Museu da Pessoa

De mapa astral em mapa astral

autoria: Museu da Pessoa personagem: Lydia Vainer

P/1 – Primeiro, Lydia, fala pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Lydia Vainer. Trinta de outubro. Eu nasci em São Paulo, São Paulo.
P/1 – O ano?
R – 55.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe e, se você souber, data e local de nascimento também.
R – Moisés Vainer, ele nasceu 22 de maio de 1922, na Bessarábia, Romênia. E minha mãe nasceu dia 4 de junho de 1926 em Belgrado, Iugoslávia.
P/1 – O que seus pais faziam profissionalmente?
R – Minha mãe chegou no Brasil depois da guerra. Ela passou a Segunda Guerra, ela passou por campo de concentração, quarentena, bombardeios. Ela atravessou as montanhas da Itália fugida de um convento onde ela foi abrigada com a família dela, quando eles conseguiram sair do campo. Ela foi pra Suíça, depois ela foi pra Itália. Eles vieram pro Brasil, eu sei que ela não queria vir de jeito nenhum pro Brasil. A minha mãe chegou aqui, ela era uma pessoa bastante inteligente, no segundo dia ela começou a trabalhar numa empresa estrangeira porque ela falava francês e ela aprendeu a falar o português perfeitamente, sem sotaque, e depois entrou na Ciências Sociais na USP, socióloga; entrou super bem, em nono lugar, imagina. E ela trabalhou a vida inteira como socióloga, no bem-estar social, depois no Estado. Era uma pessoa bastante, bastante, bastante inteligente. Falava oito línguas, super culta, lia o jornal todo dia, era fanática por política, enfim. Aí o meu pai, também imigrante, o pai dele veio para o Brasil achando que tinha ouro nas ruas, chegou aqui e viu que não tinha. O pai dele veio sozinho entre a Primeira e a Segunda Guerra, meu avô também ficou na guerra na Sibéria, na Rússia, mas esse meu avô era mais bon vivant, sabe? A gente via fotos dele pegando passarinho. Aí veio a família toda, meu pai chegou aqui também não tinha nenhum sotaque, então eu nunca tive um sotaque em casa. Mas ele chegou com uns nove anos, minha mãe chegou já com 21 anos. E aí eles se conheceram, mas eles eram muito diferentes, inclusive de nível cultural bastante diferente. Apesar de meu pai ter feito faculdade, Politécnica, a educação era muito diferente. Aí...
P/1 – Como é que eles se conheceram?
R – Eu acho que a colônia judaica se ocupa disso, então um apresenta pro outro. Mas sempre foi meio chocante. Minha mãe, por exemplo, estudava Sociologia com os amigos em casa, com os colegas da faculdade, meu pai lia gibi, Tio Patinhas, então eu achava muito engraçado, mas eu me dava muito bem com meu pai. É isso que eu te falo, eles eram bem diferentes, inclusive de requinte, de nível mesmo. Nível econômico, evidentemente, que antes da guerra meu avô na Iugoslávia era bastante rico e a família do meu pai não era rica, todo mundo tomava sopa numa panela só, então era bem diferente.
P/1 – E eles contaram alguma vez pra você como eles se conheceram, como se apaixonaram?
R – A minha mãe não contava quase nada. Inclusive assim, minhas filhas sabem mais da minha mãe do que eu, porque minha mãe não contou da guerra. Eu sei que ela não queria vir pro Brasil porque ela tinha um namorado na Itália, mas ela nunca contava da guerra, da infância, ela sempre foi muito reservada. E acho que meu pai também não falava muito.
P/1 – Nem sobre como eles se conheceram, nunca comentaram nada.
R – Não. Eles foram apresentados, isso eu sei. Mas eles eram tão diferentes que sei lá, acho que eles nem... a gente também não via muita expressão afetiva entre eles.
P/1 – E de temperamento, como é que eles eram?
R – Meu pai era uma pessoa bastante sociável, falava com todo mundo. Ele era uma pessoa, assim, adorada, principalmente pelos jovens, pelos meus amigos, pelos amigos dos meus irmãos. Ele vivia só com o jovem. Ele era a pessoa mais adaptável do mundo, se tivesse que pegar rede com o pescador ele ia, ele sempre educou a gente desse jeito. E minha mãe já era uma pessoa mais sofisticada, a palavra é essa e... o que você perguntou?
P/1 – Como eles eram de personalidade, de temperamento?
R – Minha mãe era uma pessoa muito dura, muito difícil, muito rígida. Os sérvios são super bravos. A gente teve uma educação muito rígida por parte da minha mãe e meu pai era uma pessoa muito mais flexível. Meu pai teve muitos trabalhos, empregos, cada hora inventava uma coisa, uma hora criava coelho, outra hora criava um parque aquático, outra hora investimento. E também o fato de eu ter sido criada em muitas culturas, muitas comidas, muitas músicas diferentes, isso já deu desde pequena uma amplitude mental muito grande pra mim e pros meus irmãos.
P/1 – Quantos irmãos você tem?
R – Dois. Um é fotógrafo e o outro arquiteto.
P/1 – Qual é o nome deles?
R – André Vainer e Paulo Vainer. Então isso era essa multiplicidade de culturas eu acho que fez a minha riqueza interior e dos meus irmãos, a gente é muito criativo, os três. Tanto que os três são autônomos, os três se deram muito bem nas suas profissões e são profissões criativas de qualquer maneira, ninguém foi para alguma coisa mais... eu acho que é pela educação que a gente teve, evidente, mas por esse contato. Então era minha avó da Turquia, tinha música turca, tinha comida turca, a mãe da minha mãe é da Turquia; meu avô era comerciante, exportador e importador, que ele foi pra Turquia e conheceu a minha avó. Então tinha tapetes, tinha comida, tinha música. Depois a família do meu pai era uma família tipicamente judaica da Rússia, então aquelas outras comidas típicas judaicas que todo mundo conhece aqui, eram essas comidas. E era assim, então também não tinha religião, nós não tínhamos religião. A minha mãe quando chegou no Brasil aboliu qualquer resquício de Judaísmo, então não tinha nem uma expressão judaica dentro de casa, ela quis se aculturar brasileira. Então foi difícil, inclusive, a gente se inteirar na religião na qual pertencia, exatamente porque ela não foi criada dentro do Judaísmo, chegou a guerra, deram uma identidade pra ela que ela desconhecia também.
P/1 – E no caso do seu pai também?
R – Não, meu pai, não. Então se ele tivesse que fazer as festas ele ia lá com a família dele, mas fora de casa.
P/1 – E vocês iam com ele?
R – Não. Não.
P/1 – E depois mais tarde você se aproximou novamente, teve esse movimento de aproximação do Judaísmo?
R – Olha, a minha mãe sempre teve que trabalhar e por ironia do destino, no final da vida, ela já tinha se aposentado da prefeitura, do Estado, ela precisava trabalhar. E o único trabalho que tinha era na Federação Judaica. Ela era a única remunerada, porque era um trabalho voluntário e ela teve que trabalhar lá e ela também teve dificuldades assim, de sexta-feira se fala Shabat shalom, ela não conseguia falar. Eu me aproximei porque eu sou uma pessoa mais mística, então, eu vejo que pelo fato de eu não ter tido nenhuma religião eu acabei buscando uma coisa, uma aproximação de Deus através da Astrologia, foi aí que meu contato, eu acho, desconfio que foi um pouco por aí. Desconfio. Porque pela Astrologia é como se eu falasse com Deus todo dia porque a crença que existe destino, se eu faço o mapa de uma pessoa e consigo falar da vida da pessoa é porque está traçado, mas é difícil falar sobre destino na nossa sociedade, é um tabu. Então essa necessidade de algo transcendente e não ter tido nada em casa, porque existe uma facção dos judeus que são os judeus comunistas, é muito forte isso. Então eles são ateus e eu fui criada nesse ambiente, só que a minha natureza buscava sempre alguma coisa maior, então eu tive que ir pelas brechas, não pela religião.
P/1 – Os seus pais de alguma maneira estavam vinculados ideologicamente ao Comunismo?
R – Ah, eu acho que sim. Com 13 anos minha mãe me jogou o Manifesto Comunista na mão, eu já lia, 12, 13, eu lia tudo que caía na minha mão. Tanto que eu comecei a fazer Ciências Sociais, mas aí eu vi que não era minha praia. Muito também porque eu já gostava muito do Ocultismo, do Misticismo. Eu importava livros, que na época não tinha, da França, demorava pra chegar. Uma vez pegaram na faculdade e queimaram meu livro. Eu falei: “Ah, não vou ficar nesse lugar aqui”. Fiquei com raiva, imagina, levou três meses pra chegar o livro da França. Eu fui pro intervalo, quando eu voltei o livro estava queimado. Que me chamavam de alienada, aí eu falei: “Não vou ficar nesse lugar aqui”. Na USP. Aí prestei Psicologia, na verdade eu sempre gostei de Psicologia, eu tinha interesse na alma humana, não tinha interesse na sociedade, eu achava que a sociedade era feita de indivíduos e são indivíduos que colocam a marca. A gente está num governo, por exemplo agora, que o indivíduo se chama Dilma, ela tem uma marca, não é uma ideologia, é ela, personalidade, então a gente tem que estudar a personalidade da pessoa. Então eu fui fazer Psicologia.
P/1 – Lydia, eu vou voltar um pouco, a gente vai contar mais em detalhes sobre esse momento da faculdade e tudo. Primeiro eu queria saber se você sabe qual é a história do seu nome. Quem que escolheu, por que você se chama Lydia?
R – Você sabe que é engraçado, Tereza, a minha família parece que não se fala nada, sabe? Todo mundo fala do que está acontecendo. É uma família que ninguém faz relatos, é o oposto daqui (risos), ninguém senta e conta uma viagem, porque se contar todo mundo levanta e vai embora porque ninguém aguenta. Tem até uma marca astrológica que é uma marca familiar chama Sol com Urano, que é uma coisa meio intolerante, meio rápida, todo mundo assim, ou a gente discute o que está acontecendo, política, ou ideias, mas se alguém sentar e falar: “Ah, eu fui fazer uma viagem”, então: “Eu viajei primeiro, entrei, fui pela França e quando cheguei lá aconteceu isso”, todo mundo já levanta e vai fazer outra coisa. Então, os relatos é uma coisa complicada. Meu pai fazia relatos, um pouco. Porque eles não queriam vários outros nomes, porque meu pai lembrava de alguma pessoa que não gostava e outro, mas eu não sei porque. Eu acho que foi um tio que me chamou de Lydia e desde pequena ele me chamava de bruxinha, e é o que as pessoas me chamam hoje. Então acho que foi esse tio. Ele era também totalmente ateu, ficava gritando contra Nossa Senhora, contra filho de Maria, é tudo louco na família, sabe? Todo mundo muito.
P/1 – Pragmático, assim?
R – Não, tudo com muita opinião. Eu acho que os sérvios são assim, eu tenho uma família grande ioguslava, então eles são muito de personalidade, de opinião, é bem forte isso na família.
P/1 – Aqui em São Paulo, na infância, Lydia, onde você morava, onde era a casa da infância e como é que era essa casa em que você passou a infância, o bairro?
R – A minha família quando chegou no Brasil todo mundo ou foi morar na Rua Augusta, em prédios, tal, ou na Oscar Freire. Minha infância foi muito boa, eu sempre gostei de me divertir e de aprontar, sempre. Então eu morava perto do Clube Paulistano, aí eu fiz jardim lá. Eu já chegava na escola arrepiando. Eu levava sabão em pó na escola e eu sempre abria as torneiras, tampa a pia – eram umas pias enormes – e aí eu jogava aquele sabão em pó só pra ficar saindo na escola, eu falava assim: “O véu da princesa, ela está chegando”, então eu sempre fui muito criativa. Subia no telhado e ficava jogando laranja dentro da escola. Eu sempre aprontei muito, muito, muito. E aí eu já ia pra escola, no caminho tinham aquelas flores amarelas, eu cortava, já punha nas unhas, já chegava assim na escola. Eu tinha quatro, cinco anos. Eu desenhava muito, tenho esse lado artístico que eu própria me cortei. E a infância, eu brincava muito na rua com os meninos. Tinha um vizinho, que era o seu Donga, ele era muito engenhoso, então ele chamava os meninos da rua para ensinar a fazer gaiola, carrinho de rolimã e eu ficava assistindo lá da janela. E eu tinha um papagaio, eu ficava conversando com o papagaio, mas eu brincava com os meninos na rua. Ou então eu estava com o meu avô, que morava na frente do Frevinho, que ele ficava jogando dinheiro lá com número de nota com os garçons, eu ficava lá fazendo lição, mas eu já via aquela movimentação. Eu andava muito na rua, ficava dentro do jornaleiro lendo gibi. Eu era uma pessoa muito livre, eu lembro que minha mãe vivia me chamando na rua. Tinha um cortiço do lado de casa que eu vivia lá brincando com as pessoas.
P/1 – Como era a sua casa? Descreve um pouco.
