa, uma saia; o nosso boi é preto, mas o boi que está surgindo lá na Lagoa Nova é branco. Embaixo tem só uma abertura para a pessoa que está brincando com ele ver onde é que está a multidão para chegar perto e também ter cuidado para não bater em ninguém. Porque o boi roda, ele brinca com todo mundo. A burrinha é um entremeio que brinca com o boi, que brinca com a população e com as crianças. Tem também uma cabeça, mas cada região faz do seu jeito, de acordo com a sua tradição. Aqui fazemos com um material de mufumbo, que é o nome da madeira. Ela é bem leve e o nosso artesão é quem fez. Ela fica lá na nossa comunidade de Cardeiros, que é aqui em São Gonçalo. Ele faz a cabeça e depois coloca uma saia rodada e a pessoa veste. Tem também o jaraguá, que é outro animal com uma cabeça bem grande, também feito de madeira; o nosso é verde, mas tem pessoas que não botam cor nele e deixam da cor da madeira mesmo. Aqui na nossa região é assim: veste uma roupa e a pessoa fica dentro desse animal brincando com ele e com as crianças. A alegria da festa são esses bichos, esses animais. Para todos eles tem uma música, tem uma chamada. Eles não entram na brincadeira por acaso, eles são chamados para brincar.

P/1 – Você pode dar o exemplo de uma música?

R – O jaraguá, o vaqueiro, o responsável pelo reisado, o coordenador grita: “Aí, vem um bichinho para vocês, o jaraguá. Vamos receber o jaraguá, minha gente!”, e todo mundo: “Vamos!”. Aí ele entra. Deixe-me ver se eu lembro a música do Jaraguá. Vou cantar a música da burrinha e, depois, vem do jaraguá. A burrinha é assim (cantando): “A burrinha do meu amo come paia de arroz, a burrinha do meu amo come paia de arroz, a danada da burrinha que não pode com nós dois, a danada da burrinha que não pode com nós dois”. Aí a música vai levando, animada e ela vai pulando e brincando. Todo mundo cantando. As músicas do reisado são simples e de domínio público, então, é simples de memorizar porque um canta e a pessoa repete. (cantando) “A reisada é bom reisado, foi minha infância. Ainda hoje eu tenho lembrança do reisado que eu brinquei. Reisado é bom, reisado foi minha infância”, as pessoas repetem e todo mundo canta junto. (cantando) “Chegou, chegou, chegou o jaraguá. Chegou, chegou, chegou o jaraguá”. O vaqueiro canta e o público repete. (cantando) “O bichinho é bonitinho, quer dinheiro pra gastar”. Aí todo mundo, (cantando): “O bichinho é bonitinho, quer dinheiro para gastar. Vamo, vamo minha gente, entre dentro dessa roda. Vamo, vamo minha gente, entre dessa roda, dê um passo, chega em frente, diga adeus e vá embora. Dê um passo, chega em frente, diga adeus e vá embora”. E aí vem: (cantando) “Chegou, chegou, chegou o jaraguá”. E ele fica o tempo todo brincando com as pessoas dentro da roda. E tem pessoas que dão dinheiro. Jaraguá tem uma língua, então tem os donativos que o reisado recebe. O reisado é um teatro de rua, ele é religioso, é profano, ele é muita coisa e mexe com muita gente. A estrutura dele é muito grande. Então, tem uma banda que acompanha. A ema também tem a sua música. (cantando) “O meu passo, ema...”. Ela é um tecido grande em cima de uma espécie de bola e dentro dessa bola sai uma cabeça, que é a cabeça da ema, que é um pauzinho bem fino e que ela fica batendo o bico dela nas pernas das pessoas, batendo no rosto das pessoas, beijando, abraçando - a ema acolhe todo mundo. Tem outra questão interessante também que eu acho, é o bode. Um reisado que tem o bode bem feito e brincalhão, ele arranca riso e aplauso de uma plateia inteira. Acho que é isso.

P/1 – Você estava falando do bode, que é uma figura importante.

