Museu da Pessoa

Em nome da mãe

autoria: Museu da Pessoa personagem: Silvio Marcelo dos Santos Silva

Projeto Mestres do Brasil - Suas memórias, saberes e histórias
Depoimento de Silvio Marcelo dos Santos Silva
Entrevistado por Winny Choe e Douglas Tomás
Rio de Janeiro, 18/09/2008.
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista: OFMB_HV011
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Fernanda Regina

P/1 – Silvio, pra gente começar eu queria que você falasse o seu nome completo a cidade e a data de nascimento?

R – Silvio Marcelo dos Santos Silva, a cidade é Rio de Janeiro, a idade é 44 anos.

P/1 – Mas qual é a data?

R – 01 de março de 1964.

P/1 – Qual é o nome dos seus pais?

R – Ivo Pereira da Silva e Rosária dos Santos Silva.

P/1 – Você tem irmãos?

R – Cinco. Ana Lúcia Silva Moreira, o nome de casada, José Tadeu dos Santos Silva, Maria de Fátima dos Santos Silva, Maria Lúcia dos Santos Silva e Luís Cláudio dos Santos Silva.

P/1 – E o que seus pais fazem?

R – Bom, faziam. Ambos são falecidos, o meu pai era bombeiro hidráulico, trabalhava com toda essa parte de hidráulica e minha mãe era doméstica que cuidou dos filhos durante um bom tempo e depois, em função das circunstâncias, o marido se afastou de casa, foi ter outra vida. Ela voltou a trabalhar, trabalhava quando era solteira em casa de família aí voltou a trabalhar depois de muito tempo em casa de família.

P/1 – E vocês cresceram onde?

R – Aqui no Rio de Janeiro mesmo em Jacarepaguá, nós somos de Jacarepaguá, eu cresci num dos bairros que é a Taquara e depois ainda no início da adolescência eu me mudei para o bairro de Coricica onde resido até hoje.

P/1 – E nesse primeiro bairro que você morou em Jacarepaguá você lembra como era a sua casa?

R – Lembro. Era uma casa simples, tinham três quartos e a casa foi construída pelo meu avô que tinha uma série de habilidades e uma delas... Ele era carpinteiro, então ele construiu a casa, nós morávamos lá eu, minha mãe, meus irmãos com os meus avós, tinha um quintal enorme com bastantes árvores, plantas, árvores frutíferas inclusive e isso pra quem é criança e no início da adolescência é um prato cheio. Porque a gente corria de um lado pra outro, subia nas árvores para pegar frutas. Então a casa de uma família pobre, mas com um contato muito grande com a natureza e um relacionamento social muito legal com os vizinhos, com os parentes. A gente teve uma infância muito legal.

P/1 – Então tinha muitos amigos ali por perto?

R – Tinha muitos amigos na mesma faixa etária da gente, alguns um pouco mais velhos que não só brincavam no quintal, mas também eventualmente em situações como, por exemplo, período de Cosme e Damião saiam pra buscar doce. Tinha um sítio mais distante e íamos buscar frutas, manga, jabuticaba. Era uma infância e início de adolescência muito ricos em termos de relacionamento com os amigos e como eu tinha muitos primos, a família da minha tia morava bem próxima, então a gente estava sempre junto e participando de uma série de atividades.

P/1 – Então como é que era? Na rua vocês se encontravam com todo mundo? Como é que eram as ruas lá perto da sua casa?

R – As ruas eram relativamente curtas, não tão estreitas, asfaltadas, algumas eram caminhos mais secundários, não eram asfaltadas, mas de um modo geral eram muito próximas. Eu tinha duas tias que moravam próximas da casa da minha mãe e elas tinham muitos filhos, então a gente estava sempre um na casa do outro inventando, programando as brincadeiras, correndo daqui pra ali. Também estudávamos nas mesmas escolas, no primeiro momento na escola primária e depois no ensino ginasial, então a rotina da gente era de estar sempre muito próximo, inclusive nas festas, nos acontecimentos, aniversário de um, batizado de outro, então estávamos sempre convivendo junto.

P/1 – E as brincadeiras? Conta um pouco mais?

R – Eram brincadeiras de crianças que eram pobres e não tinham recursos para comprar brinquedos, então a gente inventava as nossas brincadeiras. Eu me lembro que as mais legais além de pique – e era uma variedade – era pique em cima da árvore, pique esconde – era brincar de bandeirinha, que você botava um galho de árvore e aí dividia um espaço, ficava um grupo de um lado, de outro e tentava roubar a bandeirinha e ultrapassar a linha sem ser tocado. Bola de gude, rodar pião, pipa, a gente inclusive fazia as próprias pipas, bem diferente de hoje que é tudo industrializado. Aprendemos a fazer os nossos próprios brinquedos, inclusive quando a gente era mais novo, ainda na faixa dos seis aos dez anos, brincava muito com carrinhos que hoje em dia quase não se vê mais. Eu pelo menos já não vejo há muito tempo, eram carrinhos com latas de leite em pó que depois de vazias a gente enchia com areia, furava a tampa e o fundo da lata, passava um arame e ia colocando uma junto com a outra e depois puxava aquilo ali pela rua, fazia um barulho tremendo. Uma coisa também muito interessante em termos de brincadeira que a gente fazia era rodar pneu, pegava pneu de bicicleta e fazia um arco com uma haste, um arco na ponta de vergalhão pra conduzir o pneu. Então dava o primeiro toque e depois a brincadeira era equilibrar aquilo ali por muito mais tempo do que o esperado e por uma distância bem maior, quem conseguisse percorrer uma distância bem maior ganhava. Essas brincadeiras tomavam tempo, a gente se esquecia do mundo, esquecia da vida, só nos lembrávamos das coisas quando geralmente escutávamos no final do dia um grito: “Entra pra tomar banho!”. Essas coisas todas eram muito divertidas e faziam com que a gente realmente perdesse a noção do tempo.

P/1 – Você se lembra de uma dessas aventuras? Com essas brincadeiras todas, seus amigos?

R – Lembro de uma aventura que não foi nem tão brincadeira, mas que me marcou pra caramba, quando a gente foi pegar jabuticaba num sítio que tinha perto da nossa casa, mas não tinha autorização pra pegar, moleque ainda e a gente foi assim mesmo. Só que o sítio era cercado com arame farpado e tinha lá um vigia, uma espécie de responsável pelo sítio que tomava conta dos cachorros. Entramos, começamos a pegar jabuticaba e ficava sempre um de olho só que esse que estava de olho se entusiasmou, começou também a pegar, esqueceu que tinha que vigiar e quando a gente percebeu os cachorros já estavam quase que em cima da gente e foi correr para um lado e correr para outro e a gente mergulhou pela cerca de arame farpado rasgando roupa, se arranhando todo. E aí essa coisa nos marcou durante um bom tempo e ficava sempre a dúvida: “Vamos voltar lá para pegar jabuticaba?” “E o cachorro?” “O cachorro a gente deixa pra lá.” A gente levou um tempão pra voltar, isso foi uma passagem bastante interessante da nossa infância. Outra coisa era quando na época que ainda havia um romantismo no sentido de soltar balões, achávamos muito legal, não só soltar balões, mas correr atrás deles. Eu era muito pequeno e meu irmão mais velho soltava balão, aí ficávamos acordados às vezes até de madrugada para pegar os balões, só que numa área próxima tinha um pântano, um lugar alagadiço e fomos correr para pegar balão. E um do nosso grupo caiu numa vala. E a gente está correndo e: “Cadê Fulano?” Ele gritando dentro da vala gritando: “Eu estou aqui, estou aqui!” A gente deixou o balão para um lado e pro outro e fomos resgatá-lo de madrugada, isso foi um pandemônio até porque depois que a gente chegou em casa a bronca foi séria, ficamos um bom tempo sem sair de casa. O castigo era não sair de casa, a coisa pior que tem pra moleque é não poder sair de casa pra encontrar com os amigos para poder brincar ainda mais em áreas que tem terrenos bastante amplos.

P/2 – Mas vocês tinham histórias em relação a esse pântano? Existiam algumas lendas em torno disso ou não?

R – Lendas não, mas a gente na realidade ficava com medo do que de fato provavelmente existia que eram cobras, essas coisas assim. Então se dizia sempre: “Olha, cuidado pra não chegar ali naquela área e de repente vocês serem picados por cobras”. A gente desafiava tudo. Então tinha uma época quando geralmente era o período de outono pra inverno que chovia bastante essa área ficava alagada e tinha bastante rã. Esse anfíbio, que naquela época se comia e hoje também é até uma iguaria bem buscada por aí nos mercados, naquela época a gente pegava. Só que você ia entrando pelo pântano, tinha algumas áreas mais profundas e você não dava conta, você entrava e ficava naquela, ansiedade de pegar a rã, aí quando você pegava tudo bem, mas na hora de sair pisava e caía ali dentro, mas a rã ficava na mão lá em cima e você ficava segurando, porque aquilo era uma espécie de troféu. E a gente levava pra casa e depois fazia, fritava, era muito legal, mas o perigo existia sempre de ter cobras ali e às vezes alguém era assustado por uma, não chegava a ser mordido e nem picado, mas o medo sempre existia. Agora em termos de lendas aconteceu justamente numa outra área que era um morro bastante elevado por sinal, uma mata fechada e se dizia que lá tinha saci e eu era muito moleque, sete ou oito anos, que tinha mula sem cabeça e essas histórias eram alimentadas pelos nossos avós que falavam: “Olha, determinado lugar não pode ir porque a partir de determinada hora da noite coisas estranhas acontecem”. Então a gente ia, mas ao som do primeiro barulho um corria pra cada lado e depois ficava assim: “Você ouviu?”. “Você viu alguma coisa?”. “Não, ver eu não vi, mas ouvir, que eu ouvi, eu ouvi!”. “Ouviu o quê?” “Sei lá, parecia um arrastado de pés pelo mato”. Então isso ficava no nosso imaginário como se de fato ali existisse alguma coisa. A gente vai crescendo e vai desmistificando tudo, mas era bem legal. Outra coisa, uma situação bem interessante era quando a gente ia caçar passarinho num terreno da sede da fazenda do Barão da Taquara, terreno porque depois ficou muito limitada, a fazenda, depois de um determinado período, começou a ser loteada e a área restrita onde ficava mesmo a casa grande ainda tinha um terreno considerável e tinha muitas árvores e muitos passarinhos. E a gente ia caçar lá, eu e os outros colegas, só que a gente tinha uma regra: quando davam cinco horas da tarde tinha que sair de lá. Por quê? Porque se dizia que arrastavam correntes e que tinham uns espíritos dos escravos que arrastavam as correntes. Eu nunca ouvi, mas com certeza a gente ficava bastante assustado porque quando dava cinco horas todo mundo queria sair de lá o mais rápido possível. Agora tinha uns que diziam que ouviam e não havia quem tirasse da cabeça deles que não tinham ouvido, tanto é que com o passar do tempo essas histórias continuaram rolando mesmo depois do processo de urbanização ter acontecido de forma acelerada em Jacarepaguá, muitas pessoas se recusavam a passar próximo daquela casa, do casarão, porque achavam que poderiam sim ter correntes arrastando, escravos, espíritos de escravos pra lá e pra cá. Isso assustava bastante a gente, era o imaginário que ao mesmo tempo atraía e provocava temor porque era um medo do desconhecido alimentado pelas histórias dos mais velhos. Então isso na nossa infância foi muito frequente e foi muito legal também. Diga-se de passagem, hoje em dia a gente tem até histórias para contar pros sobrinhos, pros netos e essas coisas todas, embora eu ainda não tenha netos.