R – A minha casa era um sobrado. Eu dormia num quarto atrás do quarto do meu irmão, então pra ir pro banheiro ou pra casa inteira eu tinha que passar pelo quarto do meu irmão, que era um trauma pra ele. E pra mim também, eu acho. Eu nunca ligava muito pras coisas. Aí tinha o quarto dos meus pais, tinha um banheirinho, aí tinha o banheiro dos meus pais e um outro quarto. Era bem pequena a casa. Mas foi nessa casa que minha mãe estudou, que vinham os colegas da minha mãe e ficavam na sala estudando, na sala de jantar. Que a minha mãe fazia muitos jantares lá. Sempre foi uma vida muito movimentada. Meu irmão fez parte de movimento político, então também vinha a polícia. Depois tinha uma empregada que vinha lá que a filha dessa empregada era namorada de um chefe de máfia, era procurado internacionalmente, então sempre tinha polícia, sempre tinha coisa. Era uma vida muito movimentada, muito cheia de assuntos. Eu ficava vendo muito a minha mãe estudar e eu ficava lá fazendo Estatística com ela. Então eu sempre me interessava, eu sempre fui uma pessoa que li muito, eu li muito na infância. E também eu ficava muito de castigo porque eu aprontava muito, então eu ficava lendo no castigo, passava a maior parte do tempo lendo.
P/1 – Você se lembra de uma leitura marcante?
R – Lembro. Várias. Tinha uma coleção que chamava O Cachorrinho Samba, e tinha um livro que chamava Montanha Encantada. Eu li umas dez vezes esse livro porque era bem encantada, era uma vida dentro das montanhas, as ruas eram cheias de pedras preciosas e as pessoas eram pequenininhas. Então eu ficava sempre lendo, era o livro do castigo que ficava lendo. Eu era muito criativa, eu acho que eu era um poço de criatividade; eu inventava camisetas, eu saía com camisetas na rua, inventava um clube. Imagina, eu fiz uma camiseta assim: “Prefiro a morte que cheiro forte”, aí punha um monte de gente pra sair com essas. Só acontecia coisa. Uma vez eu fui pescar, não podia pescar porque eu estava com dor de ouvido, aí um menino me pescou a orelha, eu tive que andar com uma vara, num lugar que a gente foi passar férias. Um cinco quilômetros com a vara assim pra fazer uma cirurgia. Sempre aconteciam coisas, acho que provavelmente eu procurava coisas. Então ou eu estava desenhando, ou estava brincando. Eu lembro que eu tinha muito medo da minha mãe, que ela era muito brava, eu apanhava sempre, mas eu realmente tive medo dela a vida inteira, ela era muito severa.
P/1 – Você falou que você brincava muito na rua com os meninos. Quais que eram as brincadeiras de infância, do que você brincava?
R – Ah, São João era total ficar fazendo balão na rua, carrinho de rolimã, batia figurinha, brincava de acusado, todo mundo se escondia. Ah, aquelas brincadeiras idiotas, ficava tocando campainha na casa dos outros, jogando balde de água nas pessoas.
P/1 – Você se lembra de alguma história marcante de infância?
R – Ah, muitas, muitas. Uma vez a gente entrou num prédio, esses extintores de incêndio acho que vazios, então: “Vamos por fogo aqui pra ver se está funcionando?” Pegaram a gente com a mão na massa, querendo por fogo numa garagem (risos). Sempre tinha alguma coisa marcante. Eu vivia dentro do jornaleiro lendo gibi, vivia lá dentro. Ia nos bares, ficava jogando palitinho já desde pequenininha lá com o garçom, com gente da rua. Ficava muito na rua. Eu acho que meu pai era uma pessoa que tinha uma comunicação muito boa, a minha mãe também, então eu acho que eu herdei isso; apesar de ser uma família que as pessoas falam pouco de si, ninguém se abre, mas eu acho que herdei esse contato com povo, com gente, isso eu carrego até hoje. De perguntar pras pessoas. Por exemplo, se eu for num supermercado eu fico perguntando: “Quanto tempo você já trabalhou aqui, o que você faz?”, as pessoas contam a história – faz parte da minha profissão também fazer isso, mas eu vejo que esse lado ninguém muito tem, de dar atenção. Então qualquer lugar que eu vou eu sou muito bem atendida porque já sei a história do cara, de onde ele veio, que time ele torce, se o filho entrou na faculdade, se não entrou, se tem um filho autista, se não tem. Eu vou entrando na vida e isso é a marca da minha vida na verdade, essa é a grande marca da minha vida. Eu entro num táxi, eu posso estar fingindo às vezes que eu estou dormindo pro cara não conversar comigo, eu fico lá fingindo que estou dormindo (risos). Eu entro num lugar a pessoa começa a falar. E eu acho que isso desde pequena.
P/1 – Você se lembra o que você queria ser quando crescesse, quando era pequena? Assim, a primeira ideia que você teve de uma profissão, primeiro desejo?
R – Médica.
P/1 – Por que médica?
R – Eu queria estudar o cérebro, queria ser neurologista.
P/1 – Mas você lembra como é que essa ideia surgiu, se você teve uma referência?
R – Ah, eu brincava muito de médico, mas eu queria ser médica. Eu queria ser médica de cabeça. Eu sempre me interessei pela cabeça humana, então eu falo que eu estudei duas coisas que estuda a alma humana, a Psicologia e a Astrologia. As duas coisas são ligadas à alma humana, não tem como. Teve uma coisa assim, eu devia ter uns 13 anos, como eu disse, eu estava sempre aprontando alguma, aí eu era muito doente, por incrível que pareça. Eu tinha uma doença, que era uma doença que eu nasci com ela, que era falta de cálcio nos ossos e nos tecidos moles, então eu tinha umas quatro, cinco, como se fosse uma caxumba por ano, eu ficava lá na cama com febre, tudo. Então por esse problema de raquitismo, falta de cálcio nos ossos eu tive que morar na praia um tempo, quando eu era pequena eu fui morar com a minha avó. Isso bem pequenininha. Depois meus pais tiveram que ter um lugar na praia, apartamento na praia, e a gente começou a morar lá no Guarujá, tive que morar lá um tempo por causa dessa minha doença. E usei muito tempo botas e aparelhos, e aparelhos pra dormir, parecia que eu vivia na inquisição, toda cheia de ferros assim. Aí, eu já dominava o mar, então sempre estava aprontando alguma. Uma vez eu fui pra uma ilha que abriu o mar, eu entrei na ilha, a ilha estava cheia de ouriço. Aí eu cheguei, pisei na ilha, encheu de ouriço, eu tive que passar dois dias no hospital tirando ouriço do pé, da perna. E uma vez eu comecei a andar sozinha, atravessei umas praias e fui pro mar. E não vi que o mar estava proibido. Entrei, começou a puxar. Eu falei: “Bom, agora já era. Vamos ver aqui”. E aí eu fiquei meio desesperada, inclusive eu vi acho que uma pessoa se afogando do meu lado, um japonês. Eu comecei a boiar e a nadar quando dava, aí consegui chegar na areia; eu nadava relativamente bem. E eu fiquei muito assustada, eu fiquei com muita falta de ar, muita dor aqui no peito. Aí eu fui pra casa, não podia falar nada pra ninguém porque senão já era, sei lá, o mês inteiro sem poder sair de casa. E eu fui pra cama, eu fiquei uns dois dias na cama. E minha mãe era muito brava, não era pouco brava. Ela falou: “O que você está fazendo aí?” “Eu acho que estou doente, estou com um problema no peito, ou estou resfriada. Eu vou ficar na cama”. E nisso eu comecei a ler o almanaque do Omar Cardoso de Astrologia. Eu acho que começou por aí, assim. Nesses dois dias eu fiquei escutando no rádio, lendo o almanaque. E aí eu comecei, com 13, 14 anos a me inteirar dessa coisa de signos, né? E nunca mais larguei. Fiquei lá dois dias, eu não tinha como falar. Se eu falasse que eu tinha engolido muita água, estava com muita dor no peito, eu já ia para o cadafalso, então era melhor ficar lá segurando, aguentando aquilo sozinha.
P/1 – Que praia que você frequentava, que tinha apartamento?
R – Era no Guarujá, praia normal, Pitangueiras. Mas eu morei lá, então eu tive que ter, o papai teve que construir um negócio lá pra morar por causa desse problema nos ossos que eu tinha.
P/1 – Qual é a relação com a praia e essa questão da carência de cálcio?
R – Tinha que tomar sol toda hora, o dia inteiro tomando sol. Tomar remédios, vitamina D, ficava andando, fazia ginástica na praia, na areia, pros pés. Porque era tudo muito mole, meu corpo. Então tinha que ficar lá fazendo um monte de ginástica, tomando sol. Enfim, era isso.
P/1 – Você falou agora um pouco da descoberta dessa questão da Astrologia, que acho que é uma espécie de descoberta dos signos, esse interesse. Na sua casa isso era um assunto, alguém tinha algum conhecimento?
R – Não. A minha família era muito racional, tanto que pessoas que são ateus são absolutamente racionais, não acreditam em nada. Não, ninguém acreditava em nada. Aí também tinha uma outra questão, que eu comecei a pensar. Eu tinha muita doença, era uma coisa atrás da outra, era nos olhos, era nas costas, era nas pernas, era nessas glândulas que inchavam, até hoje, elas sempre incharam. Eu falei assim: “Mas por que eu e não meus irmãos? Eu vou ter que descobrir isso”. Aí que eu fui estudar astrologia. Eu ia no centro de ônibus, numa escola que tinha lá, que era de maçons e eu comecei a aprender a fazer cálculos. Aí eu lembro assim, mas isso era nítido, comecei a fazer meu mapa na mão, aí eu punha um planeta na casa da Saúde, dois planetas na casa da Saúde, três planetas na casa da Saúde, quatro planetas na casa da Saúde. Eu falei: “Nossa, todos os planetas na casa da Saúde”. E meio que entendi. Aí eu também não me debati mais com a questão. Mas eles não eram doentes e eu era. Então a doença sempre fez parte da minha vida, mas eu aprendi a me cuidar também, eu sei me tratar.
P/1 – Que idade você tinha quando você começou a buscar mais esse estudo assim?
R – Acho que 17.
P/1 – Então foi um pouco mais pra frente.
R – Dezesseis, 17. É.
P/1 – E você mencionou a escola, as atividades de escola, as artes na escola. Eu queria que você falasse um pouco sobre as primeiras lembranças que você tem da escola.
R – Então, nesse jardinzinho eu era bem atuante lá, eu lembro bastante. É engraçado, as pessoas não lembram, mas eu lembro disso. Eu lembro o que eu fazia, eu lembro que eu ficava desenhando. Meus quadros já foram pro saguão da escola desde pequena porque eu fazia uns peixes engolindo gente. Era já meio surrealista assim. Depois a minha mãe percebeu que eu tinha esse lado da Arte, ela me pôs numa mulher que dava uma coisa de Arte. Até hoje essa mulher está viva e dá aula, eu acho que ela foi uma das pessoas mais marcantes na minha vida, ela chama Paulina. Por quê? Porque ela dava uma liberdade, ela achava tudo lindo. Ela dava uma liberdade, ela dava uma escolha grande de materiais pra usar. E eu fui pintando, pintando. E a gente ia toda sexta-feira lá. Isso eu lembro muito, tinha pipoca. A gente podia fazer tela, as pessoas pintavam bem, muita gente saiu artista de lá. Eu fiquei um pouco lá, mas depois minha mãe já quis me tirar porque já achou que estava um pouco demais, eu já tinha teatro também. Mas eu gostava muito de lá. E eu acho que ela teve um papel muito importante na minha criatividade. Depois eu estudei numa escola primária, que era uma escola, como se fosse bilingue, e eu já era um fracasso em inglês. Fracasso (risos), aí minha mãe foi chamada na escola. Eu acho que pra esse fracasso eu tive que inventar uma história. Eu falei: “Mas eu tenho muitos problemas, eu sou uma criança adotada, então eu não consigo aprender inglês, eu tenho muita dificuldade”. Nossa, ela foi chamada na escola. “Olha, nós soubemos que sua filha tem problemas, ela é adotada”. Minha mãe chegou em casa, ela falou: “Não, não acredito” (risos). Bom, então ela falou assim, minha mãe sempre falava: “Lydia, você tem muita imaginação, para um pouco”. E aí eu não conseguia aprender inglês como eu não consegui até hoje, que é uma marca também na minha vida. Eu acho que eu passei um bullying lá na escola. Dois anos atrás se reuniu o pessoal dessa escola primária, aí uma das moças, que hoje é diretora do Cel-Lep, ela veio falar que ela fazia bullying comigo. Eu não lembro, mas ela lembra.
P/1 – Na escola você mencionou essa Paulina que era professora de Arte. Era um ateliê?
R – Era um ateliê, fora da escola. Era um ateliê, todo mundo ia lá, passava o dia inteiro pintando. Até hoje, outro dia ela fez aniversário, já está com 80 e poucos anos, ela reuniu algumas pessoas e foi uma coisa muito marcante na minha vida. Tudo bem, hoje ela me chama pra fazer mapa, a relação é diferente, mas foi uma coisa, eu acho, desconfio, que foi uma das coisas mais marcantes como uma coisa de infância.
P/1 – E você nunca teve vontade de ir para esse lado das Artes Plásticas?
