Museu da Pessoa

E eu era uma menina

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria de Lourdes Tavares Herrmann

Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Dudude Herrmann
Entrevistada por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 13 de setembro de 2019
Código: PCSH_HV817





_ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira

P/1 – Qual é o seu nome inteiro, Dudude? Onde você nasceu, e em que data?

R – Bem, eu vou começar assim: eu nasci em Muriaé, Minas Gerais, Zona da Mata, que hoje eu a denomino de “Zona do Pasto”. Nasci batizada de Maria de Lurdes Arruda Tavares e vim para Belo Horizonte com três anos de idade. Então, tenho parcas memórias de Muriaé, mas sempre vou lá. E casei muito nova, com 20 anos. Aí, por uma desatenção e falta de experiência, mudaram meu nome no casamento para Maria de Lurdes Tavares Herrmann. Mas, desde a tenra idade, eu me chamo Dudude, me chamaram de Dudude, Maria de Lurdes, Dudude, Dudude, Dudude, e eu respondo por Dudude. E quando eu fiz o meu primeiro trabalho, assim, digamos, profissional, não é? Quando começaram a aparecer produtores - isso nos idos dos anos 80 - aí a produtora colocou Dudude Herrmann. E aí eu fui deixando ser, não é? Não pensava muito, nunca pensei em ser alguma coisa, por isso que até hoje eu penso o que eu posso ser (risos), quando vêm essas crises de subsistência e sobrevivência, não é? Então, assim... Está meio aberta a minha vida, nessa flexibilidade da adaptabilidade de ser no mundo, frente à necessidade de comer, vestir, morar, viver, encontrar. E aí eu atendo por Dudude, de tempos em tempos atendo por Dudude Herrmann, de tempos em tempos atendo por Maria de Lurdes Tavares Herrmann. Mas a Maria de Lurdes Arruda Tavares é a minha origem, pai e mãe.

P/1 – Então você está sendo Dudude Herrmann, é isso?

R – É, eu acho que estou sendo mais Dudude do que Dudude Herrmann, não é? Mas vamos lá. Dois nomes: um apoia o outro. Quando é Dudude, voa muito sozinho, não é? (risos).

P/1 – E como é o nome inteiro da sua mãe?... Desculpe...

R – Da minha mãe?

P/1 – O nome da sua mãe...

R – Ah, minha mãe! O nome da minha mãe é lindo: Áurea Celeste Arruda Tavares. Filha única de Maria do Carmo e Francisco. E o do meu pai, de oito irmãos, Uníade Bernardino Tavares. Filho de Maria da Cunha e de João Etereudo. Não conheci meus avós, de nenhum dos lados, minha mãe era filha única e meu pai era de oito irmãos, onde o pai do meu pai era um pouco exótico, por assim dizer, professor de História e pesquisava nomes famosos no mundo. Uníade... Depois que ele morreu é que eu fiquei sabendo que a pronúncia era estranha, era “Raiunade”, acho que vem da Polônia, foi um rei, não sei. Os meus tios, cada um tem o nome mais esdrúxulo do que o outro, mas todos já estão poeira cósmica, não é? (risos).

P/1 – (Risos) Quais são os nomes deles?

R – Ah... Você quer saber?... Olha só: É Aiderforch da Cunha Tavares, tio Teté. Ou tio João, não sei. Eneúltimo do Casal Tavares, tio Ene. Ofibauertex da Cunha Tavares, tio Teté, o outro era tio João (risos). E as mulheres, não, eram: Maria Geralda, Maira Aidê, interessante isso, não é? E a minha avó, Maria da Cunha, eu a vi quando a gente mudou para Belo Horizonte. Nós fomos morar com a nossa avó, que já estava meio com arteriosclerose, não é?. Será esse o Alzheimer dos tempos de hoje? E... Minha avó era jovem, mas já estava caducando mesmo. É interessante, porque todas as casas em que eu morei - em Muriaé, a casa da minha tia-avó, que eu chamava de avó; a casa dessa minha avó, aqui em Belo Horizonte; a casa dos meus pais - todas não existem mais, mas elas continuam íntegras na minha memória. Então assim... É interessante, porque sempre que eu passo na rua, eu lembro da casa, não é? Aí, outro dia, eu passei na rua Herculano de Freitas, que fica no Gutierrez, que foi o primeiro imóvel que meu pai comprou... Ele era funcionário do Banco do Brasil e eu tive o prazer de viver essa época da vaquinha, chegava uma caminhonete, um caminhãozinho bem pobrinho, mas digno, buzinava e a gente levava garrafa de leite para encher. Aí, quando você abria a porta da casa, tinha uns pãozinhos lá no pacote de pão. E tinha muito lote vago no Gutierrez e a gente fazia piquenique nos lotes vagos, era uma festa, não é? E ali na Herculano de Freitas, no final da Francisco Salles, acho, era um rio que passava ali. Isso foi ontem, não é? Porque nos tempos da História, a gente vive um ponto só, você vai ler um livro e eles falam de intervalos de 100 anos, de 50 anos, de 200 anos. As datas, elas pulam, saltos quânticos. E aí, a gente entra no meio desse salto quântico, dessa evolução rápida e involução também veloz do ser humano enquanto ser humano. Mas é uma saudade que fica guardada porque você acompanha a mudança, e tem várias mudanças ‘no good’. Era um rio com cachoeira, as lavadeiras lavavam a roupa ali e a gente ia lá brincar, não é? Brincava muito na rua, não tinha essa ameaça do perigo, Belo Horizonte era pequena, eu andei de trólebus. Agora, o meu pai nadava no rio Arrudas, você já imagina isso? Quando ele era jovem, ele nadava no rio Arrudas. Isso, nos tempos de hoje, eu falei assim: “Como assim?”. A serraria Souza Pinto, por exemplo, a serraria era perto do rio. Hoje o rio está encapado, os rios que a gente tem hoje são rios de carro. A vida do rio é a luz, e nós, ignorantemente, tiramos a luz do rio, jogamos m…. no rio, isso não é para ficar assim, ‘well, I don’t understand’ (risos). Então assim... Eu ia para a minha escola, eu estudei no grupo Pandiá Calógeras, uma escola pública. Tive professores e tive uma certa obediência na escola. Professor, existia hierarquia, não é? Mas nunca questionei isso, e foi lá no Pandiá Calógeras, a diretora era Emma Ciodaro, uma senhora, a gente a olhava meio assim... E a gente vinha andando por lotes também, sabe? Eu tinha uma colega que eu achava muito interessante, porque ela falava muita mentira (risos). Cada dia ela morava numa casa chique. Assim: “Ai, eu moro nessa casa aqui”. “Ai, eu moro nessa aqui”. “Ah, meu pai tem esse prédio”. Tudo era dela (risos). E aquilo eu achava assim... Falava assim: “Nossa!” Me divertia com a criatividade, mas sem julgar. Eu estou falando isso agora, porque a ficha caiu há pouco tempo, e aí, no Pandiá, a gente tinha... Eu fiz Jardim lá, tinha aquela coisa de levantar a mão: “Professora, eu posso ir para a casinha?”. Casinha era o banheiro, não é? Tinha uma inocência entre nós, sempre desviei de brigas, até hoje eu desvio, acho uma perda de tempo você entrar em um embate com alguém que está lhe afrontando ou quer esbravejar sua raiva, seu ódio para outrem, não é? Joga para o espaço. No Pandiá tinha festas, foi minha primeira experiência com Arte, com dança. Eu fiz uma dança junto com as minhas colegas, que era aquela música: “Eu vivo a vida cantando / hi Lili hi Lili / hilo”. Isso eu tinha uns oito anos, nunca mais saiu da minha lembrança. Interessante isso, não é? Tem coisas que ficam, tem coisas que vão, ainda bem, senão a gente explodia, não é? (risos). A minha mãe era filha única e, desde Muriaé, ela sempre quis ser cantora. E minha avó falou uma coisa seríssima para ela, falou assim: “Olha, eu prefiro uma filha puta que uma filha artista”. Uau. Acho que quando eu comecei a entrar nesse lugar do sensível, minha mãe abriu, porque ela sabia da dificuldade que ela teve. Ela fugia para poder cantar em Campos, cantava muito em igreja. Naquela época, as igrejas eram católicas apostólicas romanas, então tinha uma vertente, talvez as outras fossem um pouco escondidas ou agrupadas. Aí, minha mãe veio para Belo Horizonte, a gente veio, moramos também no Edifício Paris. O Edifício Paris fica na Praça Raul Soares, é um quarto-e-sala. Aí, aquela meninada, morando em um quarto-e-sala e minha mãe um pouco desesperada, por isso que a gente foi para a casa da nossa avó, mas não ficamos por muito tempo porque meu pai conseguiu comprar esse apartamento, que era para mim um mundo imenso. Hoje eu passo lá, acho ele mínimo. Interessante isso, não é? Mas faltava muita água naquela época, por causa de todo esse modo de construir cidades. O Gutierrez era fora da [Avenida] Contorno, já era uma periferia, vamos dizer assim - hoje já é Belo Horizonte, a periferia foi chegando mais para os lados, alargando, a cidade que cresce, vamos crescer, gente, de qualquer jeito, faz um puxadinho (risos). É o Brasil dos puxadinhos, é impressionante, quantas árvores eu vi morrer, não é? Eu agradeço sempre quando vejo esses ipês floridos. Falo assim: “Teve alguém na Prefeitura que plantou árvores. Teve alguém que deixou eles crescerem”. É um presente de gentileza, não é? Eu acho que sou assim porque minha mãe sempre foi preocupada com o mundo e ela morreu na hora certa. Todos nós morremos na hora certa. Aí, minha mãe, nos anos 70, ela parou de dirigir para não poluir o planeta (risos).

