Museu da Pessoa

Da paleta de cores ao azul

autoria: Museu da Pessoa personagem: Toimi Juhani Letho

Museu Aberto
Depoimento de Toimi Juhani Letho
Entrevistado por José Santos e Irene Thal
São Paulo, 08/04/2000
Realização Museu da Pessoa
Código: MA_EA_HV133
Revisado por Ligia Furlan

P/1 - Então, bom dia, Jussi.

R - Bom dia.

P/1 - Queria iniciar a nossa entrevista pedindo para você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.

R - Toimi Juhani Letho. Nasci 14 de julho de 26, do século passado, na cidade de Oulo, na Finlândia.

P/1 - E eu queria que você falasse o nome dos seus pais e qual eram as atividades deles.

R - Nome do meu pai era Toivo Einari Letho, ele era industrial. Era um inventor que acabou tendo sorte de fazer uma indústria. Minha mãe se chamava Kaisa Wilhelmina Lehto, só cuidava de afazeres domésticos. Os dois eram finlandeses.

P/1 - E os seus avós?

R - Eu não conheci avô paterno. Avô materno eu conheci, que faleceu em 32. O nome dele era (Jonas Mattaranhan?). Ele era um conhecido armeiro, fazia armas de precisão, tanto é que antes da Revolução Bolchevista, os russos chamaram... O pessoal do Czar chamou ele para verificar a qualidade das armas russas, dos _______ militares.

P/1 - E ele residia na mesma cidade que você?

R - Não, ele era de Jyväskylä, cidade natal da minha mãe. O outro avô não conheci, porque tinha falecido quando meu pai tinha sete anos de idade.

P/1 - E você sabe como é que seus pais se conheceram?

R - Como eles se conheceram? Isso eles não me contaram (risos).

P/1 - Não te contaram?

R - Porque esperaram... O meu pai morava na Carélia, e minha mãe no centro da Finlândia. Mas meu pai era um homem muito irrequieto, então ele já tinha... Ele era motorista de automóvel. Na Finlândia tinha acho que dois automóveis na época. E ele dirigia outro. E acho que ele achou lá a moça bonita durante a viagem. (riso)

P/1 - E o senhor conta para a gente então como era... Como foi passada a sua infância, como era a cidade que vocês moravam...

R - Eu nasci na cidade de Oulo, mas não me lembro nada de lá porque a família mudou para Helsinque nos primeiros anos. Da infância me lembro de coisas assim... Não posso contar continuamente porque aqui já tem muito vácuo. (riso)

P/1 - Não tem problema.

R - Ah, o que nunca esqueço é o frio que faz lá. Tem anos que faz muito frio e outros menos. Era gostoso era praticar esporte no inverno, mesmo crianças. Quando era o inverno, que não caía neve mas era frio, então as águas, os lagos e o mar se congelavam. E formou-se uma pista de patinação imenso, sem limites. E era como espelho o gelo, então nós fomos patinar. E os adultos, os ricos, eles tinham aqueles barcos, como barco de vela, mas que em cima de três patins, coisa lindíssima, passa com grande velocidade. “Vuuuuu”! Passava
em cima do gelo. E nos invernos que não tinha tanto frio, caía neve primeiro, então a gente foi esquiar. Mas uma das coisas que nunca me esqueço, do frio: nós morávamos num apartamento simples, e lá os edifícios são construídos de uma forma que tem pátio interno. Horroroso, porque se é edifício alto, né? E entrada para a porta do edifício, mais ou menos com o pórtico que eles fazem, e tinha corrimão de latão, normalmente era polido, bonito. E eu não esqueço que uma criança, num terrível frio, basta ser 20, nem 20 graus, menos até, colocou a língua naquele corrimão. E ficou preso. Ah, terrível! Não me lembro como é que acabou o drama. Claro, tivemos que trazer água para soltar. Mas é terrível, você pega o congelador, pega uma peça, é a mesma coisa.

P/1- Cola, né?

R - É, gruda. Então, isso me marcou muito. No inverno, outra coisa bonita era a aurora boreal. Não aparece todos os anos, mas quando aparece é a coisa mais linda.

P/1 - Como é a aurora boreal?

R - Ele, o céu escuro, e no horizonte aparecem indefinidas cores, mas luzes como se fosse... Luz muito tênue: mais claro, avermelhado, azulado, se movem vagarosamente. É um espetáculo que eu não sei se... Com fotografia química não é possível fotografar aquilo, porque precisa ter ultrassensível, mas com meios eletrônicos certamente fotografaram.

P/1 - E o senhor via isso mesmo lá de Helsinque?

R - Sim, Helsinque você via. Claro que se fosse mais longe, via-se melhor, claro. Aliás, nunca fui no inverno lá no norte para ver isso, não tenho... Quão claro seja no norte.

P/1 - E como era, então, Helsinque aí nos anos 30?

R - Olha, eu me lembro, era vida gostosa antes da guerra. Era muito boa, calma, aquela atividade normal; eu lembro os doces, um doce que tinha coco ralado em cima _____, ah, custava 50 pénis, era uma delícia. Meu pai, como era muito ativo em tudo, ele, nos primeiros anos, quando nós... Ele trabalhava em mecânica de automóvel, mas − não posso precisar ano, talvez 30 e pouco − ele conquistou um lugar na base naval de Helsinque para cuidar de todos os motores da marinha de guerra costeira. Era um cargo de engenheiro, o meu pai era a autoridade, não era engenheiro, mas ele tinha um fantástico conhecimento em... Ficou até a guerra, até 39 ficou trabalhando lá. Então nós ficamos... Eu ia visitar ele lá muitas vezes, ele me levou, eu estive dentro do submarino, estive naqueles navios de guerra todos, porque ele era a pessoa conhecida, tinha grande responsabilidade. Nós morávamos perto, eu estava lá no verão quando eu não tinha escola, estava quase todo dia lá. Ele me levou nos passeios, quando ele tinha... Toda primavera ele teve que testar as embarcações, porque no inverno os menores eram colocados de _______ terra, e feita a manutenção. E na primavera, depois do degelo, as embarcações tinham que fazer viagem de teste, e meu pai teve que fazer essas coisas. Eu estive até no lança-torpedeiro, que na época fazia 30... Nossa, a velocidade era um negócio incrível, e ele me levou junto.

P/1 - Você disse que seu pai era inventor?

R - Ele era inventor sim, inventou tanta coisa na vida dele (até vir ao Brasil?) (riso). Mas o que marcou mais... Isso era 39. Em uma indústria bélica, um diretor falou para o meu pai: “Você que é inventor, me invente uma máquina para fazer mola espiral”. Porque já se cheirava a proximidade da guerra, e precisava fabricar máscaras de gás, e na máscara de gás a válvula era muito primitiva, uma tampa com bola. Quando você inspirava, abria-se, e o contrário a mola fechava. Terrível, eu usei essas máscaras no treinamento, e aquele mata, não protege (riso). Então meu pai ficou com essa ideia lá, de repente lá na escrivaninha dele, na sala, começaram a surgir umas peças de ferro, simples, cilindrinhos e tudo, e um arame, corda de piano... E começaram a surgir uns como cacho de cabelo, aí ele telefonou lá para o diretor e disse assim: “Mas olha, eu inventei a máquina para fazer mola.” “Ah, quanto custa?” “20 mil marcos.” “Ah, não, é muito caro.” “Está bom, então não compra, eu faço molas para você.” E assim começou a nossa indústria, nós... Ele fazia máquinas simples, fazia mola contínua, e cortava-se com o alicate as pontas, para que mola parasse de pé, a última volta tinha que ser entortada. Então era minha mãe, eu, e minha irmã mais velha, nós fizemos isso em casa para fornecer as molas para essa indústria. Em seguida veio a guerra, e na Finlândia não tem gasolina, então todos os carros, caminhões, ônibus; tudo era provido de aparelho gasogênio, sabe?

P/1 - Gasogênio?

R - É, que queima madeira, e eles ficam sempre no traseiro do carro, então tem que ter o cabo de controle, três cabos, que vão lá. Tinha que fabricar isso, não existia, esse é o conduíte. Aí, então, começou, com grande velocidade, a fábrica a crescer. Eu me lembro, eu ficava na máquina mesmo em dia de escola. De noite ajudava e ficava sentado na máquina. Traziam comida para mim para não precisar parar a máquina.

P/1 - E isso era tudo ainda na sua casa, não?

R - Não. Meu pai alugou no edifício subsolo, onde ficou a fábrica até o fim.

P/1 - Ah, no edifício que vocês moravam!

R – Sim. Era um condomínio, nós tínhamos apartamento lá em cima e no subsolo a indústria, que, durante a guerra, passou a ser abrigo dos moradores daquela entrada. Quando tinha ataque aéreo eles desciam lá caso tivesse desmoronamento, então lá era mais protegido.

P/1 - E conta um pouquinho dos seus irmãos, o nome deles e idades.

R - Sim. Como eu disse, eu tinha um, o nome dele era (Taito?), não conheci, ele tinha nascido e morrido antes de mim. Depois nasceu a (Rita?), que veio até o Brasil, morreu agora, em 91, ela nasceu em 24. Depois teve um irmão, (Sepo?), que morreu com... Pegou muito frio, e pegou não sei o que, pneumonia, coisa assim, no inverno. Depois dela vem (Ritva?), agora a mais velha das minhas irmãs, depois tem (Pirrio?), (Aniki?)... (Pirrio?) mesmo que termina no “o”, mas é mulher. (riso) Depois tem (Tertumárketa?) e (Katrimarialis?). Vivem todos aqui em São Paulo, perto de nós.

P/1 - E como é que era a convivência de vocês todos então ajudavam na fábrica?

R - Não, todos não, os outros eram só... Quando passou a ser fábrica, então era só eu, porque, quando precisava, a fábrica já tinha empregados e tudo, começou a guerra, então a demanda de molas para armas era grande tal. Já era filho do dono. (riso)

P/1 - Então quer dizer que o negócio prosperou?