R – Nós temos o bode no Reisado do Mestre Ciro, inclusive ele vai vir comigo agora na Lagoa Nova sábado. Mestre Ciro tem esse bode, tem um boi lindo, com vários entremeios. Ele é de Fortaleza. E como ele já tem uma experiência maior no Estado do Ceará com reisado e boi juventude, eu acho que deve fazer esse encontro de vivência e saberes com a Lagoa Nova e Espinhos. Espinhos também está com outro reisado lindo, então, queremos fazer o encontro deles. E o Reisado do Mestre Ciro tem um bode fantástico. O bode balança o rabo, balança o chifre, ele berra, ruge, faz tudo. Ele grita, o bode é fantástico. E aí, junto com o reisado lá do mestre João Feliz, também tem o bode. Eu quero ver o encontro desses bodes. Tanto o João Feliz quanto o Antônio Colônia tem o reisado dele.

P/1 – Cada personagem tem um símbolo?

R – É único. Cada um faz algo diferente no reisado. O urubu aparece quando o boi está morto. Então, o urubu fica em destaque; o bode some, os cachorros - tem reisado que também tem cachorros. E o urubu vai lá comer, devorar o boi, mas eles não deixam. Quando o urubu chega os papa-angu correm todos para cima do boi, para protegê-lo, mesmo o boi estando morto. Esse é o ponto alto do reisado: não era para o boi ter morrido. A história conta que o vaqueiro cuidava de uma boiada do patrão e ele trouze a esposa dele para o sertão, para essa fazenda, para morar com ele. A esposa do vaqueiro engravidou e a esposa desejou comer a língua do boi, que era o mais importante da fazenda, aquele que o patrão jamais queria matar. Mas ela, de tanto pedir a língua do boi, o vaqueiro matou o boi do patrão para tirar a língua e dar para esposa, que na brincadeira é a catirina. E quando a catirina comeu a língua do boi e ficou satisfeita, veio o patrão e quis matar o vaqueiro porque ele não deu autorização nenhuma para o vaqueiro matar o boi dele. O vaqueiro fica desesperado, porque o patrão disse: “Ressuscite o meu boi, senão é você quem vai morrer. E tudo o que ele queria era agradar a esposa dele. Acabou criando um grande problema para a vida dele, ao ponto de ser ameaçado de morte. Então, ele faz uma oração fortíssima e acabou ressuscitando o boi. Então, a brincadeira do reisado também tem esse foco, essa história. Aí vêm os entremeios atrás e vão até a porta de um fazendeiro, pedir para entrar. Eles começam assim: (cantando) “Ô de casa, ô de fora, manjerona é quem está aqui. É o cravo, é a rosa, é a flor do bugari. Abre essa porta que tem que abrir, que nós somos de longe, queremos dormir”. Então eles pedem para o dono da casa abrir a porta a eles. O dono da casa abre a porta e eles continuam cantando, dizendo os versos e entram na casa do dono da fazenda. Eles vão fazer a festa lá dentro. E aí, quem entra? Entra o vaqueiro, os papa-angu, as catirinas, que lá no Reisado da Lagoa Nova são homens que se vestem de mulher e fazem a festa acontecer linda. Aqui, na Sede, nós não conseguimos isso. Os homens não queriam se vestir de mulher, aquela coisa do preconceito, mas lá não tem isso. Eles fazem, são só homens que brincam o reisado lá na Lagoa Nova e nos Espinhos. Eles entram na casa do homem e fazem a festa lá dentro. E vão chamando o boi, os entremeios e vão brincando. O boi chega, o boi sai, o boi volta, enquanto o boi chega, brinca, dança e sai, quando ele fica lá no cantinho dele, entram os entremeios, um chamado de cada vez para brincar com a comunidade. E os papa-angus estão o tempo todo protegendo o boi. Porque quando chega o boi, as crianças querem puxar o seu rabo, o chifre, então, eles estão protegendo o boi. Os papa-angus são homens que trabalhavam na derruba da palha da carnaúba. Eles tinham os estacotezinhos e passavam o dia todinho trabalhando, entregando para o patrão fazer a cera. Naquele tempo, na minha casa, o meu pai fazia isso. E eles derrubavam a palha, colocavam para secar, tiravam um pozinho e, daquele pozinho, eles faziam a cera. Eles faziam uns bolãozinhos de cera. Quando não tinha farinha em casa, não tinha o feijão, meu pai dizia: “Eu vou já vender esse pedacinho de cera”. Vinha aqui pra rua e tinha um senhor, o seu Ataliba, que comprava isso. Ele trocava por farinha. Aí ele chegava: “Está aqui, mulher, troquei um pedaço de cera pela farinha, pelo açúcar”. E esses homens faziam isso o dia todinho e quando chegava no final da tarde, do jeito que eles estavam, todos sujos, com aquelas roupas grandes que protegiam do sol, chapéu meio quebrado, rasgado, eles pegavam um pedaço de tecido de blusa de meia, faziam o olho, a boca e o nariz, colocavam... (corte) Entregavam alguma coisa, pegavam uma cuia de farinha, como eles diziam. Entregavam o feijão que eles armazenavam - passavam muito tempo com o feijão armazenado, o arroz, e entregava para eles levarem para casa. Quanto mais feio o papa-angu melhor pra brincadeira, porque eles eram passavam o dia suados, cansados, mas à noite eles iam se divertir - pegavam o boi e saíam. Eles andavam três, quatro quilômetros levando o boi até chegar numa localidade. Brincavam, passaram por outra localidade e assim passavam o tempo todo nas andanças, até o dia amanhecer, muitas vezes.