P/1 – Silvio, como é que era um dia-a-dia seu na infância? O pessoal ia lá te chamar para brincar ou vocês se encontravam em algum lugar?

R – A gente tinha alguns horários, não muito definidos, mas a regra era o horário da escola que era sagrado, então no período que eu estudava de manhã, a gente acordava muito cedo e ia pra escola, não podia faltar de jeito nenhum. Depois a gente almoçava, aí tinha a tarde livre, mas a regra era: deu seis horas da tarde tinha que estar em casa. Mas a gente desobedecia a essa regra com muita frequência, então dava seis, sete, oito, nove e aí o irmão mais velho ou a mãe mesmo mandava alguém ir procurar a gente. Só que nem sempre a gente estava no lugar onde dizia que ia estar, aí começava a brincar de pique e ia pro outro lado se escondia e os horários não eram muito definidos não. Quando eu passei a estudar à tarde a coisa ficou mais complicada ainda, durante algum tempo eu estudei à tarde e os meus colegas estudavam de manhã. Então a possibilidade de brincar era só à noite, logo os horários eram ultrapassados com muita frequência, às vezes era dez ou 11 horas da noite e a gente estava lá brincando, jogando bola de gude, muitas vezes jogando bola de gude à luz de velas. A gente arranjava uns “cotoquinhos" de vela pra jogar bola de gude, para poder enxergar a bola de gude, porque o quintal era extenso, não tinha iluminação na parte externa e a gente tinha que inventar. “Vamos jogar bola de gude?”. “Como vamos fazer?”. Aí íamos lá pegávamos a vela para iluminar, a mesma que a gente usava às vezes para assustar os outros, de que maneira? Pegava mamão ainda verde, abria a parte inferior dele, fazia uma espécie de caveira com olhos, nariz, boca e botávamos palitinhos de fósforo como se fosse a boca e botava uma velinha ali dentro, e aí botava ou no capim ou então em cima de uma árvore. As pessoas, que eram muito medrosas, olhando aquilo à distância e tomavam um susto, principalmente os nossos próprios colegas que eram medrosos demais, então a gente colocava aquilo em cima da árvore, acendia e apagava a vela e a pessoa ficava com medo: “Que negócio é esse”? Quando ia se aproximando a gente apagava, quando se afastava a gente acendia a vela, aí ele ia pra trás e tomava um susto e ia embora, era uma brincadeira muito legal e às vezes a gente até se assustava com a própria brincadeira porque depois ao chegar em casa dormia e sonhava com aquilo que tinha feito. Como se tivesse acontecendo com a gente mesmo, então éramos vitimas da própria brincadeira, mesmo que fosse através de sonhos. Era muito legal isso, agora os horários não eram muito certinhos não porque a gente tinha bastante liberdade em termos de brincar, sabendo que o compromisso com a escola era sagrado e esse tinha que ser respeitado, não tinha jeito.

P/1 – E as festas que você comentou? Tinha muita festa na sua família? Tem alguma que você lembra mais?

R – As festas... Como o terreno era grande e da minha tia que morava mais próximo da gente também era, as festas de datas marcantes como São João, juninas e “julhinas” eram as que congregavam praticamente a família inteira. Então a gente preparava durante três ou quatro dias com fogueira, balão, botava batata doce pra assar, aipim na fogueira e tinha aquela coisa de realmente pular fogueira, era uma coisa bem provinciana mesmo, mas em plena cidade do Rio de Janeiro na zona oeste, porque Jacarepaguá é zona oeste, a gente conseguia manter essas coisas, era muito fruto da infância dos nossos pais e dos nossos avós. Essas festas coletivas eram bem marcantes, agora as festas de Natal, Ano Novo também a gente passava junto, mas a gente tinha muito a coisa de ir um na casa do outro, aproveitando o momento para visitar, comia alguma coisa, brincava, ficava circundando todo o terreno do meu tio, porque com o passar do tempo ele passou a construir algumas casas e alugar. Então os inquilinos acabavam se misturando ao convívio e a gente brincava muito com eles também. Eram situações de comemoração que eram marcantes e aconteciam todo ano e que pra gente forjou bastante a nossa infância. A gente cresceu com uma alma meio que provinciana. Em plena cidade do Rio de Janeiro você cultivar essas coisas da festa junina, de São Cosme e São Damião, a gente todo dia 27 de setembro – agora está próximo, na próxima semana vai ser a data comemorativa – saía de manhã cedo pra pegar doce e as famílias preparavam lá os saquinhos de doce. A gente andava três, quarto, cinco, seis quilômetros indo de casa em casa que estava dando doce e tinha aquela fila, a gente enfrentava a fila e às vezes à noite tinham casas que tinham uma espécie de centro de mesa que na realidade era uma manifestação religiosa muito voltada pras festas de umbanda, às vezes de candomblé que eles ofereciam também esses doces, só que a gente chamava de doce de mesa, porque eram colocados os bolos, manjares e eles chamavam as crianças e dividiam. Aquilo era uma farra pra gente, a gente adorava, tanto é que às vezes não almoçava, não tomava café da manhã e até nem jantava porque enchia a barriga de doce e depois tinha que cuidar da verminose, porque era um problema sério, muito sério mesmo. Era problemática essa situação porque a gente ingeria muito doce num curto espaço de tempo. E aquela coisa de você não ter uma preocupação constante com a saúde e às vezes exagerava e depois vinham as consequências. Mas esse período era bastante rico em termos de situações que a gente estava convivendo, comemorando alguma coisa. Isso até os 13 ou 14 anos foi muito comum.

P/1 – Me conta uma coisa, você falou muito de doces e verminoses, quem cozinhava na sua casa?

R – Minha mãe era uma cozinheira de mão cheia, sabia tanto fazer pratos salgados como doces, doces caseiros, de abóbora, mamão, coco, laranja da terra, uma delícia! Esse era o que eu menos gostava, mas eu comia por causa da calda, porque era muito gostosa. Ela fazia isso com uma maestria, uma facilidade enorme. E também os pratos salgados, ela sempre foi muito boa cozinheira tanto pra fazer os pratos mais simples e às vezes alguma coisa que até exigisse um pouquinho mais de conhecimento em termos de tempero, essas coisas ela fazia muito bem. E as minhas irmãs herdaram isso dela, então eu tenho por parte de mãe uma família de cozinheiras tanto de pratos salgados como pratos doces, fazem salgadinhos até hoje, pães caseiros, recheados ou não e mesmo as comidas ditas tradicionais como feijoada, cozido. Elas fazem também e em grande quantidade, porque a família sendo grande, então esses dias especiais se transformam realmente num evento porque não só a quantidade de comida feita era muito grande e como também a família sendo muito grande, então a gente aproveitava esse espaço pra comer muito, mas também pra conversar muito, trocar ideia e essas coisas todas tudo herdado da minha mãe que por sua vez herdou da mãe dela. Então essa parte de afinidade com a culinária veio pela raiz materna da família.

P/1 – E você herdou?

R - Herdei, eu sei me virar na cozinha, se você falar pra mim assim: “Você sabe fazer feijão?”. Sei. “Você sabe fazer arroz?” Sei. “Mas não passa disso?”. Passa, eu sei fazer um frango, bife, sei fazer café, tem gente que se enrola pra fazer, coloca água sem ter pó, de repente bota água demais ou pó demais e o café fica muito forte ou muito fraco. O trivial eu sei fazer, então se tivesse que de repente viver sozinho e cuidar da minha alimentação, eu não digo pra você que faria pratos muito sofisticados, agora o trivial eu saberia fazer com certeza.

P/1 – Você se lembra do que você gostava de comer quando pequeno?

R – Lembro. Tinha uma coisa que eu adorava que a minha mãe sabia fazer muito bem que era galinha assada, mas não no forno, era aquele frango ou galinha mesmo que ela cortava em partes e colocava na panela com tempero pra refogar depois deixava cozinhar, ia dourando aos poucos e pra garantir que ficasse bem douradinho, ela colocava quase sempre um pouquinho de açúcar. Era uma delícia, era fantástico. Geralmente o dia de domingo era o dia mais esperado por conta, entre outras coisas, do prato que era esse tipo de galinha refogada, mas com ar de galinha assada e ficava muito bom.

P/1 – E a sua avó e o seu avô, o que eles faziam?

R – A minha avó era dona de casa e o meu avô era carpinteiro, como eu falei, ele trabalhava com carpintaria, construiu a nossa casa que era na realidade a casa dele que depois passou a ser da minha mãe. E durante um bom tempo o meu avô tinha um terreno na parte mais rural de Jacarepaguá que até hoje tem... Inclusive até hoje é uma reserva ambiental que é a Reserva do Pau da Fome, inclusive tem lá uma fonte de água que abastece boa parte de Jacarepaguá. Ele tinha um terreno relativamente grande, era uma espécie de roceiro, plantava o que comia, prestava serviço pros outros de carpintaria, às vezes fazia biscate de pedreiro ou alguma coisa do gênero e a minha avó ficava em casa preparando a comida, cuidando dos filhos. Eles sempre foram muito trabalhadores num período que quase não existia qualificações profissionais em função até de uma época que o Brasil estava iniciando seu processo de industrialização, eles viviam muito mais do que... Plantavam e os trabalhos eram trabalhos às vezes informais, mas que dava para garantir o sustento da família modesto, mas tranquilo.

P/1 – E quando é que você começou a ir pra escola?

R – Bom, eu fui pra escola já alfabetizado pela minha irmã que fez o curso de formação de professor e me alfabetizou antes de eu ir pra escola. Então quando eu fui aos seis anos pra escola eu já sabia ler e escrever, eu entrei na escola e pra minha infelicidade aos iria para a segunda série, mas teve uma reforma no ensino com a Lei 5692, é a Lei de 1971, acho que é a 5692 se não me falhe a memória em que eu tive que voltar um ano. Porque criaram a classe de alfabetização, eu já sabia ler, eu tive que voltar e fiquei preso numa série sabendo ler e escrever, porque eles não poderiam me promover porque o ensino passou a ser oficializado em termos de ensino primário dos sete aos 14 anos já incluindo também o início do ginásio que a gente tinha na época e primeiro grau com essa lei. Então eu antes de completar sete anos, eu já ia pra segunda série, aí quando eu completei sete anos eu tive que voltar, porque houve a reforma no ensino. Isso de certa forma me deixou meio chateado, porque eu fiquei retido numa série que eu estava fazendo as mesmas coisas que eu já tinha feito na série anterior.

P/1 – E você lembra como que foi quando você começou a frequentar a escola? Porque é muita gente...

R – A escola municipal na época, ela tinha um número razoável de alunos em sala, não era a mesma coisa que é hoje. Hoje a gente considera que há um excesso de alunos por turma e isso prejudica principalmente no meu caso, porque sou professor, eu sou vitima disso: salas de aula com 40, 42, 44 alunos e naquela época em geral era de 34 e no máximo 36 alunos. O processo de ensino e aprendizagem... A gente não tinha muitos recursos didáticos, mas dava pra acompanhar, as dificuldades que existiam eram geralmente dificuldades materiais, no meu caso de família pobre quase não tinha dinheiro para comprar os livros. Então a gente vivia a expectativa de obter os livros através da caixa escolar que era uma espécie de fundo de reserva que a escola tinha pra comprar livros e outros materiais para os alunos que não podiam comprar pela família. A gente vivia essa ansiedade às vezes não ter o material adequado e nem de longe naquela época a gente conseguia outros recursos como Xerox hoje em dia, não, nada disso. Então a gente vivia essa dificuldade, agora de um modo geral dentro da sala de aula com professores dedicados e também a situação da remuneração do professor era outra, professores igualmente motivados em razão de não sofrerem tantas dificuldades em termos de salário, em termos de condições, ou infraestrutura da escola, então dava pra gente caminhar direitinho. Eu não tive muitas dificuldades nesses primeiros anos de ensino não, eu fui relativamente bem.