R – Eu entrei na Faap, Artes Plásticas, mas não dava para fazer Psicologia e Artes Plásticas. Aí a minha mãe quase me amarrou assim e falou: “Não, você vai fazer Psicologia porque você gosta, porque você tem talento. Artes Plásticas você vai ser mais uma, não, não, não”, aí eu larguei Arte Plásticas. Mas eu sempre estou fazendo coisas de pintura, de papel machê, de música. Eu tenho um grupo que toca, toco num grupo afro também no carnaval. Então eu tenho que ter um escape assim, porque é muito forte esse lado artístico, da dança, da música, da pintura, do desenho, é bastante forte. Todas as áreas. E o que ficou muito é que eu canto. Já cantei muito em coral, eu canto todo santo dia em casa.
P/1 – Essa questão com o canto começou quando?
R – Ah, desde pequena. Eu cantava em todas as línguas assim, ia até em programa. Eu escutava música e começava a cantar. Hoje, pergunta se eu sei, nenhuma língua, mas era tipo fenômeno. Isso que eu acho que é da cultura, pelo fato da gente ter várias línguas dentro de casa, tinha vários discos de várias línguas, eu escutava e cantava. E eu sempre cantei, sempre, então, a gente tem um grupo de improvisação e eles ficam forçando um pouco essa coisa da voz, de cantar.
P/1 – O que vocês escutavam em casa na sua infância, adolescência? O que você escutava?
R – Olha, o que eu lembro muito, meu pai punha um tal de Trio Irakitan, que era música brasileira, música russa; muito forte música russa, que é uma coisa que até hoje eu tenho uns CDs escondidos assim. Eu perdi os discos russos, mas Noite de Moscou é uma música que me emociona muito, meu avô escutava música. Na minha infância tinha uma coisa muito forte assim, meu avô, pai do meu pai, contava histórias pra gente. Então tinha um ritual, toda quarta-feira a gente ia pra casa desse meu vô, eu e meu irmão mais velho. Aí eu chegava lá, eu já queria fazer alguma coisa, aprontar alguma, então pegava carrinho de roupa e ficava jogando com o meu irmão assim, pá, até o fundo, aí a gente ia subindo com aquele carrinho; eu jogava ele, ficava lá empurrando, aí a gente ia num armário, pegava uma guaraná pequenininha, levava pra mesa, almoçava, aí eram essas comidas tipicamente judaicas, que era Gefilte Fish, Vareniki. Aí acabava o almoço, meu avô sentava com a gente na poltrona e contava história do Arsène Lupin que era um ladrão francês. Mas isso ficou muito marcado, muito marcado. Porque ele contava muito bem e depois era uma coisa de rotina, era toda quarta-feira, ele pegava a gente na escola, levava pra lá. Eu lembro que eu pegava aquele carro de roupa suja de palha, sabe esses carros de palha, assim, ficava brincando, jogando meu irmão pra cima e pra baixo. E aí a gente ia almoçar, depois sentava no sofá e ele contava essa história. Isso é uma marca inesquecível. Quando eu encontro meu irmão mais velho, ele é uma pessoa muito emocional, muito emotiva, ele tem muitas memórias, então a gente fica lembrando: “Ah, lembra na casa do vovô?” “Ah, você lembra daquele quadro na parede de natureza morta?” Ele é mais lembrado do que eu, eu tenho muita memória, mas ele tem muita memória também. “Ah, lembra quando a gente ia na casa da outra avó, que tinha jogo no domingo”, então minha avó fazia comida, uns sanduichinhos que era assim, “Lembra que eles ficavam fumando, aquela fumaça”, porque os turcos fumam muito, né? Fumavam. É uma loucura o que se fumava lá.
P/1 – Essas histórias que seu avô contava você se lembra de alguma? Ou de algum trecho?
R – É sempre um ladrão que fazias umas peripécias. Era um ladrão francês que sempre se dava bem, ele fazia muita coisa. Como ele lembrava daquilo, acho que ele lia pra contar pra gente, era muito engraçado. E esse avô não gostava de trabalhar muito e a minha mãe gostava muito dele. Ele gostava de ler, o negócio dele era ler, então, ele contava umas histórias quando ele andava pelo meio do Brasil – esse que caçava passarinho – ele ficava falando que os gorilas eram inteligentes, que tinha gorila ladrão, que as pessoas acampavam e depois o gorila ia lá, roubava as coisas. Ele faz parte do meu imaginário porque ele contava muita história. E o outro avô, que faz parte da minha vida também, ele era muito engraçado, ele também tinha muita história louca. Porque ele era exagerado, então ele jogava nos cavalos, ele sempre estava jogando, ele era viciado em jogo. Então na Europa ele abria e fechava os cassinos, ele era uma pessoa bastante conhecida. E ele também contava muita história assim. E ele gostava muito de mim porque como ele era um pouco contrabandista, quem ele punha pra seguir as pessoas era eu, porque todo mundo achava eu esperta. Então ele falava: “Lydia, vai atrás daquela pessoa”. Eu ia atrás. Então sempre teve uma coisa, por isso eu estou te falando, uma infância não muito padrão, porque eles eram duas grandes figuras esses meus dois avós. Minha avó, as duas cozinhavam muito bem, só que uma era meio doente, hipocondríaca, e a outra era completamente alucinada, fazia coisa, costurava, tricotava, cozinhava, bordava, fazia tapetes persas, ela sabia fazer tapete persa. Eu tenho os tapetes dela até hoje. Tem uma história de tapetes na família. Durante a guerra teve um tio, irmão desse meu avô, pai da minha mãe, ele viu que ia estourar a guerra, pegou todos os tapetes, colocou num baú, abriu um buraco na rua em Belgrado, colocou os tapetes, fechou o buraco e depois da guerra ele foi lá, abriu e estavam os tapetes. Então tem uma história de tapetes na minha família muito forte. O avô da minha mãe era um colecionador de tapetes também. E por incrível que pareça quando eu casei o meu marido era engenheiro nuclear e depois virou tapeceiro, isso é uma das coisas mais loucas que eu já vi na minha vida. Ele fazia tear, largou tudo, e era engenheiro nuclear da Centrais Nucleares, deixou tudo para ficar fazendo tear de tapete. Eu falei: “Não, isso aí não é normal”. Eu vivo no mundo dos tapetes assim. Então eu acho que essa riqueza interior que eu tenho, super criativa, tal, é de muitas coisas durante a infância, uma infância muito rica de acontecimentos, de avós que vão pra cá e vão pra lá, e de falência também do meu pai, e dessas coisas de política, e de polícia em casa por causa dessa mulher que era da máfia de drogas, sabe, era muito assunto, não parava de ter assunto em casa. E era muito movimentada a vida.
P/1 – Esse seu avô que te punha pra seguir as pessoas era pra quê? Saber onde as pessoas estavam indo?
R – É. Pra onde estavam levando whisky, onde estavam levando não sei o quê. Eu gostava, dava risada. Esse meu avô era muito figura, ele era muito engraçado. A vida dele também, ele também aprontava muito quando era jovem. Tipo assim, estava com raiva de um professor, ia no mato, pegava um monte de sapo, jogava na casa do professor. Durante a guerra ele se vestia de mulher, de freira no hospital pra resolver um monte de questões, de deixar as pessoas entrarem, sairem. Ele salvou muita gente durante a guerra, muita gente.
P/1 – Salvou como?
R – Tirar mesmo de campo de concentração, de pagar para as pessoas não irem. Ele falava muito bem alemão, ele negociava com os alemães. Ele tinha tão bons contatos na Europa que ele pediu muito ajuda, então ele tinha um amigo que era um padre, que foi que resgatarem eles do campo, eles ficaram dentro desse convento até dar um problema. Deu um problema, por incrível que pareça por uma clara de ovo que minha avó bateu e pôs fora pra secar e a clara de ovo é fosforescente, então os aviões começaram a ver que tinha um problema lá. Você pode imaginar? Daí eles tiveram que sair desse convento. Eu não sei, é muita história, eu sei que é muita história. Minha mãe já deu muito depoimento, inclusive, mas ela não fala muito, não gosta, não gostava, aliás. Ele, por exemplo, no campo de concentração, ele era a pessoa que servia sopa pra todo mundo. Ele sempre estava achando um jeito de se divertir. E eu acho que eu puxei isso dele, sempre estou achando um jeito de me divertir. E ele ficava muito comigo, sabe, indo pra cá e pra lá. Ele gostava de mim, eu gostava muito dele, eu não conseguia viver sem esse meu avô.
P/1 – Eles contaram a história da saída do campo de concentração, da vinda pro Brasil?
R – Eu sei que ele trouxe uma máquina de costura porque ele queria abrir um negócio e o cunhado roubou a máquina, abriu uma empresa de máquina de costura. Ele tinha uma confeitaria, esse meu avô, com o cunhado dele. Eu lembro dele sempre como uma pessoa engraçada, que eu me divertia com ele. Com esse e com o outro, eu me divertia. Eu acho que era muita história na minha infância, acho que isso foi muito rico aqui. E eu brincava muito. Eu me lembro de cenas, eu com o catavento correndo pra lá e pra cá, uma brincadeira que hoje em dia ninguém faz, né? Ficam só assim hoje. E eu ficava com aquelas botinhas correndo pra lá e pra cá, vendo o negócio do vento no catavento, era uma diversão.
P/1 – Você mencionou que o seu pai faliu. Pelo que eu entendi ele era um pouco empreendedor, pensava sempre numa...
R – Era empreendedor, jogador, louco, aventureiro. Ele chegou de canoa numa praia, comprou um monte de terreno, tudo meio sem documento até hoje. Ele era uma pessoa que tinha umas ideias lá na frente. Ele tentou fazer um parque aquático e me pôs de sócia, depois ele já morreu. E como as pessoas adoravam ele, entravam na dele. Meus pais eram muito civilizados, muito pouco brasileiros. Assim, o brasileiro é muito escravocrata, então o brasileiro trata mal os empregados, isso é uma característica abominável na minha família. As pessoas vêm trabalhar com a gente, todo mundo fica 30, 40 anos, até hoje eu ligo pros empregados pra saber como está, como não está. Isso brasileiro não faz. Então essa civilidade assim, eles se separaram e moraram juntos na mesma casa. Meu pai estava mal de dinheiro, minha mãe falou: “Bom, mora aqui”, com tudo o que ele tinha aprontado. Isso é uma coisa de civilização, a gente herdou isso. E isso é um diferencial que eu vejo que o que mais me impressiona aqui é o jeito que as pessoas tratam subalternos. Tinha uma tia que falou assim: “Nós estrangeiros, a gente trata muito bem os empregados, por isso que ninguém sai da nossa casa”. Tem filas de gente sempre querendo trabalhar pra gente. Meu irmão é assim, meu outro irmão é assim, eu sou assim, a gente herdou isso de família. Isso não é brasileiro, porque eu vejo, a própria Dilma joga cinzeiro na cara dos empregados dela, saiu até na Piauí, isso sempre soube. Então é uma coisa, sabe, as pessoas reclamam que estão na casa e não podem comer comida. Isso não existe.
P/1 – Vocês tinham empregados em casa?