R - Ah, prosperou, ficou bom. Só que meu pai não era grande... Ele era inventor, mas não era homem de negócios, tanto que acabou (morrendo?) aqui na miséria, né?

P/1 - E eu queria que você falasse de alguns costumes da Finlândia. Um deles seria a sauna.

R - Ah, sim, sauna. Todos... Na Finlândia deve ter, deixa eu ver, são cinco milhões de habitantes, tem mais de um milhão de saunas. Ou seja, a média uma para cada cinco pessoas, pelo menos. Essa informação tem uns dez, 20 anos. Todos os edifícios modernos, quer dizer, construídos neste século, condomínios ou não, têm uma sauna para os habitantes, moradores do edifício. Então me lembro: nós tínhamos, cada quinta-feira, uma hora de sauna. Era na outra entrada, porque o edifício era comprido, então tinha quatro entradas, A, B, C e D, e era no subsolo do D que ficava a sauna. Nós tínhamos, quinta-feira, não me lembro se era das seis às sete, coisa assim, e tinha dois vestiários na sala. Uma família ficava nesse, e outra entrava nesse. Nós saímos, ficávamos, depois de nós veio outro, e assim por diante. A família toda junto na sauna, essa talvez seja a mais marcante que no mundo afora se conheça da Finlândia.

P/1 - E como é que é? É igual a essa aqui que se faz no Brasil, não?

R - Não! Eu tenho amigos... Olha, eu já consegui 80 graus na minha sauna, bem... Olha, finlandês fica resfriado nesse tempo. (riso) A sauna, tem que ser muito quente para a gente sofrer. Ah, eu não gostava, mas tinha que ir, quando criança, e depois você bate com aquele... Parece uma vassoura, junto. Galhos com folhas de bétula e você bate, é como se fosse autoflagelo, mas não é, faz parte da limpeza da pele. Para criança isso aí... A gente bate nos pés e tudo. Hoje se tiver isso é uma delícia. Aqui eu tinha um conterrâneo que tinha boa sauna, uma vez nós fizemos 110 graus temperatura dentro. Mas 80 não é o suficiente não.

P/1 - E depois o banho frio é onde?

R - Ah, pode ser o que tiver.

P/1 - Não, nessa do seu prédio.

R - Não, era só a ducha, não tinha... Prédio você não vai sair na neve. Eu tinha um tio que morava em (Jyväskylä?), irmão da minha mãe, ele tinha casa de campo numa ilha, e eu fui uma vez durante a guerra lá com ele, fomos esquiando dez quilômetros. Ele ligou a sauna, depois quando a sauna estava pronta, tinham recolhido os peixes nas presas, etc. Fomos à sauna e ele cavou dois buracos, assim, no gelo, o gelo acho que tinha 20 centímetros, nem isso, dez centímetro de espessura no lago e cinco metros o outro buraco. E ele entrou e nadou. Eu o vi como um sapo embaixo, (vulto) ali, para sair naquele outro. Água é zero, zero. Quer dizer, zero não, zero fica... Mas é bem perto de zero embaixo do gelo. E ele disse para mim: “Ah, você tem que pelo menos sentar na neve.” Então me sentei na neve um pouco, frio terrível. Porque eu não podia ficar covarde na frente do velho tio. E aí volta para a sauna, aquela temperatura de 100 graus que alivia. Então a gente faz isso: sauna, e calor e frio.

P/1 - Que não é necessariamente o banho. Sai para o frio e volta...

R - Não, não. Toma-se ducha ou mergulha no lago. Quer dizer, lá a maioria, quando possível, é feita à beira do lago. Lá tem 70 mil lagos, tem muita água. Mas nos edifícios, na cidade, se toma ducha.

P/1 - E a comida, o que era a comida que vocês comiam em casa?

R - Ah, por toda a parte lá... Como aqui é feijão e arroz, lá é batata, toda a Europa setentrional é batata. Então, outrora se fazia batata com banha de porco, toucinho, assim, que ficava boiando aquela gordura, ______ “beleza, beleza”, é o que morria. (riso) É que mortalidade muita alta, até que descobriram hoje, uma das menores do mundo lá, porque descobriram que esse era o inimigo. Então, era mole, mole, muito gostoso, com farinha, tostado, com cebola, toucinho, aí fica gostoso. Isso é comum, mas tem tantas comidas... Sopa se come muito, sopa. Até falei para a minha mulher: “Aqui tem que ter uma sopa de osso.” Aí eu tenho um livro de receitas e tem lá: sopa de osso, que é delicioso. Não é só... Pobre não, ele fica saboroso. É, sim, saudável. No verão come-se muito peixe, porque têm aqueles lagos, 70 mil lagos viscosos e o mar, então se come muito peixe e verdura. No inverno, nada de verde tem, porque teria que comprar na estufa, porque a terra é toda coberta de neve.

P/1 - E o senhor pescava?

R - Eu pouco, pouco, não sou tipo de pescador, não. Eu gostava, de vez em quando, mas não para utilidade não, só de brincar. Tinha nas margens um peixe, assim, pequeninho, e tinha três espetos nas costas, como le... Sei lá. A gente pegava esse peixinho, punha um pedaço de palha, aí punha ele na água de volta, então ele não conseguia mergulhar e ficava aquelas palhas. (riso) Mas eu não sou bom pescador, quando ia lá no lago, na casa de um tio, que tinha sido casa do meu pai quando criança, beira do grande lago... Lá todo mundo tem uma catraia, porque é meio de locomoção, então eu saía com catraia, pegava a − tem uma maneira de pescar − linha com isca no punho. Eu amarrava no pé, mas nunca peguei um peixe, não sou pescador. Tem um genro meu que pega direto.

P/2 - Eu fico pensando que a infância em um lugar assim deve ser, além de exótica...

R – Para o brasileiro é exótica.

P/2 - Para nós, brasileiros, claro. Exótica, quer dizer, a diferença de um lugar para o outro é muito grande.

R – Comparado, é praticamente antípoda, a Finlândia com o Brasil. Veja, nós estamos aqui...

P/2 - São dois extremos, né?

R - Claro. Nós estamos aqui, que grau tem aqui? 30... Não! Eu não me lembro... Do Equador aqui. Nós estamos no círculo...

P/1 - Aqui é capricórnio, né?

R - Porque passa aí o Santana, então nós estamos aqui no trópico agora. E lá é quase no polo, então... Não, é tudo é diferente, tudo é diferente. Agora, ah sim, você tem que perguntar (risos).

P/2 - Na realidade me estimula essa curiosidade mesmo, dessa diferença, mas era bom a gente seguir uma cronologia, né? Na sua adolescência, assim, como era sair para se divertir, se encontrar com os amigos, ir na escola, enfim...

R - É, quando era escola não tinha muito... Saía-se à escola de manhã e voltava, depois tinha que fazer lição. A gente escapava fora para brincar. Isso no inverno era gostoso, porque quando tem muita neve, facilita brincar. A gente fazia castelo, quer dizer, pegava a bola de neve, enrolava, ele crescia, então juntava aquilo e fazia castelo, e a gente punha tábua, ficava lá dentro.

P/1 - Ah, lá dentro?

R - Claro! Lá dentro.

P/2 - Iglu!

R – Sim, só que iglu é construído sem tábua. Nós fizemos também iglus, a gente fazia lanternas de neves, é belo lá dentro, é bonito de noite. E também dependia do lugar, esse, onde nós morávamos na minha infância, o edifício tinha pátio grande à frente. Não era liso, era irregular, então quando tem nevasca, o vento acumulava muita neve lá, as pessoas iam caminhando perto, não tinha... Acho que no edifício tinha um ou dois automóveis, coisa assim, naquela época. Então tinha que caminhar, e a maneira que vai caminhando na neve, ela vai se compactando, aí fica um trilho. Mas outros... Neve é fofo, então nós fizemos... Não, e quando cresce muito, mesmo compactado, ela vai crescendo. Nós fizemos buracos e tapeamos, cobrimos por cima com algum galho de árvore nele, por cima. E depois o pessoal caía e quebrava a perna. (riso) Verdade, a gente fazia isso. (riso) É, desculpe, não é mentira não, não é mentira. A guerra de neve é gostosa. A bola, joga a bola, você pega e joga, só que depois fica violento, quando você começa a apertar, fica gelo, aí machuca. (riso)

P/2 - Então, e aí isso fazia parte na época da sua adolescência?

R - Infância, adolescência.

P/2 - E dançar?

R - Não.

P/2 - E namorar, como vocês faziam?

R - Ah, sim. Isto eu... Era na escola secundária já, no segundo ano, quando a gente tinha 11 anos de idade, 12 anos, então fazia festa lá. A escola não permitia que você dançasse, mas você fazia uma... Aqui tem coisas assim, não ficar segurando a moça ou menina. Mas eu não me lembro alguma coisa, rodinhas, coisa assim, não era dança, não era...

P/2 - Era brincadeira.

R - É, isso era dança, mas o professor não permitia que você segurasse encostado (riso). Depois isso veio automaticamente.

P/1 - E eu queria que você contasse um pouquinho como é que era, assim, o rito escolar, como é que era o cotidiano numa escola?

R - Dia de inverno a gente chegava no escuro. Primeira aula era com luzes, porque era escuro, até o fim da aula já apagava. Eu acho que a escola por toda parte é mais ou menos igual. Tinha... Do primário eu não falo, mais secundário. Cada matéria tinha a sua professora, chegava e ficava lá na cátedra dele, como é que chama? Tinha lousa, e tudo. Para mim, acho que não tinha... Eram uns professores legais e outros chatos, então, quando a gente tinha professor chato, me lembro, isso já no científico, era de sueco, professor de sueco. Ele era muito forte, lutador de luta greco-romano, e nós berrávamos terrivelmente na classe. Quando ele abriu a porta, ficou silêncio, aí ele pegou um por um: se você berrou... Ele apertou assim, todo mundo ficou com o braço roxo. (riso)

P/1 - Todos os alunos?