P/1 – Você gostava da escola? Você fez amigos lá?

R – Sim, com certeza, além dos parentes e vizinhos os melhores amigos eu tive na escola não tanto no período primário, mas foram bons amigos que eu cultivei a amizade com eles durante um bom tempo. Eram inclusive solidários porque às vezes quando faltava material a gente conseguia com eles e tinham um sentido de companheirismo na hora de fazer as atividades, era muito grande não se vivia tanto uma situação tão individualista como tem hoje. Esses amigos de um modo geral, alguns até com uma situação econômica financeira melhor do que a minha, bem melhor que a minha, então quando a gente tinha que fazer um trabalho, eles ofereciam as casas deles, porque as mães falavam que não tinha problema e a gente ia pra lá lanchava e essas coisas todas, sempre com uma espontaneidade muito grande. Fiz bons amigos, mas que infelizmente foram se perdendo, porque eu mudei de escola depois, vários deles se mudaram também de casa e foram para outros bairros, mas foram momentos em termos de amizade muito bons.

P/1 – Você se lembra dessa primeira fase aí que você entrou na escola antes de mudar, alguma coisa que gostasse mais assim, alguma matéria ou o intervalo? Ou uma aula?

R – Bom, pelo menos em termos de matéria, de disciplina que eu gostava bastante é a que eu acabei criando afinidade depois que era Estudo Sociais, que na época me chamava bastante a atenção, me atraía e talvez tenha sido por isso até de forma inconsciente que acabei enveredando pelo caminho da História. Mas nos intervalos eram legais as brincadeiras que fazíamos no espaço da escola, a gente tinha uma brincadeira que era ao mesmo tempo muito legal, fantástica mesmo porque divertia bastante quanto perigosa, a gente brincava de pique, mas só que em cima do muro da escola. Então a regra era se você for tocado por alguém, vai ter que descer e depois correr atrás dos outros em cima do muro e à medida que correr e cair, passa a ser o que vai tentar tocar os outros. A escola tinha um muro muito grande e alto em determinadas partes, o que era desafiador porque chegava a dois metros e meio e a gente ficava lá em cima se equilibrando e a largura do muro não era tanta assim, era relativamente estreito e a gente tinha que virar. A habilidade de garoto nessa hora contava muito e com muita frequência a gente ultrapassava o horário do intervalo porque se você descesse tinha que pegar o outro, então esperava o que estava pegando desistir pra acabar com a brincadeira e era muito legal isso.

P/2 – Silvio na sua casa você tinha algum tipo de incentivo, ajuda pra estudar, pra fazer os exercícios com os seus pais, como é que era isso? Ou o seu pai ou sua mãe tinha interesse por livros, embora você tenha comentado que tivesse uma condição difícil, mas ainda assim havia algum interesse?

R – Meu pai deixou a família e saiu de casa quando eu tinha três anos de idade, então a vivência que eu tive com o meu pai foi nenhuma, a lembrança dele inclusive dessa tenra infância aí é zero, eu não consigo memorizar a figura dele só através de fotos mesmo. Agora minha mãe ela estudou só até a terceira série primária, mas era uma pessoa que gostava muito de ler e lia bastante jornal, alguns poucos livros que se tinha em casa, mas ela gostava de ler e ela incentivava bastante por sinal. Como eu tinha uma irmã que estava fazendo curso de formação de professor e depois teve que interromper o curso de dia, porque ela teve que começar a trabalhar ela além de alfabetizar a gente, incentivava muito a leitura. Então apesar de ser uma casa com poucos livros houve o gosto pela leitura pelo menos da minha parte e de parte dos meus irmãos porque vários deles começaram a trabalhar muito cedo e aí o contato com o trabalho, o desgaste, a necessidade de trabalhar fez com que se afastassem um pouco dos livros. Mas pelo menos por essa irmã que fez o curso de formação de professor e gostava muito de ler, aliás, gosta até hoje e por incentivo da minha mãe o hábito da leitura sempre teve presente na minha vida. E eu lia de tudo, uma frase que eu uso hoje em dia com meus alunos é que é a pura verdade, embora eles acreditem que não. Eu falo assim: “Eu lia tudo e vocês devem ler tudo desde papel de bala até a Bíblia, mas que leiam, ler é fundamental”. Eu fazia isso por incrível que pareça pegava às vezes um papelzinho da bala e ficava lendo fosse pra desafiar a minha capacidade de visão daquelas letrinhas minúsculas ou fosse para saber do que aquela bala era feita, quais eram os outros sabores que poderiam existir daquela bala ou quem era o fabricante. E aí à medida que eu fui crescendo, e ainda jovem com nove anos, dez anos o gosto da leitura por revista em quadrinhos, as famosas revistas em quadrinhos, elas me atraíam bastante, primeiro pelo colorido e segundo por ser uma coisa que apresentava situações inusitadas. Eu cheguei a ser viciado numa época em que revista em quadrinhos não se chamava revista em quadrinhos, chamava gibi e eu lia compulsivamente aquilo. Eu tinha uns primos que também gostavam muito e eles tinham coleções, aí eu pegava com muita frequência os gibis deles pra ler. E aí depois de certo tempo já no ginásio, no primeiro grau a escola que eu estudava, que eu me transferi pra lá na sétima série tinha uma
biblioteca que também tinha. Então além de ler os livros que eram obrigatórios em termos de disciplinas, de matérias, que a gente ia com muita frequência à biblioteca, a gente tinha acesso a outras leituras: jornais, revistas em quadrinhos e eventualmente outro material como revistas, periódicos que existiam ou então revistas semanais que já existiam com muita frequência naquela época que a biblioteca eventualmente colocava à disposição dos alunos. Eu sempre fui um leitor compulsivo durante boa parte da minha vida e é uma coisa que eu incentivo muito hoje aos meus sobrinhos, sobrinhos netos inclusive que está em processo já de estudo. Eu partia sempre do princípio de uma frase do Paulo Freire que não é só você se alfabetizar e fazer leitura formalmente pela leitura, é ter a capacidade de fazer a leitura do mundo e quando eu comecei a ter noção dessa frase e a extensão dela, a leitura pra mim significava não só o que estava escrito, mas as portas que aquilo me abria. E aí foi um caminho que até hoje não parei, pelo contrário, adoro ler.

P/1 – Fala aí pra mim que quadrinho você gosta?

R – Olha, você vai rir, mas eu gostava muito da revista da turma da Mônica, durante um bom tempo eu lia as revistas que vinham com histórias de Western americano que não era nem bem revistas em quadrinhos, mas tinha algumas histórias e a gente tinha acesso a essas revistas, como eu falei os meus primos também tinham parte desse acervo. Depois quando eu cresci um pouquinho já na faixa dos meus 13 ou 14 anos, tive acesso a uma leitura que já não era mais permitida em função do regime militar que era o Pasquim, adorava ler o Pasquim. Os gibis da turma da Mônica, as histórias isoladas que fosse do Cascão, do Cebolinha, da própria Mônica e de todos eles, os clássicos do Walt Disney que era a revista do Pateta, Pato Donald, Tio Patinhas, eu lia isso tudo, Mickey. A minha infância foi povoada por esses personagens que mais tarde, pois a gente não tinha televisão, eu pude finalmente ver através de desenho animado, mas que eu já conhecia já há muito tempo lendo os gibis, as histórias em quadrinhos dessas personagens aí.

P/1 – Conta pra gente Silvio, da sua oficina?

R – Quando eu me transferi de escola, a sétima série eu fiz numa outra escola da que eu tinha estudado no primário até a sexta série, era uma escola considerada modelo Governador Carlos Lacerda o nome da escola, foi inaugurada em homenagem ao Carlos Lacerda, inclusive foi uma parte da família dele lá no dia da inauguração e a escola tinha várias oficinas. Ela tinha oficina de cultivo de hortaliças, de hortas, que dava noções básicas de alguns equipamentos que por ventura a gente poderia usar caso mais tarde a gente se interessasse por uma profissão que era oficina de artes industriais e tinha também oficina de desenho. Tinha a oficina de teatro, de artes cênicas e de artes plásticas que incluía nessa oficina o desenho. Numa dessas seções a professora falou que se a gente quisesse inventar alguma coisa podia. Eu e um grupo de amigos resolvemos inventar uma história em quadrinhos ou uma revista em quadrinhos e como eu era um leitor compulsivo de gibis estava bom pra mim, só que não sabia desenhar nada bem, mas eu tinha muita imaginação. Então a gente começava a pensar uma história e eu ficava inventando situações e os colegas que tinham mais habilidade iam desenhando e depois a gente tinha que apresentar o que tinha feito e foi muito engraçado porque criávamos a história, mas não vivíamos o personagem, aí tinha que internalizar aquela história. Então agora eu sou o prefeito da cidade tal. Aí tinha que modificar a voz e fazia leitura, botava os balõezinhos. Esses trabalhos ficavam em exposição e ficava orgulhoso pra caramba quando as pessoas viam e falavam: “Aqui, que desenho legal!”. Então aquilo dava o maior prazer pra gente. Era uma coisa muito gratificante e talvez boa parte do meu interesse que continuou com a leitura tenha vindo justamente da possibilidade de agregar não só a leitura, mas a possibilidade de criar alguma coisa com afinidade com o que eu lia que eram os gibis, essas histórias em quadrinhos. Essa escola foi bastante interessante, potencializou uma série de coisas que ficaram não só na minha memória, mas serviram também para eu passar pra outras pessoas, os meus sobrinhos, por exemplo. Então a possibilidade de criar enredos e histórias pra prender a atenção veio desde a infância inclusive fazendo ilustrações sobre isso daí, foi bastante legal.

P/1 – E aí quando você mudou de escola, participou das oficinas de quadrinhos e tal, o que mais você fez nessa escola?

R – Como ela era uma escola bem grande, oferecia bastante possibilidade, a gente até tinha um horário alternativo, porque as oficinas aconteciam no horário da tarde e também tinha uma oficina de teatro. Uma vez eu escrevi uma peça de teatro, quer dizer, eu achei que tinha escrito, mas depois eu fui ver que aquilo não era uma peça de teatro como eu imaginava, mas serviu pro momento e foi bastante interessante porque embora eu tivesse escrito a peça, ela foi ensaiada, encenada por colegas meus porque tinha um que tinha que escrever a peça, que fui eu. Outro ia dirigir e alguns outros iriam atuar e outros iriam fazer o cenário. Então uma coisa que você criou vendo os outros dando vida àquilo ali, foi bastante interessante, eu tinha aí 13 para 14 anos nessa situação. E talvez isso tenha ficado na minha memória de tal forma que agora recentemente já bem avançado na idade, na profissão do magistério eu me peguei tendo que escrever, não tendo por obrigação, mas circunstancialmente, uma peça de teatro. Foi pra uma comemoração ou pelo menos pra gente registrar a passagem dos 40 anos do ano de 68 que é muito mais um momento de reflexão do que qualquer outra coisa. E na semana de eventos na escola estadual que eu trabalho ficou faltando preencher um dos dias que seria preenchido com uma atividade que a princípio teria que ser voltada pra área de teatro ou qualquer coisa equivalente. Eu sugeri que se fizesse a montagem de um esquete só que não tinha ninguém pra escrever, eu acabei escrevendo não só um esquete, mas uma peça de teatro mesmo que ainda fazendo aqui uma reflexão não sei se de fato foi, mas acreditaram até hoje que sim, então deixa lá. Tratava do movimento estudantil desde 68, o engajamento dos estudantes no processo de luta contra a ditadura partindo da morte do estudante Edson Luís e vindo até os dias de hoje em várias passagens da história recente do país em que os estudantes estiveram presentes. E foi bastante gratificante, porque foi uma peça feita para os alunos e integralmente encenada por eles, foi desafiador pra mim que nunca me vi nessa situação e gratificante ao mesmo tempo de ver algo sem nenhuma pretensão em termos artísticos ou literários que acabou servindo ao propósito que a princípio eu pensei.