Você imagina isso? A gente, depois de um tempo, mudou para a rua Ceará, para uma casinha de 1940, que tinha porão, que hoje não existe mais, só esse apartamento que existe, é um prédio. De três andares, mais antigo, para vender, fazer espigão, é complicado, tem que ter a concordância de todos.

P/1 – Só um pouquinho... Você sabe como seus pais se conheceram?

R – Meus pais, claro que eu sei (risos). Em Muriaé, porque como meu pai trabalhava no Banco do Brasil, ele foi transferido para Muriaé e toda cidade de interior tem uma praça e tem um footing - eu já fiz muito footing. Você sabe o que é? Footing são as mulheres de um lado e os homens do outro (risos). Naquela época, eram as mulheres de um lado e os homens de outro, aí você ficava dando volta para encontrar mais rápido. Às vezes, você corria e mantinha o passo, depois tinha o coreto, o churrasquinho de Muriaé era muito famoso. E a praça hoje, se você chega em Muriaé, ela está bem detonada, aqueles prefeitos inconsequentes que querem dar um tom moderno, aí tira o que foi construído para sempre, para, egoisticamente, falar: “Eu que azulejei esta praça, oh!” (risos). Você fica falando: “Ah, meu Deus do céu!” Eu acho que sou uma pessoa conservadora nesse sentido, porque... Sabe Walter Benjamin? Ele tem um texto sobre o anjo do progresso em que ele fica com as asas abertas, atrás dele tem só ruína, e ele está com a boca escancarada, com os olhos assim, arregalados, para frear o que ele chama dessa ventania que vem, que chama progresso, porque o desejo dele é arrumar, é da gente ir cuidando todo dia, não fingir que não viu. “Deixa para o outro resolver”. Isso é familiar (risos). Aí, meu pai conheceu minha mãe no footing. E dali, travaram relações. Eu nasci no Hospital São Paulo. Eu fui dançar em Muriaé em 2015... Eu tive... 2015? Foi 2015? Eu já não sei mais... Eu só sei que eu estive lá em Muriaé em 2006, com um projeto que se chamava Visitas bem-vindas, que eram performances em lugares públicos. Aí, eu fui para a praça, porque a gente ia fazer na praça, cheguei na praça, estava imunda, falei: “Me dá uma vassoura, deixa eu varrer aqui”. Porque a gente rolava no chão, fazia um monte de coisa, aí estou lá varrendo, chega minha prima: “Nossa senhora, você não tem mais a casa da vovó, veio varrer aqui na praça”. Aí que ela me lembrou que sempre que eu ia em Muriaé, eu varria debaixo da mangueira, o quintal, que tinha aquele musgo verde, eu adorava ficar varrendo as folhas. Cheguei, em 2006, fui varrer a praça. Aí encontrei com a menina que era a Secretária de Cultura, eu falei assim: “Olha, eu acho um absurdo que eu nunca vim aqui dançar”. Muriaé está com um teatro agora. “Você tem que me chamar”. Sabe quanto tempo durou essa negociação? Dez anos. Então, 2006-2016. E aí, esse nome Herrmann não é de Muriaé, então eu não sou de lá, não é? Eu tenho sempre que lembrar: “Eu sou prima de fulano, ciclano”. E eu estou lá dançando, pá e pá e pá, de repente, eu dou uma caída no chão e falo assim: “Eu nasci no Hospital São Paulo” (risos). Aí a plateia veio no chão, não é? Porque eles já estavam olhando meio assim: “Que dança é essa, o que é isso?”. Eu fui com meu trabalho mais delicado, gentil e amoroso para não entrar em conflito, não é? Então essa negociação durou dez anos. Mas meus pais conheceram lá, aí casaram, minha avó morou junto com os meus pais, quer dizer, eles moraram junto com a minha avó, porque mamãe era filha única. Minha avó morreu e meu pai foi transferido. Então, você vê, se não tivesse sido transferido, quem seria eu agora? Outra coisa. Isso que é louco. Como o movimento de um provoca toda uma redireção, redirecionar, e isso vai movendo. Nós viemos para Belo Horizonte, eles foram casados a vida inteira, um casal típico, nessas coisas de respeitar uma ordem. Minha mãe foi dona de casa e cantora, ela cantava, era profissional, mas não tinha esse... Sabe esse negócio? Então, ela fez várias óperas no Palácio das Artes, com o Maestro Mariani,com a Berenice Menegale, trabalhou na Fundação de Educação Artística, que é um lugar de produção do sensível, da música, da pesquisa da música, da contemporaneidade da música, mamãe foi professora de canto lá, foi professora de canto lá em casa também, tinha um piano, dava aula, recebia professores para a Fundação. Nesse ínterim, ela era colega da Maria Amália e Maria Amélia Martins, que são da área da música. A Maria Amália é mãe da Lydia del Picchia, irmã da minha professora de dança, Marilene Martins.

P/1 – Da sua escola? Professora da sua escola?

R – Não, a minha mestra.

R – Então, eu sou a segunda.

P/1 – Filha?

R – Eu tenho mais quatro irmãos, tenho uma irmã mais velha, chama Fernanda; aí vem eu, Maria de Lurdes; aí vêm duas irmãs gêmeas, que são Carla e Mônica; e meu irmão Paulo, que nasceu em Belo Horizonte. Um dia, eu perguntei para minha mãe - porque eu achava muito estranho isso, de ter só irmãos Fernanda, Carla, Mônica, Paulo. E Maria de Lurdes? Não entendia muito bem, Maria de Lurdes estava sobrando aí. Aí eu falei: “Mãe, você gosta desse nome?” Aí ela falou assim: “Não”. Aí eu falei: “E você botou esse nome em mim?” (risos) “É porque sua avó queria muito”. Porque não sei se eu nasci no centenário de Lurdes ou de Fátima, aí que eu entendi por que eu tinha várias colegas, Bernadete Fátima e Maria de Lurdes, quer dizer, a mãe das minhas colegas, a maioria era Maria de Lurdes, então você vê que os nomes católicos dessa época eram muito fortes. Tive muito colega Maria do Socorro, Maria da Piedade, Maria Auxiliadora. Imagina, Maria da Piedade? Maria da Anunciação, muito. Maria das Dores. Imagina você chamar Maria das Dores? Dozinha. Então assim... Era muita Maria. Maria de Fátima, muitas. Aí, eu entendi que eram todos relacionados com a vigência religiosa daquela época. Bom, o tempo passou, eu estava na minha mãe ali, cantora lírica, a gente ia sempre, então esse lirismo, esse escutar todo dia “mi mi mi mi mi”, “mo mo mo mo mo”, “la la la la la” e, lá na minha casa, na rua Ceará, andava uma senhora que vestia roxo, muito elegante, mas um pouco “outsider”. Então, ela tocava a campainha e perguntava: “Tem piano?” A gente falava: “Tem”. Ela já entrou, já está na sala. Entrava, descia a mão e tocava bem, tocava, tocava, tocava, tocava, fechava o piano e ia embora. Uau, não é? (risos). Nunca soubemos quem era essa, mas ela visitava várias casas que tinham piano. Mamãe frequentava a Fundação e, nesse ínterim, ela conheceu a Maria Amália e a Maria Amélia. Malinha e Melinha e as minhas irmãs, elas tinham perna em arco, aquela coisa que o médico fala assim: “Não, tem que fazer balé”. Aí, eu falei assim: “Mãe, também quero, por que só elas? Eu também quero”. E era na esquina da minha casa, porque eu morei muito tempo na Herculano e fui para a Ceará, que é perto do Colégio Arnaldo - eu tinha doze anos, doze ou menos. Ah, eu estudei em uma escola também, Regina Pacis, na rua Herculano de Freitas, fiz a quinta série, um tempo perdido, era moda fazer quinta série, admissão, hoje é outro nome, hoje mudou tudo. A Educação está se procurando porque foi perdida, não sabe, está tudo perdido, tem que se refazer de bons ares, bons ventos, acreditar no ser que habita o humano (risos). Mas aí, no Regina Pacis, também fiz uma experiência artística: eu ia assinar a Lei Áurea - Princesa Isabel. Tinha que falar um negócio, uma frase só minha. Me deu uma crise de risos, que aquilo eu não parava de rir para falar, era nervoso, (risos), eu fiquei traumatizada daquele negócio, mas já era uma experiência, mal eu sabia que depois eu ia virar uma tagarela (risos). Mas aí...

