Museu da Pessoa

Das tradições de Portugal para o Brasil

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria de Jesus Rente

Memória Oral do Idoso
Depoimento de Maria de Jesus Rente
Entrevistado por Iara Marinho
São Paulo, 25 de setembro de 1992
Realização Museu da Pessoa
Código: MOI_HV050
Transcrito por: Fernanda Regina


P/1 - Dona Maria de Jesus, vamos começar a entrevista com uma pergunta meio indiscreta. A data do seu nascimento e o local onde a senhora nasceu.

R - O meu nascimento foi [em] 15 de agosto e o meu nome é Maria de Jesus Rente.

P/1 - Em que ano a senhora nasceu, dona Maria de Jesus?

R - Eu nasci em 25.

P/1 - No ano de 1925?

R - É.

P/1 - Em qual local?

R - Em Portugal.

P/1 - Em que região de Portugal, dona Maria de Jesus?

R - Eu nasci em Freches, e o meu lugar é Trancoso, da Guarda. O distrito é Trancoso e é da Guarda.

P/1 - Como era a vida da senhora lá em Portugal? Como a senhora vivia? O que a senhora fazia?

R - Eu vivia trabalhando na agricultura, ajudando os meus pais.

P/1 - A senhora era solteira nessa época?

R - Sim, solteira. E casei lá.

P/1 - Casou lá?

R - Casei lá.

P/1 - E viveu muitos anos lá? Até que idade mais ou menos?

R - Eu vivi até 1927.

P/1 - Então já veio para o Brasil mocinha.

R - Já vim ao Brasil casada com uma filha.

P/1 - Já tinha uma filha?

R - Já. Minha filha portuguesa.

P/1 - Sua filha mais velha?

R - É.

P/1 - E lá em Portugal, além de trabalhar, o que mais a senhora fazia? Já trabalhava na roça... A senhora fazia mais alguma coisa?

R - Eu trabalhava na roça e trabalhava em casa. Fazia o serviço de casa e ajudava na roça os meus pais, né?

P/1 - E que tipo de roça? O que era plantado?

R - Nós tínhamos de tudo. Tínhamos vinho, tínhamos azeite, nós tínhamos batata, tinha feijão... Tinha de tudo. Meu pai tinha umas fazendas, nós cultivávamos elas e dava de tudo. Azeite, vinho, pão... Tudo que se precisava... Feijão... Tudo que a gente precisava comer a gente colhia.

P/1 - E quando não tinha trabalho na agricultura, tinha festa também?

R - Sim, a gente se distraía... Eu pertencia à igreja, tínhamos reuniões e eu acompanhava sempre as reuniões. Fazíamos festas, assim, na Juventude. Quando eu era jovem eu pertencia ao grupo da Juventude e tínhamos reuniões, tínhamos festas e eu pertencia.

P/1 - E que festas eram essas?

R - Festa religiosa, sempre.

P/1 – Tinha quermesse?

R - Sim, quermesse também tinha. Tinham festas sempre.

P/1 - E a senhora dançava nessas festas?

R – Não, eu nunca dancei. Eu nunca gostei de dançar, porque eu já falei que eu era religiosa e naquele tempo falavam que onde estava o baile estava o diabo e eu, como não queria pertencer a ele (risos), nunca dancei.

P/1 - E tinha outro tipo de diversão lá dentro da igreja? Festas em casa...

R - Sim. Nos aniversários da gente, na matança dos porcos (risos).

P/1 - Na matança dos porcos?

R - Matança. Quer dizer que os nossos pais cevavam o porco e depois quando estava gordo, eles juntavam a família toda e matavam o porco nesse dia. E nesse dia da matança, tinha trabalho para todo mundo e festa. Fazia um almoço bom e trabalhava-se limpando a carne do porco, fazendo os enchidos, fazendo as coisas que precisava, né? Ajudava na casa dos meus pais tudo que a gente precisava.

P/1 - E tinha mais algumas festas além dessas?

R - Bem, as festas da gente eram sempre da agricultura, quando colhiam uva era uma festa, quando apanhávamos azeitona era outra festa. A gente ficava apanhando azeitona junto com as famílias, os amigos e pessoas conhecidas, cantando e brincando. Era uma vida saudável que a gente tinha.

P/1 - Tinha alguma comida, assim, que é diferente daqui do Brasil?

R - Ah, tinha comida parecida com a daqui. Arroz, feijão, bacalhau, batata, que se cozinhava junto [com o bacalhau]... Comíamos muita batata... Sopas... Tudo que se come aqui.

P/1 - E quem veio para o Brasil? Veio a família toda junta?

R - Não. O meu marido veio na frente e eu fiquei lá com a minha filha. Não foi nem dois anos, aí ele me mandou vir. Eu e a filha.