P/2 – Silvio, mas falando dessa outra peça lá do passado, você se lembra do enredo?

R – O que está escondido lá na memória vem aflorando aos poucos, lembro que foi uma situação muito engraçada, era uma peça que tratava de um psicanalista ou um psiquiatra ou qualquer coisa do gênero que ia analisar os pacientes, mas ele era mais louco do que os pacientes. Com 13 anos de idade você tem uma imaginação muito fértil, mas às vezes ela não se materializa. Então o psiquiatra mandava os pacientes entrarem, mas tinha um comportamento completamente estranho, anômalo, os pacientes que iam lá para se tratar acabavam estranhando o comportamento dele e fugiam do consultório. Então ele tinha umas gaiatices que fazia, umas performances que as pessoas não entendiam absolutamente nada e que assustavam muito mais os pacientes do que tratava. Eram situações engraçadas ou pelo menos a gente pretendia que fossem engraçadas do tipo: ele atendia os pacientes com o jaleco pelo lado avesso, o sapato trocado e a pessoa que ia lá pra se tratar olhava aquela figura e falava: “Eu vim no lugar certo?”. Então tinha os diálogos que rolavam em cima disso e a tendência era que quanto mais a pessoa ficasse lá no consultório mais coisas ela perceberia de comportamento errado e acharia que a pessoa que estava com problemas não era ela, mas sim o dito psiquiatra ou psicanalista qual fosse a situação no momento. Foi legal porque na realidade eu fantasiava um pouco o que seria o papel do psiquiatra e achando que na inocência lá da minha pré-adolescência que a Psiquiatria ou a Psicanálise só tratava de pessoas que a princípio tivessem distúrbios muito sérios, que chegassem à condição de supostamente loucas. Aí depois com o tempo a gente foi vendo que não é bem assim ou não é só isso, mas o que me causava estranheza e que me deu vontade de escrever a peça era justamente verificar que, dependendo do ponto de vista, tem uns que dizem que são sãos e na realidade se apresentam segundo os critérios de avaliação da sociedade mais loucos que os outros. Loucos somos todos nós, cada um na sua medida e foi engraçada a receptividade dos colegas – e aí não foram só os meus colegas de turma – porque eram assim apresentações que eram para a escola inteira, pros alunos todos e eles gostaram. Eu nervoso, porque na realidade a gente fica com ansiedade, mesmo sendo adolescente, que vai dar certo. Algumas coisas saíram erradas tipo: o cenário que não estava montado da maneira correta, as falas que sumiam do personagem, mas no final, aparentemente pelo menos, o propósito de criar alguma coisa e ser avaliado e a receptividade foi bastante gratificante, o pessoal aplaudiu. Então eu falei: “Se aplaudiram e não jogaram caderno e nem bolinha de papel, então tá legal!” Essa era a noção que eu tinha de sucesso naquela época.

P/2 – Silvio, você comentou que você teve acesso ao Pasquim, uma coisa que até era um pouco complicado. Isso foi através da escola? Como é que você teve acesso a esse tipo de literatura?

R – Na realidade não foi tanto através da escola, mas dos amigos da escola, dos colegas de turma que na faixa etária... Estava em 78 para 79, eu saí em 79, terminei o primeiro grau e tinha um colega que tinha, o pai dele tinha algumas edições antigas do Pasquim e aí ele trazia, o pai dele tinha formação política e ele trazia pra gente ler. Líamos compulsivamente, não tinha muito uma reflexão política sobre aquilo ali não, era um momento de início de abertura no governo Figueiredo em 79, mas a gente sabia que não só pelos comentários, mas por situações que eventualmente via na televisão ou nos jornais formais que o país tinha passado por um momento muito difícil. E aquele tipo de literatura a gente também já tinha noção de que não era acessível, então o que era proibido era excitante, era interessante. Esse colega trazia, a gente lia compulsivamente e discutia lá com o nível de reflexão de 13, 14 anos de idade, mas a gente fazia isso. Foi bastante interessante porque dali de certa forma eu fui moldando a minha percepção política do país mesmo que precocemente com 14 anos, mas deu pra perceber algumas coisas de muito errado que tinham acontecido e que precisavam mudar. Assim que eu entrei no ensino médio, que era o segundo grau em 1980 já ampliei os horizontes no sentido de “opa agora a gente já consegue fazer outro nível de leitura mais reflexiva”. Fazíamos reuniões já num colégio de segundo grau. A gente às vezes ultrapassava e muito o horário de estudo ficando na biblioteca lendo o Jornal do Brasil, lendo alguns livros que começavam a chegar às prateleiras com certas restrições, mas que já dava uma noção do que foi realmente o período da ditadura militar, de todo o regime militar. E isso no segundo grau foi sendo aprofundado, foi sendo amadurecida essa visão, essa consciência política no momento que o país estava vivendo de abertura. Opa, por que essa abertura? O que aconteceu de tão errado assim? Por que as pessoas foram obrigadas a sair do país e por que agora estão voltando? E por que dessa música? E também muito influenciado pelos professores, é inegável isso, a minha professora de História teve uma influência, aliás, foram duas, elas tiveram uma influência marcante nessa moldagem da minha percepção política. E também de um professor de Filosofia que tinha na época porque eu desconhecia de fato o sentido da Filosofia por mais ampla que fosse e ele deixava meio que de lado o ensino formal da Filosofia para discutir a situação política do país. Isso foi interessante, a gente tinha um ganho enorme com isso e nem todos percebiam, felizmente eu consegui perceber não sei se com a profundidade devida, mas consegui perceber ali em 1980, 81 e no ano que eu saí, em 82, que o país estava mudando, vindo de um período longo de dificuldades, de cerceamentos de liberdade. Que era preciso aproveitar bastante aquilo ali para não deixar que a coisa se repetisse. Aí vieram uma série de episódios que marcaram também esse período da minha vida como, por exemplo, o atentado a bomba no Rio Centro e inclusive eu ia ao show que teve lá em comemoração ao dia do trabalho, eu não fui porque não tinha dinheiro, mas eu ia, alguns colegas meus foram. Depois eu descobri isso bem depois quando eu comecei a namorar a minha esposa porque ela foi ao show e ela assistiu parte do desenrolar da explosão da bomba no carro, tanto do Capitão quanto do Sargento, a bomba que explodiu no colo do Sargento. E ela estava passando na hora porque ela chegou atrasada ao show e aí depois é que ela foi perceber que tinha vivenciado um momento histórico ali. Aí depois vieram os atentados à OAB, explosões de bancas de jornal e essas coisas todas chamaram muito a atenção no segundo grau, porque a gente estava ali num período de discussões políticas em termos de pensamentos, atitudes e fatos como esse não passavam em branco mesmo tendo 16, 17 anos e dava pra você refletir bastante afinal de contas nessa idade já tinha, num passado recente em relação àquela época, pessoas que enveredaram pelo caminho da guerrilha, da luta armada. Então a gente não estava precocemente envolvido com essa reflexão, mas vivendo o momento que o país estava atravessando.

P/1 – E você participou de grêmio?

R – Eu participei de grêmio no segundo grau, a gente formou uma chapa no meu segundo ano, inclusive no ano seguinte eu continuei, mas a gente optou por, na eleição do último ano que eu estava, colocar um representante como presidente do grêmio que fosse da primeira série pra ir ganhando experiência. Era muito interessante porque a gente estava querendo dar uma sacudida na escola, apesar de ter uma postura política dos professores sempre muito ativa, muito contestadora, mas a gente ali naquele afã da juventude, com “zilhões” de ideias na cabeça de que “vamos nos mexer” enquanto o grêmio procurava eventos que refletissem não só a nossa época, mas o passado recente para que as pessoas criassem certa consciência. Então promovíamos shows com a ajuda de professores, vinham grupos pra tocar e às vezes não cobravam absolutamente nada, porque também estavam em início de carreira e eram músicos com uma postura em termos de criação bastante contestadora com músicas críticas, letras essencialmente críticas, iam tocar e a gente promovia debates, apresentação de filmes. Então o grêmio procurou ser o mais ativo e essa experiência mais tarde, não foi tão imediatamente depois quando entrei no ensino superior, eu levei um pouco e acabei me envolvendo também com o diretório acadêmico de faculdade, aí já numa situação mais madura, mas com a mesma postura crítica de tentar pelo menos fazer algo que fosse benéfico para os estudantes.

P/1 – Silvio, me conta, além de você ter participado dessa militância, gostar de ler gibi, o que mais você gostava de fazer? Ouvir uma música? Sair com os amigos?

R – Ouvir música por influência familiar, da minha mãe especificamente, porque ela gostava muito de músicas dos anos 30, 40 dos cantores daquela época, eu criei um gosto por isso, ela gostava de seresta, eu não gostava tanto, mas prestava atenção, gostava mais quando ela assim, de forma muito intuitiva, começava a lembrar de alguns sambas antigos e ao cantá-los a gente ficava prestando a atenção na letra. É claro que eu não gostava só dessas coisas, pelo contrário, também procurava viver o momento, então lembro bem que gostava muito no final dos anos 70 do período da discoteca. As músicas que tocavam, eu adorava e também gostava muito de soul music, então quando eu ouvia, por exemplo, a música negra norte americana principalmente James Brown eu ficava louco com aquilo, achava o maior barato principalmente a agilidade que ele dançava as músicas que cantava. E essas coisas meio que se misturavam, gêneros musicais bastante atuais daquela época com as músicas e as cantigas que às vezes nem eram tão músicas com letras, mas cantigas que a minha mãe às vezes lembrava até da infância dela e aquilo ficava na minha memória. As minhas irmãs até falavam que eu tinha meio que espírito de velho, porque eu gostava de coisas antigas que elas nem tanto gostavam e isso com os meus 16, 17 anos era muito comum e esse gosto por samba continua até hoje. Mas tinha uma coisa que paralela à música me chamava muito a atenção, porque queria conhecer não o produto, mas a forma de realizá-lo, de fazer aquele produto que era o cinema. Eu sempre fui muito ligado ao cinema, à arte cinematográfica e curiosidade mesmo de saber o ano do filme, o gênero, o diretor, os atores principais, o contexto em que foi feito. Isso me chamava muito a atenção e esse gosto por cinema veio desde cedo 12, 13 anos. Eu gostava muito e não entendia absolutamente em termos de gênero cinematográfico, continuo não entendendo muito, mas me chamava a atenção e esse gosto foi sendo aprofundado na minha adolescência então... Às vezes até por mais interessante que a brincadeira fosse com os colegas e tal preferia ficar vendo um filme e depois até pra comentar com os outros. “Pô, passou um filme legal.” “Onde?” “Um filme que retrata isso e isso...” “Caramba, não prestei atenção, mas era isso mesmo que o filme retrata?” “Claro que era isso que ele retratava!" Às vezes eu não tinha nem certeza, mas era isso mesmo. Quer dizer, aquela necessidade não só de ver o filme pelo filme, mas tentar explicar, sempre me entusiasmou. E aí mais tarde ainda na juventude eu comecei a ir compulsivamente ao cinema, tipo ir todo fim de semana ao cinema. Eu comecei namorando, indo ao cinema, uma coisa muito interessante até meio estranha hoje em dia, mas eu comecei a namorar... Chamar a namorada que não era namorada: “Vamos ao cinema?” Então, quer dizer, o cinema era na realidade a referência não só da vida social, cultural, mas também afetiva, dos relacionamentos. E houve anos que eu cheguei a assistir 42 filmes, por exemplo, então você fala: “Você foi num fim de semana duas vezes?” Isso.