R – Tinha, que não saíam de lá, ficavam lá morando. Essa mulher que só tinha essa filha, essa filha só aprontou, então a gente teve que segurar a onda dela. Ah, tinha um monte que queria trabalhar lá. E tinha uma que ficou com a gente a vida inteira, essa também teve um papel muito importante na minha vida, a Laíde. Eu lembro o dia que ela chegou em casa, eu devia ter uns quatro anos. Eu lembro a roupa que eu estava, eu estava com um macacão marrom com anãozinho. Ela chegou, parecia que alguma assim, e ela tinha um imaginário tão maluco, tão louco. E como eu tinha essa necessidade de alguma religião eu ia com ela pra igreja aos domingos. E ela, claro que aprendi a rezar todos os Pai Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, tudo, que eu vivia na igreja. E ela tinha uma coisa, tinha um programa no rádio que chamava “Histórias que o povo conta”, que era uma coisa meio alucinada assim, de mula sem cabeça, de espírito de aparecia nos quartos, de pessoas já mortas, tinha esse “História que o povo conta”. E a gente ficava escutando. Aí eu já pegava, chamava toda a rua pra escutar essa história, que acho que era meia-noite ou dez da noite, e já fazia um cenário assim, um monte de vela, uns lençóis e todo mundo, já criava um clima. Aí eu queria. E ela, a Laíde, ela tinha uma relação tão louca com a vida, que ela falava que ela tinha um namorado, que ela encontrava o namorado na porta do cemitério (risos), foi dar a mão pro namorado, a mão era gelada e ela não sabia se ele era vivo ou morto. E isso ficava na minha cabeça porque eu vivia com ela pra cima e pra baixo escutando umas histórias loucas, que assim bem de Minas, do interior de Minas. E a gente ficava escutando esse “História que o povo conta”, que é uma coisa incrível. E tinha uma sonoplastia assustadora. Tanto que eu queria resolver todos meus medos. Eu tinha, às vezes, a minha mãe, durante o jantar ela falava assim: “Lydia, sobe lá em cima, pega um cigarro pra mim”, eu já ia morrendo de medo do escuro, da escada, ia contando um, dois, três, quatro, cinco, seis. Eu falei: “Eu vou resolver esse problema”. Eu tinha um rádio, levei o rádio lá pro quarto. Eu dormia num quarto e meu irmão no outro e pra sair pra cá, então eu ficava assim, fiquei me treinando. Era uma sonoplastia muito assustadora porque era sempre uma morte que chegava prum vivo, aparecia no quarto. Aí eu falei assim: “Eu vou treinar. Hoje eu vou estudar cinco minutos da “Histórias que o povo conta”, amanhã dez, depois 15, depois 20. E eu escutava aquelas histórias agarrada numa cama de grade, até machucava assim, de tanto que eu segurava a grade, de tanto medo. Aí o máximo foi quando eu consegui escutar a história inteira eu sentei na janela e consegui escutar aquela história inteirinha sozinha. Com os outros eu escutava, por isso que eu chamava todo mundo da rua pra escutar em casa. Mas sozinha foi um treino. Isso também foi uma coisa marcante na minha infância, eu ter ultrapassado esse medo. E aí eu falava assim: “Não tenho mais medo de nada”. E hoje eu vanglorio que eu não tenho medo de quase nada; as pessoas têm muito medo, eu não tenho medo por causa que eu acho que eu fiquei me condicionando desde pequena. Eu me condicionava, então, eu ia pra escola, tinha lição de casa. Aí eu falava assim: “A cada problema que eu conseguir fazer eu desço e como duas azeitonas”. Então sempre estava concorrendo comigo mesma, competindo comigo mesma. Essa coisa de “Histórias que o povo conta” é uma das grandes marcas da minha infância. Escutar isso, ficar com a Laíde que tinha também, a realidade e fantasia era uma coisa que se misturava. Eu acho que eu fiquei um pouco como eu sou por causa disso, porque eu ficava convivendo com ela, realidade, fantasia. Imagina, ela falar que tinha um namorado que ela não sabia se o namorado dela era vivo ou morto? Então eu acho que eu entrava nesse, porque escutava atentamente isso. Isso é uma história que me marcou, que ela foi encontrar com o Marco Antônio na porta do cemitério, ela deu a mão e sentiu que a mão dele estava fria (risos). Era muito engraçado. Eu acho que eu vivia isso e fazia parte da minha vida porque a minha mãe era muito racional; o meu pai acho que nem tanto, meu irmão fingia que era, mas não é. Então eu não tinha um mundo fantástico pra ficar, os meus desenhos eram muito fantásticos. Passei a adolescência inteira pintando, todos os amigos saíam de casa, iam em festa, tal e eu ficava desenhando, era só coisa fantástica. Aí eu descobri o Salvador Dalí, eu escrevia cartas pra ele, ficava lendo tudo, tinha livros, ficava vendo tudo de Salvador Dalí. Porque era o mundo que eu vivia.
P/1 – Você guardava essas cartas? Escrevia e guardava?
R – Não, mandava (risos). Mandava (risos). Ele morava em Figueiras, na Espanha, eu mandava. O que mais?
P/1 – Mas nunca teve nenhuma resposta.
R – Não (risos). Eu acho assim, não sei, acho que olhando agora, falando eu aproveitava muito a vida. Até hoje, todo mundo fala que eu aproveito muito a vida, tudo, sabe, que a vida. Ah, eu aproveito, acho que eu sei aproveitar.
P/1 – Você mencionou que aos 16, 17 anos você decidiu se aprofundar um pouco mais nessa questão da Astrologia. Como é que foi esse movimento, como é que você descobriu onde você podia ir, onde buscar informação?
R – Então, eu sempre fui pra esse lado místico. Eu lembro que meu irmão também já, uma vez eu estava lendo o Zen Budismo, tinha 15 anos. Começou a me xingar de alienada, disso, aquilo, era uma tormenta essas pessoas que ficavam me alucinando. Aí, quando que foi? Eu comecei ver que existiam uns livros e tinha uma livraria no centro da cidade, que é essa que eu encomendava os livros franceses. Eu nem sei como eu conhecia ler esses livros, quando eu penso, que loucura. Aí eu acho, como que eu descobri essa escola na Xavier de Toledo?
P/1 – Era uma escola de Astrologia?
R – Mas ela era feita por maçons, Associação Brasileira de Astrologia, na Xavier de Toledo. Eu fui lá, me inscrevi e só deu tempo pra aprender os cálculos, que logo eu conheci o meu ex-marido. Ele queria fazer uma viagem, a gente foi pra Índia, passei um ano na Índia, fiquei grávida, tive filho lá e aí começou, aí foi muito cedo, com 20 anos eu tinha um filho já. Com 21 anos eu tinha três filhos, depois vieram as gêmeas.
P/1 – Com que idade você conheceu seu ex-marido?
R – Acho que eu tinha 20.
P/1 – E como é que vocês se conheceram? Conta a história.
R – Foi assim, eu saí das Ciências Sociais e resolvi fazer vestibular pra Psicologia. Aí eu não entrei na USP, entrei na PUC, que já foi um problema. E nesse final de ano eu fui fazer uma viagem pro Rio São Francisco. E aí no rio São Francisco foi uma viagem muito incrível porque antes do vestibular eu tinha lido todo “Grande Sertão: Veredas”, que se passa no São Francisco. Quando eu fui pro São Francisco: “Eu não estou acreditando, eu acabei de ler esse livro”. A minha vida é muito cheia de sincronicidades. Aí foi uma viagem maravilhosa, maravilhosa, uma viagem que eu não esqueço. Muito também que eu estava na viagem do livro, acho que eu levei o livro, eu não me lembro. Aí tinha uma moça lá que fez ginásio comigo, a Deise. Ela fez ginásio comigo, quando chegou em Olinda ela falou assim: “Ah, eu tenho que telefonar pro meu marido”, eu falei: “Ah que marido chato, você tem que dar satisfação”, ela queria ficar meio grudando na gente e eu já queria fazer aventuras por lá e não pra estar uma pessoa muito normal comigo, então eu ficava pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. E eu lembro que eu falei isso. Quando chegou em São Paulo ela fez um jantar e foi o primeiro dia que eu tinha ido nessa escola de Astrologia. Não, que eu tinha conseguido começar o curso, porque eu sempre ia, não dava, não sei o quê. E aí eu olhei pro marido dela e falei: “Nossa, eu acho que eu vou casar com esse cara”. Ele estava casado. Eu fiquei na minha, quieta, mas eu senti isso. Aí tive mais uns contatos com ele e um dia eu fui ver uma peça de teatro, passei lá e falei: “Fui ver uma peça do Fauzi Arap incrível”. Deixei um bilhete assim no carro. Eu tinha tanta certeza que eu ia casar com esse cara, uma coisa impressionante. Aí um dia eu estava com uma louca no carro, que ela tinha fumado maconha, era minha colega de faculdade e ela estava em surto, eu não sabia o que fazer com essa menina. Não tinha o endereço dos pais dela, não tinha nada, falei: “Pô, o que eu vou fazer?”, a mulher entrou num surto psicótico, eu não sabia o que fazer com ela. E eu passo assim, pela Consolação, e eu vejo esse Henrique. Eu falei: “Olha, pelo amor de Deus, você me ajuda. Eu estou com uma pessoa assim no carro, eu não sei o que fazer”. Aí nós passamos a noite inteira no carro com ela tentando localizar a família. E ela num surto psicótico falou assim: “Nossa, vocês dois têm tudo a ver, vocês vão ficar juntos”. Eu falei: “Nossa, que loucura é essa”. Bom, tanto que no dia seguinte nós deixamos ela na Praça da República, ela ficou lá. Dali a duas horas ela liga pra minha casa desesperada. Não, ligaram pra minha casa, a mulher estava num estacionamento, eu tive que ir com meu pai, com minha mãe, todo mundo, tentar achar a família dela. Sempre tem história, continuava história, sempre continuava história, história, história. Aí tentamos achar a história dela, levamos ela pro hospital dar uma injeção pra ela acalmar o surto, porque ela estava com tanto surto que ela levantava os carros no estacionamento, o cara do estacionamento não aguentava mais aquela mulher lá e chamou a gente (risos). Bom, aí passou. Uns seis meses depois ele se separou e me ligou. Foi pra minha casa e a gente começou já a ficar, ficamos, aí em dezembro ele falou: “Vamos pra Índia, vamos pra Índia”, eu estava na faculdade, meus pais não queriam que eu fosse. Minha mãe, claro, meu pai não estava muito. “Não, não, não”, mas eu já trabalhava, trabalhava no bem-estar social, num programa que chamava Emergência, que também eu gostava muito. Aí eu peguei e falei: “Tá, eu vou”. Aí fui lá pra Índia, numa comunidade.
P/1 – E como foi essa viagem?
R – Numa comunidade nós ficamos, num Ashram. Chegou lá na Índia eu e meu ex-marido, a gente nem se olhava, deu problema já no aeroporto, eu fiquei lá, entrei em contato com umas mulheres num lugar que chamava Art House, ficava lá bordando com elas. Fiquei muito sozinha na Índia.
P/1 – Um ano você ficou na Índia, foi isso?
R – Naquele inferno. Aí o que aconteceu lá? Eu saí do Brasil com um atestado de esterilidade total. Já que eu ia viajar minha mãe falou: “Bom, já que você vai viajar vamos no médico”. Fui num médico, fui no outro, fiz uns exames de contraste no ovário. Bom, moral da história, aí já saí com problema, meu ex-marido falou: “Ah, você não vai poder ter filhos, eu me separei porque minha mulher fez um aborto e você não quer ter filho”. Aí chegou na Índia, não vem a menstruação. Bom, alguma coisa está acontecendo. E eu sonhava que estava grávida, mas eu ia nos médicos lá, um punha pêndulo, outro não sei o quê: “Não, não está, não está”. Aí eu escrevi pra minha mãe e ela falou assim: “Olha, quando a gente muda de continente a menstrução não vem”. Moral da história, eu falava: “Não, não é possível”. Aí todo mundo apertava, fazia Do-in, fazia ayurvédica pra descer esse raio da menstruação. Nada. Um dia eu estava tão magra, que eu detestei aquela comida indiana porque eles punham muito cominho na comida. Aí eu cheguei e falei: “Olha”, eu me olhei no espelho depois de uns quatro meses e falei: “O que é isso? Ou eu estou com um tumor ou eu estou grávida”. Peguei um carro de boi e fui pro hospital, cheguei no hospital, estava fechado o hospital. Voltei pra essa comunidade que eu morava. Depois de mais um dia eu falei: “Vou pro hospital”. Cheguei no hospital já estava com cinco meses de gravidez. Aí chamaram minha amiga lá, eu fui com uma amiga, a mulher falava italiano, a gente não se entendia, não falava inglês, era uma confusão. Aí eles perguntaram para ela: “Vê se tua amiga quer que tire”, porque eles tiram e dão um radinho na época. Eu falei: “Não, não vou tirar, não”. Voltei pra casa e falei: “Olha Henrique, eu estou com cinco meses de gravidez”. Ele falou: “Ah, é?”, eu falei: “É”. Eu falei: “Meu Deus do céu”, 20 anos, nesse lugar que eu estou. Eu vou ficar por aqui mesmo, se é pra ficar aqui, então vou ficar por aqui. Aí no fim tive um filho lá na Índia, o Radji. Cheguei no Brasil, já cheguei aqui. E eu estava passando uma situação tão difícil que lá pra junho, eu lembro que foi dia 11 de junho, eu lembro que a gente foi pro Ceilão. Aí fui lá, trem de carga, não tinha lugar pra fazer xixi, ficava com a bunda pra fora do trem fazendo. Chego lá no Ceilão, lindo, lindo, lindo, estava tão fria a água, tão fria pra tomar banho, eu falei: “Que desgraça é essa? Quando será que eu vou voltar pro Brasil?”. Aí eu sonhei que eu ia voltar pro Brasil dia 29 de outubro, isso era junho. Eu lembro perfeitamente. Falei: “Nossa, 29 de outubro, eu faço anos dia 30 de outubro”. Ficou isso. Aí voltei pra Índia, tive filho lá, ele nasceu dia 1º de setembro. A gente foi pra Deli, foi uma viagem de trem muito pesada porque eu tive pedra no rim, o trem era lotado de gente. Você pode imaginar um trem na Índia lotado de gente, aquelas camas de madeira, dois dias de viagem. Eu estava prestes a me jogar pelo trem que eu não aguentava mais problema de pedra no rim. Eu não aguentava, eu não aguentava, eu não aguentava, era insuportável. Eu falei: “Não, eu vou me jogar”. Várias vezes eu fui pra porta e falei: “Não, não vou”. O neném pequeno, mamava. Aquelas coisas que você fala: “Não”. Cheguei em Deli comecei a tomar antibiótico para pedra no rim, tal, me tratei. Aí fomos pra Paris pra ver se conseguia uma passagem, encontrar uma pessoa que tinha dinheiro pra emprestar um dinheiro, era um padre que a gente conheceu no Ashram. Eu tinha saído em dezembro ou novembro aqui de São Paulo. Já era setembro do ano seguinte. Aí chega lá em Paris, o Henrique foi atrás de uma pessoa, tal, conseguiu um dinheiro pra comprar a passagem e ele falou: “Ah, você errou por um dia”. Comprou a passagem dia 27, vamos chegar dia 28, pãrãrã. Ah legal, beleza. Entramos no avião, eu falei: “Nossa, errei por um dia”. Aí eu vejo uma movimentação das aeromoças, eu entendi que estava acontecendo alguma coisa porque você ficava na frente com o neném, eu fiquei lá na primeira fileira com o neném. O avião começou a pegar fogo, eu falei: “Nossa, o avião pegou fogo” (risos), eu dou risada. Eu falei: “A gente vai ter que pular”. Todo mundo gritando, puseram uns tobogãs, você tinha que pular do avião. E eu indo assim, fui pra fora, pus a mão, falei: “Deixa eu voltar, pegar a chave”, que eu fico muito calma em situações de estresse. Quando todo mundo estava louco, alucinado, eu ficava com aquela calma. Eu falei: “Ah, será que eu ainda vou deixar as penas de pavão”, que eu pus um monte de pena de pavão dentro do berço. Falei: “Então tudo bem, vou deixar, não vou pular com pena de pavão na mão”. Aí pulamos, fomos os primeiros a pular. E você olha, você tem vontade de pular sentado, mas é pra pular de pé. Aí um monte de gente se quebrou, machucou. A gente pulou, voltou descalço, porque você tira o sapato lá. Bom. O avião pegando fogo, todo mundo gritando e eu achando a maior graça. Ficamos um dia no aeroporto, lá no hotel do aeroporto na França. Chegou lá no dia seguinte, o Henrique falou assim: “É Lydia, você acertou o dia, a gente vai chegar dia 29 no Brasil”. Eu fiquei muito impressionada, muito impressionada. Aí eu comecei a ver que tinha alguma coisa, que eu tinha uns dons assim. Quando eu estava nessa viagem eu liguei pro Brasil e falei assim: “Minha avó morreu, senti agora”. Liguei, falei com essa Alaíde: “A vovó morreu?” “Morreu, acabou de morrer”. Então, eu comecei a sentir que eu tinha umas coisas assim estranhas. Essa da data do avião foi muito forte. Porque acho que eu pedi pra sonhar. Eu estava sofrendo tanto: “Ah, que dia que eu vou voltar por Brasil”, porque a gente só foi com passagem de ida, era pra dar uma volta no mundo. No fim ficamos só naquele Ashram, só na Índia, sul da Índia, uma cidade lotada de elefantíase e lepra, que eu só via aquilo de doente dia e noite. A Índia é um lugar muito difícil, não é um lugar fácil, não. Eu acho que na Índia eu adquiri uma força. Minha mãe tem uma força muito grande, tinha uma força descomunal pra enfrentar situações. Eu acabei adquirindo isso, mas porque aquela vivência foi quase, muito mal com o marido, muito mal com tudo. Eu ficava lá com aquelas indianas pra cima e pra baixo, rodando pra lá e pra cá.