P/1 – Tinha que falar o quê, você lembra?

R – Eu não lembro se era “Já que é isso, eu assino esta Lei”. Não sei, era um negócio assim, sabe? Eram poucas palavras, só que as irmãs ficavam me olhando, querendo me matar, não é? “Ensaiamos tanto para você dar esse ataque”. Mas foi ótimo, marcou a minha vida (risos). Aí depois, eu fui para o Instituto de Educação - entra burro saí leão. O Instituto de Educação era uma escola só feminina, o ginásio, e foi nessa época do Instituto que eu comecei a fazer... Não, acho que mudei para o Ceará, eu tinha dez anos, aí comecei a fazer balé. Eu nem sabia o que era balé, fui lá para me divertir e até hoje eu faço isso, vou nos lugares para me divertir. Posso divertir chorando muito, mas eu estou colocando o meu corpo em uma aventura, que eu não sei muito bem o que é, então eu chamo isso de divertimento; posso estar no fundo do poço, mas vou lá, ganho força e saio de novo.

P/1 – Queria lhe perguntar: como era a casa da Herculano de Freitas, você entrava...?

R – 974. É um prédio. Era o terceiro andar. Herculano de Freitas, 974. Eu não sei se era 31, 32, porque eram dois... Aí, a gente morava na rua Ceará 771, era perto da igreja. Meu pai, quando aposentou, virou para nós e falou assim: “Ou eu vou ser beato ou eu vou ser alcoólatra”. Aí ele foi ser beato, ele era jogador de peteca. Mas aí, a escola em que eu comecei era uma escola que estava começando, dessa pessoa que se chama Marilene Martins. Então, eu acho que eu sentada aqui, contando a minha história, dessa memória viva, que habita em mim cotidianamente, eu estou trazendo vários que não estão aqui, mas que fazem parte desse tecer, não é? Como é a própria minha mãe, meu pai. Meu pai ia ver os meus trabalhos no teatro, sem me avisar, como um público comum, nunca me pediu um convite, parecia que ele não estava nem aí, eu não sabia que ele ia. Aí, passado um tempo, ele me falava. Eu acho isso maravilhoso e minha mãe, um dia, ela virou para mim e falou assim: “Dudude, você escreve muito bem”. E eu assim: “Ok, obrigada”. E hoje eu acabo de lançar meu segundo livro e estou fazendo um terceiro. Então, agora eu estou, assim, com a escrita solta. Nesses tempos atuais, onde o exercício da Arte anda aos trancos e barrancos, você que trabalhou anos na sensibilidade, precisa extravasar, buscar lugar de escoamento da sua impressão de mundo e a caneta e o papel têm sido muito recorrentes, todos os dias eu escrevo um pouquinho. Mas, deixando isso para lá e voltando, aí eu comecei a fazer essas aulas de balé, eu achava linda a minha professora porque ela tinha uma malha assim, justinha. A Nina era assim: “Uau”, beautiful woman, sabe? Loira, charmant, very, very, charmant e usava uma sainha, não é? Tinha meia, mas ela usava sainha. Aí, na hora em que ela deitava no chão e abria a perna, pegava a sainha, tampava assim, esticava a perninha, aquilo eu achava muito curioso porque eu não tinha exemplo, eu não sabia: “Ai, quero ser bailarina”. Eu jogava futebol na rua, era mais de subir na árvore, descer da árvore, pique pegador, brincava muito com os meninos, era assim uma moleca ativada, eu acho que hoje poderiam me nomear daquela coisa que os meninos têm, que não para, como é que é isso, esqueci o nome, gente.

P/1 – Hiperativo?

R – Hiperativo, foi exatamente. E você sabe que para quem é hiperativo, dançar é ótimo, você concatena as ideias, então eu tinha muita energia. Aí, ali virou um lugar muito especial para mim. Eu ia sozinha, aí minhas irmãs logo desistiram, não acharam muita graça e eu fui ficando, era o começo de uma escola, não é? Aí, a Marilene, que eu vou nomeá-la de Nena, porque esse é o nome, Nena, foi para a Bahia e ela fazia aquele movimento dos anos 60, 70, dos artistas, meio ditadura militar, os artistas acomunados, se fortalecendo juntos, se amparando, seguindo e desviando de todas as barreiras para poder existir, que eu acho que hoje é um pouco parecido, mas bem diferente, porque hoje nós temos uma comunicação tela plena, uau, é bom e é ruim, veloz demais, o corpo ainda é um ser animal, o cérebro ainda precisa de tempo para se reaver, a escuta, o entendimento, tem todo um tempo letárgico que é natural ao corpo. Você ser esperto demais, você estoura, você vira um corpo movido a remédio, você perde. Você vê quanto tempo demora uma árvore para crescer, gente, ela obedece ao ciclo das estações do ano, mesmo que elas estejam desaparecendo, tem um sentido de conexão que elas estão escavando. Hoje, eu sou Leviata, eu falo um assunto e pulo para o outro. Aí hoje, olha o que eu vi, eu botei uma baciazinha com água para botar meus cristais, para eles tomarem banho, dar uma limpada, porque a atmosfera está densa, um marimbondinho bebendo água, ele ia lá naquela baciazinha e ficava bebendo água naquele mundo de água para ele - eu e ele. Eu falei assim: “Ô, querido, que coisa linda isso”. Minúsculo, “Você é tão importante para que eu... Nós continuemos vivos". E ele estava lá, eu achei isso maravilhoso. Então, essas pequenas frestas de conexão vão nos limpando também, aí eu ficava lá na Nena, que eu achava... Ela dava aula no subsolo do apartamento, que também é um prédio antigo, é na rua dos Otoni com Piauí, é um prédio de esquina e tinha o subsolo, que eu achava aquilo também imenso. Hoje, eu chego lá, acho assim... Gente, como é que o espaço muda, o horizonte estica à medida que a gente vai envelhecendo, não é? Aí, a minha casa era aqui, a rua dos Otoni aqui, a casa dela era aqui, cinco minutos ou menos que cinco minutos eu já estava lá, e essa escola foi uma pérola para a cidade de Belo Horizonte, porque naquela época... Você imagina TFM - Tradicional Família Mineira - modos, costumes arraigados, discretos, católicos, dissimulados (risos). Aí, a Nena tinha alguns alunos, a minha irmã também entrou, a mais velha, a Nena tinha mais ou menos 18 alunos. Bem, nessa escola tinha os alunos e eram aqueles alunos.

P/1 – Os 18?

R – Os 18. E assim... Na primeira vez em que eu dancei, eu tinha 12 anos. Sensação. A Nena usou todo mundo, só que tinha uns mais velhos, não é? A gente era meninada, mas fazia... E o trabalho era um trabalho assim, de pesquisa, a gente estreou no Teatro Marília. Nessa época, Belo Horizonte tinha Teatro Marília, Teatro Francisco Nunes, eu acho que o Palácio das Artes, Fundação Clóvis Salgado vem meio nessa mesma época, mas assim... O teatro mesmo era o Marília, que ficava perto do Instituto de Educação, tudo na mesma zona. Eu morava na Ceará, Instituto estava ali e o Marília, e foi aquela sensação. Eu não sei o que eu sentia de tanta alegria.