R - Todos. Deve ter tido algum santo lá no meio. Não, ele fazia... Eu, como era sempre habilidoso, fazia giz em casa, de madeira, pintava de branco e punha lá na lousa. (riso) E a professora pegava. (riso)

P/1 - Essa é boa!

P/2 - Vocês aprontavam muito, então?

R - Não era todo mundo. Eu tenho esse defeito, não levo nada a sério, então... (riso)

P/1 - E qual era a reação das professoras quando não riscava?

R - Nesse caso eu não me lembro, mas castigo houve, pode deixar que houve castigo. (riso)

P/2 - De que matéria o senhor gostava mais, o senhor se identificava mais?

R - Propriamente nada (riso), para dizer a verdade nada. (riso) Mas eu ia melhor em geografia, coisas mais livres, e também gramática finlandesa. Estranho que hoje ele me serve de base para todos os demais idiomas, porque eu aprendi bem aquele. Tanto é que os finlandeses que eu... Agora, depois de 50 e tantos anos fora da Finlândia, eles: “Puxa, mas você guardou o teu finlandês, parece, numa caixinha!” Está conservado, que eu falo. Eles dizem quando eu vou lá. Agora, claro, esportes... Menos futebol, que eu não gostava, mas outros esportes sempre...

P/1 - Qual que o senhor fazia?

R - Todos. No verão a gente faz todos. Arremesso e _____ de peso, disco, dardo, saltos todos. Quando a gente tinha 15 anos já começava a saltar com vara a altura, pulava-se dois metros. Mas corrida, todos... Eu tenho até prêmios de esportes, corrida... Porque todo finlandês é muito dado aos esportes. No inverno, esqui e patinação, é campeão mundial de hóquei sobre o gelo, hoje. Agora, ia esquecer, o jogo esportivo mais popular na Finlândia entre crianças e adolescentes é beisebol, mas beisebol finlandês. É diferente.

P/1 - É?

R - É diferente do que os jogos japoneses e os americanos, não tem... A única coisa é o taco e a luva na mão esquerda. Então todo mundo, criança, meninos e meninas jogam beisebol. Onde tem espaço livre lá − se joga no verão − pode ver que estão jogando.

P/1 - Bem, estamos aproximando da sua partida, né? Como é que acontece a decisão da sua família de que você emigrasse? E por que o Brasil?

R - É. Contaram que meu pai já tinha tido a ideia de ir para os Estados Unidos, mas nunca realizou isso. Teve a guerra, e da guerra se pode falar muito em outro capítulo. A guerra, o fim da guerra alterou a política no país. Meu pai era proprietário da empresa, dono da empresa, único, mas como tinha os comunistas no poder, então os sindicatos tinham a força maior do que o empresário, nossos empregados viviam melhor do que nós. Meu pai disse: “Isso não está certo. O trabalho, resultado de toda minha vida não está certo assim, eu quero ir embora daqui.” Aí surgiu a ideia de começar a ir. No fim, tinha algum aventureiro que enchia a cabeça dele: “Ah, vai, vamos juntos, vamos para a Argentina”, e começaram concretamente a preparar terreno para ir para a Argentina. Mas quando tinha que arrumar contato com a Argentina, não tinha representação diplomática na Finlândia, tinha que ir até Estocolmo, na Suécia, cuidar dos papéis. Isso naquela época não era tão simples, né? “Ah, então vamos para o Brasil, de lá a gente continua depois.” E aí veio. Eu vim com um engenheiro da fábrica, veio junto comigo, e começamos. Mas todo esse esquema não foi planejado corretamente, tanto que não deu certo, nossa vida. Naquele tempo não tinha informação que você tem hoje, que qualquer lugar do mundo pega no computador e já informa o que... Naquele tempo tinha alguns livros exóticos aqui que contavam do Brasil, porque era um país extremamente exótico, como para vocês a Finlândia é. Hoje não, tanto que se sabe, mas naquele tempo... Então não foi nada certo, nós passamos terríveis dificuldades, porque acabou dinheiro, acabou tudo...

P/1 - Mas conta com mais detalhes. Você tinha quantos anos?

R - Tinha 19 anos quando eu saí da Finlândia, cheguei aqui com 20. Não levei um ano na viagem, mas... (riso)

P/1 - E era de navio?

R - Navio. Naquele tempo não tinha avião que voasse nessa distância com passageiros. Tinha bombardeios ingleses, mas eles ainda... Depois, os italianos, uns anos depois, compraram esses aviões, faziam voos com esses aviões de bombardeio, mas era extremamente desconfortável.

P/1 - Então você veio de navio para o Brasil. Como é que era viajar de navio naquela época?

R – Era um navio cargueiro, não vem de lá navios passageiros até aqui. Saía da Finlândia navio da linha Finlândia-América do Sul, que traz geralmente papel, coisas de madeira, esse tipo de coisa. E leva passageiros de primeira classe, leva até 12 passageiros. Nós éramos sete, que viemos: o nosso engenheiro e eu, mais uns dois ou três que vieram aqui, depois um finlandês, representante de papéis e celulose finlandeses na Argentina com a esposa dele, e algum ex-diplomata. Mas a viagem era gostosa, porque essa era a primeira viagem nesse navio após a guerra, então a promissão que ele tem... Tinha acabado tudo. Nós entramos no navio, ele não saiu de Helsinque, ele saiu da cidade de Kotka. Meu pai nos acompanhou, fomos de caminhão, porque tem as máquinas, coisa assim, e tinha _________, tinha que parar para abastecer a madeira. E pegamos o navio já atrasado também, já tinham soltado um cabo no cais, mas nos pegaram. E jantar, o primeiro jantar era batata cozida com arenque. “Mas, gozado, nós não somos passageiros de primeira classe?” Lá em casa, anos de miséria, era batata cozida e arenque, tinha esse tipo de coisa, é que não tinha no navio. Na Finlândia não tinha nada naquele tempo, nada de supérfluo. Aí fomos dormir, e dia seguinte olho pela escotilha, o navio estava na Suécia, ancorado já numa cidade, Karlshamn, sul da Suécia, ali foram abastecer. A Suécia era um país neutro, ele tinha toda... Não tinha nunca guerra, há séculos não tinha guerra, então eles tinham toda a riqueza lá, tudo que a gente não via há anos. Então o capitão fingiu que tinha defeito nas máquinas, tinha que ficar três dias lá na Suécia para carregar. Aí veio provisão, tudo coisa fina, e nós lá, gastando dinheiro, comprando chocolate, porque na Finlândia não tinha. Depois continuou a viagem, paramos em Rotterdam no mesmo dia, e Rotterdam fica no delta do rio, acho que Reno, tem distância longa. Eu me lembro, a gente nunca tinha visto o capitão, só víamos lá longe, homem bravo. Chegando lá ele estava extremamente bravo, berrava e tudo. O navio abasteceu, e fomos embora. O navio zarpou de novo, aí ficamos, e no dia seguinte estava na Biscaia, aí ele veio de cuecas. (riso) Ele veio de cuecas, falou: “(fritt vatten?)”, significa águas livres. Tinha uma senhora junto na mesa, mas acho que ele não tinha visto ainda, nessa hora, ele estava bêbado já. E ficou até _____ bebendo. (riso) Até, acho, que a Ilhas Canárias, ele parou porque quando nós chegamos em Rotterdam, ele tinha um... Como é que se diz? Caminho para o navio percorrer, muito estreito, que saísse daquele... Tinham minas ainda.

No dia anterior um grande transatlântico afundou porque bateu na mina, saindo daquela área delimitada, por isso ele estava nervoso. Ah, no dia seguinte ele já estava todo relaxado na Biscaia, e vento, não tinha vento. Biscaia é um mar bravo, sempre... Olha, esse navio não mexia nada, não mexia nada, era tão bom. A viagem toda era uma maravilha, se veio como... O mês comendo e bebendo. Eu gastei muito no uísque ______, mas eu não bebia, não sabia. Se eu jogava pôquer, eu perdia sempre. (riso) Para gastar tempo, não tinha o que fazer, só comer, beber e dormir.

P/1 - E a meta era você vir com o engenheiro para ver a instalação e começar aqui?

R - Sim, começar a instalar, começar a fazer molas. Trouxemos a máquina e tudo, mas depois deu... Meu pai, como eu disse, ele era inventor, a personalidade um pouco diferente. Ele tinha logo um enguiço com o engenheiro, esse separou e...

P/1 - Mas demorou quanto tempo você aqui no Brasil com o engenheiro até sua família vir?

R - Seis meses... Não! Eu vim em agosto, eles vieram em fevereiro do ano seguintes. Seis meses, né?

P/1 - Jussi, eu cometi um erro aqui de conta, eu tinha entendido que você tinha vindo antes da guerra, você veio depois.

R - Depois da guerra.

P/1 – Então quer dizer, nós pulamos todo esse pedaço da guerra, que eu acho que era importante a gente retornar.

R - Ok, vamos lá.

P/1 – Por que você passou toda a guerra lá na Finlândia.

R - Sim, sim, sim, era tempo bom para mim. Era moleque, tudo era aventura, então era gostoso. Tinha coisas tristes também, mas...

P/1 – Mas olha, vamos dizer... No contexto político, 39, Segunda Guerra, a Finlândia era neutra?