P/1 – Como é que foi o seu parto, Lydia?
R – Olha, todo dia eu passava na frente do hospital de bicicleta. Eu via um monte de grito lá, umas mulheres urrando, eu falava: “Nossa!”. Quando eu entrei no hospital, era um hospital de freira. Eu fui sozinha pro hospital porque a primeira vez que eu fui pro hospital foi meio que alarme falso, aí eu voltei pra casa, dormi, no dia seguinte eu falei pro meu ex-marido: “Ah Henrique, fica comigo”. Ele falou: “Eu não, vou pra praia”, estilo, né? Bom, claro, foi pra praia, daqui a pouco começa trabalho de parto, terere, terere. E eu sozinha naquela casa. Tinha uma alemã lá na frente. E eu pra lá, pra cá, pra lá, pra cá. E agora? Aí eu saí, falei pra alemã: “Chama um riquixá pra mim, por favor”. Aí peguei um riquixá, que são aqueles meninos que iam de bicicleta e fui pro hospital. Entrei no hospital, pedi uma cadeira de rodas. Aquelas freiras lá, ingênuas, eles são muito ingênuos, eram, né, se passaram 37 anos já. Aí cheguei lá, entrei lá com aquelas freiras, aí eu vi que eu também gritei igual eu escutava na rua: “Ahhhhhhhhhhhhhhhh Ahhhhhhhhhhhh”, ficava lá gritando. Aí uma hora, fizeram fórceps também, aí elas estavam me costurando. Eu falei: “Mas por que vocês estão me costurando?”, ela falou: “Porque o neném te mordeu” “O neném me mordeu? Mas o neném não tem dente” (risos). Eu fiquei uma semana com aquele raio daquele hospital. E no hospital era assim, o meu filho era branco e o indiano é azeitonado, então tinha umas filas enormes, assim, na janela lá do meu quarto, uma janela interna, porque não tinha muito quarto no hospital, era muito chão, elas ficavam tudo no chão. Eu fiquei num quarto, aí eu ficava no escuro naquele quarto. Eu sempre tenho uma sorte também, apareceu uma mulher brasileira que tinha sete filhos. A mulher ficou lá comigo no quarto, me ensinou o que fazer, porque o neném já vai pro quarto, já é aquela coisa. Não tem berçário, não cabe ter berçário. Essa Ana Maria ficou lá sentada comigo, me ensinou como tinha que fazer e eu fiquei lá uma semana, sei lá quanto tempo eu fiquei no hospital. Aí não podia entrar homem no hospital, era hospital de freira. Não podia ficar homem. Fiquei lá sozinha.
P/1 – E como foi a sensação de ver o seu bebê a primeira vez?
R – Ah, foi incrível. Mas tem uma máxima que fala: “Nasce uma bebê, nasce uma mãe”, né? Aí tinha horas que eu pedia pras freiras ficar um pouco com ele para eu dormir. Você pode imaginar, você está com 20 anos num hospital, num quarto sozinha, sem pai, sem mãe, sem nada. Por isso que eu falei, eu adquiri uma força naquele país. Aquele monte de indiana fazendo fila, batendo na janela eu tendo que trancar a janela, ficar no escuro lá dentro (risos). Na Índia não tem a palavra privacidade, ela foi arrancada de todos os dicionários, não existe isso. Você está aqui conversando, entram três indianos, sentam aqui e ficam escutando a conversa normal, não tem privacidade.
P/1 – Por que elas ficavam batendo na janela do teu quarto?
R – Pra ver um neném branco de olho azul. Depois eu voltei no hospital, é engraçado, eu abri a gaveta do meu quarto, estava ainda o cordão umbilical. Eles tiraram lá dele, jogaram na gaveta. Uma semana depois eu fui buscar alguma coisa e estava o cordão umbilical. E eu lembro que eu paguei, sei lá, 400 dólares tudo, tal. Aí começou, né? Aí começou a gente tentar voltar pro Brasil e foi que chegou. Ele nasceu dia 1º de setembro, mas eu já tinha sonhado em junho que eu ia voltar dia 29 de outubro.
P/1 – E você chega no Brasil e essa segunda gravidez vem logo em seguida?
R – Aí quando eu cheguei no Brasil a minha mãe viu o neném e falou assim: “Bom, tem algum problema, esse neném deve ser mongol”. Chamou todos os amigos dela, psicólogos pra ver o neném, porque ele estava assim, né? Mas também foi uma viagem bem cansativa. Aí logo engravidei das gêmeas. Eu não tinha acabado a faculdade, acabei a faculdade, aí depois eu fui morar num sítio logo, porque com esses três filhos eu falei: “Bom, vamos morar fora”, num sítio. Foi também quando meu ex-marido fez a transição dele da engenharia pra tapeçaria, então tinha que morar num lugar grande. Ele montou uma fábrica de tapeçaria que ele ensinava as pessoas da região a tecer. E aí foi indo. Eu fiquei um tempão nesse sítio, em Itapecerica.
P/1 – Qual o nome das suas filhas?
R – Lara e Lia. E o meu filho Radji.
P/1 – E essa faculdade de Psicologia, Lydia? Que você voltou pro Brasil e terminou a faculdade de Psicologia. Como é que foi pra você a faculdade, a experiência com a faculdade, com o curso de Psicologia em si?
R – Ah, adorei o curso de Psicologia. Eu já fazia mapa na época, então eu ficava fazendo mapa dos alunos. Eu já associava conceitos da Psicologia com os planetas. Eu já estava no mundo da Astrologia, totalmente. E a história das minhas filhas também tem história. Eu era a única filha mulher e eu queria ter uma irmã, não tinha irmã, não tinha prima, meus pais são filhos únicos, os dois. Eu falei assim: “Nossa, eu quero ter irmã, eu quero ter filha. Eu quero ter gêmeas, gêmeas, gêmeas”. E eu comecei a mentalizar. “Eu quero ter gêmeas, gêmeas, gêmeas”, e comecei a por no meu quarto uma pintura do Velázquez que são duas meninas, uma de vestido rosa e uma de vestido azul. Enchia o quarto daquilo. E tinha um filme que chamava “O grande amor de nossas vidas”, eu não saía desse filme porque era de gêmeas. Assistia, assistia, assistia. Cara, quando eu soube que eu estava grávida de gêmeas também eu falei: “Nossa!”, porque era tudo o que eu queria na vida e consegui, elas são univitelinas. Tudo bem, uma nasceu com um probleminha no lábio, lábio leporino, mas elas eram gêmeas assim. Nossa. Eu lembro quando eu fui com a minha mãe tirar ultrassom, ainda podia fumar. Imagina, fumava tanto naquela época que se fumava na sala do ultrassom. A minha mãe quando soube que eram gêmeas, eu com 21 anos, não tinha acabado a faculdade, morava com ela, não tinha onde morar. Ela ficava fumando lá, andando pra lá e pra cá. Eu falei: “Para, mãe!” (barulho de quem está fumando). Aí eu falava assim: “Ai que delícia, vão ser gêmeas, vão ser gêmeas”. E um dia, é engraçado, eu desconfiava que eu estava grávida. E minha mãe, tem uma tradição nos turcos que é ler café turco. E ela tinha uma tia que morava em Jundiaí. Ela foi no sítio de um primo dela e ela falou assim: “Ela leu o café e viu que tem umas crianças na família”, eu dei risada: “Hahahaha”. E falei: “Nossa”, e fiquei quieta na minha porque eu já sabia que estava meio grávida, mas estava até com vergonha de falar, tal a situação que eu já me encontrava, eu falei: “Não vou falar nada, vou ficar quieta aqui”. Mas ela chegou em casa já me contando a história que ela tinha lido a borra do café e tinha mais, que ela ia ter mais netos. Bom, então, aí logo em seguida eu engravidei das gêmeas, tive as gêmeas e acabei a faculdade só depois que nasceu as gêmeas. Aí fui morar nesse sítio. Eu lembro que eu fazia Astrologia já, tinha um quartinho bem em cima, que eu tinha criado um quartinho pra mim, que abria um armário dentro do meu quarto, que tinha uma escadinha, subia pra lá, eu lembro da cena, eu sentava horas naquele quarto fazendo cálculos dos mapas. Demorava muito. Eu passava o dia inteiro naquele quarto fazendo cálculo, cálculo, cálculo. Aí eu ia descansar um pouco e ia pro galinheiro, ficava descansando vendo as galinhas. Aí voltava, fazia os cálculos, ia cozinhar, fazia as coisas. Mas era muito forte isso.
P/1 – Qual foi o primeiro mapa que você fez e como foi isso?
R – O meu. Que foi essa coisa que eu fui pondo os planetas na casa da Saúde. Eu me lembro até hoje. Porque a gente tinha que fazer um cálculo. Tem um negócio que é um livro que chama Efemérides, que é a posição dos planetas. Aí você pega o planeta de um dia com o outro, faz um cálculo pra achar o planeta onde está naquele dia, naquela hora que você nasceu e no lugar em que você nasceu. Aí fazia o cálculo, eu ia fazendo um, casa seis, que é Saúde; o outro, Sol, casa seis. Mercúrio casa seis; Netuno casa seis. Lua casa 12, que também é Saúde. Nossa, minha vida é saúde.
P/1 – Você estava contando do primeiro mapa que você fez que foi o seu próprio mapa. Eu queria saber como foi essa experiência de fazer o próprio mapa e da leitura.
R – Olha, quanto tempo que eu faço Astrologia? Acho que uns 30 e... eu nunca falo porque na verdade eu nunca falo a minha idade, tive que falar aqui, mas de repente se puder adulterar, mas enfim. Eu faço Astrologia há 38 anos, tem a idade do meu filho, ou mais. E aí, por que eu estou falando isso?
P/1 – Eu perguntei como foi a experiência...