P/1 – Como você fazia para ir lá?

R – Ia a pé, também. Aí era muito interessante porque veio uma crítica para mim. Falava assim: “Dudude, você está dançando muito bem, você só está contando tudo”. Porque a gente contava. Dança, uma das ferramentas é manter o pulso, aí eu fazia um (interpretação), dançando com a boca assim, mexendo. Nunca esqueci desse comentário, foi embora, nunca mais contei e agora se eu conto é de propósito (risos). É interessante. Aí, nesse conjunto, tinha os irmãos Perdeneiras, olha só. Então, esse núcleo, vários que estavam ali continuaram esse fazer dança, esse fazer Arte. Esse trabalho da Nena provocou assim um “Ah!”, porque até então eram aquelas danças... Assim... você vai em cidade do interior, a dança é que está na pauta, sempre tem uma escola de dança clássica. Eu fico olhando o Brasil, falo assim: “Gente, não podia ter uma escola de dança Afro?” De ‘street dance’, ou dança de rua, na rua? Por que o clássico está sempre ali na nossa sociedade? Claro que sabemos o porquê e não sou eu que vou falar (risos). Aí, a Nena vai para a Bahia e quando ela volta da Bahia, ela volta transmudada. Ela não mudou, ela trasmudou. Porque aí ela já queria uma escola de dança brasileira, queria trazer informações para a gente montar esse corpo flexível brasileiro, sem maquiá-lo para uma ideia estrangeira, mas também pegando as técnicas de outras terras, fazendo uma salada antropofágica total. A minha irmã, a Fernanda, estudava no Arnaldo. Ela vira para a Nena e fala: “Nena, tem uma sala imensa lá no Arnaldo, quem sabe os padres alugam para você”? E aí deu-se a grande mudança, porque até então estava lá no subsolo. Ela vai para cima da capela do Colégio Arnaldo, imagina? O Colégio Arnaldo, a capela dele é cheia de arcos, abóbadas... Para ter abóbadas, o chão de cima era todo cheio de estaca com tábua corrida, é o piso ideal, porque ele tem ‘balon’, como se diz, igual a uma onda. Você pula e o chão te recebe, não dá tanto impacto como quando você pula em chão duro; você pula, vem até aqui a sua coluna, sua coluna recebe, isso é lei da Física. Aí, a gente tinha espaço. Então, eu falo que fui criada na fazenda da dança porque, imagina, a capela do Colégio Arnaldo é grande, aquela sala inteira era a sala de dança, então assim... A gente começou a ficar exagerado nos braços, no movimento, e ali ela muda o nome para Transforma Centro de Dança Contemporânea. Eu começo a dar aula lá, os Perdeneiras em 1974 se reúnem e se descolam do Transforma, formando o Grupo Corpo, como primeiro trabalho deles, que arrebentou a boca do balão. Eles começaram do alto e jamais desceram, entendeu? Fez Maria, Maria... Mas assim... o Transforma foi ficando... A Nena sempre fez questão de ser um grupo experimental de dança, muitas pessoas olharam essa palavra “experimental”... Mas a gente experimentou demais, entendeu? Porque a gente não tinha exemplo, nem exemplo de sucesso, nem sei se ela se preocupava com sucesso, mas ela se preocupava com essa dignidade de construção de dança. Eu era uma menina, então quando foi... E eles foram, mas eles foram em bando, porque era família, não é? Os amigos também foram. Então, 1974 foi um ano meio “uau”, eu devia ter... Tem que fazer as contas, 1974 para 1958...

P/1 – 16.

R – Eu tinha 16 anos, não é? Ali eu comecei a dar aula, eu tinha medo dos meus alunos, mas a Nena ficou dois anos comigo, eu comecei a dar aula com 14 anos e a Nena ficou dois anos assistindo minha aula. Quando ela chegava, eu tremia nas bases, ela ia me corrigir, eu ia fazer os ‘trens’ errados (risos). Mas depois que o tempo passa, você fala: “Nossa, que luxo”. Você ter uma pessoa assistindo sua aula e falando: “Olha isso!”. “Olha aquilo!”. “Presta atenção nisso, naquilo!”. Foi muito interessante, porque quando ela me chamou para eu dar aula para profissional - isso em Belo Horizonte - naquele tempo carta, interurbano, telefonista, comunicação “uau”, tempo dilatado, então fazer também era um tempo dilatado, não era tempo de projetos, não havia isso. Não havia prospecção de carreira: “Vou ganhar dinheiro com isso”. Também não havia e eu nem me preocupava com isso, me preocupava em dar aula e ganhar meu dinheirinho (risos). Aí, muito doido, não é? Muitos colegas meus, amigos, foram para a Europa, Estados Unidos, porque se quisessem ser, tinha que sair. Mas era tanto prazer que eu sentia de fazer as coisas, sem exemplo, não é? Eu ia fazer aula de dança clássica em outras escolas, que até hoje tem, você chega em uma escola de balé, aí tem a Makarov, agora tem os novos que eu não sei o nome, Baryshnikov, Jeté fazendo aquelas coisas, professores... “Vocês têm que ser assim”. Eu falei: “Gente, eu não posso ser assim”. Então, esse exemplo, a forma exata, mas de um corpo brasileiro, que tem swing. A gente reconhece o batido de um tambor, isso é uma preciosidade. Então, esse corpo misturado tem tanta potência e tem horizonte. Eu fui agora para a Holanda, fiquei em Amsterdam - linda a cidade, organizada - mas aquela cidade está sempre assim, o céu é próximo da sua cabeça e o horizonte é habitado. Aqui eu vejo um horizonte espacial, de “fuuuu”, a gente anda quilômetros, as cidades são imensas, mas tem ainda um horizonte, só falta horizonte em si, não é? Dos habitantes deste país, eles estão com horizonte entalado por desvalias, é impressionante, ‘eita’ capitanias hereditárias que não querem sair, mas aí deixa para lá. Aí, no Transforma, a Nena me chamou para dar aula. Quando eu tinha 18 anos, ela falou assim: “Dudude, agora você vai dar aula para profissional”. Então eu virei para ela e falei assim: “Mas, Nena, eu posso inventar?” Ela falou: “Fique à vontade”. E foi ali que eu fui inventando um modo e inventando frases coreográficas, conexão, aí foi tudo assim: intuição, intuição, intuição, deixa vir, assim está bom, pá, pá. Mas eu tive uma base, uma base que foi uma técnica ancorada no afeto, fui criada na fazenda, não é? E dali tem vários casos de Belo Horizonte, eu sempre fui ligada na percepção da cidade ir mudando. Ali perto do Colégio Arnaldo tem a Avenida Bernardo Monteiro, ela era uma rua estreita, com um canteiro imenso, toda cheia de figos e terra vermelha, eu andava de bicicleta ali. Hoje, a rua cresceu e o canteiro diminuiu, as árvores estão grandes e são ipês agora, isso é interessante, ainda bem que ainda tem árvore. Aí, se eu puxar um fio aí... Vou puxar um fio. Eu comecei a dar aula e eu dava aula, assim, para 40 pessoas. Hoje eu dou aula, aqui em Belo Horizonte, para cinco, para seis, às vezes para um; então, nisso a gente vê a mudança. É claro que, naquela época, eram menos pessoas no mundo inteiro e estávamos em uma ditadura militar e precisávamos de bolhas de oxigênio, então eu acho que o Transforma era um lugar de oxigênio. Por isso, muitas pessoas faziam dança - era homem, mulher, todo mundo, não tinha problema.

P/1 – Você tinha aluno de que você gostava? Algum aluno que lhe marcou nessa época?

R – Vários.
P/1 – Você estava falando dos seus alunos...