P/1 – Como fica essa tradição com os jovens, essa nova geração da cidade? Eles estão olhando pra isso?

R – Lá na Lagoa Nova está parado por 30 anos e sábado vai recomeçar. Olha como isso é interessante: 30 anos e só vai recomeçar. Tem pessoas lá que nunca viram o boi; tem criancinhas que vão vê-lo pela primeira vez no sábado. Eu acho que temos que fazer esse trabalho. Quando o reisado sai ele arrasta multidões. O pessoal vai ver. Muitos deles não entendem o que está acontecendo, fazem alguns comentários, mas acompanham. Eu acho bacana. O que está faltando é investir nessa área da cultura popular. Investir, explicar. Não é só dar o conceito e explicar porque ela existe, qual a origem dela e vivenciar com o público. Às vezes, só apresentando, tendo a prática sem ter o conceito acaba não convencendo, acaba não encantando ninguém: “Eu sei o que é isso aí. Eu vou também colaborar, eu vou entrar, achei bacana”. Porque aparece de uma vez na rua e, buf! “O que é isso?”. Há sete anos que realizamos a Festa de Reis, que é no dia 06 de janeiro, quando todos os reisados se manifestam no Estado do Ceará e na região Nordeste. Eu trouxe pra cá e fizemos o Dia de Reis. Esse dia é esperado por muita gente em São Gonçalo. Chamamos o grupo de reisado e entra toda a população aqui de São Gonçalo para assistir. Mas aí fica uma questão pontual: tem que sistematizar mesmo e dar a oportunidade para que eles conheçam mais. E, com essa iniciativa, na Lagoa Nova, ela vai permanecer em agosto e vai continuar em dezembro. Voltamos e levamos para todo São Gonçalo. Como eu posso querer que todos entendam essa linguagem se eles não veem a linguagem acontecer? Esse movimento precisa ser forte. Não é um fenômeno, é natural, do que está acontecendo no planeta, como um todo. Essas outras oportunidades e esquecendo a que está aqui no chão, no nosso chão, o chão da nossa terra, na nossa casa. Tem que começar com iniciativa assim. A Lagoa Nova vai ter oportunidade agora.

P/1 – Queria saber um pouco como é a chegada do complexo industrial na cidade. Como foi ouvir sobre isso? Você se lembra como começou a chegar essas coisas e pessoas de outros lugares por causa do complexo? Conta um pouco como foi esse processo para a cidade.