R – Porque na verdade eu me lembro. Eu estava numa mesa, no quarto do meu irmão, comecei a por os planetas. E foi muito forte pra mim essa coisa da Astrologia, foi muito forte. Você imaginar fazer 38 anos a mesma coisa, do mesmo jeito, eu já devo ter atendido mais de 15 mil pessoas. Mais. Eu tenho uma memória absurdamente boa pra Astrologia. Se eu ler uma matéria de jornal eu não lembro nada, mas o mapa das pessoas, o signo das pessoas, eu lembro de todo mundo quase, me surpreendo pela memória, eu não sei as pessoas me procuram por causa do mapa ou da memória. Então a minha vida, a minha vida foi ficar num quarto recebendo as pessoas, vendo o mundo dentro daquele quarto. Claro, que eu vivo bastante, sempre tem história, sempre tem acontecimentos, tal, mas boa parte da minha vida eu estou sozinha estudando uma coisa que eu quase não troco com ninguém, que é só eu comigo mesma. Tem muito pouco astrólogo, a gente tem um encontro anual, o astrólogo é um bicho solitário. Eu atendo as pessoas, aí eu tenho que falar pras pessoas da vida dela, elas vêm com uma expectativa. A pior coisa é a carga que as pessoas passam pra mim que tem horas que eu fico destruída. E eu vivo essa vida sem muito contato com as pessoas. Eu não tenho contato, o meu contato humano é com os amigos, que eu tenho muitos amigos, milhares, mas eu não sei como é trabalhar numa instituição, eu não sei como é essa sacanagem entre as pessoas. Eu tenho uma certa ingenuidade, na verdade, eu sou uma pessoa que estou meio fora do contexto, assim, da sacanagem, na maldade, então as pessoas, os astrólogos, são altamente ingênuas. Meus filhos falam: “Não é possível”. Eu já caí em cada golpe, você não tem ideia os golpes que eu já caí. Tudo ingenuidade.
P/1 – Mas como o quê, por exemplo?
R – Ah, golpe da loteria. Fui pra Cuba e não parava de cair em golpe, eu e minha filha. Porque eu acredito nas pessoas, porque eu não estou no mundo das tensões, das competições. Eu sou sozinha, trabalho sozinha, eu sou autônoma. Eu estou num quarto que as pessoas chegam, elas mostram o melhor delas, porque lógico, ninguém vai chegar lá falando que: “Eu sou filha da puta, eu matei, eu sou um sacana, eu quero que todo mundo se dane, eu sou um cara horrível, eu passo a perna nas pessoas”, ninguém fala. Todo mundo mostra o lado bom. E eu falo das pessoas pra elas mesmas, elas vêm com uma expectativa. E o meu mundo é as milhares de histórias que eu já escutei, você não pode imaginar o que eu já escutei de história, eu escuto história todo santo dia. Então eu falo às vezes pros meus amigos. “Eu, profissionalmente não posso escolher, mas eu vou num lugar que está chato eu levanto na cara da pessoa e vou embora”. Porque eu tenho esse direito de poder não querer escutar, porque eu escuto muito. E eu tenho o dom da escuta, eu escuto, eu presto atenção. Outro dia eu saí com uma mulher, ela perguntou cinco vezes meu nome, eu falei: “Escuta, deu, né? Tchau”. Uma falta de atenção que as pessoas têm hoje em dia, ninguém presta muita atenção no outro. Então, eu atendi todos os tipos de gente, de político. Eu acho que eu tive muita sorte, é muita gente, tudo boca a boca, gente que é de política, gente que trabalha com assessor de político, então escuto toda história. Hoje escutei uma história desse novo ministro de Economia porque tem uma cliente que trabalhou no Governo e me liga, então eu tenho uma relação com as pessoas, que aí volta na infância. Eu acho que a gente foi treinado a ter essa visão múltipla, então como astróloga. Por exemplo, teve uma época aí que a Bruna Lombardi foi fazer um filme, ela falou com um monte de astrólogos, mas ela me escolheu. Exatamente por essa abertura, por essa liberdade que eu tenho, por essa informação que eu tenho sobre todos os assuntos. Tem que ter, porque eu tenho cliente artista, tenho cliente que é empresário, tem cliente que não faz nada, tem cliente que é louco, tem cliente que é depressivo, tem de tudo. Então não é como um psicólogo que atende um número X, 15 pacientes, é 15 por mês, novos, então todo dia um novo. E as pessoas criam vínculo comigo, muito forte, e eu acho que aí é da minha natureza.
P/1 – E Lydia, você se lembra quando você percebeu que faria isso profissionalmente?
R – Foi decidido. Foi decidido pela vida. Então foi assim, eu tinha acabado a faculdade de Psicologia, trabalhava no consultório de um psicólogo húngaro maravilhoso, Sandalo, um senhor já, que também passou a guerra, mas ele não era judeu. E aí, o que aconteceu? Um dia meu pai com essa coisa que ele se dá com todo mundo, ele tinha um amigo e esse amigo tinha uma cunhada que trabalha no Suplemento Feminino do Estadão. E aí ela queria fazer uma matéria comigo, essa Miriam. Eu falei: “Tá legal, Miriam”. Eu fui na casa dela, eu lembro que ela morava na Rebouças. Eu ia na casa dela, já estava tão íntima que ela se deitava num sofá e eu deitava no outro (risos). Eu acho que tem isso meu, eu já crio uma intimidade com as pessoas assim, isso era o meu pai também. Eu estava na casa da mulher, já deitava no sofá. A gente fez uma mega entrevista. Eu falei todos os conceitos de Astrologia, o que era o signo, o que eram as casas, os planetas, o que era tudo. Saiu no raio do Suplemento Feminino do Estadão. Aí foi a decisão. Aí não parou de ligar gente. Eu lembro que eu atendi uma mulher que era uma das maiores astrofísicas brasileiras, ela trabalhava no IAG, Instituto de Astronomia e Geografia da USP. Quando a mulher viu que eu era astróloga foi um desastre porque ela era totalmente contra, como todo mundo era, hoje não tanto, mas era. Eu dei uma desculpa dos anéis de Saturno, fiz uma confusão, mas estava indo super bem a terapia dela porque ela só falava o sonho. Mas por que estava indo bem? Porque eu tinha o mapa dela, porque eu me baseava, como bússola, no mapa. Eu acho estranhíssimo. Por exemplo, eu te conheço, não sei teu mapa, pra mim é uma coisa estranha, como se estivesse no escuro. Quando eu faço o mapa de uma pessoa, aquilo vem aquele raio-X, então eu conheço muito bem as pessoas sem me relacionar com as pessoas porque eu sei que uma pessoa pode ter uma agressividade porque ela tem Mercúrio e Vênus em Áries, mas é um taurino, e ela tem um ascendente em Peixes, então ela tem uma carência, mas ela é agressiva; você tem uma leitura de como é a pessoa e eu me relaciono como aquilo. Então eu tenho uma capacidade de relacionamento, modéstia à parte, absurda, porque eu sei com quem eu estou lidando, eu sei lidar com as pessoas.
P/1 – E com essa pessoa, especificamente, como vocês resolveram essa situação?
R – Eu não me lembro, mas eu acho que ela foi embora. Depois de muitos anos eu encontrei com ela e ela falou assim: “Você foi uma das pessoas mais importantes da minha vida”. Hoje ela é a maior astrofísica brasileira, Sueli Aldrovandi, hoje ela é aposentada, mora nos Estados Unidos, ela casou com um americano que também é um físico, astrofísico de ponta. E hoje ela escreve livros pra criança, eu vou em todo lançamento dos livros dela, e ela sempre fala: “Você foi a pessoa mais importante da minha vida”, porque eu conheci o mapa dela e eu fazia análise dos sonhos dela, foi uma coisa muito forte. Mas aí, depois dessa matéria do Estadão, do Suplemento, começou a vir tanta gente, boca a boca, boca a boca, e eu nunca mais parei.
P/1 – E você se lembra de alguma outra situação que tenha sido marcante nesse ofício de astróloga?
R – Aí eu deixei a Psicologia, que eu não aguentava atender toda semana uma pessoa e comecei a Astrologia. No começo era difícil, não sabia muito. A minha primeira cliente foi uma professora minha na faculdade que foi a última matéria que eu fiz, que ela está até hoje na PUC, é a Bete, ela ainda faz mapa comigo. E antes eu desenhava na mão, eu desconfio que eu era melhor astróloga quando eu desenhava na mão. Fazia o mapa, ficava pintando os signos, pegava régua, desenhava, tudo lindo. Hoje sai no computador; antes eu imprimia, hoje não imprimo mais. Foram as mudanças de vida (risos).
P/1 – E teve uma situação difícil, Lydia? Porque é uma relação de bastante intimidade, não é?
R – 90% é difícil. Não é que é difícil, tem horas que eu não sei, que a pessoa pressiona, me dá sono na cara da pessoa, eu durmo na cara da pessoa, porque é muito pesado. Eu pego uma carga. Hoje eu falo: “Você está muito carregado, eu vou passar um negócio aqui porque eu não estou aguentando”, antes eu não falava. Mas me dá muito sono, daí eu saio, como, tomo um guaraná, um café, faço o diabo a quatro pra sustentar. Ah, tem muita coisa. Tem situações, tem muita história.
P/1 – Você se lembra de uma específica que tenha te marcado e que possa ser contada?
R – Ah, a pessoa vem se faz aborto ou não. Essa pessoa, eu lembro que eu fechei a porta do elevador, nossa, eu falo com Deus todo dia solitariamente nesse lugar porque eu lido com o destino da pessoa, com a história da pessoa. Ah, pessoas querem saber se separa ou não, se casa com outro ou não, se o emprego que elas pegam. Hoje atendi um que está com várias opções de emprego, quer dizer, ele vem pra gente optar junto. Então as pessoas têm uma confiança em mim que eu nem penso, porque a hora que eu penso o poder que eu tenho na mão é melhor sair correndo, sabe? É melhor sair correndo porque é muita responsabilidade. A sorte é que pensar não faz parte muito do meu mundo, porque senão. Sabe, é complicado.
P/1 – Você fez o mapa da sua família já, filhos?
R – Ah, tudo, tudo. Tudo.
P/1 – E é mais difícil, como é essa relação com alguém que é muito íntimo?
R – Eu lembro assim, que com o meu filho uma hora eu dei um superconselho pra ele, que era o momento de vida dele dar uma mudada, para ele ir, para ele confiar. Ele ia abrir uma loja e eu falei: “Não abre, não está legal”. Claro, abriu e fechou. Com os irmãos, quando eles estão ruins, eles me telefonam. Um não, o menor não, o mais velho sim. A minha mãe: “Mas você não viu no meu mapa que eu ia ficar doente?” É complexo, né? Eu vi quando ela ia morrer. Mas também eu fico lá, eu fico pesquisando. Eu não tenho nenhum assunto tabu, nenhum assunto tabu.
P/1 – Mas isso que você diz da sua mãe você viu isso? Viu a morte?
R – Não, ela teve uma reincidiva de câncer, ela falou: “Mas como você não me falou? Você não me fala as coisas”, me cobrando um pouco. As pessoas cobram. É como se fosse um oráculo, quer dizer, as pessoas me tratam como oráculo. Todo mundo me encontra na rua e chama: “Bruxa, e aí, tudo bom?”, eu não gosto disso, mas não tem jeito, né? (risos) É essa a minha vida, escutar história, ficar sozinha, trabalhar em casa. Então não saio, tem horas que eu fico lá, confinada naquele quarto, naquela casa, e não saio, não vejo gente, só vejo os clientes assim. Tem dias que são super pesados, que eu não estou a fim, mas eu dependo totalmente disso, há poucos astrólogos no Brasil que vivem só da Astrologia. E também teve o outro lado, eu conheci pessoas incríveis que ficaram amigas. Por exemplo, Fashion Week tem agora. Eu faço o horário dos desfiles da Glória, do Reinaldo, do Pedro há 20 anos. E eles fazem naquele horário. Eu atendo eles. Quer dizer, como eu conheceria essas pessoas sem ser pelo mapa? Artistas. Fui viajar com a Fafá de Belém porque também atendia ela. Então conheci pessoas incríveis, muitas pessoas ficaram amigas, quer dizer, também limito, tem umas que eu não quero ficar amiga, mas é inevitável. E são pessoas que, sabe, é um universo que eu tenho na minha vida, eu não teria se não tivesse essa profissão. E eu não tinha, quer dizer, quem que era Lydia Vainer? Lydia Vainer ficou uma pessoa conhecida, mas não é que eu tinha uma família conhecida, como meu irmão também. Porque acho que essa história da gente ter tido que trabalhar muito cedo por causa da falência do meu pai também deu uma coisa assim, você tem que fazer. Se eu pudesse eu não faria mapa, eu não faria, se eu tivesse dinheiro, sinceramente falando. Porque é pesado, você tem que adivinhar o futuro, as pessoas te procuram só pra saber o futuro, o que vai acontecer. Muito raro querer fazer um autoconhecimento. Eu gosto muito de orientar opção vocacional, tem muita gente que me procura pra orientação vocacional. Mas o pilar é o que vai acontecer.
P/1 – Lydia, deixa só eu aproveitar esse gancho da questão da falência do seu pai e vocês começarem a trabalhar. Como é que foi essa história? A necessidade de você começar a trabalhar, primeiro emprego.
R – Muito cedo.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Ah, acho que eu tinha 16, o Paulo devia ter 11 ou 12, trabalhava como fotógrafo já.
P/1 – Novinho assim?
R – Não passava muito disso, 13, 14. É. Ele foi trabalhar com um fotógrafo e nunca mais parou, hoje é um dos melhores fotógrafos. Eu acho que a minha mãe era uma pessoa muito antenada, então ela meio que forçava uma barra, ela obrigava. Ela ligava prum amigo do outro: “Olha, não é que você queira, o Paulo está indo trabalhar com vocês”, ela já impunha a história (risos).
P/1 – E qual foi o seu primeiro emprego remunerado?