R – Ah, meus alunos. Eu tive colegas também, a gente se vê, assim, se reconhece. A Boni Maria de Figueiredo Mariano, ela parou de dançar, foi ser dentista. A Claudia Sheine foi ser educadora. Eram minhas colegas. Tive Alcione. Alcione, uma mulher linda, que eu ficava só assim: “Uau”. Alcione, eu não sei se ela trabalhava na Universidade - professora de Economia - um dia eu a vi ali, mas a gente quando se vê, fica feliz. De vez em quando, eu visito a Nena, porque agora ela está doente, está com 84 anos e ficou muito doente, de tristeza, não é? Porque o Transforma foi fechado em 1985 e Nena escrevia também, olha só que coisa, e a minha letra parece com a dela. A gente teve uma relação muito de cria mesmo, de confiança, e eu tive alunos que... A Juliana Braga. Juliana Braga hoje mora em Amsterdam, é professora de dança de salão; eu tive a Mônica Rodrigues, que hoje faz ioga; a Maria de Jesus Fortuna Lima, que já está no infinito estelar, não é? Maria de Jesus, um dia, eu estava tendo uma aula, aí a aula acabou, era a última aula e eu estou organizando os discos, fechando tudo, cuidando do espaço, ela vira para mim e fala assim: “Nossa, você cuida tão bem desta casa”. Eu não tinha percebido isso, mas depois fui perceber. Tem coisas que as pessoas falam para a gente e que você escuta e leva para a sua vida. Então, todos os lugares em que eu vou dar aula, que não são meus, meus, mas eu preciso cuidar - lugar público, lugares em que eu estou de passagem - eu desligo da tomada o som, eu vejo se a luz está apagada, eu cuido e agradeço aquele espaço, porque lugares que trabalham com campo sensível são precisos e nesses tempos atuais, são quase templos, porque nós precisamos demais de sensibilidade, não é? Para perceber aonde estamos e como estamos a fazer. Então, as minhas aulas agora elas estão, assim, galgadas na ecologia humana, ali eu fiquei no Transforma, quando meu filho... Aí tem a Smar - ontem eu encontrei com a Smar - a Smar tem o nome aqui na cidade, de Tomate. Smar foi minha aluna, é filha da Yara Tupynambá, ela sempre falava: “Bailarina Dudude, Bailarina Dudude”. Aí nós temos um elo. Ela ia me ver e tinha sempre uma crítica refinada para me falar; se gostasse ou se não gostasse, ela falava na hora, no meio da plateia (risos). Muita gente estudou comigo, eu estou falando desses, enquanto Transforma. Depois eu tive Tarcísio Ramos, Arnaldo Alvarenga, a Lúcia Ferreira, Fernanda Vianna, Lydia Del Picchia, Pedro Prates, a Sônia Camarão, a Lelena Lucas, são vários, isso estou falando da década de 80, éramos jovens (risos). Muitos alunos estudantes. Eu não gosto muito de falar aluno, é gente que estudou, continuaram na sua lida da Arte, isso é valoroso. Muitos foram para outros lugares de sobrevivência, mas, às vezes, eu encontro alunos. Teve uma vez... Eu já estava descolada do Transforma, teve uma vez que eu fui dar aula em Governador Valadares, a coisa que eu achava mais interessante fazer lá, era ficar atravessando o rio - era cinquenta centavos. Eu chegava na balsa, ia para o outro lado, dava uns cinco reais para ele e ficava indo e vindo, indo e vindo no rio, que era um calor, não é? Aí quando eu ia dar aula, na hora da aula, aquele teatro mal cuidado, mofado, aquele monte de pessoas carentes de um olhar, eles ficavam me mostrando o que eles sabiam fazer, mas a aula mesmo não acontecia e eu ficava tentando vários truques para ver se eu capturava. Até falo mais alto, mas eles foram muito gentis, foi um dos poucos lugares que eles me chamavam depois da aula para tomar uma cerveja, pá e tal. Teve um dia que eu dei um ataque que eu até assustei também. Eu falei assim: “Eu quero todo mundo calado, olha para mim, vocês estão achando que eu sou animadora de festa?” (risos). Aí, fui falar de Arte, que não era esse espaçar no tempo, está valendo, mas dei um pito, minha voz... Tá! Aí, passado um tempo, estou lá no Palácio das Artes, escuto isso: “Ô, fessora, ô, fessora...”. Eu olhei, falou assim: “Você lembra de mim? Eu sou daquela oficina do pito” (risos). “Eu agora sou palhaço”, que não sei o quê. O menino era um talento mesmo, aí eu fiquei toda feliz, não é? Porque aproveitou a oportunidade, não esqueceu desse pito e foi ser palhaço. Mas aí assim... Eu fiquei no Transforma até 1984, dando aula. Não, ou menos, 1982, eu estou meio perdida, porque, nesse ínterim, eu casei - isso é importante falar - eu casei, apaixonada (risos).

P/1 – Nesse meio, como é que foi com a sua família? Você falou que seu pai ia assistir mas não lhe falava, como é que eles aceitaram?

R – Claro, sem problema algum, por causa daquela coisa que eu falei aqui sobre a minha mãe com a mãe dela, e minha mãe cantava. E eu cumpria as funções: eu ia para a escola todos os dias. Mas a minha vida acontecia na escola de dança, então assim... Dos meus colegas, eu não tenho muita lembrança, só de alguns, mas meio... Assim... Outro dia, encontrei a Meire Evangelista. Meire estava no laboratório de saúde, fazendo exames, e aí eu reencontrei com Meire. E assim tem a Bernadette von Atzingen, que eu adorava ir na casa dela, ela era filha única também, hoje ela é fonoaudióloga, a gente tem contato assim, mas... Não é? Essas coisas da vida, que a gente encontra e cada um vai para o seu rumo, mas essas pessoas estão. E a Bernadette von Atzingen, achava esse sobrenome muito bacana, filha única, a mãe cozinhava maravilhosamente bem e como a mãe chamava? Lurdes, dona Lurdes. E dona Lurdes, na casa dela, tinha um quintal e tinha a árvore de uvaia, conhece? Uvaia dá uma geleia deliciosa e o que eu plantei na minha casa, em Casa Branca? Uvaia, é um monte de frutinha amarelinha assim, linda, e eu achava lindo aquele quintal, cheio de árvores, hoje sumiu, não existe mais essa casa, como várias outras que eu vi. Eu tive o privilégio de ver casas... É onde ficam os Diários Associados, ali na Getúlio Vargas. Aí, sempre que eu ia almoçar lá, tinha sobremesa, deliciosa a sobremesa, acho que eu gostava de comer bem, sabe? Comia com aquela boca boa, de furor da vida, vamos viver (risos). Aí, um dia, eu fui lá almoçar e a dona Lurdes falou assim: “Ih, hoje não tem sobremesa, só tem banana”. Eu falei assim: “Obrigada, banana eu não quero não, porque lá em casa tem”. Eu falei muito inocente isso (risos). Eu não sabia qual falta de educação eu tinha feito, que isso depois eu fui ver, que eu Nossa, eu recusei, falei que lá em casa tem, que eu estava interessada na sobremesa (risos). Mas aí o tempo passou, a casa sumiu, várias outras sumiram (risos). Aí eu casei.

P/1 – Posso lhe perguntar uma coisa antes? Sua mãe cantava...

R – Lírico.

P – Lírico, mas você se lembra dela cantando outras canções na sua casa, o refrão?

R – Claro.

P/1 – O que ela cantava?

R – Ah, das canções eu não lembro. Do que ela cantava para nós? Não, eu não lembro.

P/1 – Era só...