R – Esperávamos que viesse de uma forma mais lenta, mais gradativa, só que ele chegou rápido - eu acho que ele chegou rápido. Quando comecei a ver o progresso na porta de casa. Você começa a ver o desenvolvimento, as pessoas entrando, as pessoas chegando em São Gonçalo, os olhinhos puxados em tudo quanto é canto, tanto crianças pequenininhas já nascendo com olhinho puxado. Em cinco anos muita gente passou por essa cidade e deixou aqui a sua marca. Se foi positivo ou negativo, isso está na vida de cada um, com quem vivenciou. O que eu percebo é que as pessoas de São Gonçalo só precisam entender mais como é que tudo acontece, como é que esse fenômeno está acontecendo, e que temos uma estrutura pequena para receber tanta gente. Eu acredito que daqui cinco anos vamos ter uma população triplicada em São Gonçalo. Dos 47 mil habitantes de hoje, daqui cinco anos vamos pensar em 100, 115 mil habitantes. Disso eu não tenho dúvida. Há modificações para o bem e há modificações que têm afetado outras áreas, tipo a exploração sexual, a violência. Antigamente se tinha mais sossego, mas hoje temos mais cuidado, porque aqui está muito agitado. Tem que ter mais cuidado em São Gonçalo do Amarante. Uma coisa interessante é que as pessoas tem oportunidade de emprego, de capacitação, de cursos que nós não tínhamos antes. Hoje, nós temos condições de realizar algumas coisas que antes não tínhamos. Por exemplo, equipamentos culturais nós não temos ainda, mas com as oportunidades que essas empresas estão vindo para São Gonçalo e um governo que cada vez mais, não só esse, mas os que vierem pra frente têm que ter é de estar junto, construindo equipamentos culturais para São Gonçalo. Porque nós estamos atrasados mil anos luz nesses equipamentos culturais. Isso aí eu não tenho dúvida. Mas o desenvolvimento é fantástico, é necessário para qualquer cidade, eu não tenho dúvida. Hoje, a siderúrgica abre portas para muita gente no ramo da economia, no ramo do desenvolvimento humano. Ela também tem dado oportunidade para o ramo da cultura. Se pensa muito em desenvolvimento cultural. Quando eu tenho jovens que estão querendo estudar música, que estão desenvolvendo uma prática de dança, do artesanato, é porque sabem que aqui em São Gonçalo se pode produzir e ganhar mais do que antes.Isso é um ganho para São Gonçalo. Eu percebo mais gente em São Gonçalo, muita gente que não se conhece ainda. É por isso que os movimentos sociais e organizados são fundamentais. Pessoas que chegam aqui com interesses econômicos gigantescos, que vêm porque querem morar, querem transformar a sua vida em algo melhor, que estão vindo e se aproximando de São Gonçalo. Falta estrutura para essas pessoas ainda, mas é algo que, com o tempo, vai se estruturando, vai se organizando.

P/1 – E os moradores mais antigos, como eles estão recebendo isso? O que o são gonçalense está falando por aí? Será que eles estão gostando? O que você sente conversando com os seus amigos? Como o pessoal está vendo essas mudanças?

R – Eu acho ainda que as pessoas estão sentindo que está diferente, elas sentem muito isso: está diferente. Mas não percebem o reflexo disso. São Gonçalo tem gente de todo lado, mas eu continuo no meu quadrado, na minha vidinha rotineira de sempre; continuo dormindo até três horas da tarde, fechando meu comércio para dormir depois do almoço. O progresso está grande, mas eu não consegui acordar para essa mudança. É por aí. Continua gente sentada nas calçadas? Continua. Elas estão sentadas nas calçadas, estão se reunindo, estão conversando, mas o que eu percebo é que está faltando mais divulgação sobre esse desenvolvimento - uma divulgação para alcançar mais gente para se reunir e discutir isso.

P/1 – O que você imagina que vai acontecer com a cidade daqui 20 anos?

R – Eu imagino uma cidade de grande porte. Uma cidade que dá oportunidade às pessoas irem para o cinema, a um teatro, a um museu. Que em cada família encontremos jovens, tanto capacitados como trabalhando de uma forma feliz e desenvolvendo suas habilidades, seus potenciais dentro das empresas. Eu percebo São Gonçalo daqui a 20 anos uma cidade mais organizada, com políticas públicas para todas as áreas: Saúde, Educação, Lazer, Cultura. A cidade de São Gonçalo passe a ser uma cidade de referência. Ela já é, mas que ela seja referência pelo desenvolvimento das pessoas, pela satisfação de ser morador de São Gonçalo: “Eu sou morador de São Gonçalo, estou feliz por estar aqui. Hoje, estou plenamente desenvolvida”.