P/2 – Qual foi o primeiro filme que você viu?

R – (risos) Boa pergunta, qual foi o meu primeiro filme? A minha memória não vai a tanto, mas vou tentar resgatar.

P/2 – Um que você lembre então?

P/1 – Não, o que você gostou?

R – Olha, aí é diferente, o primeiro filme que eu vi no cinema, porque fui levado pelo meu irmão foi A Vida de Cristo, um daqueles filmes hollywoodianos que retratavam o calvário de Cristo e aquele sofrimento todo e geralmente era no período da semana da Sexta Feira da Paixão. A primeira vez que entrei no cinema que tenho referência foi pra ver isso. Agora se você perguntar: “Você gostou?” Eu fiquei tão encantado com aquela situação de ver uma tela enorme porque não tinha televisão em casa ainda e a referência em termos de imagem saltando assim aos meus olhos, enorme, aquilo ali foi fantástico, aquele som bastante estridente, aquela coisa volumosa, aquilo me chamou muito a atenção. Eu achei mágico, tão mágico que ficou na minha cabeça durante um bom tempo e depois... Mas esse foi o primeiro filme que tenho referência em termos de assistência, agora o primeiro que fui ao cinema e que gostei já indo sozinho pra assistir e fazer uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre ele foi... O nome dele era se não me falhe a memória era “Maciste”, era um nome assim, um filme épico que passou em meados da década de 70 para final da década. Foi a primeira vez que eu fui ao cinema sozinho, em termos, porque na realidade fui e depois na saída estava lá o meu irmão me esperando. Mas foi o primeiro filme que eu vi e como era um épico e tinha situações bastante movimentadas em termos de confrontos, lutas com espadas, cavalaria, aquela situação cênica bastante movimentada, aquilo me chamou a atenção. Agora com certo amadurecimento um filme que me chamou mais a atenção quando assisti no cinema foi Gandhi, se não me falhe a memória do Richard Attenborough, a direção era dele e era o Bem Kingsley novinho fazendo o papel do Gandhi extremamente maquiado, envelhecido. Aquele filme foi impactante, impactante por quê? Porque foi um filme com mais de três horas de duração, eu via as pessoas saindo do cinema porque não suportavam ficar mais tanto tempo sentadas e eu lá com os olhos grudados na tela assistindo aquele filme. Retratava uma situação de uma personagem histórica num período que eu não pensava ainda se ia fazer história ou não e eu gostei muito do filme, me chamou muito a atenção e já me permitiu fazer uma reflexão mais crítica, mais aprofundada do cinema em si, da arte cinematográfica e de se retratar situações históricas de uma realidade concreta e foi bastante interessante isso. Aí depois foram muitos outros, se for pontuá-los a gente vai ficar aqui um tempinho.

P/1 – Silvio, conta pra mim, você falou que paquerava no cinema, levava as mocinhas e tal? Onde mais que você paquerava? Como é que era?

R – Praça Pública. “Ah vamos nos encontrar na praça?” “Sim, vamos.” Mas era uma situação complicada porque passava muita gente e você... Eu extremamente tímido, sou até hoje, embora não pareça, eu sabia que você ia rir. Às vezes a gente usa determinadas defesas, determinados mecanismos e um deles, de certa forma pra não demonstrar minha timidez, foi dar aula, é uma estratégia bastante interessante, meio paradoxal, mas interessante. E era Praça em Jacarepaguá, por exemplo, têm várias, ainda tinham, existiam praças relativamente bem conservadas que a gente podia ir, sentar, então as primeiras situações de namoro que eu conheço, foram essas e aí também culminava... Ia à praça num fim de semana, mas no outro fim de semana “pô a gente pode ira ao cinema e tal e coisa?”. “Pode?” “Então ta legal”. Era isso, era bastante interessante. E depois com o passar do tempo já um pouquinho mais velho, praia, festas, eu não era muito de ir a festas não, a minha esposa diz até hoje assim: “Puxa enquanto eu...” Ela não me conhecia, obviamente. “Quer dizer que quando eu estava curtindo os bailes na época das discotecas, você estava no cinema ou então estava com os olhos enfurnados num livro?” Eu falo assim: “É mais ou menos isso”. Aí depois a situação se inverteu, porque ela começou cada vez mais se dedicar à leitura, principalmente espiritual, esotérica e eu comecei a ir mais às festas, mas isso já é mais recentemente de uns 15 anos pra cá. E quando ela não ia, arranjava sempre uma desculpa: “Eu vou ler um livro e tal”. Mas ela dizia que estava aproveitando a adolescência e eu não, estava deixando a minha passar. Eu falava que “depende do ponto de vista, porque ficava muito preso a situações que levavam a uma reflexão, que me levavam a pensar mais as coisas, o mundo”. E depois mais tarde que eu fui aproveitando um pouquinho mais, vamos dizer assim, a juventude.

P/1 – Você chegou a trabalhar nessa época?

R – Eu sempre trabalhei. Trabalho no sentido de realizar uma atividade que pudesse ganhar uma remuneração mesmo quando criança, em função de uma infância complicada do ponto de vista de poder aquisitivo, de uma tranquilidade financeira, a família pobre. A gente tinha que sempre buscar alguma coisa que pudesse ajudar a família, então o que você pode imaginar que um pré-adolescente, uma criança faz no sentido de atividade de vender as coisas para poder ganhar um trocado, eu já fiz. Já vendi jabuticaba na feira, por exemplo, já vendi laranja em beira de campo quando tinha jogo e em Jacarepaguá tinha vários campos chamados de várzea ou que popularmente chama de campos de pelada. Mas tinham às vezes alguns jogos que os jogadores usavam uniformes, então tinha certo público e a gente vendia laranja. Já vendi sorvete que a gente chamava de picolé durante um bom tempo, isso com uns dez, 12 anos, garrafa velha, ferro velho, tudo isso que você pode imaginar. Então a atividade laboriosa sempre esteve presente na minha vida. Aí depois eu consegui pelo menos até o final do ensino médio, mesmo fazendo as atividades informalmente, mas pelo menos não ocupar um longo tempo da minha juventude, da minha adolescência com uma atividade de trabalho. Mas também foi só até o término do segundo grau, porque depois eu tive que trabalhar. Eu só comecei a minha faculdade bem depois, aí trabalhar mesmo de carteira assinada em indústria, em área fabril. Mas o trabalho sempre esteve muito presente na minha vida.

P/1 – E aí quando você estava no colegial? Conta um pouco pra gente como foi?

R – Quando eu estava no segundo grau, era bastante interessante pelo fato de que eu comecei a gostar tanto do espaço escolar que eu frequentemente esquecia a hora de ir pra casa, eu ficava... O colégio de segundo grau, até porque era um colégio que tinha uma história, prendia muito a gente em termos de possibilidade de você estudar, conhecer as coisas, discutir e era um período como eu falei de uma efervescência política pelo país porque era o início do processo de abertura, 1979 eu terminei o primeiro grau e em 80 eu já estava no segundo grau. Então toda aquela situação de transformação do governo Figueiredo a abertura política, a anistia já no final em 82, eleição direta pra Governador do Estado, tudo isso mobilizava muito a gente. Jovens de 16, 17 anos querendo conhecer da vida política do país, então a gente ficava muito tempo discutindo essas coisas no espaço da escola e a biblioteca era nosso lugar preferido, a gente fazia grupos de estudos, mas também que se transformavam com muita frequência em grupos de discussão. Então era leitura do jornal, o Jornal do Brasil, O Globo, mas também era a leitura do jornal dos esportes porque a gente também não deixava de lado aquilo que dava prazer pra gente. Então conversar sobre futebol era obrigatório, mas era até um determinado momento e depois era sobre fulano que voltou do exílio, o filme que foi lançado. Então a gente terminava a aula meio-dia ou dez para o meio-dia e frequentemente eu saía da escola três e meia, quatro horas da tarde sem almoçar, porque não tinha almoço na escola, só tinha o lanche que era feito na hora do intervalo que era nove e meia. Então a gente ficava esse tempo todo lá discutindo, conversando, lendo jornal – a gente literalmente lia o jornal do início ao fim – e ficava depois discutindo aquilo ali, aí às vezes aconteciam absurdos, por exemplo, a bibliotecária queria sair e só tava a gente lá e a gente falava: “Pode deixar a chave com a gente”. “Não, não posso não”. E aí ela tinha que expulsar a gente da biblioteca. Fora essa parte mais, vamos dizer assim, dada à questão do aprofundamento em termos de discussão, de leitura, o colégio oferecia possibilidades de diversão também. Então a gente tinha um auditório que frequentemente tinha apresentações de shows por isso que eu falei que depois que eu entrei no grêmio a gente continuou com isso que estava até meio caído, então tinham apresentações de filmes, de grupos musicais, frequentemente os próprios alunos organizavam eventos que a gente fazia. Tinha torneios de voleibol, de futebol e a gente com muita frequência organizava os torneios de futebol de salão que hoje é chamado de futsal e voleibol, só que voleibol eu não era muito chegado não apesar da altura, eu preferia mais era jogar futebol. Então a gente às vezes fazia determinadas coisas que eram estranhas. A gente tinha aula aos sábados também, começava às oito e quinze da manhã, a gente chegava seis e meia na escola, um levava bola e como a quadra era externa a gente jogava de seis e meia até dez para as oito e depois tinha que tomar banho porque não podia entrar na escola fedendo do suor porque o professor não deixava. Ele dizia que num laboratório de química a regra básica era você não entrar com certos odores porque podiam transformar ou explodir... Brincando com a gente, que podia explodir o laboratório, então era só permitido... “Vai tomar banho senão, não entra na aula”. Então a gente depois assistia a quatro ou cinco tempos de aula direto numa boa e isso depois de ter jogado três, quatro, cinco partidas de futebol ali. E não reclamava não, ia pra casa... Eram frutos da juventude, com uma disposição, uma energia incrível que depois a gente vai vendo que com o passar do tempo você não tem mais, é bastante seletivo em termos de atividade. “Vamos jogar futebol?”. “Mês que vem”. “Talvez, quem sabe se meu joelho não doer, se minha coluna não doer a gente vai jogar”. Mas era um espaço, o espaço escolar aonde a gente de fato ia pra estudar. Eu, por exemplo, tinha bastante consciência de que não podia perder tempo, não me permitia perder tempo em função do esforço, do sacrifício que o restante da família estava fazendo para que eu estudasse e cumprisse as etapas da formação básica sem precisar trabalhar. Não deixava de brincar, de me divertir, aproveitava todas as atividades que tinha em termos de lazer, de esporte, mas também estava ali com um propósito: aproveitar o máximo em termos formais de instrução, educação, conhecimento que a escola podia me oferecer. Então foi bastante proveitoso, eu diria que foi um dos períodos... Talvez o período mais rico da minha vida em termos de formação foi o período do segundo...