R – Era, a gente ouvia de tabela (goodnight, my north? Goodnight, goodnight my north? [01:07:54], ta ra ra, ta, ta ra ra) (canta). Meu pai cantava muito também, assim... en passant, e eu gosto muito de festa, então, na minha casa, sempre nos aniversários, eu fazia muita festa, não é? Aquelas festas que... Tinha só duas qualidades de vinho, que é Château Duvalier, eu nem sei se existe mais: Liebfraumilch e sangue de boi, é claro. Então eu comprava algumas garrafas de vinho chique - Château Duvalier e Liebfraumilch - e comprava vários garrafões de sangue de boi. Aí, acabando esse vinho, eu colocava sangue de boi nas garrafas (risos). E a gente ia para muita festa de dança, muita, a gente dançava muito em festa, muito feliz de dançar, e saíamos a pé, andávamos a pé pela cidade, sem medo. Isso foi ontem, quanta coisa mudou em um intervalo mínimo de tempo. O mundo, o planeta, o Universo, gente, para você ver, nós não temos 150 anos da Lei Áurea, isso é muito recente, entendeu? São três gerações de 50 anos. Ainda não tem 150, ou já tem? Não tem. Olha que vergonha, não é? Quanta coisa precisamos perdoar, limpar e mudar os ares, nos tratar como cidadãos de bem, iguais, Nossa, é muito trabalho. Hoje, eu acho que o artista tem que trabalhar demais nesse campo, sabe? Da humanidade, a humanidade, somos contemporâneos de árvores, vi árvores crescerem em Belo Horizonte, vi árvores morrer, e assim... É muita coisa, porque é tudo junto, essa ecologia humana, esse sentimento gaia fica mais latente à medida que o tempo passa. Então, voltando à vaca fria, eu conheci meu namorado, meu ex-marido, no Colégio Arnaldo: Raul Herrmann Júnior, a mãe dele chamava Maria de Lurdes - chama Maria de Lurdes - e o pai, o Raul Herrmann. Opa, eu Maria de Lurdes e ele Raul Herrmann. Opa, droga (risos). Mas aí, a gente era meio hippie, essa coisa de pasto, não é? Tinha o Léo Beleléu, que era um amigo nosso, que tinha um jipe sem capota, que a gente ficava andando pela cidade. Meu pai, era de lei me obrigar a ir à missa. Aí, meus colegas... Eu ia à missa, andar de jipe, durava a duração da missa, todo domingo, ai, socorro. Mas eram essas leis da hierarquia familiar, da obediência, de você honrar pai e mãe. Isso eu tive uma educação amorosa em casa, assumida, e aí eu fiquei grávida. Casei. Entendeu? Naquela época, a maioria das minhas amigas casavam grávidas, mas eu já estava fazendo lua de mel. Lua de mel não, já estava fazendo enxoval, não é? Aí, foi muito interessante: eu comprei uma arca, que tenho até hoje - a arca é linda - comprei na Detalhe Decorações, que era uma casa art déco, rosa, linda a casa. Eu acho que eu fui atraída pela casa, era ali na rua Pernambuco, onde tem um hotel, naquelas imediações, então eu acompanhei aquela destruição, toda vez eu ia lá ver a casa sendo desaparecida, aí uma outra construção horrorosa. A casa tinha um quintal, tinha... Nossa, era casa, assim, para existir para sempre, não é? Que é a sensação quando eu viajo para a Europa. A Europa teve as Guerras e eles reconstituíram. Aqui, se tiver uma guerra - nós já estamos em guerra - mas é um desleixo, que eu acho que o desleixo é com a gente mesmo. Quando eu falo a gente mesmo é com toda a sociedade que vive, pelas diferenças, pela humilhação, pelos mandos e desmandos, é uma coisa feia, que antes de sermos daqui, somos cidadãos do mundo, somos responsáveis pelo mundo. O que você acha disso? (risos). Mas aí, passando, eu fiquei grávida. Primeiro espantada, minha mãe foi muito severa comigo, ela falou: “Que mal eu fiz no mundo para merecer isso?” Não conversou comigo durante nove meses, mas teve festa, o casamento, um vestido bem apertadinho para ninguém ficar sabendo, ela ficou com vergonha da filha, devia ficar feliz, não é? Aquilo foi um problema. Mas também passou, ok, isso é bom falar porque eu acho que algumas pessoas que lerem essa entrevista, vão entender como eram os tempos de ontem, e tem muitos tempos de hoje que são os de ontem (risos). Mas aí eu tive meu filho, muito feliz da vida, fui morar no São Lucas, na Rua Veraldo Lambertucci, meu pai me deu a entrada desse apartamento e eu paguei esse apartamento durante 25 anos, BNH, a última prestação era 100 reais (risos). Teve um momento em que a inflação... E a bancarrota brasileira bateu à porta, sentou no sofá e não queria sair mais não. Eu falei assim: “Ué, gente, não vai sair”. Porque o Brasil, sabe aquela época da URV? URV, que você tinha que calcular o dinheiro todo dia, uma loucura isso. E tinha também uma mudança de dinheiro, que eram vários dinheiros e dinheiro nenhum, várias notas. Lembro de que eu estava no Palácio das Artes, encontrei com um estrangeiro... Porque estrangeiro, em Belo Horizonte, era muito difícil você encontrar, os mineiros se resolvem, isso é bem... Assim... Se você que não é daqui, você pode ver que quando vem estrangeiro, todo mundo fala: “Ele é de onde? Ele é de onde?”. É engraçado, porque os mineiros se resolviam. Belo Horizonte não é uma cidade turística, então era raro vir gente para ver o Cristo Redentor, porque aqui nem tem (risos). Aí, esse cara queria entender que dinheiro era aquele e quanto que valia. Eu olhei para o dinheiro e fiquei perdida, achei muito interessante, ele estava com várias notas. Aí eu casei, fui morar nesse apartamento, fiquei lá 25 anos, meus filhos foram criados lá, era um rez-de-chaussée, mas um apartamento assim, igual a um ninho. A gente viu mudar, antes os meninos brincavam na rua, não tinha celular, nem precisava ter, a gente se achava, a gente se encontrava, se alguém quisesse falar com você, conseguia. Hoje eu acho um corpo estranho demais, você andar com telefone, olha que coisa esquisita, você anda com telefone, se você perde o telefone, você perde um pedaço da sua vida, isso é um absurdo. Tinha aquele momento precioso do interurbano e você falava no telefone: “Olha, é interurbano, vamos falar rápido” (risos). Então eu casei com Raul Herrmann Júnior, muito interessante isso, aí tive dois filhos homens: o Frederico, nasceu em 31 de outubro de 1979, foi quando eu fiz vestibular, foi o primeiro vestibular que teve redação, eu fiz para Educação Física e fiquei lá muito pouco tempo, porque eu pensei assim... Eu tinha três coisas preciosas na minha vida: eu tinha o meu filho, que eu precisava cuidar; tinha a dança, que me dava sustento de aulas, e tinha a escola - Educação Física. Eu falei assim: qual das três eu detesto? Claro que era a escola. Aí eu abandonei a escola. Mal sabia eu que os modus operandis iam mudar, o artista era quase de lei, depois dos anos... Começou no final dos anos 90 e precisava entrar para a Faculdade para ter um diploma, para se validar como um profissional. Então, eu fui criada... Todo o meu percurso foi na vida mesmo, eu não entrei para a Universidade, eu acho que eu não vou entrar porque eu tenho outros afazeres mais urgentes, então, eu não tenho diploma acadêmico, não sou mestranda, nem doutoranda (risos). Sou só na vida. Eu sempre falo que alguém tem que ficar do lado de fora, não é? Para lembrar (risos). Aí eu tive Frederico - hoje ele está com 39 anos - depois tive o Francisco, que está com 37. O Francisco nasceu em 17 de fevereiro de 1982. Criar filhos é a condição, eu fico muito assustada quando eu vejo as pessoas de hoje falar que filho dá trabalho. Se dá trabalho, para que tê-los? Porque filho é uma condição e faz parte da vida, bem assim, objetiva, faça o seu melhor. Aí, depois eu separei, separei quando eu tinha 30 anos, cinco anos do casamento foram maravilhosos, ainda bem que os meus filhos estão dentro desse bojo e os outros cinco foram: “Ai, socorro!”. Então eu separei, criei meus filhos - praticamente eu e eles - e criei com trabalho em Arte. Virei um faz tudo mesmo e esse faz tudo me deu experiência. Trabalhei como preparadora corporal para teatro, coreografias para teatro, fiz muitas coreografias para companhias, trabalhei no Palácio das Artes como coreógrafa, como assistente, depois como bailarina convidada, dei aula no Cefar [Centro de Formação Artística] - fui uma das primeiras professoras lá do Cefar - coordenei a área de dança do Festival de Inverno da UFMG por 10 anos, mesmo não sendo acadêmica. Então, eu falo isso com mais certeza porque nos anos... Em 1997, eu sabia que seria a última vez, porque as coisas mudaram, não é? As Universidades se coligaram e fecharam um pouco o cerco para o artista de formação livre, mas eu acho muito importante que as escolas livres existam, porque elas seguem o fluxo da vida e essa adaptabilidade, não é? De sedução, para que as pessoas tenham um aprendizado que seja galgado na liberdade. Não no conceito A, B, C, D; é bom, é ruim; na obrigatoriedade do fazer, mas na apropriação e na importância de se aventurar em experiências. São lugares que se comunicam porque existe um aprendizado X e um outro que se molda com o tempo. Então, quando eu tinha 30 anos, eu separei. Já me achava uma senhora e foi muito interessante porque a Pina Bausch veio ao Brasil, em 1988, não sei, eu fiz o teste e fui uma das escolhidas. Achei assim maravilhoso ser escolhida, agradeci muito a ela, mas preferi ficar aqui no Brasil, porque eu tinha dois filhos pequenos e como seria se eu fosse para a Alemanha, com meu rabinho de duas crianças? (risos). Aí fiquei aqui, mas me nutriu de reconhecimento, aí eu ganhei força para continuar aquilo que eu já fazia. É muito interessante porque antes de eu sair do Transforma, eu dirigi meu primeiro trabalho profissional, que se chamava Escolha Seu Sonho, que era composto de Fernanda Vianna, que hoje está no Galpão; Lydia Del Picchia, que está no Galpão; o Rick Menezes, que é um desenhista, está ganhando prêmios pelo mundo aí, ele fez até um retrato para mim ou para meu filho... Não, para mim, fez para mim, fez para meu filho; a Lelena Lucas, que hoje coordena a escola do Grupo Corpo, ela também é desenhista, linda e escritora também e fez um retrato para o meu outro filho, então eu tenho todos. Tinha a Rosana Conde, o Geraldo Vidigal... O Geraldo Vidigal foi uma figura muito importante, ele