R - Não, Finlândia tinha amigos sim, era neutro, mas a França e a Inglaterra eram amigas da Finlândia. Mas essa guerra veio porque a Rússia achava... Porque a fronteira da Finlândia lá na Carélia fica perto de Leningrado, eles tomaram isso como pretexto para fazer guerra, para expulsar os finlandeses, aquela história que está claro. Então começou a guerra em 30 de novembro. A gente não sabia, a gente estava na escola, de repente a escola fechou, tinha que ir para casa. E minha mãe conta que viu... Ela estava sentada na sala do quarto do pai, lá onde ele tinha escritório. A escrivaninha tinha uma porta que era parcialmente vidro, dava para o terraço, então ela viu os aviões voando e soltaram umas... Pareciam lágrimas. A distância, talvez uns quilômetros, deixe eu ver... Dois, três quilômetros de distância. Aviões de guerra, e soltavam as lágrimas. Ela não sabia que era guerra. Eram bombas, e assim começou. Politicamente a Finlândia... Todo país, quando está em paz, tem briga política. Como tem agora aqui todo... Esqueceu-se as divergências políticas internas e todo mundo era defesa da pátria. Era bonito, era bonito, eu tinha 13 anos, mas eu entendia isso. Bonito o comportamento do povo, todo mundo trabalhou em função disso. As mulheres costuravam roupas, meias, e tudo para os soldados, era inverno, guerra de inverno. Todo mundo estava nisso. Aí terminou na derrota, porque a Finlândia não estava preparada; Finlândia é país pobre, quatro milhões de habitantes, país agrícola, não tinha quase exército. Só que tinha uma coisa: uma organização paramilitar criada já quando nasceu a Independência, 1917, 18. As pessoas iam, os homens e mulheres também. Voluntariamente se reuniam de fim de semana para ter instrução militar. E nós para o futuro, porque esses... Eram dezenas de milhares que formaram base do exército, que já estava experimentando, como se estivesse para a guerra. E eu fazia parte também, entrei nesse como garoto. Perto nós tínhamos lá uma bateria antiaérea, na ilha onde eu morava, (o bairro?), ele era grande, dava dez quilômetros a volta. Nós recebemos treinamento nessa bateria antiaérea e todas essas unidades − que tinha no país todo − estavam cheias desses... Tinha uniforme que levava para casa e vestia uniforme no domingo para fazer exercícios. Era interessante.

P/2 - No que consistiam esses treinamentos?

R - Militar. Dependia da arma. Todo o primeiro treinamento básico que você dá para o soldado: marchar e todas aquelas coisas. Depois tiro.

P/2 - Como se utilizava a arma...

R - Nós, naquela época, não fizemos... Não tínhamos arma. Depois, com o passar... Essa guerra que eu estou me referindo terminou em março do ano seguinte, eram 105 dias. A Alemanha já tinha atacado a Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. França e Inglaterra estavam envolvidas já na coisa, não podiam ajudar a Finlândia. A Alemanha tinha o mesmo inimigo. A Alemanha rompeu o pacto de não agressão com a União Soviética e começou a guerra contra os russos, em... Não sei se era 40 ou 41. Automaticamente, se dois países têm o mesmo inimigo, se juntam. Finlândia era país pobre, a Alemanha tinha bons armamentos, eles deram armamentos para a Finlândia, melhorou bastante, e em 41 começou outra guerra contra a União Soviética para conquistar de volta aquelas áreas que tinham sido... A Rússia tomou na guerra de 39, 40, porque esse guerra durou até 44. E a Finlândia avançou lá na Carélia, terra que tinha sido da Finlândia. Mas depois do caso, vocês lembram Stalingrado? Os alemães foram bem até Stalingrado, lá pararam e começou recuo, e a Rússia ficou mais fortalecida. Tinha uma coisa fantástica: os russos, como... Todas as indústrias dela, praticamente, os alemães destruíram, mas eles levaram tudo num esforço imenso, parecido com o esforço dos americanos para fazer aviões de guerra. Atrás dos montes rurais refizeram o exército, eles... Aí, no caso, Stalingrado já começou a ter a supremacia dos russos contra os alemães, aí restou para... Também, mais tropas da Rússia contra a Finlândia. Um contra 50 não é fácil a guerra, como era o caso da Finlândia, então a guerra ficou muito penosa, e o Stalin queria que a Finlândia saísse da guerra, ele deu ordem para comandante de... Tem uma divisão de aviação deles, de ataque, destruiu Helsinque, isso não se sabia, ficou sabendo agora, com fim da União Soviética, que os documentos secretos ficaram conhecidos. Então ele deu essa ordem e a aviação russa fez o plano (de?) três semanas em um dia, dia 6, 16 e 26 de fevereiro, grande bombardeio em Helsinque. E a defesa de Helsinque foi muito bem planejada, com inteligência. E já tinha mais armas, tinha várias baterias, tinha vindo da Alemanha, antiaéreas, então isso foi bem sucedido, tanto é que os russos achavam que tinham acabado com Helsinque, e o comandante dessa operação ganhou a condecoração do Stalin: “Obrigado pelo serviço bem feito.” Aí, quando a guerra... Isso era em 44, a guerra acabou em 44, fim de ano, quando foi? Com... É, setembro. Então tinha que fazer armistício, porque ao final já estava bem ruim, precisava... Quase não aguentava mais. Veio uma comitiva de russos que começaram a mandar lá, e esses homens que vieram, que tinham sido condecorados... Ele veio: “Mas ele está inteiro!” Diz que ele − isso deve ser folclore − diz que arrancou aquela condecoração, jogou fora, que era tudo mentira, que não conseguiram destruir Helsinque. É uma história. Mas aí um parêntese: a situação estava difícil, as escolas estavam fechadas já, as famílias com crianças e idosos tinham que sair das cidades para ir ao interior, nos refúgios. E o comandante das forças armadas pediu que os alunos, rapazes, de classe científica, fossem voluntariamente para a antiaérea, porque tem muita operação que o menino pode fazer no lugar de homem, porque homem precisa ser quando precisa de força, como um (iniciador?), jogar a granada no canhão. Então naquele dia, no dia 26 de fevereiro, nós juntamos todos, e a administração militar da cidade distribuiu para todos os baterias, e eu tive a sorte de chegar naquela bateria que eu conhecia, que era perto de casa, meio quilômetro da minha casa. Éramos talvez uns 30 garotos, colegas de escola, de várias escolas, ali junto. Meio dia passou o avião russo, um bombardeio rápido, com dois caças sobrevoando − o dia era mais bonito do que agora, céu limpo e azul − ele soltou as bombinhas, mas eles vieram para fotografar. Aí, então, passado isso, o comandante da bateria nos chamou e disse: “Olha, tudo leva a crer que vem um ataque de noite. Que vocês se preparem, porque está frio...” Estava 20 graus abaixo de zero, tudo. E cada um vai ter alguma função lá. Ele não conhecia, mas eu conhecia. Ele me conhecia porque eu tinha treinado lá, era aquela organização paramilitar. Depois cada um saiu, não sei, lá na bateria mesmo, aí fui falar com ele. Falei: “Olha, eu gostaria de ficar no canhão.” Porque os outros não, mas alguns tinham tido esse treino. Eu tinha, eu sabia como tinha que ficar no canhão, fazer o que. Aí ele disse: “Ah, é? Você quer saber como é que ele estoura?” Falei: “Sim.” Eu era valente. Quando foi dado o primeiro tiro, eu me arrependi _______. Terrível, que medo! Ai, que medo! Mas eu fiquei no canhão, aquele era um casamata de pedra, e coisa assim, que dá para essa altura, dá para ver lá fora. Eu estava fazendo uma função que eu tinha que transmitir os dados para os três homens, um que faz direção horizontal, um vertical, e o terceiro, que é a distância, tempo de estouro da granada. Então eu tinha microfone, não podia ser assim, porque o barulho é muito... O microfone era aqui.

P/1 - Ah, no pescoço.

R - É, aqui na garganta, porque aí ele só transmitia o que eu falava, não podia ser fora. E eram fortes, né, _____. E era um cabo que ficava assim, ele... Isso lá pelas duas horas da manhã, ele ficou preso em um dos... Estava cheio, não era uma coisa muito aerodinâmica aquilo, é cheio de cantos. Ficou preso e eu não pude sair, mudar de posição. Quando foi dado o tiro, eu fiquei numa área de risco. Voou terrivelmente, eu estourei os tímpanos, fiquei surdo na hora, porque canhão está nessa posição, então aqui fica a área de alto risco, e lados aqui, tem que ficar sempre atrás, porque a pressão de ar é muito grande. Eu fiquei preso no lugar... Meu canhão estava assim, outros cinco eram assim. Aí veio um _______ lá da direção do fogo: “Que que tem no canhão número dois?” Estava mudo, eu não escutava, não sabia nada, então tinha que ceder o lugar para outro para fazer o trabalho, porque eu recebia a informação que tinha que transmitir aos outros, e como fiquei surdo...

P/1 - E teve bombardeio à noite?

R - Claro! Como teve. Eu tenho aí os dados: 800 aviões atacaram durante 13 horas, em Helsinque. Sabe cidade de Dresden, Alemanha? Os dados podem ser comparados, Dresden morreram 30 ou 50 mil pessoas naquela noite, num bombardeio igual, que os americanos ingleses fizeram. O que os russos fizeram... Não conseguiram a mesma coisa. E tem vários fatores, justamente, o sistema de defesa de Helsinque era feito da forma tão inteligente, que não conseguiu ser destruído. Eu tenho dados, parece que são cento e poucos edifícios destruídos, acho que nem 1000 pessoas morreram. Estragos eram minúsculos, porque primeiro fizeram... Os russos vieram de Tallinn e de Stalingrado, dois caminhos, a maioria veio lá de Stalingrado, então fizeram antes da cidade, na Península puseram uma bateria antiaérea lá, e grandes incêndios. Os russos começaram bombardeio, eles pensaram que era lá a cidade. (riso)

P/1 - Foram para lá?