R – Na Prefeitura. Minha mãe trabalhava lá, no bem-estar social, eu trabalhava num lugar que chamava Emergência, que a gente socorria os desabrigados da chuva, incêndio. Já era muito engraçado, imagina entrar na favela, você entrava de canoa, de bota, porque estava aquela enchente, levava o pessoal pra abrigo. Já era rainha da favela, já fazia sanduíche pra todo mundo, já entrava lá. Eu trabalhei muito tempo lá, eu estava meio que... depois entrei na faculdade, continuei trabalhando. Só saí pra viajar, aí já voltei, já comecei na Psicologia, aí logo na Astrologia e não parei até hoje, não parei, eu não parei. Eu faço mapa todo santo dia. Todo dia tem alguém ligando querendo mapa. Então quer dizer, por exemplo, também tem que ter um espírito, porque é totalmente inseguro. Eu só tenho mapa até segunda, depois não sei se vai ter mais, se não vai ter mais, mas sempre foi assim. E vai indo, vai indo, vai indo, vai indo, vai indo. Eu conheço a história de muita gente, mas assim, muita gente, é uma história íntima. Então eu sinto que as pessoas às vezes têm constrangimento de me encontrar publicamente, e é isso. É, eu fico muito comigo mesma, com meus pensamentos, com meus raciocínios astrológicos. Até hoje eu estou descobrindo coisa no meu mapa, até hoje eu estou raciocinando, pensando. Teve época que eu tinha mais insights, não sei se é a idade, você vai ficando meio desgastada nos neurônios. Ah, sempre foi uma coisa muito incrível, eu sempre fui muito apaixonada por Astrologia. Eu vejo coisas do além. Eu vejo coisas que ninguém vê, eu percebo coisas num mapa, ou numa história, um ciclo ou o mundo, porque a gente faz Astrologia Mundial, do que está pra acontecer, que pouca gente vê. Uma vez eu fui dar uma palestra no Clube Pinheiros, eu levei minha mãe, que era raro. Aí minha mãe ficou impressionada comigo porque eu falei que ia cair o muro de Berlin, dali a pouco o raio do muro caiu. Assim, eu falei: “Essa configuração em Capricórnio, Capricórnio é um muro, então é um rompimento com a rigidez, com a pedra, é capaz que caia o muro”. Minha mãe falou assim: “Eu não estou acreditando nisso que você falou”. E uma vez foi assim também. Eu sempre tive umas histórias com a minha mãe, essa foi muito engraçada, essa eu falo que foi meu PhD. Tinha o filho de uma amiga da minha mãe, da melhor amiga dela, ela morava nos Estados Unidos. Ela era bem gorda, mas BEM gorda, mas BEM gorda. Ela morava lá, ela casou com um cara lá e o cara morreu. E não sei se eles trouxeram os ossos, o pó pro Brasil, eu sei que teve um enterro. No dia do enterro eu estava no carro com a minha mãe e eu falei: “Mãe, mas a René vai casar outra vez”. A minha mãe bateu o carro: “Você é louca, você deve ser internada”. Eu falei: “Não, eu acho que ela vai casar novamente”. A mulher tinha mais de cem quilos e tinha a minha altura. Bom. Aí as pessoas jogam as pessoas em cima de mim. Alguém está mal, porque eu trabalho com floral também, Astrologia e floral. A pessoa está mal, elas jogam em cima de mim, falam: “Bom, Lydia, tenta resolver o problema dessa pessoa”. Aí jogavam o raio da René em cima de mim. Eu falei: “Ah René, não fica mal”, eu não sabia o que fazer, “Mas você vai casar logo em seguida”, e consolando ela. A minha mãe falou assim: “Você para de ser louca de fazer essa fantasia, você é muito criativa, não sei o quê”. Eu fiquei lá consolando a mulher. Ela foi pros Estados Unidos, essa René, ela era tão gorda que acho que nem cabia no Brasil, sabe? Ela foi pros Estados Unidos, dali a pouco ela foi numa domingueira, aquelas coisas bem americana, e conheceu o John, um cara bem mais novo, do Novo México, casou e está com ele até hoje. Eu falo: “Gente, esse foi o maior PhD que eu tive na vida”, porque ninguém teria essa coragem. Aí você vê que é destino, que tem. Por exemplo, a Xuxa maravilhosa, não consegue um relacionamento – também está no mapa dela por que é tão difícil se relacionar. Enfim, é uma coisa muito do destino, não tem. Claro, tem a parte psicológica, tudo, mas o destino se impera nas coisas. E é muito complicado. Tem uma margem de manobra, claro, mas é impressionante. E cada vez mais eu fico mais impressionada com a Astrologia.
P/1 – Lydia, uma curiosidade que eu fiquei, que eles comentaram aqui até antes de você chegar. Essa questão de mapa de um lugar, de uma instituição. Como é que funciona isso?
R – Quando você criou uma instituição. Eu nem sei se funciona ou não, eu faço o mapa lá e não sei se é a minha intuição, se é o mapa, eu não sei mais o que é o quê, eu não sei mais assim. Às vezes eu acho que não sei nada de Astrologia, eu dou aula e me preparo aula até hoje, eu tenho que estudar porque não sei. Porque eu não sei, eu não sei. Eu não estudei com ninguém, eu fui autodidata, então eu aprendi só esses cálculos. Eu não fiz um curso, então eu tenho muita falha. Eu acho que eu sei coisas que... não, eu sempre quis saber coisas. O meu sonho era ter um mestre, meu sonho nessa vida era ter um mestre de Astrologia. Eu não tive isso. E eu vejo que as pessoas tiveram. Então eu tive que fazer o caminho da roça todo sozinha e eu não sei, eu vou descobrindo. É um dom, é um dom que eu dou aula.
P/1 – Onde você dá aula?
R – Eu dou aula, eu já dei milhares de turmas aqui, em Florianópolis, eu moro lá também. O pessoal vai ficando, tem seis anos de aula, não sei o quê, tem que ter o dom, isso você não ensina. Mas eu ensino muito bem, meus alunos são os melhores porque eles sabem fazer mapa, sabem pensar, tem que ter um pensamento específico. Tem mapa do país, mapa do Brasil que eu faço. Então no mapa do Brasil, uma vez eu fui num programa da Ana Maria Braga, aí eu peguei e falei assim: “É, o Brasil, a corrupção vai ter nome, CIC e RG”, foi o ano do mensalão. Bom, vocês podem me imaginar do que eles me chamaram depois, né? “Ah, e vai começar no meio de comunicação”. Porque estava no mapa do Brasil, mas tem que também ter uma, tem que ter uma coragem, tem que ser meio kamikaze, porque é uma profissão que é binária, ou você acerta e está no céu, ou você erra e vai pro inferno, não tem meio termo, não tem. Então não é igual a Psicologia, a Sociologia, que as pessoas falam: “Ah, psicólogo difícil”, eu não acho que é difícil, é só ir escutando e interagindo. Astrologia eu venho e falo o que eu acho, o que eu penso, sento naquele mapa que eu nunca vi na minha frente e tem que começar a papagaiar, papagaiar e a pessoa perguntando: “Eu vou ser mandada embora? Está a maior crise lá na rádio, eu vou ser mandada embora?”, eu falo: “Não, você não vai ser mandada embora”, mas eu não tenho certeza, eu não sei se está lá no mapa, ou se tem os indícios que eu vejo. É complicado porque não é assim, você vê, mas as pessoas querem essa resposta. “Vou ser mandada embora? Porque eu tenho que me preparar” “Não, não vai”. Às vezes eu recebo uns e-mails: “Putz, eu fiquei doente, aconteceu isso”, às vezes eu recebo uns e-mails agradecendo. Tem de tudo. Eu devo ter errado muito, mas as pessoas não chegam e falam: “Ó, você errou”, mas se errou some ela e a família inteira. Então é complicado, é complexo, é cruel. Ao mesmo tempo, eu me chamo de kamikaze porque não é que eu falo assim: “Existe a probabilidade de...”, eu já falo: “Vai acontecer isso”, também me jogo na coisa. Porque é do meu temperamento. Então tem um temperamento atuando lá. Então, por exemplo, tem esses meus amigos que são os estilistas, o Pedro, Glória, Reinaldo, eles falam assim: “Tem mil astrólogos, mas a bruxa mesmo é a Lydia” (risos), porque eu vou falando umas coisas inacreditáveis. Nem eu acredito. Mas vai saindo. Eles falam: “Você vê isso no mapa?”, eu falo: “Eu vejo”, eu devo ver isso no mapa. Eu já não sei mais nada, o que é um, o que é outro, o que é eu, o que é o mapa. É uma coisa tão, a minha vida é isso, eu passei a minha vida me dedicando a estudar, me dedicando a atender. Eu acho que eu me curei das doenças atendendo, se doando pros outros, porque é uma doação. Eu vivo a história do outro do tempo todo. E o engraçado é que eu tenho uma memória. A pessoa chega depois de... tem umas pessoas que são cativas, elas vêm uma vez por ano. Aí já sei o nome da filha. Além do que eu faço uns livrinhos de criança. Quando nasce uma criança eles encomendam um livrinho, eu tenho que fazer. Aí eu falo assim: “Gente, Deus põe um véu”, porque eu olho aquele mapa, eu falo: “Eu nunca fiz mapa na vida, eu não sei nada”, eu levo cinco horas pra fazer o raio do livro. É dificílimo. Aí, também já fiz cem livros, já fiz pra todos os filhos do Luciano Huck. Esse livro é uma pérola, é um livrinho que eu conto a história de uma criança, como se fosse contando uma história, a natureza da criança, o que ela gosta, o talento, a família, saúde. Aí pego as fadas das 12 fadas que foram no nascimento da Bela Adormecida e as 12 casas, aí ponho a fada que não foi convidada. É bem criativo, mas é bem lindo o livro também, tem uma capa, tem uma ilustração maravilhosa. Então eu fico nesse mundo mesmo da Astrologia, é um mundo, né? Mas é um mundo cansativo.
P/1 – Tá bom, Lydia. Eu acho que eu vou encaminhar pro final. Antes eu quero perguntar se o Lucas quer perguntar alguma coisa, Lucas, que eu não tenha perguntado.
P/2 – Eu acho que a relação com os irmãos, a gente chegou a discutir.
P/1 – Ela falou um pouco, né, desse irmão. Mas você quer saber o quê, como é a relação?
P/2 – É, como foi, como era na infância, hoje.
R – Olha, eu era, claro, mais sapeca de todos, mais aprontadora de todos. Eu pegava meu irmão pequeno, era como se ele fosse um boneco pra mim, eu punha máscara nele, levava ele pra tomar sorvete com máscara, ele lembra disso (risos).
P/1 – Você é a do meio?
R – A do meio. Eu gostava de causar (risos). O mais velho, o mais velho era meio distante, assim, mas hoje a gente é muito ligado, eu e o mais velho. Porque ele é muito emotivo também, ele é muito sensível. Então a gente fala muita coisa subjetiva. E o outro é mais na dele, tal. Mas tem uma coisa muito afetiva entre a gente.
P/1 – Lydia, a gente tem duas perguntas finais, mas antes de encaminhar pra essas perguntas, queria saber se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado e que você gostaria de deixar registrado. Qualquer coisa.
R – Não está me ocorrendo, Tereza.
P/1 – Você mencionou lá atrás, eu lembrei agora, a questão da separação dos seus pais. Eles se separaram em algum momento.
R – Separaram.
P/1 – Eu não sei se você quer contar um pouco isso, que momento foi isso, como foi essa separação pra vocês.
R – Ah, também é outra história. O que eu fiquei mesmo. É claro, minha mãe ficou muito brava também comigo, eu era muito ligada no meu pai, minha mãe falava que eu era parecida com meu pai, mas...
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Dezessete, 18. Eu segurei a onda da minha mãe. Eu sempre estou, acho que isso é o meu karma, destino, eu sempre estou cuidando das pessoas. Então na separação eu cuidei da minha mãe, eu cuidei da doença da minha mãe anos. Eu cuidei do meu ex-marido, eu cuidei do meu pai, cuidei de um outro namorado também que morreu. Minha história é cuidar das pessoas, eu sei cuidar das pessoas. Eu sei lidar com a doença, eu tenho muita intuição no que fazer em uma situação de doença. Medicina alternativa. Porque eu acho que como eu fui uma pessoa muito doente e eu tenho Sol na casa da doença, do mapa, mas é da Saúde também, então eu aprendi, eu tenho uma intuição muito forte de floral, de erva. Eu estou dormindo e falo: “Não, eu vou fazer isso, isso e isso e vou curar”. Então quando eu estou doente eu me curo das maneiras mais absurdas assim, começo a tomar umas coisas, ponho alho aqui, ali, assim, sabe? Faço umas coisas que dá na minha cabeça, então eu acho que esse é o grande dom, talento, que eu tenho instrumentos pra cuidar das pessoas, que é Astrologia, Psicologia, os Florais, a Fitoterapia, que é onde eu me interessei, como curar as pessoas. Eu acho que meu grande sonho, era um sonho, num âmbito maior, porque eu só trabalho no tête-à-tête, no âmbito social eu acho que eu teria muito a acrescentar e sempre meu sonho era fazer hortas públicas nas favelas, hortas de ervas medicinais, ensinar eles a se curarem, desde diabetes, resfriado, furúnculo. Fiz vários cursos nas pastorais de como fazer cremes. Eu sempre estou fazendo curso, eu sempre estou me mexendo, minhas próprias filhas falam: “Você não para um minuto”, eu falo: “Tem tanta coisa pra fazer, pra aprender”. O problema é que hoje em dia a gente aprende e não tem muita memória pra guardar tudo, mas eu adoraria ter uma memória pra guardar tudo o que eu aprendo.