trabalhou no Aruanda, deu aula no TU e morreu prematuramente - Geraldo estaria com a minha idade - de Aids. Logo depois, eu juntei com Deise Ribeiro e a gente fez um combinado de teatro, dança e artes plásticas, isso era anos 80 ainda. Por quê? Porque dança, naquela época... Não sei se hoje também é assim, claro que é (risos), mas a gente juntava com teatro para ter mais dias, entendeu? No teatro então, a gente fazia um combinado: teatro na mesma semana, tinha dois espetáculos de dança e três de teatro, a gente fez um Universo (backage?) e, até naquele justo momento, não havia essa coisa de projeto, de Edital, não é? Então, a gente fazia com colaboração. Você ia para uma loja de pano e pedia o pano; você ia para uma gráfica e pedia... Até a Prefeitura fazia os cartazes. Então, os cartazes daquela época eram lindos, porque eram o assunto e o endereço da obra, onde ia ser, não tinha aquela rendia de logomarca, entendeu? Era pá! E porcentagem, não é? O coletivo, a bilheteria vai dar tanto, vamos dividir: quem dirigiu, quem fez isso, quem fez aquilo, e a gente ia fazendo isso. No Transforma, Escolha Seu Sonho teve muita boa aceitação, aí nós fizemos uma turnê. Nessa época, eu estava grávida, aí eles fizeram uma turnê, foram, tal, e a Nena ficava muito implicada porque ela viajou com eles, eles tinham o sovaco cabeludo, virilha cabeluda, ninguém depilava, como é que ia dançar cheio de cabelo (risos)? Então a gente se divertia, não é? Tinha Ivana Santos também, que é minha amiga, a gente se encontra até hoje, ela dança, mas o fundo do trabalho dela é terapia corporal. Dessa época, eu tenho vários amigos que eu vou levando comigo dentro do meu coração, a gente se encontra de vez em quando e logo depois disso eu encontrei outra pessoa, que eu casei com ela em 2005, logo depois que a minha mãe morreu. Meu pai morreu, minha mãe morreu, pá, pum. E fiquei com ela até 2015, e essa pessoa foi muito importante na minha vida - é Athos Rache Filho. Estou achando muito interessante isso, porque eu casei com Raul Hermann Junior e depois casei com Athos Rache Filho, opa, estou com as orelhas em pé (risos). Esse ser me deu uma casa em Casa Branca que é uma casa maravilhosa, e construiu um ateliê de artista para mim, coisas de colaboração, de relações que se fazem no tempo e no espaço, e aquilo que eu falei antes, de eu ter saído de Muriaé, vindo para Belo Horizonte, eu amo Belo Horizonte, desejo que ela cada vez seja, realmente, um belo horizonte. Então, eu faço o meu melhor para que essa cidade seja uma cidade que respire, que respeite e que seja cuidada por todos que nela habitam, por todos que nela se inserem e isso eu desejo a uma extensão para o planeta. Os meus trabalhos... Eu, no começo dos anos 90, abri um estúdio em Santa Efigênia, foi um estúdio que socorreu muitos bailarinos que saiam de companhias, era um estúdio, não era uma escola, era um estúdio que, com certeza, foi contaminado com a minha criação em dança. A Nena convidava muitos artistas para trocar informação e eu também convidava, e ali eu não trabalhava com criança. Porque eu precisava de pessoas mais com uma vida já trilhada, para a gente poder mergulhar em campos onde essa vida já tinha uma maturidade, já era um fruto maduro, não uma florzinha de fruto. Se eu trabalhasse com crianças, eu ia ser outra pessoa também, eu ia cuidar da florzinha para o fruto sair mais gostosinho (risos). Ali, no estúdio... Ele durou 16 anos, eu nunca fui uma pessoa muito esperta no sentido ‘business’, negócios, então, eu sempre fui meio manufaturada mesmo, sabe? Produto um a um, carne e osso. Aí, eu escrevia todas as coisas do meu estúdio, atendia telefone, varria, dava aula, coreografava, dançava, até hoje estou ‘workaholic’. Aí, quando entra o período projetos, a receita direta de mensalidade vai para o chão; a receita direta de bilheteria some; o artista começa a trabalhar de graça, entre aspas, porque tem sempre gente pagando a conta, mas quando você não tem o ‘business’ ativado você faz por si mesmo – então, até hoje eu danço. Por um lado é bom porque eu tive que dançar para economizar ‘cash’ de grupo, aí eu entrava e coreografava também, coreografava de graça para os meus trabalhos, eram coisas que estavam na pauta da urgência que eu precisava publicar no espaço da expressão. Quando você publica um trabalho no espaço da expressão, ele não é mais seu - olha que coisa bonita - ele é nosso. O público vem comer no teatro, impressão; ele vem trabalhar a sua sensibilidade; religar e reconectar o que estou fazendo aqui, não é? Então, eu trabalhei muito com a companhia, que antes se chamava Companhia Dudude Herrmann. Na verdade, a Companhia Dudude Herrmann surgiu porque alguém falou comigo que eu tinha que ter Nota Fiscal (risos). A tal da Nota Fiscal que apareceu assim: pá. Porque antes era recibo, entendeu? Você recebia, assinava um recibo, ok. Aí, depois, virou Nota Fiscal. Então, eu tinha que abrir o quê? Uma empresa. Abri então a Associação de Dança Dudude Herrmann. Nunca estudei contabilidade. Primeiro eu fui para um ogro contador, que não fez nada e eu pagava a ele todo mês, certinho, porque eu era filha de um bancário, que era formado em Contabilidade, ele fazia conta o dia inteiro. Aí, me deu o maior trabalho depois porque eu pedi um bloco de Nota Fiscal para ele, o bloco não chegava. O que é isso? E ele dava mil desculpas, porque no Brasil é assim, você culpa o outro pela sua incompetência, aí é triste, não é? Eu acho isso triste demais. É uma falta de vergonha na cara. Faça o seu serviço da melhor maneira, vai pesar menos para o planeta, eu penso assim, pode ser que eu pense de outro jeito depois. Mas aí eu passei para uma outra contadora, a vida seguiu lindamente e eu fiquei completamente “neurada” com essa questão, porque vieram os projetos e a gente não tem essa habilidade de entendimento. Então, aquela coisa: o pingo em cima do i sempre; se desviar não pode, porque a máquina vai estremecer (risos). Aí eu fiz essa Companhia Dudude Herrmann, meu primeiro trabalho com a companhia foi Arrotos e Desejos, Arrotos Sintomais de Desejos Engolidos. Foi com um grupo muito bacana, que tinha o Marco Paulo Rolla, que é um artista maravilhoso; tinha o Tarciso Ramos, que era um dançarino, professor acadêmico; tinha o Arnaldo Alvarenga, que também é dançarino, está na Academia; o Eugênio Pacelli, que é um artista plástico agora, está na Academia; a Ana Lana Gastelois, que hoje é uma campeã de remo, dançava lindamente; a Paula Retori, que tem a assinatura artística dela, maravilhosa; a Ana Virgínia Guimarães, que é uma dançarina linda, professora, mas não está na Academia, está estudando moda, porque ela sempre vestiu bem, assim, peculiar. E tinha mais quem? A Mônica Ribeiro, linda artista, que está na Academia. E desses foram replicando vários, todos esses que ficaram nesse começo são artistas, isso para mim é voto sagrado. Aí, depois disso, teve crises e crises, porque trabalhar com mínimo sempre gera problemas, não é? Eu dei muita aula para muita gente, que era a minha primeira receita. Entrou projeto, caiu, comecei a cair em projeto, para ter um dinheiro de subsistência, aí haja criatividade porque eles têm começo, desenvolvimento, fim, e é aquele dinheiro justo e você tem que trabalhar de acordo, mas tem sempre um hiato, um buraco vazio nos entre, e isso é “help me”. E vai a ‘Dudude workaholic’ trabalhando: “Você faz isso? Faz”. “Você faz aquilo? Faço”. Aí teve uma vez, eu estava desesperada, sem ‘money’, aí me chamaram para fazer a coreografia do filme O Menino Maluquinho... Não, Dança dos Bonecos. Não sei, já esqueci. O Menino Maluquinho foi aqui, foi outra que aí era uma coreografia de sapateado, que nem entrou depois. Menina, eu nunca tinha feito sapateado, aí a atriz - uma atriz global - começou a debochar de mim. Falei assim: “Nossa, gente, eu preciso desse dinheiro, eu preciso desse dinheiro”. Aí, fui dando um jeitinho, fui dando outro, e pá, pá, pá, saiu, mas também não entrou no filme (risos). Aí, essa coisa da experiência: “Você faz cinema?” “Faço”. “Você faz isso?” “Faço”. “Você faz aquilo?” “Faço”. Nunca fiz, mas vou fazer. E até hoje estou assim, entendeu? Até hoje eu estou assim, eu acho que vou morrer assim. Agora mesmo, aos 44 anos, isso acompanhando Belo Horizonte... E Belo Horizonte é uma cidade estranha, porque ela é tão simpática e tão fechada, eu tenho sempre a esperança de que isso melhore, mas eu vi muitos artistas serem desconsiderados, morrerem sozinhos, não saberem que Fulano de Tal morreu, como foi o caso de Fred Romero. Fred Romero era marido da Bettina Bellomo, que é a professora mór de dança clássica, maravilhosa, fiz muitas aulas com ela. Ela veio. Bettina Bellomo e Fred Romero, casados. Vieram porque Nena, minha professora, os chamou, junto com Oscar Araiz. Aí, o Fred deu aula de Martha Graham, que é uma técnica moderna de dança, foi o meu mestre também. Depois, um dia, o Fred chegou no Transforma - isso já voltei lá atrás - chegou no Transforma, não falou nada, ele ficava em um posto que não existe mais, bebendo Cuba Libre e hi-fi antes da aula, essa é maravilhosa. Era um negro lindo, ‘beautiful’, eu acho que todos nós fazíamos aula assim, babando. Ele dançou no Alvin Hele, então ele tinha uma Martha Graham, com um swing, que Martha Graham devia ficar assim: “O que essas pessoas têm e eu não tenho?” (risos). Aí, no dia dessa aula, ele tinha uma malha de tricô transparente, dançava, uau, você ficava assim: “Socorro, o que é isso?” Então, era um professor de swing, tocava um pandeiro que uau, a aula era assim: Arte, Arte, Arte, Arte. Ele chegou silencioso, deu uma aula magnânima, não falou nada. Falou para mim assim: “Você continua”. Aí ele deu aquela aula, não falou nada, olhou para a gente, nunca mais voltou. Foi lá para a Argentina, tempo passou, tempo passou, tempo passou, tempo passou, Fred chega para visitar a neta e tem um ataque do coração e morre. Não saiu em um jornal, ninguém sabia quem era e, isso, Joaquim Ribeiro, Geraldo Vidigal, tantos outros que se foram. Aí, continuo aqui?