R - É. Então maioria das bombas caíram no mar, e tudo. Depois era muito bem feito e inteligente, tinha bom armamento, tinha acho que seis baterias, como esses canhões modernos alemães. E outra: o atacante era russo. Se fosse americano, a gente não existia mais. Não, porque o sistema de defesa era planejado, sabia-se por informação de rádio e ouvido, e tudo, e tinha radares já, nessa época tinha radar. Sabia já a distância que vinha: “Agora vem daqui, dessa direção vem tantos aviões, 20, 30 aviões ao mesmo tempo.” Foi planejado, tinha tempo, às vezes até minutos de planejar coisa, então todo espaço aéreo era numerado e dividido, de modo que se no controle central eles dissessem: “Feche o número tal” ou “Fechem o portão número tal, altitude de voo tanto, lá vão esses aviões passar.” Então todas baterias... Era necessário preparar para jogar granada naquela área num determinado tempo, quando vem ordem lá. Aconteceu isso: avião veio, de repente começou granada mais forte ali na frente. O que ele faz? Ele tenta desviar, porque se vai lá ele morrem, pode morrer, porque a granada, a 200 metros de distância o avião desintegra. Aí ele tinha que soltar a bomba, porque avião pesado não vira rápido. Então por isso caíram muitas bombas no mar. Agora, falei os americanos... Tudo isso foi feito por instrumentos, porque não se enxerga, mas depois, quando começa a ver as cidades, o incêndio, aí você enxerga. Mas os americanos, só por instrumento. Era fechado, piloto não via, então o piloto americano morria muito, porque ele tinha esse mesmo sistema: ele passava e era abatido. Os russos não tinham essa estratégia, né?

P/1 - Eu queria só saber uma coisa, dentro desse contexto da guerra: como é que ficou a vida da sua família durante esse período?

R - Meu pai, como eu disse, estava lá na base naval, nas funções dele, e a família toda estava no interior, na casa de algum parente. Era um primo do meu pai, lá longe no interior, e lá eles não tinham muito... Viam, às vezes, o avião inimigo passar, ou avião de modo geral passar, eles viviam lá no interior lá, gostoso.

P/1 - Tá, mas o seu pai, a sua mãe, seus irmãos...

R - Não, todos eles. Meu pai ficava na cidade, e meu... Eu estava na bateria, e minha mãe e as irmãs estavam lá no interior.

P/1 - Mas você dormia onde?

R - Na bateria.

P/1 - O tempo todo?

R - Sim. Às vezes ia para casa, estava a um quilômetro de casa à bateria. E pai dormia em casa, ele ia só de dia ao serviço.

P/1 - E aí, quer dizer, já tinha um racionamento de comida...

R - Ah, como tinha! Como tinha! Cada um tinha manteiga... Na Finlândia o povo consome muita manteiga, então tinha 200 gramas de manteiga por mês, por pessoa, tanto é que nós tínhamos potes que tinham sido conserva de peixe, vidro... Para todos tinha o seu nome em cima: “Sua manteiga está aqui, se come agora e fica o mês sem manteiga, é contigo.” Então tinha que saber se racionar assim. Açúcar era a mesma coisa, 250 gramas por mês. Farinha, 50 gramas por mês, um pãozinho por dia. Dava um pãozinho por dia, branco. É a mesma coisa branco ou preto, centeio. Carne... Não me lembro como é que era carne. Mas não tinha. (riso) Não tinha, era difícil. Ah, era terrível. Pessoa, assim, se não tivesse... Quem não tinha, digamos, um professor de escola honesto, se ele não tivesse tido parentes no interior... No interior não faltava, porque eles tinham lá o gado, tinham coisas que eles tinham comida. Se ele não tivesse nenhum conhecido no interior e não recorria a mercado negro para comprar coisas, ele emagrecia, não era suficiente a comida. Meu pai sempre comprava, comprava e recebia do interior. Mandava pão e carne, coisa assim, e caça. Ah, mas era dura a vida. Eu sabia que lá o mercado... Vinham os suecos, traziam chocolates, e eu ia lá de bicicleta comprar tablete de chocolate. Eh, festa!

P/2 - As famílias não tinham criação de animal em casa, tipo galinha?

R - Só no interior, na cidade não.

P/2 - Porco?

R - Não, na cidade não é possível, todo mundo morava em apartamentos na cidade. A área urbana não tinha disso.

P/2 - Nessa hora de restrição de comida, de pouca comida...

R - Todo o país. Essa restrição era para todo... Só que aquele que vivia no interior, onde tinha criação, eles...

P/2 - Se abasteciam mais!

R - Sim, claro, como é que vai controlar lá?

P/2 - Está certo. Por isso que a sua mãe e as suas irmãs foram para o interior?

R - Não, eles foram por ordem de não poder ficar na cidade por período de bombardeio, tinha que ser evacuado, a cidade era evacuada, tinha pouca gente, poucas mulheres, poucas crianças, só soldados e pessoas que tiveram que permanecer, porque era perigo de perder vida.

P/1 - Bem, então, olha, a gente conseguiu recapitular aí essa parte da guerra, então a gente dá esse novo salto da sua imigração: o navio chegou, vocês aportaram onde?

R - Santos.

P/1 - Santos.

R - Paramos uns três dias no Rio e eu via os marinheiros que, como o navio há muitos anos não tinha feito viagem, tinha uns (youngmen?), quer dizer, novos rapazes, eles logo naqueles botecos do porto lá (riso), mas era divertido vê-los. E enchia a cara. O povo finlandês é um dos mais bêbados do mundo, finlandeses, russos e noruegueses são os que mais bebem. Mas nós, finlandeses, ganhamos. (riso) É uma bebedeira só!

P/2 - Qual a bebida original da Finlândia?

R - É uma coisa como Vodka, chama (vina?), é destilado de batata ou cereais... Acho que é cereais, não batata. É só isso, não tem gosto nenhum, mas efeito tem. (riso)

P/1 - E qual foi a sua primeira impressão do Brasil, quando você viu a costa?

R - Nós chegamos... Os navios chegam à tardezinha. Era lindo! Ainda o céu estava começando a escurecer, mas aquele colar de luzes todo, começar Guanabara − que vai até longe − Corcovado e Pão de Açúcar... Era um negócio deslumbrante, beleza ímpar. Dia lindo, não tinha vento, nem nada. Era belíssima a impressão. Depois ficamos lá, o navio ficou ancorado acho que uns três dias lá no Rio, aí a gente foi conhecer o Rio: Bar Bolero, lá em Copacabana... Era um negócio de... Como é que se classifica?

P/1 - Um bar, assim, de dança?

R - Sim, sim, exato. E conheci Copacabana e tudo, era tudo... O interessante é: quando eu saí do navio, estava na Praça Mauá. Peguei minha bússola e nós saímos à pé. Na Rio Branco peguei a direção para a gente saber voltar. (riso)

P/2 - E o senhor gostava de dançar?

R - Não, não muito, não. Eu gostava, mas era muito tímido, não era muito bem sucedido. Era só para fim de namoro. Depois quando conquistei minha mulher, ou ela me conquistou, sei lá, eu quase não danço.

P/1 - E Jussi, então você estava contando, você parou no Rio e depois estava indo para Santos?

R – O navio veio depois, ele deixou carga, certamente papel, e deixou no Rio, porque maioria trazia papel, papel de imprensa. A maioria dos jornais, tudo era com papel finlandês aqui, e a Editora Abril, as publicações. Aí Santos, lá foi descarregado nosso material, subimos de trem, primeira subida subimos de trem, de Santos para São Paulo. Era fantástico, aquele trem que vai, assim, um para na estação, o outro para... Porque ele tem um cabo, algum sistema que estavam conectados, então ele parava no mato, na subida, no mato, cheio de abacaxi. Ai, que maravilha abacaxi assim. Porque uma das frutas mais exóticas que tinha na Finlândia era justamente ananás, né? Porque se comia só daquilo que veio, em conserva, com calda, veio da Califórnia. “Ah, mas tem abacaxi!” (riso) Era interessante isso. E chegamos, acho que, sei lá, acho que foi na Estação da Luz que a gente chegou, não me lembro. Não importa isso.

P/1 - Isso em 1946?

R - É. Foi fim de julho, começo de agosto, sei lá.

P/1 - E aí, qual foi o primeiro lugar que você foi morar?

R - Tinha um conterrâneo que tinha deixado recado para nós, um finlandês que morava no Jardim São Paulo e nos acolheu lá nos primeiros dias. Eu não esqueço, porque a gente vinha para um país tropical, então não precisava trazer roupa de inverno. Aquela noite foi a mais fria da minha vida. (riso) Eu vesti agasalho esporte, tudo que eu tinha. No dia seguinte, de manhã, levantamos, tinha gelo nas poças de água, na Avenida Leôncio de Magalhães. Naquele tempo acontecia isso, hoje não acontece mais. (riso)

P/1 - É, aqui na época era a terra da garoa, né?

R - Sim, é autêntico, não era ainda tão estragada como hoje.

P/1 - Aí vocês ficaram tentando instalar a fábrica?

R - Ah, sim, aí contatos com pessoas, tinha dois homens finlandeses, dois já falecidos, que moravam aqui, antes da guerra tinham vindo aqui, eles nos ajudaram muito, correram junto. E os contatos que foram feitos... E começamos depois, mas depois veio... Não conseguimos produzir ainda nada, até que meu pai veio, aí a coisa complicou, família, alugar casa, e tudo, tanta gente.

P/1 - E você que cuidou disso?

R - Tentava cuidar, ficou mais descuidado, claro, porque eu não tinha experiência de vida nenhuma, tinha feito 20 anos na viagem, e na cidade eu saí da escola, a única atividade fora da escola foi que eu tinha era ajudando o pai lá na fábrica, e esportes, tudo, ________ fazer tudo, menos coisa séria. (riso)

P/1 - E a comunicação lá, assim, a língua, a dificuldade de comunicação, como foi?

R - Terrível. Sorte que tinha esses conterrâneos, que ajudaram nisso, porque do contrário, a gente, com o dicionário... Não, esse é um outro dicionário, não entende português, mas entende castelhano. Muito difícil. Mas na idade que eu tinha, quando meu pai chegou, me lembro, eu falava fluentemente português. Sim, claro, fluência, como hoje dizem que o meu sotaque é... Mas criança aprende rápido.