P/2 – Silvio, e seus amigos, você vem comentando dessa coisa da sua infância pobre, da adolescência. E seus amigos eram de um poder aquisitivo maior? Como é que era o perfil desses seus amigos de escola?

R – Da escola?

Via de regra sim, de um poder aquisitivo maior que o meu, mas era uma época em que mesmo tendo um poder aquisitivo mais elevado a escola pública ainda atraía em termos de qualidade de educação, responsabilidade das autoridades em relação à escola pública. Então os pais, mesmo sendo de classe média, que tinha certa condição que poderiam até colocar os seus filhos nas escolas particulares optavam por colocá-los na escola pública. Então convivi com colegas, com amigos, eu até fiz amigos no período de formação de primeiro grau que tinham uma situação econômica, um poder aquisitivo bem maior e pra mim causava até certo constrangimento ir a casa deles e perceber que tinham coisas que eu não tinha, mas causavam constrangimento e não inveja ou qualquer coisa do gênero. E eles vendo o meu constrangimento até ficavam constrangidos. Aí vinha a intervenção dos pais “Não, pode ficar tranquilo, não tem problema nenhum” e eu sempre achei, pelo menos acho até hoje que eu conseguia cultivar bem e com sinceridade eram essas amizades. Tanto é que depois que me mudei, que me transferi de escola durante algum tempo ainda encontrava esses amigos mesmo que eventualmente na rua ou em qualquer outro espaço e eles lembravam, a gente se lembrava do tempo de convívio escolar bastante e era sempre bastante agradável.

P/1 – Silvio, me fala uma coisa, você ia pra praia muito ou não?

R – Nem tanto, eu ia pra praia eventualmente quando, isso na infância e início da adolescência, as minhas irmãs mais velhas com os namorados delas já iam e me levavam, eu só comecei a frequentar mais a praia e esse mais também não era uma coisa assim muito constante, a partir dos 17, 18 anos, até então eu ia pouco. Duas ou três vezes por ano assim mesmo levado pelos irmãos apesar da gente morar relativamente perto da praia, porque Jacarepaguá estava próximo à Barra e ao Recreio. Recreio dos Bandeirantes estava um pouco mais distante, mas existia uma dificuldade premente que era o dinheiro para você pagar a passagem de ônibus. Então isso já restringia bastante o hábito de ir à praia, eu sempre gostei muito de praia nem tanto pelo sol, mas pelo mar mesmo, pela água salgada e aquela imensidão e o espaço de convivência que acho... Hoje em dia nem tanto, mas sempre achei muito democrático, você vê de tudo e tem ali um manancial de observação, de modos, atitudes, até mesmo pra você aprender com os outros. Um que está ali de repente tem coisas interessantes que você acha que vai encontrar em outros espaços e que encontra no espaço democrático da praia.

P/1 – E aí com 17, 18 anos você já foi pensando em prestar vestibular ou entrar na universidade?

R – Sim, aliás, eu já pensava isso desde a primeira série do segundo grau, mas a minha realidade em termos financeiros, sócio-econômicos me colocava na situação de: “Bom, eu vou até tentar o vestibular, mas eu tenho de forma imperiosa que mesmo tentando vestibular e passando pra uma universidade, eu tenho que trabalhar”. Aconteceu de quando eu prestei o primeiro vestibular não passar pro curso que eu queria, eu queria Engenharia Eletrônica e acabei caindo pra Engenharia Civil e eu fui aprovado... Como naquela época o vestibular era unificado, então as instituições públicas e as privadas ofereciam as vagas através da Cesgranrio. Então eu fui aprovado para Engenharia Civil da Veiga de Almeida e por pouco não consegui entrar em Engenharia Eletrônica da UFRJ e isso me frustrou bastante, porque eu não podia pensar naquele momento em estudar numa universidade particular, eu não tinha dinheiro. Essa frustração aumentou à medida que os meus colegas passaram para a universidade pública, alguns até estavam fazendo cursinho, naquela época conseguiram entrar pra universidade pública e eu não consegui no primeiro vestibular. Então terminei o segundo grau e não consegui e comecei a trabalhar logo depois. Aos 19 anos de idade eu já estava trabalhando e aí eu adiei, fui adiando um pouquinho e esse pouquinho durou certo tempo até os 22 anos quando finalmente eu consegui, aí sim já trabalhando, mesmo que eu não passasse pra uma universidade pública, eu faria o curso de História porque eu já tinha me decidido fazer História numa universidade particular.

P/1 – E aí Silvio continua a contar pra gente então, aí você resolveu fazer História...

R – Eu resolvi fazer História, mas antes disso como precisava trabalhar, então eu aproveitei o ano imediatamente após o término do segundo grau pra fazer um curso de técnico de eletrônica. Eu não tinha dinheiro, então a minha irmã pagou o curso pra mim e já no final do curso eu tinha uma indicação de trabalho, eu tinha que fazer o estágio, mas antes de começar ela como prestava serviço pra uma microempresa de eletrônica que faziam alarmes, sensores, transmissores e executores de portões e eletrônicos que era uma novidade, estava chegando ao Brasil, estava se espalhando. Aí ela montava algumas placas de circuito impresso e eu comecei a ajudá-la. Terminei o curso e fui fazer estágio justamente nesse lugar, comecei a fazer estágio com 19 anos ainda, aí eu trabalhei dois anos nisso. Como eu vi que já tinha terminado meu período de estágio e o cara não ia me efetivar, estava só me enrolando e essas coisas todas eu falei: “Ah é? Então eu vou sair daqui”. No que eu saí tinha uma empresa estatal na época que voltou a ser estatal porque é controlada pelo Banco do Brasil que era Cobra Computadores e Sistemas, na época eles estavam contratando e abriram inscrição para técnico de eletrônica. Aí eu falei assim: “Vou arriscar”. Passei pelo processo seletivo, fiz a prova, fui aprovado, foi bastante concorrido, achava que não seria aprovado porque a prova foi cansativa e saí de lá sem a menor esperança. E pra minha surpresa fui aprovado, minha irmã já trabalhava lá e meu irmão tinha entrado só que numa outra unidade. Minha irmã trabalhava na unidade central e meu irmão trabalhava em outra unidade menor, mais afastada. Era um período que eles estavam fazendo muitas restrições à entrada de parentes no mesmo espaço de trabalho. Só que eu passei pela prova e pelo processo seletivo. Quando eles descobriram que minha irmã trabalhava lá e meu irmão também, mas a minha irmã tinha bem mais tempo, eles me colocaram a seguinte situação: “se você entrar, sua irmã sai”. Eu falei assim: “Não...” Ela, casada, mãe de filhos já com tempo de casa. Eu vou pra outro lugar, isso eu tinha 20 anos. Eu consegui uma vaga numa fábrica, numa indústria têxtil, mal comecei a trabalhar nessa indústria têxtil eu falei: “Agora sim, vou fazer vestibular de novo e se eu não passar pra uma universidade pública eu acho que tenho condições de pagar um curso numa faculdade particular”. E já optando por História. E aí eu passei, comecei a faculdade com 22 anos e descobri rápido que o que eu ganhava não dava pra pagar a faculdade, comprar livros e pagar a passagem. Ou eu pagava a faculdade e pagava a passagem ou eu não estudava. Aí eu me inscrevi no processo do crédito educativo, fui contemplado e fiz o curso já financiado pelo crédito educativo. Fiz o restante do curso todinho. Os primeiros seis meses eu paguei e daí pra frente eu fiz todo o restante do curso com o financiamento, depois um período pra pagar que era o dobro do período de curso. Felizmente eu mudei de emprego e ganhei um pouco mais e depois comecei logo a dar aula, eu consegui saldar a minha dívida em dois anos, o pagamento do financiamento. Aí de lá pra cá foi essa luta de dar aula, trabalhar no Magistério.

P/2 – Qual foi a universidade que você estudou?

R – Na época se chamava Faculdade de Humanidades Pedro II que no início da década de 70 até meados da década de 70 foi federal porque ela era agregada ao colégio Pedro II em São Cristóvão. Então ela era controlada pelo Governo Federal, depois ela passou por um processo de privatização, quando eu entrei já era privada. Eu fiz minha graduação lá, tinha diversos cursos: História, Biologia, Psicologia, Matemática. E na época até pra felicidade minha tive contato com várias pessoas que mais tarde fui encontrar já dando aula dez anos depois que tinham estudado lá também. E ela ficava em São Cristóvão em meados da década... Na segunda metade da década de 90 ela foi fechada por algum problema burocrático ou de documentos ou qualquer coisa do gênero, o MEC fez uma intervenção e fechou. Isso já era dez anos depois que eu tinha saído de lá. Mas no período que eu fiz o curso foi uma boa faculdade.

P/2 – Você mudou muito a sua rotina quando você começou a fazer faculdade?

R – Bastante, eu tive que me disciplinar muito mais, em termos de estudo porque eu tive que conciliar trabalho e estudo, durante o período da faculdade toda eu trabalhava e estudava à noite. Eu trabalhava inclusive de segunda a sábado, eu poderia trabalhar de segunda à sexta, mas como eu saía uma hora mais cedo durante a semana para poder dar tempo de chegar à faculdade, então o acordo era: “Tá bom, você sai uma hora mais cedo, mas você tem que vir trabalhar aos sábados”. Aí eu trabalhava sábado de sete ao meio dia.

P/1 – Silvio, eu vou dar um pulinho pra sua entrada no CIEP, Ulisses de Guimarães, vou dar um pulinho aqui e a gente vai pro Ulisses de Guimarães, como é que você entrou lá? Que ano você fez o concurso?

R – Eu entrei no Ulisses de Guimarães em maio, o concurso foi em 1993, eu passei, a minha classificação foi centésimo nono, foram abertas acho que 530 vagas se não me falhe a memória, até que a minha classificação foi relativamente boa. Antes eu tinha feito um concurso, tinha sido aprovado, mas não fui chamado pro mesmo Governo do Estado e aí em 93 eu fiz esse concurso que foi o único concurso que teve pra professor de 40 horas que era o regime colocado para o CIEPS nos Centros Integrados de Educação Pública. Foi o único concurso que teve, aí eu fiz e entrei em maio de 1994, portanto estou lá há 14 anos.

P/1 – E lá você só dá aula de História? Quais as disciplinas que você dá aula lá?

R – Eu atualmente só dou aula de História e há pelo menos uns oito ou nove anos, mas eu já dei aula de Filosofia, de Sociologia por falta de professores nessas disciplinas. Então a gente cobria a carência da escola, mas me sentia pouco a vontade de fazer isso, eu não digo nem que eu dava aula efetivamente, eu fazia um esforço enorme para que a coisa acontecesse. E foi gratificante porque me exigiu mais em termos de estudo, de preparação das aulas e eu nessa parte era pouco disciplinado porque História dava pra, vamos dizer assim, me virar, portanto não me exigia muito a questão da preparação das aulas no sentido formal do termo. Claro, você definir a matéria, a estratégia que você vai usar, isso a gente já tinha em mente e fazia, mas em se tratando de outras disciplinas como Sociologia e principalmente Filosofia te exigia, mas você tinha uma responsabilidade maior até porque não era normalmente o seu metiê. E aí durante três anos mais ou menos eu cheguei a dar aulas de Filosofia e Sociologia além de História.

P/1 – E como é o aluno do CIEP?