P/1 - Veio mais alguém da família?

R - Não. Só veio eu e minha filha. Meu marido já estava aqui. E nasceu o meu filho aqui. Meu filho é brasileiro.

P/1 - E vindo para o Brasil, veio de que? De navio, de avião...

R - Primeira viagem eu vim de navio. Eu já falei, em 17 de março de 1953 eu cheguei aqui.

P/1 - Foi muito demorada essa viagem?

R - 10 dias.

P/1 - O navio veio direto de Lisboa?

R - De Lisboa passou para Ilha da Madeira, da Ilha da Madeira [para o] Rio e depois do Rio, São Paulo, aqui em Santos.

P/1 - E de Santos para São Paulo?

R - Eu vim de carro. Meu marido já estava me esperando lá no cais. E viemos de carro para casa.

P/1 - E foram morar aonde?

R - Na Vila Maria.

P/1 - Na Vila Maria...

R - Na Vila Maria, Rua Guaranésia, só que eu não lembro o número agora.

P/1 - Como era a Vila Maria naquela época?

R - Naquela época, a Vila Maria era um buraco. Chovia e enchia tudo de água (risos). Era uma lamaceira, as ruas [eram] pouco asfaltadas, só tinha [asfalto] a principal.

P/1 - E para vir para o centro de São Paulo, como é que fazia?

R - De bonde e de ônibus.

P/1 - Ah, já tinha o ônibus?

R - Já. Ônibus e bonde.

P/1 - E lá em Vila Maria, o seu marido trabalhava com o que?

R - O meu marido sempre trabalhou com os ônibus. Ele já estava nos ônibus quando eu cheguei.

P/1 - Ah, ele já trabalhava.

R - Já. Nos ônibus da CMTC.

P/1 - Mas ele tinha outro negócio também?

R - Sim, sim. Tivemos mais negócios, mas ele era sempre a cabeça do negócio e eu auxiliava, né? Apesar que eu ainda trabalhava mais do que ele, porque ele tirava os horários de ir para o serviço dele. Ele ia e eu tinha que ficar no negócio sempre, né? Tivemos vários. Tivemos quitanda, tivemos um restaurante, tudo essas coisas.

P/1 – Mas tudo ali, em Vila Maria?

R - Tudo na Vila Maria.

P/1 - Então a vida era feita na Vila Maria?

R - Foi feita na Vila Maria.

P/1 - E além de trabalhar, a senhora também ia em algum local, se divertia? Como é que fazia?

R - Não, eu sempre fui na igreja. Eu sempre fui Católica Apostólica Romana praticante. Eu sempre fui na igreja aos domingos, à missa. E quando eu podia eu ia na igreja assistir as cerimônias

P/1 - E a senhora participava também da vida da comunidade portuguesa aqui de São Paulo, fazia alguma associação?

R - Ia na Portuguesa, que o meu marido era sócio. Nós íamos dançar na Portuguesa.

P/1 - E a senhora ia a que lá?

R - Bem, tinha piscina, às vezes entrávamos na piscina, íamos lá nos brinquedos com os filhos e íamos ver os bailes de danças que apareciam. Fazíamos coisas lá, né? E ele [marido] ia ver o jogo de bola. Mas eu não gostava, [então] não ia.

P/1 - E seus filhos aqui no Brasil, como tem sido a vida deles?

R - Foram criados aqui, estudaram... A filha não trabalhou mais, porque ela casou-se e ficou em casa cuidando da vida dela e dos filhos. E o meu filho trabalha nos computadores, ele é programador dos computadores.

P/1 - E que idade hoje tem os seus filhos?

R - A minha filha tem 43 anos e meu filho, 33 anos, vai fazer 34.

P/1 - Eles já são casados?

R - Os dois casados.

P/1 - Com brasileiros?

R - A minha filha casou com um português. Agora meu filho casou com uma brasileira.

P/1 - E a senhora já tem netos hoje?

R - Tenho três e estou esperando o quarto. A minha nora está esperando criança. Meu filho tem um menino com 8 anos e vai ter outro agora, a mulher, em março. E a minha filha tem dois filhos, um com 12 e outro com 9... 8 também, para [fazer] 9.

P/1 - A senhora voltou alguma vez para a sua terra, sua família?

R - Fui duas vezes.

P/1 - E vieram mais alguns parentes seus para o Brasil?

R - Eu trouxe a minha mãe com 89 anos, fez 90 e 91 aqui. Morreu dois anos depois [que chegou]. Cega, para eu tomar conta dela, morreu aqui, ficou internada aqui. Eu fui duas vezes lá.

P/1 - Qual foi a maior transformação que a senhora teve em sua vida nesses anos todos que viveu? O que a senhora acha que mais mudou em sua vida?