P/2 - Nossa, seis meses!

R - Sim, sim. Hoje eu acho que eu falo... Bom, eu tinha na imprensa, que ajudou nisso... Eu falo do que média brasileira, média.

P/1 - Ah, sem dúvida.

R - Só que a pronúncia denuncia. (riso) Não, porque eu tinha na imprensa... Eu convivia muito com o revisor, então eu aprendi bastante nisso.

P/1 - E você e os seus pais foram morar onde?

R - Nós alugamos uma casa na Mooca, mas logo quando tudo deu errado tivemos que sair de lá, não me lembro quanto tempo ficamos. Tivemos que vender os dois carros... Meu pai trouxe os dois carros, trouxe mobília tudo de casa. Maior besteira: tudo, tudo, trazido, um enorme custo daquele para sair da alfândega, claro, as pessoas da alfândega, despachantes, aproveitaram que a gente era ignorante a respeito. Móvel, móvel comum: “Ah, madeira de lei!” Então coisa assim foi uma fortuna lá. Depois, poucos meses depois, tivemos que arrumar um lugar mais econômico, fomos arrumar um casebre no Jabaquara, 12 quilômetros da cidade − é, tinha me esquecido do Jabaquara − muito modesta a casa. E aí já começamos a trabalhar, deixou-se a ideia de fazer a firma própria, começou a trabalhar fora meu pai, uma irmã minha foi trabalhar como pajem − a irmã mais velha − e meu pai foi trabalhar... Primeiro na fábrica de molas Scripilitti lá na Vila Pompéia, eu fui com ele também. Depois ele foi trabalhar na General Motors, e mais tarde, não me lembro a época, mas poucos anos depois, ele ficou em casa como relojoeiro, ele era relojoeiro também, tinha tido... Então eu o via com competência, não via um relojoeiro fazer a peça do relógio como ele fazia, não tinha maquinaria, não tinha nada em casa, à mão ele fez peça de relógio para consertar.

P/1 - E qual foi o seu primeiro emprego aqui no Brasil?

R - Tinha... Depois veio um amigo, aliás, meu pai contratou mais pessoas, ele veio para cá, mas ele não era nada do ramo, só porque ele falava inglês meu pai contratou (riso). E aqui não tinha nada a fazer conosco, mas ele era um homem muito habilidoso: artista, publicitário, e tudo, então ele arrumou emprego numa agência aí, na cidade, e me levou junto, porque ele viu que eu tinha habilidade para tal coisa, fazer vitrine, decorações de vitrines para companhia de aviação. Aí começou minha carreira como desenhista e decorador. Esse foi o meu primeiro emprego. Fizemos durante muitos anos, eu era bem sucedido nisso, até que veio outro amigo da Finlândia, amigo desse amigo. Os dois eram aviadores, então ele veio, ele era um grande artista, desenhista, com ele eu comecei a desenhar para a revista Visão, que naquela época era a revista mais importante, como hoje é a Veja. Ele desenhava mapas e gráficos e eu ajudava ele. Ele não vinha para a cidade, eu vinha, nós tínhamos carro, a gente... Eu vinha trazer matérias e tudo. Ele raramente vinha para a cidade. Mas ele começou a namorar com... Namorava a namorada do diretor, (riso) e aí, (claro?), acabou o emprego. Aí eu fiquei no lugar dele, desenhando. E fui contratado, eles viram que eu dominava o caso, fui contratado para ser o chefe de produção da revista Visão logo de cara, isso foi 58.

P/1 - Que que é que o chefe de produção fazia?

R - Faz o layout, faz a distribuição da matéria, conta a matéria... Volume da matéria, fazia todo o layout e mandava compor. Supervisionava na gráfica a concepção da coisa até a montagem final, que era em chapas de celuloide antes de ser gravado. Então ia todo dia, via todas as páginas antes de serem gravadas as chapas para a impressão. Era cargo importante, meu nome era o terceiro no expediente.

P/1 - Quem editava a Visão?

R - Eram americanos, eu não me lembro o nome.

P/1 - E a editora?

R - Não, não, não era conhecido não, não era conhecido. Esse diretor que me chamou era Hernane Tavares de Sá, que não era jornalista, mas um homem muito culto e inteligente, ele mais tarde foi ser diretor de informação pública da ONU no tempo da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], lembra da OTAN?

P/1 - E quanto tempo você ficou na Visão?

R - Eu fiquei até 60, e na Visão, na própria Visão, eu fui demitido por encrenca com supervisor; claro, né? Mas ele me colocou numa outra revista da editora, porque tinha os dirigentes, dirigente consultor, dirigente rural e dirigente industrial, então ele me colocou lá. E eu fiquei até 65, quando... Lá também depois acaba o destino de todo empregado de demissão, caí fora, fiquei nove meses, nunca esqueço, como se fosse tempo de gestação, nove meses até entrar na Editora Abril, onde fiquei 25 anos.

P/1 - Ah, então vamos falar um pouco da Editora Abril.

R - Vamos falar. Para entrar era tão estranho, era na João Adolfo. O que a Abril tinha era: Claudia, Quatro Rodas, Fotonovelas, e estava começando a fazer os fascículos Conhecer. Eu entrei a partir do segundo número de Conhecer, porque eu ia lá... Quantas vezes eu ia no chefe de arte da Editora, hoje um homem conhecido, Atílio Basqueira, e ele nunca gostava de dizer não. Dizia assim: “(Volta amanhã?)” E assim foi, fiquei nove meses. Assim que no elevador eu vi um homem falar para o outro: “Olha, está difícil, eu não consigo homem para fazer esse trabalho.” E ele explicou, era trabalho de tradução. Voltei naquele elevador para falar com o Atílio Basqueira, aí ele pegou telefone, ligou para o diretor dos fascículos. Eu fui lá, e no mesmo dia fui contratado. E salvei, porque eu tinha muita prática nisso, só que eu não esqueço, meu salário na Editora Visão era 800 cruzeiros − acho que era cruzeiro na época −, eles tinham no orçamento 400 para essa função, então conversamos, fizemos compromisso, eu recebi 600. Mas logo eu comecei lá, eles perceberam que eu... Eu tinha muito prestígio lá, desde os primeiros tempos o seu Victor... Você conhece o seu Victor, sabe quem é Victor Civita?

P/1 - Sei. E o senhor tinha quantos anos, então, quando entrou na Abril?



R - Quarenta anos, porque eu tinha tentado, quando eu fiquei nove meses desempregado, entrar para trabalhar na Volkswagen, porque eu gostava de indústria. Eu fiz um teste lá, mas eles: “Não, com a sua idade não, porque eu gosto de trabalhar com jovem, o senhor é muito velho para isso.”

P/1 – Que horror...

R – Quarenta anos era velho. (riso) Aí eu comecei a carreira, depois fiquei nos fascículos, depois fui... Cheguei a ser secretário da redação dos fascículos.

P/1 - Então, mas vamos contar devagarzinho. Como foi que o senhor entrou já no segundo número do Conhecer? O que era o Conhecer?

R - O Conhecer era − acho que continua sendo − uma Enciclopédia em fascículos semanais. Era cópia de uma publicação acho que italiana. Sim, vieram os fotolitos, vieram da Itália, e aproveitava as ilustrações. Colocava texto em português e fazia outras ilustrações também, tanto que lá eu desenhava mapas também. E começou a vender, terrível, essa que foi a chave de ouro do senhor Victor, chave da mina de ouro, porque aí começou a crescer. Daí eu fiz também, da Conhecer... Trabalhei um pouco na Bíblia, a Bíblia era o primeiro fascículo. Era um sucesso, mas num país muito religioso era suspeito dizer se é bom sucesso isso. Então lançou a Conhecer, confirmou. Aí veio Bom Apetite − eu trabalhei nesse também um pouco − e Gênios da Pintura. Eu fiz... Todo o layout de Gênios da Pintura é de minha autoria, eu me orgulho disso. Tinha um diretor-editor na Editora Abril, Luís Carta, já falecido, com ele, eles: “Não, você faz assim.” Eu voltei, refiz tudo, mas dias e dias e noites eu trabalhei, até ele aprovar que era bom, a tipologia e tudo. Não tinha muita alteração de layout, porque os fotolitos, ilustrações, páginas, vinham prontas da Itália, a quatro cores.

P/1 - Mas então conta um pouquinho mais, o senhor disse que trabalhava com layout. O que era realmente o seu trabalho no dia a dia, quais eram as ______ e as funções do trabalho?

R - Na Editora Abril? Ok. Primeiro dia eram as ilustrações. Por exemplo, o mapa vinha com nomes em outros idiomas, então tinha que colocar isso em português. Era mandado compor na gráfica, vinha a prova em papel couchê, e aquele cortado com gilete, ou com...

P/1 - Estilete...

R - Estilete, e colado em cima nesses lugares para filme preto. Quer dizer, era papel separado, que era filme preto. Isso, e todo o texto era composto, e vinha impresso em papel. Nós... Não era só eu, tinha outro também...

P/2 – Era past up né?

R - Sim, past up, exatamente. Colado nas páginas, era feito tudo assim, nessa base. Era muito trabalho. Depois eu fui promovido para cuidar disso de toda a Editora, então eram todas as revistas da editora. Tinha sessão, tinha vários... Revisão e montagem juntos, lá tinha... Quinze pessoas trabalhavam nisso. Trabalhavam na gráfica, ao lado da tipografia, e toda hora precisava frequentemente pedir... A senhora conhece, você conhece como é feito a coisa.

P/2 – O past up?

R - É.

P/2 - Conheço.

P/1 - Não, mas para quem não conhece, conta o processo.