R – Bom, eu trabalho só com o ensino médio, embora lá também tenha uma quantidade razoável de alunos do ensino fundamental. O aluno do CIEP é de origem social normalmente de classe pobre, de classe baixa, agora nos últimos anos tem havido uma inserção um pouco maior de alunos oriundos da classe média com situação de perdas econômicas. A classe média começou a colocar os seus alunos de novo em escola pública e do ponto de vista de interesse desse aluno a gente tem uma variação muito grande no que se refere à participação deles, eu diria que mais ou menos de 30 a 40% mantêm um interesse razoável pra bom em relação ao conteúdo, em relação às disciplinas, as atividades da escola. Aí a gente tem mais ou menos uns 40% também que tem um interesse baixo em relação a isso no sentido de cumprir tarefas, ir pra escola muito mais por obrigação e porque são levados pelos pais a fazerem tal coisa, porque têm que dar satisfação em casa em relação à frequência. O gosto pela formação não é tanto para um percentual razoavelmente grande e a gente tem aí de 10% a 20% que ainda não sabe exatamente o que está fazendo ali, mas que está estudando porque a princípio é levado pelas circunstâncias, mas que não definiu se a escola é importante ou não, se a formação é necessária ou se não é, e que está ali naquele espaço muito mais como uma extensão da casa ou do círculo de amizades do que propriamente dito com propósito de ter uma formação educacional, de ter uma perspectiva em termos de se preparar bem para no ensino superior conseguir uma qualificação profissional, uma formação que vai dar a ele mais tranquilidade, um futuro próximo. Então a gente tem aí um percentual mais ou menos de 20% de alunos que não sabem muito bem o que estão fazendo ali.

P/1 – E aí o que é a escola pra você? O papel do educador?

R – Bom, não é uma pergunta simples de responder, principalmente em se tratando do papel do educador. A escola é ainda pra mim enquanto educador, talvez o mais importante fator de transformação social, mesmo castigada, menosprezada do ponto de vista de atenção das autoridades, de verbas destinadas à educação. A escola pública é e tem que continuar exercendo um grau cada vez maior esse papel de transformação da realidade social. Até pelo público que tem que é uma massa bastante expressiva de pessoas oriundas das camadas mais baixas da sociedade e que na escola elas têm essa perspectiva de transformar a sua própria realidade social.

E que cada vez mais se tem encontrado dificuldades em função da desatenção das autoridades e do próprio poder público em termos de gestor da escola pública no sentido de dotar a escola com maiores e melhores condições para que eles tirem proveito disso. Então eu ainda penso talvez de forma até idealística que a escola é sim o principal fator de transformação social. Num país tão grande e tão diverso como o nosso esse papel tem que ser intensificado em todos os sentidos e enquanto educador eu acho que faço parte desse processo. Interferir na realidade social desses jovens, desses adolescentes, alguns deles já adultos. Interferir na realidade social mostrando as perspectivas de transformação sempre pra melhor, tentar auxiliá-los inclusive em relação às escolhas que eles fazem seja no campo profissional, orientação de formação de personalidade enquanto jovens que são bombardeados por diversas situações e informações que às vezes podem desvirtuá-los. E como educador também tentar construir um processo de conhecimento que dê a eles uma autonomia para que não dependam tanto do educador daqui a algum tempo para ter uma visão crítica, uma postura mais engajada dentro da sociedade, do círculo social deles e até quem sabe, talvez até pretensão, mas eu conto com essa pretensão mesmo, de uma vez estando na escola e absorvendo essas mudanças, essas propostas da escola, eles possam interagir no meio que estão, que convivem que é o meio familiar ou meio social mais próximo no sentido de melhorar a condição daqueles que estão próximos a eles e que a escola seja o caminho também pra isso. Se isso é idealismo ou não eu prefiro ser idealista durante um bom tempo, ainda não perdi esse prazer de desafiar, mesmo quando a maré está desfavorável, o processo de acomodação e mostrar que a gente não deve se acomodar, deve sim criar possibilidades transformadoras críticas, exercer a criatividade do ponto de vista formal mesmo dentro da sala de aula o espaço mágico que é, e mesmo e fora da sala de aula com atividades que possam atrair, chamar a atenção desses jovens pra que eles vejam a escola com a finalidade que acho que deve ter mesmo, de propor mudanças, propor construção, afirmação, amadurecimento, engajamento, visão crítica, essa postura que a gente espera deles e que a gente está junto deles, eu procuro fazer isso.

P/1 – E o que o CIEP anda fazendo nesse sentido?

R – Ah, eu acho que bastante coisa, nos últimos anos, eu sou até suspeito pra falar, mas a suspeição aqui é no sentido bastante positivo porque estou fazendo parte desse processo de oferta de possibilidades que o CIEP tem feito para com os alunos. Atividades extraclasse como passeios, peças de teatro, eventos, debates, palestras de conscientização, campanhas de mobilização, campanhas sócio-ambientais. Então tem congregado uma gama de eventos que estão envolvendo o aluno nesses últimos três ou quatro anos, que está tornando a escola mais atraente para o aluno. Aqueles que de fato queriam o espaço de descoberta, de novas possibilidades, de formação, de aprofundamento do conhecimento felizmente estão conseguindo observar isso dentro do espaço do CIEP. Há pouco tempo a gente vivenciou uma semana de eventos relativos aos 40 anos de 1968, com uma programação extremamente diversificada, indo desde apresentações de filmes sobre o período, o final da década de 60, 70 e 80 relativos ou não ao contexto político. Passando por debates, desfiles de moda referentes ou alusivos às décadas de 60, 70 e 80, por apresentação musical até apresentação de uma peça de teatro que foi alusiva à participação do estudante nesses períodos aí retratados nas décadas referidas que contou exclusivamente com a participação dos alunos, ou seja, participaram de todo o processo, não só de confecção de cenário, de confecção das, vamos dizer assim, peças cenográficas que seriam utilizadas e ensaio. E como era uma peça que era um drama musical também aprenderam e conviveram com a idéia de que eles poderiam cantar. Então isso foi bastante ilustrativo, resultou num aprendizado pra todos nós, mas com um efeito muito positivo para a escola, para os alunos, pra nós professores. Isso mostra que o caminho escolhido de realmente usar o espaço escolar com todo o potencial que ele oferece mesmo que sem os recursos que a gente gostaria que existissem lá, mas que tornem esse espaço atraente pros alunos, que envolva os alunos e faça com que esses alunos participem das atividades, a gente já está conseguindo fazer isso pelo menos há uns três ou quatro anos no CIEP.

P/1 – E me fala qual é a recepção então dos professores numa visão assim mais ampla dos professores e dos alunos assim com esses projetos, recursos pedagógicos...

R – Bom, o engajamento dos professores tem sido total, nas diversas áreas, nas disciplinas que eles têm, cada um desenvolve eventualmente projetos isolados dentro do seu contexto de disciplina seja da área de exatas ou da área de humanas, das ciências físicas, biológicas e químicas. Mas independente do projeto que a escola apresenta, eles procuram participar, se não diretamente, mas pelo menos indiretamente ajudando para que se concretize e no caso agora desse último a gente viu, embora fosse muito mais voltado para a área de humanas: História, Geografia, Filosofia, Sociologia, teve a participação efetiva de professores de Matemática, Física, Química que ou desenvolveram atividades que tivessem uma referência mesmo que fosse pequena à situação de transformação da época. Então a gente, por exemplo, trabalhando, abordando o período de 1968 encontra um professor de Química falando com mais ênfase e até explicando os possíveis efeitos de gás lacrimogêneo quando inalados ou vamos dizer assim tendo contato com os olhos e isso era uma situação muito comum nos confrontos, nos embates que se tinha entre estudantes fazendo suas manifestações e os policiais. Você encontra, por exemplo, um professor de Física explicando determinadas situações em termos de atividades que os estudantes usavam na época como recursos para pichar um muro botando uma frase ou uma palavra de ordem ou os estudantes tendo que improvisar um determinado material para atingir um alto de um prédio. Então como foi feito isso ou a composição de determinado material e isso tudo fez com que as outras disciplinas se aproximassem muito da área de humanas e na realidade foi um projeto multidisciplinar. Por esse aspecto a gente vê a participação muito grande de todo o corpo docente. E por parte dos alunos independente do projeto a gente vê que eles cada vez mais estão interessados, então se tem um projeto, por exemplo, de sexualidade, não só a apresentação de palestras e seminários sobre doenças sexualmente transmissíveis ou então métodos de prevenção ou informações sobre a questão dos cuidados que se deve ter uma vez, uma adolescente, por exemplo, ficando grávida, você vê, percebe claramente o grau de interesse dos alunos. Não que isso surta um efeito imediato, a gente ainda tem que conviver muitas vezes com esse problema, eu não colocaria propriamente dito como um problema, mas a situação de eventualmente você ter na escola uma adolescente grávida. Mas já não é por falta de informação, talvez a forma como esteja sendo tratado o excesso de informação, mas a participação deles tem sido efetiva, então do corpo docente e do corpo discente. Os alunos, eles têm atuado junto com os professores na vivência dessas atividades, isso tem sido gratificante porque eles estão ficando mais tempo na escola, além do período formal das aulas, estão ficando mais tempo porque a escola está oferecendo atividades que atraem esses alunos e isso é muito bom.

P/1 – Você conhece o programa “TôNoMundo”?

R – Eu passei a conhecer efetivamente a partir de vocês aqui, eu tinha informações muito vagas, mas não tinha alguém que tivesse me explicado ou feito qualquer tipo de comentário mais aprofundado sobre ele.

P/1 – Eu vou passar um pouquinho da história da escola, do CIEP pra saber um pouco mais sobre o seu dia-a-dia hoje e um pouquinho de antes também. Eu queria saber você é casado?

R – Sou.

P/1 – Como é que foi que você conheceu sua esposa?

R – Bom, eu conheci minha esposa quando nós fizemos um passeio, quer dizer uma aula passeio pela faculdade às cidades históricas de Minas Gerais, porque ela era prima de uma colega de turma que era minha vizinha, mas só que eu não a conhecia formalmente apesar dela eventualmente ir à casa da prima dela. Então quando nós fizemos o passeio eu a conheci, nós dois meses depois começamos a namorar e após quatro anos de namoro nos casamos, já tenho 18 anos de casado.

P/1 – Eu vi também que você gosta muito de viajar, né?

R – Adoro.

P/1 – E você fez algumas viagens? Conta alguma viagem que você tenha gostado de fazer?

R – Bom, eu gostei de todas elas, em particular essas viagens às cidades históricas de Minas Gerais, elas me chamaram bastante a atenção. Depois de casado eu voltei às cidades históricas. Mas uma viagem que me encantou bastante até pelo inusitado e a época que eu fiz, eu estava no primeiro ano de faculdade foi a viagem a Mato Grosso. Foi um congresso que teve lá de estudantes de História e aí eu tive oportunidade de passar uma semana no Mato Grosso e em particular visitar a Chapada dos Guimarães. Aquilo me chamou muito a atenção, eu que tinha um contato com a natureza ver aquela beleza exuberante saltando aos olhos, são imagens que eu não consigo apagar da memória. É algo que está sempre presente, outra viagem que me chamou bastante a atenção e que me deu muito prazer em fazer foi relativamente curta daqui pra Parati, a primeira vez que eu fui pra Parati, foi em lua de mel e depois eu voltei mais cinco vezes à Parati. Mas a primeira vez me chamou muito a atenção pelo aspecto histórico, pela beleza em termos arquitetônicos, a atmosfera mesmo, eu fiquei encantado com a cidade. Então esses dois momentos, mas mais espacial foi à ida a Mato grosso e em particular a Chapada dos Guimarães.

P/1 – Silvio, você contou pra gente também que fez um documentário com os alunos todos, você quer contar um pouquinho pra gente sobre ele?