R - Ah, o que mudou mais foi ficar mais de idade, mais madura, né? Enfrentar a vida com mais serenidade de que quando era nova... Quando eu era nova, vivia sempre com aquela vontade de ir embora para Portugal. Eu nunca queria ficar aqui. E quando a gente fica de idade, vê que os parentes de lá morreram e aqui ficaram os filhos. [Lá] ficam os restos mortais dos familiares e [assim] se conforma viver aqui. Mas eu nunca queria morrer aqui, eu estava sempre com aquela paixão de ir embora para lá.

P/1 - E hoje a senhora mora em conjunto ou mora sozinha?

R - Eu moro só.

P/1 - Mora só?

R - Sozinha.

P/1 - E hoje, como é o seu dia a dia? Como a senhora vive?

R - No meu dia, de manhã cedo me levanto, faço minhas orações. Fico uma hora, uma hora e meia em oração... E entrei em ginástica, às vezes faço uma ginástica por causa da saúde, estou meio velha. Tomo meu café e quase todos os dias saio.
Então, uns dias vou para lá para Casa da Solenidade que pertenço. Outras vezes tem médico nas Clínicas, que eu entrego nas Clínicas. E quando não tem isso, tem reuniões também da igreja, que eu pertenço a igreja, já falei que sempre vivi com as coisas da igreja. Faço visitas a doentes, ajudo uma velhinha também que tem 91 anos, às vezes a filha precisa sair, ela me pede e eu vou cuidar dela. E faço as minhas obrigações assim. É raro o dia que eu fico em casa o dia todo. Ajudo a cuidar dos netos, quando a minha filha tem que sair, eu fico com eles. E cuido da minha vida, limpo a minha casa, lavo minha roupa, cuido das minhas coisas e ajudo os filhos quando precisam as vezes na hora que precisam sair, pedem para olhar o neto, eu fico com ele. Às vezes a filha.

P/2 - Moram perto?

R - Moram perto, os dois moram perto. A filha mora colado em mim, a casa dela e a minha são juntas, mas ela tem a dela e eu tenho a minha separada. E o filho mora uma rua depois, uma rua perto. Tudo pertinho, tudo muito perto e muito bem. Há união, nunca tivemos uma discussão, não ficamos um dia de briga. Às vezes a gente tem alguns problemas, que todo mundo tem, mas passou dali, ficamos todos em paz. Nunca tivemos que dizer um dia “estamos de briga uns com os outros”.

P/1 - Me diga mais uma coisinha. A senhora acha que existe preconceito das pessoas em relação a uma pessoa da sua idade?

R - Olha, eu não acho. Não acho, porque eu acho que se a gente tratar todo mundo bem, todo mundo nos trata bem. Eu nunca vi ninguém me maltratar, porque eu também não maltrato ninguém, então eu não acho que tem outro jeito. Seja velho, seja novo. Apesar que há pouco tempo, fui roubada por dois moços, mas nem liguei para isso. Porque eu fui descer da minha escada, assim, para descer da minha casa para ir na igreja, tem uma escada grande e no domingo dia dos pais, eu ia para missa - que eu já falei que eu sou da igreja -, às 7 horas, eu estava descendo essa escada e dois malandros vinham subindo, me arrancaram a bolsa a força e me jogaram no chão. Eles subiram a escada correndo e em cima da escada, jogaram a bolsa do lado. Um moço da padaria reconheceu a bolsa, pegou a bolsa. E eu recuperei a bolsa com tudo, só me tiraram o dinheiro.

P/1 - Deixou pelo menos os papéis e as outras coisas.

R - É, porque isso ia fazer falta. Os documentos e essas coisas, né.

P/1 - E dá trabalho refazer.

R - É.

P/1 - Mas me diga uma coisa antes da gente terminar. A senhora acha que é importante que a gente faça esse tipo de trabalho de registrar a vida das pessoas?

R - Olha, eu gosto. Porque eu sempre pensei em deixar a minha vida registrada para os meus descendentes. Por isso que eu falei para vocês, se puder vender o livro ou a fita, eu quero, porque eu acho que é uma coisa importante que sempre fica para os netos, para os bisnetos, porque a gente não é eterna, e se a gente morrer, assim fica uma lembrança para eles.

P/1 - Agora ainda tem alguma coisa que a senhora gostaria de fazer na sua vida?

R - Não. Minha vida, graças a Deus, foi bem vivida, eu acho que estou satisfeita com ela. Eu fui duas vezes em Portugal, como já falei, criei meus filhos. Fiz a minha obrigação, vivi a minha vida bem vivida. Uma coisa que eu queria fazer, mas não consigo, era ir em Jerusalém no lugar em que Jesus andou e viveu. Mas é uma coisa muito difícil, eu já me conformei com isso. Agora [ir] lá na minha terra não importa, já fui. Não quero saber de lá mais.