R - Então, é papel colado no lugar onde... A página era feita de papel, colando o papel com texto e deixando espaço aonde vai uma ilustração. Na colorida, por exemplo, era deixado espaço para depois receber a parte dele nos fotolitos, e essas páginas eram fotografadas na gráfica e passadas para celofane. Celofane porque dava transparência para gravação, processo de gravação dos cilindros de impressão. Todos as páginas eram de celofane. E todo dia eu ia ver, era uma página grande, o tamanho da folha, quantas páginas iam... Eu ia verificar se não tinha erros no compressor final. Quer dizer, passou na revisão várias vezes, então aprovava aquele chapa, aí ele entrou para gravação e impressão.

P/1 - E o Gênios da Pintura, como é que foi a criação disso?

R - Gênios da Pintura tem duas partes: uma parte o texto e outra aquelas páginas onde têm as obras em tamanho da página inteira, até página dupla. Era o hoje conhecido jornalista Luiz Weiss que escrevia o texto, ele fez a pesquisa dos... Porque cada fascículo Gênios da Pintura é de um artista. Então ele fez o texto, eu fiz o cálculo do texto para que ele coubesse naquele tamanho, se tinha que aumentar ou cortar, sempre cortar, colocar os títulos, legendas. No fim era simples, feito uma vez primeiro... Qual o esquema, o título, tudo... É, depois eu conferi mais era na gráfica. Legenda para todas as ilustrações ele que fazia. Nos primeiros o Luís Carta queria ver todos, ele dava a aprovação dele para cada página.

P/1 - E como é que era naquela época a empresa, onde ficava, qual era a estrutura?

R - Ah, existia a SAIB, que é Sociedade Anônima e Impressora Brasileira. Ficava lá na Freguesia do Ó, onde fica até hoje a gráfica. E as redações eram aqui na rua João Adolfo. Alguns andares, onde ficava o seu Victor, a diretoria, e aos poucos várias... Quatro Rodas, Claudia, estava tudo lá. Foi que ano? É, eu comecei a trabalhar lá em 66, maio de 66. Em 68 foi inaugurado o edifício Abril na Marginal Tietê, tanto é que lá a ordem era: “Homens entram com gravata.” Tinha que entrar de gravata. E eu tinha um companheiro, Constantino, ele achou isso errado, ele fez uma gravata de papel (riso).

P/1 - Uma gravata de papel?

R - Ele fez, enfeite. Porque tem que protestar, né? (riso) Aí em 68 que mudamos para a Marginal. Aí começou a crescer, mas era como um cogumelo na chuva. Aí, veio rua Curtume lá, alugaram uns galpões e... Você trabalhou lá, não?

P/2 - Mas eu conheço porque moro lá.

R - Mora onde?

P/2 – Na ________.

R - Ah é?

P/2 - Já entrei várias vezes, tanto num prédio como no outro.

R - Sei. Tinha rua do Curtume, espalhou toda parte da cidade. Chácara... Como é que chama? Jaraguá? Pizzaria.

P/2 - Ah, Pizzaria Jaraguá, na rua Chico de Paula.

R - É, lá em cima. E a gente ia almoçar quase que diariamente, muito bom.

P/2 - Recreio Jaraguá.

R - Recreio Jaraguá.

P/1 - E nesse tempo todo o senhor só desempenhou essa função de chefe de produção de layout ou teve também outros trabalhos?

R - Não, era só... Isso era o bastante, era bastante, porque eu levava trabalho para casa. Quantas vezes cheguei − porque era data marcada para entregar material à gráfica − meia noite para entregar páginas na gráfica? Ah, não era fácil, mas era muito... Não era fácil, porque tinha muito trabalho. Mas a empresa reconheceu o esforço da gente, e ganhava bem, tinha... Naquela época os melhores empregos no jornalismo eram no Estado de São Paulo e Editora Abril. Naquela época, hoje... (riso)

P/1 - E que publicações mais que você participou lá?

R - Ah, eu comecei... Não! Essa função... Eu fui chamado para ser gerente do estúdio fotográfico, já na João Adolfo. Então eu fiz a mudança, a minha primeira atividade era mudar o estúdio para a rua do Curtume, que já tinha sido construído o estúdio e o laboratório. Então eu levei, e minha atividade passou a ser fotografia. Quer dizer, dirigir ou gerenciar departamento fotográfico, cuidar de todo o equipamento fotográfico, tinha... Não tinha uma dúzia de fotógrafos ainda.

P/1 - Quem era, você lembra, esses primeiros fotógrafos?

R - Jorge Butsuem é o mais antigo, tinha Luigi Mamprin... Olha, não me lembro mais os nomes.

P/1 - Não, mas já está bom.

R - Jorge Butsuem era o mais antigo, e saiu da Editora agora, acho que são 40 anos... Não!... Que ficou na empresa.

P/1 - E aí o estúdio então muda, ele vai gerenciar...

R - É, lá no Curtume. Era um estúdio super moderno, e vieram equipamentos modernos, porque o dono da empresa, doutor Richard, tinha encomendado da Suíça, importado os flashes do estúdio, muito bom. E eu tinha que cuidar do equipamento fotográfico, então preparei, tentei sempre convencer o diretor que precisava comprar essas câmeras e tudo. Eu acabei cuidando daquilo quando tinha mais de 20 fotógrafos, todos os câmeras estavam sobre meu controle, no Brasil todo, desde Porto Alegre até Recife.

P/1 - Isso início dos anos 70?

R - É, sim, quando a Veja... Eu não posso precisar datas, mas quando a Veja começou, em 68, aí foi aumentando a atividade, acho que anos 70, 80.

P/1 - Quando, então, você começa a gerenciar esse material, que tipo de equipamentos, de câmeras, eram usadas?

R - Primeiro, quando eu cheguei na editora, era Asahi Pentax. AsahiPentax tinha até uma _______ de um metro, coisa horrível, mas servia para alguma emergência. E tinha algumas Leicas, Leicas M2, M2 e M3. Depois surgiu, em... Nesses anos surgiu Nikon FTN, eu requisitei e consegui que fossem compradas algumas dessas. E aos poucos as Pentax foram encostadas e substituídas por Nikon, FTN, depois veio F1, e assim por diante. Eu fui _______, fui duas vezes a serviço da Editora para visitar a Photokina na Alemanha, e comprei equipamento Leica, um pouco, mas ele naquela época não era indicado para o nosso tipo de trabalho. Tinha muita discussão se fotógrafo deve ter seu equipamento, ou se deve ser da empresa, essa discussão acho que continua até hoje, não sei.

P/2 - E o laboratório fotográfico...

R - Também pertencia a mim.

P/2 - Ah tá. Mas ele fotografava assuntos de várias revistas, né, moda, decoração...

R - Não, não é bem laboratório. Cada revista tinha os seus fotógrafos. A Veja tinha os seus, que eram exclusivamente para a Veja, depois a Claudia tinha, a Quatro Rodas tinha... Depois tinha um pool de fotógrafos no estúdio que emprestava fotógrafo para revista. Por exemplo, fotonovelas não tinham fotógrafo próprio. Manequim não tinha, então, ele emprestava... As revistas técnicas não tinham, então esses fotógrafos do pool de fotógrafos que atendiam esses e todo o material era trazido para o laboratório. Inicialmente material... Porque Quatro Rodas, naquele tempo, era branco e preto. A Veja, que começou em cores, e os filmes da Veja eram revelados na Kodak, no Morumbi ou na Brigadeiro. Então todo dia as peruas levavam isso, até que o secretário da redação... Como é que era o nome? Não me lembro, ele me chamou: “Jussi, nós precisamos arrumar revelação colorida.” Eu falei: “Nós não temos condições para fazer...” − eu já estava começando a entender um pouco de fotografias – “... Coisas tão perfeitas, mas quebrar galho dá para fazer.” Então ele disse: “Faça.” Aí eu consegui verba necessária, compramos... Acho que nós pegamos caixa de bateria de automóvel, e aqueles _____tanques, naquele tempo era sistema, processo E4. E controlar a temperatura era muito crítico, mas deu para controlar. Tinha um homem, que... Não me lembro mais o nome dele, o laboratorista que tinha trabalhado acho que no Estadão, ele era muito competente, e ele conseguiu manter uma qualidade boa, quer dizer, que servia para a Veja. O importante era tornar a operação mais rápida. Então, vinha... O fotógrafo trouxe direto no Curtume, e em duas horas o filme poderia estar na redação já, então isso ajudou muito.

P/2 - Agilizava o trabalho.

R - Agilizava sim. Depois eu consegui melhorar, compramos equipamentos melhores de processamento, e depois o processo mudou para E6, que ficou mais crítico o controle de temperatura. Mas quando eu era gerente, o laboratório... A Kodak reconheceu publicamente que a melhor revelação colorida era a da Abril. Eu me orgulhava muito porque... Não...

P/1 - Era rigoroso?

R - Era, porque é muito crítico, você fica no escuro... Sabe como é feita a revelação? É uma cesta onde fica o rolo de filme e ele tira de uma cesta o líquido para o outro. São sete, e o tempo é controlado, tem o relógio onde marca os segundos, luminosos, né? Tudo escuro, ele tem que fazer isso, e se ele errar estraga. Um dia um dos bons caras errou, pulou um, estragou, infelizmente tinha que ser: “Rua.” Então...

P/2 - Rigoroso.

R - Não, tinha que ser, extremo rigor. Extremo rigor, porque toda hora fotógrafo, quando errava: “Ah, mas o laboratório revelou mal esse filme.” Continua hoje a mesma coisa. Se você erra a fotometria: “Ah, está mal revelado.” (riso), né? Então, mas nós conseguimos. Eu me orgulho muito, isso foi a coisa mais... Depois avacalhou, porque... Hoje está tudo diferente, hoje a qualidade... Não se exige qualidade, exige preço e rapidez. Não é verdade?

P/1 - Quais fotógrafos que você conviveu mais, que você gostava?