P/1 – Continua e eu vou ter que fazer uma última pergunta...

R – Tá, faça.

P/1 – Não, pode continuar.

R – É isso que eu acho assim interessante em Belo Horizonte, porque a gente sempre está tentando essas... Como se dá a relação dos grupos de poder? Como são as barganhas? Por que esses grupos de poder são tão interessados em poder? Para si mesmos? Para ser maiores que os outros? Aonde está esse bem comum? Uma Arte serve para quê? Como lidar com a ignorância de agrupamentos, cidades? Aí, eu lembro sempre que a saúde de uma cidade é medida por suas praças, por seus teatros, por suas galerias; a saúde de uma cidade é medida pela qualidade da vida, porque tem em uma praça o ir e vir de cada um de nós, as relações que se dão nos encontros. Eu fico vendo Belo Horizonte, que ainda é medida por famílias, por grupos de poderes, por guetos de amigos que fazem a turminha... Por que a gente não vê as pessoas, cada uma por sua potência? Será isso um pensamento utópico? Talvez seja, mas eu preciso acreditar na utopia, senão a gente chafurda na ignorância e segue. Então, eu acho que assim... Eu vejo a perda de várias coisas como perda. Por exemplo: encapar um rio nesse século é coisa de ignorância, porque hoje nós precisamos desencapar os rios, porque somos muitos, porque o rio é sagrado para todos e ele precisa correr. Tirar árvores para se fazer ruas, eu acho isso outra ignorância, eu venho acompanhando Belo Horizonte, é claro que tem ideias maravilhosas, o Sami mesmo, que é um arquiteto, ele que começou a fazer uns azulejos nos túneis, umas lembrancinhas coloridas pelo espaço urbano. Tem muita gente bacana em Belo Horizonte, mas tem muita gente demiurca. Só que isso não é só em Belo Horizonte, eu gostaria de sentir coisas. Agora eu perdi um pouco a minha história (risos). E você pode fazer a pergunta, que eu não sei onde é que eu estou (risos).

P/1 – É justamente disso. O que você achou de contar um pouco da sua história?

R – Olha, eu achei bem esquisito, mas eu estou gostando, tem um ‘revival’, um ‘revival’ assim... Eu não sei se vai servir para alguma coisa, mas sempre serve porque sempre tem uma orelha em pé. Eu trabalho muito nas exceções, atualmente ainda mais. Eu sou uma artista que não sei muito bem - nem estou muito preocupada com - o que eu sou, mas o que me afeta; o que me atravessa; o que eu posso fazer para melhorar essa condição de percepção de mundo, de responsabilidade de todos nós. A palavra responsabilidade pode ser uma palavra larga e libertária, não é? Se eu me construo em cima das minhas pernas, eu peso menos para o planeta. Se eu percebo a produção do lixo que eu faço e cuido disso, eu fico mais leve para o Planeta, então, teve um dia que... Eu tenho que contar uma história para todo mundo (risos). Eu estava na minha contadora, a Cecilia, é uma pessoa de Belo Horizonte, Lagoinha, aí a irmã dela é freira, a irmã dela era mínima, magrinha, 90 anos, anda sozinha. Aí, a Cecilia vira para a irmã e fala assim: “Mas ela não come nada”. A irmã fala assim: “Mas olha para mim, olha o meu tamanho, eu como o justo que eu preciso comer”. Vendo aquilo, eu falei assim: “Essa aí quando desaparecer, vai fazer assim: pim”, espaço limpo”. Aí eu pensei na minha fome de mundo. Eu falei: “Gente, eu sou quase uma monstra”. Porque tenho tanto desejo de mundo, não é? Assim... Olha o que está atrás de mim. Então agora nos tempos de hoje, eu venho retirando coisas da minha vida para limpar um pouco o meu espaço, mas passar a lembrança para o outro. Então é isso, eu acho que eu posso colaborar sim (risos). Continuo inquieta, desassossegada e construindo esperanças de cada dia, mas com um olhar microscópico, porque se eu vejo panoramicamente, eu entro na casa, vou para debaixo da cama e esqueço de mim; então, o olhar tem que ser perto. E detalhe: como eu falei do marimbondo bebendo a aguinha naquela tigelinha com pedra, que eu acho que ele estava achando que ele estava em um lugar muito natural ao seu habitat, porque era uma confiança, uma calma de beber água, sem se sentir ameaçado, que isso conversa com a gente. Então, muito obrigada, não é?

P/1 – Obrigada, Dudude. Obrigada, gente.