R – Posso sim. Foi na realidade a concretização de um projeto que eu tinha há pelo menos uns oito anos, a intenção a princípio era fazer um documentário no colégio estadual, mas eu acabei fazendo no colégio municipal, na escola municipal e foi um projeto que contou com a participação total dos alunos, a gente selecionou um tema e não poderia deixar de ser um tema histórico. Os alunos votaram e tinham lá três ou quatro temas, um deles era a gente fazer um documentário sobre uma das fases da era Vargas ou então sobre o segundo Governo Vargas, o outro era fazer um documentário sobre a revolta da vacina, o terceiro era a revolta dos marinheiros e com menor possibilidade, mas a gente talvez pudesse fazer um documentário sobre o Governo Juscelino Kubitscheck, ou seja, o Governo JK e as realizações dele. Só que os alunos votaram, porque eu fui comentando sobre cada um desses temas, fiz um comentário básico pra que eles se inteirassem e eles escolheram por votação fazer sobre a revolta dos marinheiros de 1910. Feito isso, eles não acreditaram obviamente que a gente ia fazer um filme mesmo, usar uma câmera, formar um cenário, de repente fazer figurino e essas coisas todas. Eles até o momento que de fato saíram da fase de pesquisa na sala de leitura, na biblioteca, nós ficamos pesquisando durante três meses, e começaram a elaborar o roteiro, foi uma construção coletiva mesmo, porque o documentário foi dividido em quatro partes porque eu não queria me ater só ao momento da revolta. Então sugeri e eles aceitaram que a gente dividisse em quatro partes. A primeira parte sobre a infância de João Candido no Rio Grande do Sul, a segunda parte sobre a juventude dele já aqui na cidade do Rio de Janeiro, a terceira parte sobre o momento da revolta e a última parte sobre as décadas seguintes da vida de João Candido até a morte dele em 1969. Então cada turma – eram quatro turmas – se incumbiu de fazer o roteiro de uma das partes e depois a gente juntou, quando eles perceberam que o que eles estavam fazendo de fato era de forma primária ainda, mas já com certa impressão de que aquilo resultaria num filme, começaram a fazer o roteiro e viram aquilo tomar corpo, eles começaram a acreditar, mas ainda assim restava a dúvida, porque eles não viam câmera, não viam nada, eu falei: “Calma que a gente vai ver”, a princípio até pensaram que a gente ia filmar com celular, mas não era com celular não, era uma câmera mesmo. Eu tinha por oferta do namorado da minha sobrinha uma câmera VHS pra filmar, mas eu acabei tendo a gentileza por parte da cunhada do meu vizinho de conseguir uma câmera digital com o meu vizinho. Pequena, dessas mini DV e aí nós começamos a preparar os alunos pra isso, como preparar os alunos? A gente já tinha terminado o roteiro, mas eu precisava do espaço da escola livre, vazio, então a gente só começou a filmar a partir da segunda semana de dezembro. Estranho a escola vazia e os alunos lá e o mais estranho ainda é que eles gostaram de ficar na escola vazia e fazer algo que pra eles tinha sentido e nós começamos a filmar e ao mesmo tempo como parte do documentário foi feito em desenho, uma ex-aluna da escola começou a preparar os desenhos relativos à infância de João Candido, ela ia preparando os desenhos, eu filmava os desenhos, eu não animei os desenhos porque não tinha recursos pra isso, eu filmei os desenhos mesmo. E depois nós dublamos as falas das personagens do desenho e aí os alunos começaram a filmar. E eles começaram de fato a acreditar que estavam fazendo o filme quando além do roteiro, começaram a usar o figurino de marinheiros, atuar, vivenciar as situações, fazer maquiagem, até maquiagem foi feita, decorar as falas. Isso tudo passou dezembro, janeiro, fevereiro e foi até março, o projeto todo durou um ano e meio, nós começamos em 2006, com a fase de pesquisa, elaboração de roteiro, os desenhos, começamos a filmar em dezembro de 2006 e terminamos em março de 2007. Pra eles foi uma experiência incrível e pra mim acredito que tão incrível ou mais do que eles, porque pude perceber ali o grau de interesse de transformação diante de uma situação que era nova, inusitada, mas que estava dando muito prazer. E depois de pronto e sendo exibido... A gente exibiu o documentário numa sala especial que foi arranjada com capacidade pra 300 pessoas e eles viram quase todos os lugares ocupados e a apresentação do filme deles, feito por eles onde estavam atuando numa tela. Eles ficaram encantados com aquilo e a alegria foi tão grande ou maior que a minha, porque os olhos cintilavam com aquela experiência e era algo que iam carregar pro resto da vida. E esse resto da vida de qualquer forma seria diferente a partir daquela experiência e eu pude já presenciar essas transformações em termos de amadurecimento desses alunos, porque tinham um comportamento muito indisciplinado em determinadas situações de concentração, de atenção mesmo dentro da sala de aula, alunos que com frequência se envolviam em situações de conflito com os outros alunos, de o responsável ser chamado na escola. Alunos que inclusive foram suspensos, porque criaram tantos problemas inclusive de briga na escola e de repente começaram a passar por um processo de transformação e amadurecimento e hoje já estão na segunda série do ensino médio, alguns já estão estagiando. A lembrança deles continua muito viva em relação ao que eles fizeram. Pra mim foi gratificante, porque não só trabalhei um conteúdo formal de História de uma forma completamente diferente envolvendo os alunos, era um projeto antigo e que eu pude realizar com toda a precariedade que você possa imaginar. Quase que um filme de 1,99 onde se montou uma rede de solidariedade desde o figurino que foi feito com roupas cujos tecidos foram doados, por exemplo, parte deles por minha esposa, a costureira era a tia da diretora da escola, o transporte pra fazer cenas gravadas no centro da cidade – a gente veio ao centro da cidade seis vezes com os alunos – foi conseguido pelo cunhado do coordenador pedagógico, uma casa foi emprestada por um vizinho do namorado da minha sobrinha, a câmera foi do vizinho. Então toda uma rede de solidariedade foi montada para que o filme acontecesse e ele aconteceu, sem sombra de dúvida que sem essa rede de solidariedade não aconteceria, mas foi uma experiência fantástica.

































































P/1 – Silvio e quais são as expectativas aí? Tem mais algum plano já em andamento? Como é que está isso?

R – Tem, mas só antes, o nome do filme, do documentário, porque eu estou cometendo aqui uma ousadia em chamar de filme, pra mim foi um esforço cinematográfico pra construir conhecimento com todas as dificuldades e todas as limitações, mas o nome do filme é “Pedra de Cais” alusiva à música mesmo O Mestre-sala dos Mares onde o João Bosco e Aldir Blanc falam sobre as pedras pisadas no cais, então o título do filme foi “Pedra de Cais”. Projetos eu tenho sim, não contava em realizar um projeto esse ano que foi pego de surpresa que era da elaboração do texto teatral da peça, mas eu estou com um projeto de num futuro próximo, se possível, conseguir montar no colégio estadual no CIEPS Ulisses de Guimarães uma oficina de áudio e vídeo onde os alunos possam ser capacitados nas diferentes atividades que envolvem isso, desde operar uma câmera, iluminação, áudio, ilha de edição, mas que eles também sejam capazes a partir dessa oficina de concretizar um sonho que não é só meu, mas também de uma equipe da própria escola, registrar alguma coisa sobre a área de Jacarepaguá. Fazer um documentário a partir da montagem dessa oficina com participação direta dos alunos sobre a história de Jacarepaguá, muito mais sobre a memória de Jacarepaguá e a forma como essa memória foi apreendida e é exercitada pelas diferentes pessoas tanto do ponto de vista de faixa etária quanto do ponto de vista de origem social que moram, residem e vivem em Jacarepaguá há muitos anos.

P/1 – Tem alguma que a gente não tenha perguntado e que você queira falar? Alguma história que você lembrou aí nesse tempinho com a gente?

R – Olha, tem sim uma coisa que eu até falei, mas falei muito rápido e talvez não tenha dado a devida atenção. Lembrar a importância nesse processo todo da minha formação, da minha atividade inclusive nunca ouvi um senão, nunca ouvi “Não faz isso porque isso vai te dar dinheiro”, essa percepção do que seria muito mais pragmático em termos de poder aquisitivo você enveredar por um caminho profissional porque era mais conveniente. Sobre esse aspecto era minha, mas eu nunca ouvi um senão, nunca ouvi “Opta por outra atividade, isso não dá futuro”, foi o apoio dado pela minha família em especial pela minha mãe. É uma pessoa extremamente simples que teve uma formação muito pequena, ela estudou até a terceira série primária. Mas que tinha uma visão de mundo bastante apurada, crítica inclusive, sofreu muitas situações, muitos reveses na vida fosse pela condição social pobre, fosse inclusive pela cor da pele ser negra, fosse talvez pela condição de mulher, abandonada pelo marido, em nenhum momento abaixou a cabeça e conseguiu seguir em frente e criar os seis filhos. Foi a pessoa que teve uma importância muito grande e de certa forma foi um norte no sentido de: “Ah, eu preciso fazer isso pra provar que, não só pra mim, mas pra ela mesma que estava certa”, não que eu devesse essa satisfação pra ela, esse desejo, essa cobrança, satisfação, ela nunca exigiu de mim. Na realidade, era eu que queria dar a ela essa alegria, essa satisfação. Infelizmente, ela viveu pouco tempo depois que me formei, depois que comecei a atuar na área do Magistério para poder presenciar alguns poucos projetos, mas que me deram muito prazer, que me fizeram e me fazem ser muito feliz do ponto de vista de atuação no Magistério, do convívio com a área educacional, ela viveu pouco pra presenciar isso, mas certamente estaria muito satisfeita. E creio eu que seria ainda hoje uma satisfação pra ela ver que não estava errada em tendenciosamente querer indicar um caminho pra mim. E eu de certa forma estava certo ao optar por algo ou optei certo por algo que certamente não me daria dinheiro ou vamos dizer assim uma tranquilidade financeira, mas que com certeza me dá muito prazer que é atuar na área do Magistério.

P/1 – E você gostou de dar essa entrevista, essa voltinha no túnel do tempo aí com a gente?

R – Muito, não foi uma voltinha, foi uma voltona, mas foi bastante prazeroso, foi assim gratificante, essas lembranças ainda são muito presentes, mas eventualmente por força das circunstâncias a gente às vezes fica guardando elas em determinados nichos e só retira quando algo suscita. Na realidade aqui foi um turbilhão de lembranças que vieram e a um só tempo e a gente até coordenar isso fica meio difícil, mas foi sem sombra de dúvida muito legal, muito gratificante mesmo.

P/1 – Quem sabe de uma próxima vez a gente faz uma rodada mais longa ainda de conversa?

R – Com certeza pra mim vai ser um prazer, você já percebeu que eu gosto de falar. Embora eu continue frisando “eu sou tímido” (risos).

P/1 – A gente queria agradecer em nome do Museu da Pessoa e do Instituto Oi Futuro e desejar muitos bons planos aí pra frente nessa caminhada.

R – Eu é que agradeço a oportunidade, espero que outros vivenciem essa oportunidade e certamente vão vivenciar e esse registro, a forma como ele está sendo feito, acho que é fundamental no sentido de mostrar o que se faz por aí, não tanto em relação a mim, mas as outras pessoas que certamente têm experiências muito mais ricas, muito mais, gratificantes em termos de exemplo de vida, de formação, de histórias pra contar aqui nesse espaço.

P/1 – Muito obrigada.