P/1 – O seu ex-marido faleceu também?
R – Não. E eu sempre assim. Esse negócio, por exemplo, no ano passado eu fiquei um mês com uma tribo de índios Iauanauá. Por quê? Porque eu sou amiga do Marcelo Rosenbaum. Por que eu sou amiga dele? Porque ele era meu cliente. E aí teve uma coincidência, eu encontrei com ele, ele falou: “Estou indo”, eu falei: “Ah, eu gostaria tanto de ir, tal”. Ele falou: “Nossa, vai ser uma honra. Você vai como?”, eu falei: “Marcelo, mas eu não gosto de ficar parada”. E aí eu inventei: “Eu vou como escritora”. Aí fui pra essa tribo incrível, ficamos lá 20 dias, numa situação super inóspita porque tinha um tal de mosquito pium que acabou com todo mundo. Mas no fim, por eu ter ido como entrevistadora, pesquisadora e escritora eu ficava com o pajé indo pela floresta, ele me ensinou um monte de coisa, eu ficava pra lá e pra cá com aqueles índios, sabe? E foi uma experiência incrível. Eles foram fazer umas luminárias de miçanga. Então essas coisas me acontecem, é muita sorte. Por quê? Porque eu me dediquei àquela pessoa. Quando ele foi me procurar eu fui muito legal com ele, aí ele teve uma gratidão. Ele me convida, porque na verdade eu sei a história das pessoas, na verdade eu tenho uma afetividade que eu me interesso, eu quero que a pessoa esteja melhor. Não é uma relação fria, tem outros astrólogos que são assim, uma hora de atendimento, pá, tchau, rua. Eu fico lá, aquela loucura toda me interessando, escutando e sabe? E isso cria os vínculos e também tem uma troca, todo mundo diz que queria ter essa vida que eu tenho. Claro, tem um preço claro, mas assim, ninguém me innflui praquela tribo, eu fui porque tenho uma relação com o Marcelo, depois a gente ficou uma família total e absoluta porque foi muito difícil. Mas enfim, essa capacidade de se relacionar com todo tipo de gente. Já chegou na tribo eu já estava lá com os índios pra lá e pra cá. Por quê? Porque é um jeito de se relacionar, eu não sei explicar, é um jeito. E isso tem que ter porque cada dia eu atendo uma pessoa nova, tem que ter um jeito de falar com uma pessoa fechada, com uma pessoa, empresário, tem que ter um jeito. E eu acho que é isso a minha vida.
P/2 – Você falou que você está há 38 anos fazendo esse trabalho.
R – Vamos por menos, vai (risos).
P/2 – Você está há um tempo. E você acha que desde que você começou até hoje houve uma mudança das pessoas em relação à Astrologia, elas passaram a procurar mais ou menos?
R – Ah sim, hoje tem uma crença muito maior, as pessoas acreditam.
P/2 – Por que você acha?
R – Por causa da mídia, eu acho. A internet tem muito site, todo mundo faz o mapa pela internet. Antigamente tinha muita gente mais interessada no autoconhecimento. Hoje tudo ficou mais superficial. E Astrologia ficou muito profana, o lado sagrado, todo mundo sabe: “Ah, tenho ascendente em Câncer”, é assim, assado. Não é bem assim porque fica muito maniqueísta. Sabe, as pessoas são maniqueístas, ou é bom, ou é ruim, então, eu acho que ficou diferente. E as pessoas que procuram também, eu vejo muita coisa, eu vejo muito jovem, o que está acontecendo com eles, eu tenho uma leitura boa da vida das pessoas, porque é uma amostragem muito grande. Eu acho que é um privilégio. Minhas filhas falam: “Mãe, você tem a melhor vida do mundo”. Eu só fico reclamando: “Porque essa carga que eu pego com meus clientes”, fico lá jogada e não sei o quê, mas sei lá, tudo tem um preço. Eu entro num escritório de Contabilidade, vejo as pessoas trabalhando todo dia no computador, eu falo: “Gente, eu teria me matado. Com certeza eu teria me suicidado”, não teria chance de eu ficar num lugar desses, imagina eu num escritório de Contabilidade, o dia inteiro naquele computador, contas a pagar, contas a receber? É muito difícil. Então acho que cada um tem um destino, uma história, né? E é isso.
P/1 – Deixa eu retomar uma coisa que ficou pra trás também. Você falou que sua família sempre foi muito politizada, uma família que discutia muito mundo, política, tal. Como é que foi pra você e pra sua família a questão do Golpe de 64? Você se lembra como vocês vivenciaram isso, como é que foi isso dentro de casa, o período da ditadura?
R – Olha, eu era muito nova, eu não tinha nem nove anos. Mas a ditadura, o meu irmão

estudou no Colégio de Aplicação, que era um colégio super politizado, ele fez parte da VAR-Palmares, ele andou sumido. Eu lia muito, muito. Eu ajudei meu irmão, todo o movimento eu tinha o quê, oito anos, eu ajudava a fazer uns carimbos, entregava umas coisas nos jornaleiros, quem iria desconfiar de uma menina de oito anos? Nove anos, dez anos. Mas enfim, eu já era muito politizada desde muito cedo, muito cedo. E minha mãe, minhas filhas, uma também foi pra esse lado, trabalha o preconceito, fez pós-doutorado, lançou um livro sobre o preconceito no branco em relação ao preto, quer dizer, é o trabalho dela, está no Ministério. Hoje elas me acham completamente alienada, sei lá o que elas acham, que eu sou tipo Revista Veja. É que eu tenho ideias muito peculiares. Mas eu sempre fui muito ligada à Política, muito. Tanto que tem muitos congressos de Astrologia e a gente tem que criar trabalhos. Eu já apresentei muito trabalho de mapas de Gorbachev, Arafat, então você tem que saber tudo. Benjamin Netanyahu. Então eu explico a personalidade da pessoa em relação ao mapa, então agora eu estou criando uma coisa que eu pego os mapas, então eu faço uma palestra sobre Astrologia, os designers e os arquitetos. Então pego mapa do Le Corbusier, Gaudi, Niemeyer, Burle Marx, aí eu mostro por que ele criou aquela coisa. Por que o Niemeyer tem o concreto arredondado, o que está isso no mapa dele? Depois eu pego, agora eu estou fazendo dos pintores, Dalí, Van Gogh, Frida Kahlo, aí eu mostro a obra no mapa. Já fiz também de todos os comparsas de Hitler, já fiz também de todas as figuras de liderança política. Um mapa que me chamou muito a atenção foi do Arafat.
P/1 – Por quê?
R – É muito peculiar o mapa dele, é de uma força absurda. É muito único. Então não são feitas mais pessoas com essa natureza, com essa força, esse lado guerreiro. Shimon Peres, mapa de Stalin, de Lênin. Então por eu conhecer também política eu sei fazer. Mapa do Fidel, mapa do Bush, do Saddam. Eu já fiz todos esses mapas, eu fico estudando. Então assim, eu vou no cinema, assisti um filme, por exemplo, do Almodóvar, aquele “Pele que

habito”, o filme é meio, assim. Aí eu vou em casa, estou no meio de uma consulta, aí já ponho num site francês que tem o mapa dele, já dei uma olhada. Depois eu falo: “Depois eu vou estudar quando ele fez esse filme, que trânsito ele estava passando”, aí já inseri esse filme numa palestra sobre Plutão, que eu ponho travesti, que eu ponho o mapa do Almodóvar, que eu ponho gente que faz transfiguração de rosto. Eu não tenho muito preconceito, então eu crio umas palestras muito. Essa era sobre Plutão e eu falei: “Gente, quem quiser pode sair da classe”, porque é muito pesada mesmo. Pra mim é leve a pessoa fazer mudança de rosto, pra mim é normal, mas as pessoas se impressionam, colocando o focinho do cachorro no rosto, eu gosto, mas (risos). Essa coisa de não ter medo, não ter preconceito que te leva a instâncias que as pessoas normalmente não vão. Então assim, tem um programa do cemitério, eu não tenho problema nenhum em ir. A minha praia é lá. As pessoas ficam todas: “Aí não, não vamos, não sei o quê, não sei o quê”. Então eu acho assim, essa coisa de entrar em todas as coisas é que é a riqueza. E também olhar o mapa sob esse prisma, sem preconceito. Você não pode por um julgamento teu, você pôs um julgamento teu você dançou. A pessoa, muda contra o aborto, mas sempre aquela pessoa é melhor, eu não vou por meu julgamento, tem que analisar se ela vai ser uma boa mãe ou não. Por que vai pôr uma criança pra sofrer? Então isso se cria, você não tem julgamento, isso é.
P/1 – Eu vou encaminhar pras duas perguntas finais então. Uma você já falou um pouquinho, mas vou retomar porque talvez você queira acrescentar alguma coisa. Queria saber quais são seus sonhos hoje.
R – Pessoais?
P/1 – De qualquer natureza, pessoal, profissional.
R – Meu sonho era sair num barco pelo mundo registrando as culturas, se ainda sobraram dessa globalização. Eu sou muito crítica, eu sou muito crítica ao mundo atual, eu sou muito ecológica. Se for uma posição política, eu sou muito ligada à Ecologia, que eu acho que é a única coisa que a gente tem que pensar, mas esse era um sonho, esse é o maior sonho, sempre tive esse sonho. Ou de moto, ou de barco, são meus maiores sonhos (risos). Sempre tive, não realizei esse sonho. E é um sonho, que eu não tenho mais um sonho pessoal, eu tenho um sonho meio, eu digo, da humanidade, que tivesse mais água, que não faltasse água, porque eu vejo, quando Urano entrou em Áries, Áries é um signo do fogo, Urano é um signo das catástrofes. Eu falei: “Cara, vai ter muito incêndio, a gente vai ficar esturricado, sem água”, então a gente consegue olhar, sabe, quando vai acontecer as coisas. Essa coisa dos ciclos. Quando Plutão entrou em Escorpião eu falei: “Vai vir uma doença através da sexualidade, da Aids”. Sagitário, esses homens bomba, foram as torres. Então isso na Astrologia, a Astrologia é uma coisa que você vê o mundo através dos ciclos, que é a ciência dos ciclos, o conhecimento dos ciclos. Então meu pânico mesmo é o calor, esse é o meu pânico, porque eu sei o que vem pela frente. Então eu queria que não faltasse água, que tivesse alguma saída pra isso.
P/1 – E por fim, como é que foi contar a sua história?
R – Ah, é muito gostoso porque a gente vai revendo. Aí eu vi a riqueza da minha infância, como ela é determinante na minha vida porque foi uma infância muito rica, muito cheia de possibilidades. Eu acho que eu tenho que agradecer a minha mãe que ela deu oportunidades, me colocar numa aula de pintura, em perceber que eu gostava. Por exemplo, fazia umas festinhas de aniversário, eu fazia teatrinho, já fazia um teatro, fazia gincana, tudo o que eu gostava um pouco. Sempre o brincar, eu gostava de brincar. Como eu falo assim pras pessoas, eu como muito, né? Eu gosto de comer, eu gosto de brincar, até hoje eu gosto de brincar. Hoje eu tenho um neto, eu gosto de ficar falando, ele é bebezinho, mas eu conto um monte de loucuras já pra ele, inventando que a Via Láctea é uma mulher que tinha muito leite e aí o leite foi pro céu, escorreu, sabe? Então essa criatividade é um brincar, eu acho que é uma característica minha, brincar.
P/1 – Como é o nome do seu neto?
R – Ariel.
P/1 – É o único?
R – É o único. Mas teve só uma outra coisa que eu queria falar. Uns quatro anos atrás teve quatro moças que chamaram umas 20 mulheres pra escrever o que você deixaria de legado pras suas filhas. Então chamaram cabeleireira, chamaram costureira, chamaram psicanalista, chamaram Marina Silva também, tal. No dia do lançamento eu estava do lado dela. E aí eu quebrei a cabeça, eu falei: “Bom”. O meu, quando você lê aquele meu naquele livro com aquelas pessoas super sérias, era o mais lisérgico, era uma lua que caía num tacho de brigadeiro e aí já ia buscar um bolo e jogar os anões no jardim. Completamente lisérgico. Aí esse era o legado que eu queria deixar pras minhas filhas, essa coisa do brincar, da imaginação, que elas não têm muito. De inventar. Chama “Coisas de mãe para filha”, esse livro. E aí, eu vi que o meu, nossa, completamente fora do esquema das outras mães. E chamava “Coisas da Lua”, o meu conto pra elas, enfim. Então essa coisa do brincar que acho que ficou e que hoje eu percebi que realmente eu passei a minha vida brincando. Brincando, gosto de brincar com as pessoas e eu acho que eu peguei isso na infância, brincar, brincar, brincar.
P/1 – Tá certo, Lydia, muito obrigada então.
R – Nada.
P/1 – A gente encerra aqui.
FINAL DA ENTREVISTA