P/1 – Tinha muita gente que ia para Fortaleza atrás de trabalho...

R – Sim.

P/1 – Hoje não...

R – Hoje não. As pessoas estão vindo de Fortaleza para morar em São Gonçalo.

P/1 – Teve um período que aconteceu muito isso?

R – Sim.

P/1 – Seus amigos de escola, por exemplo, a maioria foi embora?

R – Foram. E não se orgulhavam de São Gonçalo: “Não gosto de São Gonçalo. Aqui não tem perspectiva, aqui não tem oportunidade. Vou embora”. Hoje os jovens não pensam mais assim: “Eu vou ficar aqui, que é o meu lugar. Não preciso ter uma faculdade, anel de doutor. Eu preciso ter um curso técnico. Com isso eu consigo ter grandes chances aqui em São Gonçalo do Amarante”. Então, acho que estamos galgando um caminho bom, mesmo sabendo que ainda muita coisa precisa melhorar no nosso município. E que a siderúrgica, a CSP, quando ela se aproximar das pessoas, que além dessas oportunidades, que ela venha oferecer cada vez mais condições de avanços nas outras áreas, como Saúde, Educação, Cultura. Eu sempre digo: a cultura é a cereja do bolo. A cereja do bolo é aquela que ninguém vê, mas quando você tira ela faz a diferença. Ninguém vê, mas quando você tira você faz a diferença. Então, pensar São Gonçalo economicamente e culturalmente bem. Vamos ver se conseguimos fazer isso juntos (risos).

P/1 – O que lhe fez pensar esse trabalho, essa conversa que nós tivemos aqui?

R – Foi muito importante fazer esse exercício hoje. Devido a minha correria, a minha loucura, ao meu ativismo, ter que parar e pensar um pouquinho. Até que meus pensamentos, hoje eu observo, não estão muito alinhados. Eu observo que eles estão meio turbulentos, desajustados. Eu acho que falta essa prática, essa oportunidade que vocês estão me dando, para que eu possa refletir isso com mais calma, com mais tempo. A cabeça agitada como está, porque esse trabalho que eu estou envolvida não é fácil, ele é meio louco. E tem que ser louca para assumir um negócio desses. Hoje eu me avalio, eu acho que falta eu alinhar mais o meu pensamento. E a minha história de vida, ela precisa estar registrada. O que se fala, vai soltando, não vai legitimar nada. Agora, a partir do momento que eu registrar a minha história de vida, me deu uma vontade imensa de tentar parar hoje e escrever alguma coisa. Escrever e pensar com mais calma: “Quem sou eu? O que eu estou fazendo aqui? Quem são minhas raízes? O que eu pretendo futuramente? Quais são minhas metas a longo, médio e curto prazo?”. Eu não pensava antes, mas já estou pensando depois dessa conversa, dessa oportunidade que vocês estão me dando. Então, realmente, para a minha unanimidade interna, foi um exercício não tão fácil devido eu não estar alinhada ainda. Tanto que quando eu conversava contigo logo no início eu disse: “Meu Deus, por onde eu vou começar? Eu acho que eu vou me perder toda na história” (risos). E ele me deixou falar. Posso até me perder - deixei um pouquinho. Quero dizer que somos um tesouro, temos muita coisa para socializar. O ser humano é complexo, é dinâmico. Eu acho que se conseguirmos juntar um pouquinho dali, fazendo uns cortes acolá, sai um pouquinho da Vênus, do que é Maria Vênus de Andrade Cunha, nesse São Gonçalo do Amarante (risos), que é apaixonada por essa terra - sou apaixonada pelo meu São Gonçalo, e corre na veia o sangue da cultura, essa cultura que tem a ver com a minha raiz lá do início. Então é isso. Muito obrigada.

P/1 – Obrigado. Em nome do projeto, da CSP e do Museu da Pessoa, muito obrigado pela sua entrevista!