R - Olha, gostava... José Antônio Castilho de Moraes, falecido, que Deus o tenha, era uma pessoa fina, ele começou na mesma época do que eu no João Adolfo. Um dos grandes fotógrafos brasileiros, viajou mundo inteiro, porque ele era tão competente, o Zé Antônio... João ________, uma pessoa muito boa, e (Hélio Parela?), ele não era fotógrafo, era diretor de fotografia, porque eu entrei no lugar dele no estúdio, ele já há muitos anos deixou... Deixe-me ver quais eram os outros... Gozado que eu não me lembro... Não, é que...

P/1 – Não tem problema. E você também fotografava?

R - Eu tive, quando era criança... Eu já tinha ganhado uma câmera com dez anos de idade, uma câmera pequena, que levava filme 127, coisa assim. E eu sempre tive interesse por fotografar, mas assim, de folia. Aí eu comecei... Como eu cuidava do equipamento, claro, eu pegava primeiro para mim o equipamento. Não, modo de dizer, mas eu tinha todo equipamento da Editora a uso, então comecei a fotografar, e como eu gosto de automobilismo eu era também... Fazia parte da Centauro Motor Clube, gostava de motociclismo e automobilismo, aí fundaram lá uma divisão de aeromodelismo e eu fazia parte disso, então comecei a fotografar corridas de automóvel no Interlagos. E, segundo dizem uns, que as minhas fotos marcaram época, porque naquele tempo o fotógrafo da Quatro Rodas... (Janso L’Anquier?) era um muito bom, muito boa pessoa. Ele ficava em cima de uma perua, lá, com a teleobjetiva a um metro e fotografava. E eu comecei a andar, a conselho do Marazzi, que era editor técnico da Quatro Rodas, já falecido, num acidente, ele disse: “Olha Jussi, pega naquela curva. Vai melhor.” Então comecei a andar. Naquele tempo eram populares as corridas longas, de 24 horas, 1000 milhas, que a Centauro Motor Clube preparava, organizava, então fui andando a pista toda. Eu tinha fotos diferentes dos outros fotógrafos, né? Aí, quando veio colorido, filme colorido, ah, foi um sucesso! Eu já tinha comprado minha Leica, Leicaflex, e ganhei de presente... Aliás, emprestado, uma teleobjetiva de 400 milímetros, até eu ter a minha. Então eu fiz belas fotos... Na Fórmula 1, todas corridas, até Piquet e Emerson, mas Ayrton Senna eu já largava, já não servia mais. Oitenta, até 80 eu fotografava. Todo fim de semana eu estava no Interlagos.

P/1 - Ah, que legal.

R - Isso era bom, porque era freela, então eu faturava, precisava, família crescendo, despesa aumentava.

P/1 - E vamos falar um pouquinho da sua família, como é que você conheceu sua esposa?

R – Dançando (riso). Não, não é bem dançando. Eu tinha amigos que velejavam no Iate Clube Cruzeiro do Sul, e lá conheci um outro, um engenheiro, e fui velejar com ele também. O nome dele é 28, porque perguntaram, eu não sabia o nome, até que depois conheci a irmã dele, que disse que é Walter o nome dele. Mas porque, em algum lugar, perguntaram: “De que ano você é?” 28. Então ficou 28 o nome dele (riso). Até hoje é 28. E aí velejava com ele, ______, fizemos regata e tudo. Tinha outro bom companheiro também. E lá no clube, todo fim de semana no clube, e em um Réveillon, esse 28 levou a irmã dele junto na festa, porque tem a festa ________. Naquele dia, naquela noite, eu falei: “Com esta eu vou casar.”

P/1 - Óh!

R - É, foi, eu gostei tanto... E ia começar namoro, um pouco atribulado, isso é comum, né? E a sogra não queria. Não tinha nada contra, mas quando nós fomos casar... Era casamento civil. Uma semana antes eu falei para ela: “Olha, dona Clara, agora eu vou casar com a sua filha.” Eles: “Poderia ter esperado um pouco.” (riso) Era brava. Depois ficamos muito... Tanto que a minha mulher queria já fugir, porque eram tão contra, assim, a mãe dela, era mulher brava, alemã.

P/1 - Como é o nome da sua esposa?

R – Ida, Ida Lehto. Só um nome, eu sou volta. (riso)

P/1 - A dona Ida então é descendente de alemães?

R - Sim, nós falamos em casa... Eu estudei alemão na escola, mas depois esqueci tudo, é claro. Quando nós casamos eu falei: “Quando tiver filho, nós vamos falar um idioma estrangeiro.” E o mais fácil seria inglês. Eu não falo bem, mas alemão é muito difícil. Depois fiquei pensando: “Com salário meu eu não posso pôr filho para uma (Credit School?) ou coisa assim, são caríssimas as escolas de inglês. E outra: a sogra, a vovózinha não sabe falar inglês, mal sabe... Muito mal o português, né? Então só resta alemão. E aí começamos a falar, minhas filhas... Pusemos na escola, colégio Humboldt, conhecido como uma das melhores escolas aqui. Aprenderam tão bem que hoje... Ontem mesmo eu vi um telefonema, estão procurando outra filha menor para trabalhar numa empresa qualquer, como secretária executiva, porque falam bem alemão. Não só fala, como escreve. Os exames eram de literatura alemã, mandados para a Alemanha, Ministério da Cultura que aprovou as coisas. Então isso ajudou muitíssimo para emprego.

P/1 - E você teve, então, quantos filhos?

R - Tenho duas filhas só.

P/1 - Qual o nome delas?

R - Karin e Katri. A sorte é que eu não tenho filho homem, porque teria ficado feito pai, e aí... (riso)

P/1 - E você tem netos?

R - Sim, tenho. Karin é casada, tenho três netos: Thomas, que fez 12, e a Stephanie; tem, acho, que dez anos. E a Luíza, acho que três.

P/1 - Que beleza. Olha, eu queria pegar agora um ponto aí que é importante também da gente falar...

R - Mas não é crítico, né? (riso)

P/1 -...Que é sobre Adhemar Ferreira da Silva.

R - Ah, sim!

P/1 - Como é que vocês, da sua família, conheceram o Adhemar?

R - Nós... Minhas irmãs, três das minhas irmãs e eu, nós éramos muito esportistas, então nós frequentávamos, éramos sócios do Tietê. Uma das irmãs arremessava dardos, disco e peso, sei lá. E atirava também, atiradora. Outra irmã fazia saltos ornamentais, e a outra sei lá o que corria. De qualquer maneira, nós estivemos lá, e nas competições iam os atletas, e lá conhecemos Adhemar, era em 51. A gente sabia que ia em 52 para a Olimpíada de Helsinque, então, aí, de forma natural o relacionamento ficou mais próximo, porque ele queria saber de nós, e nós também dele. Daí ele foi muito lá em casa, minha mãe ainda vivia, então ensinava palavras em finlandês, e frases, coisa assim, e canções. Então era... Ele cantava, sabe cantar bem, ele cantava...

P/1 - Ele tocava violão, né?

R - Sim. Então, ele fez isso. E ele conta, com muito exagero, que grande parte do sucesso dele em Helsinque se deve a nós, minha família, porque ele foi todo relaxado, não foi tenso para fazer a prova dele, né? Ele disse que já no aeroporto, em 52, chega um negão... Na Finlândia não tinha negro, antigamente. Antes da guerra tinha um negro que era porteiro de um hotel de categoria internacional, outros, não tinha, era raro. Aparece um negro cumprimentando em finlandês: “O que é isso?”

P/1 - Como é que era o cumprimento?

R - Ele falou: “Terwe!”. “Terwe!” é “Salve!”. E assim, o pessoal estranhou. E ele, em toda parte fez a mesma coisa e começou a cantar. Acho que ele... Levaram para não sei onde, cantar, mas publicamente cantar essas músicas finlandesas. Ele ficou tão querido por todos lá que ele estava à vontade, não estava tenso para fazer prova, estava todo à vontade, e fez recorde mundial, 16,22 lá, e era único atleta na história das Olimpíadas − atleta de campo, não de pista − de quem foi exigido volta olímpica. Ele... Me desculpe. (choro)

P/1 - Ele deu a primeira volta olímpica da história?

R - De atleta de campo, que não é atleta de pista. Atleta de campo, que são saltos e arremessos. E o público a gritar: “Silva! Silva!” (choro)

P/2 - Que lindo.

P/1 - Nós entrevistamos o Adhemar em 93, para o Museu do São Paulo, e ele conta essa história e ele fala da sua família. Que ele foi, vamos dizer assim, ele fez um... Foi um precursor desse marketing, né? Porque realmente ele conquistou a imprensa, a população, ele se interessou pela cultura do país...

R - Sim, sim, sem dúvida, sem dúvida. Ele fez pelo país mais do que nenhum político tenha feito. Ele e o Pelé, os dois. Hoje já tem bons atletas também, hoje tem o Guga, etc.

P/2 – E dois negros né.

P/1 - Pelé e Adhemar né.

R – É, exato. Depois tem João do Pulo também. É ________, seria importante. (riso)

P/1 - Como é que vocês... Vocês acompanharam pelo rádio as provas do Adhemar? Vocês ficaram torcendo por ele?

R - Não. Só... Não, como o rádio... Eu não tinha rádio naquele tempo que escutasse a Finlândia. Existia aqui rádio, mas eu não tinha dinheiro para comprar um Trans-Oceanic né. Mais tarde, depois, comprei. Só no jornal, via no jornal.

P/1 - E vocês achavam que ele tinha alguma chance quando ele visitava vocês?

R - A gente não pensava nisso, não era isso que a gente pensava. Era simplesmente... Esporte, para nós, era... Não era esse de conseguir um resultado, esporte era esporte, é uma... Convívio gostoso. Eu praticava muito esporte de... Tem algumas provas aí disso, né? Até era bem sucedido em alguns esportes.

P/1 - E Jussi, então para a gente... Estamos chegando aí numa parte mais para o fim da entrevista, então eu queria que você contasse um pouco... Você ficou na Editora Abril até que ano?

R - Até 84, quando eu fui demitido, de uma forma muito injusta. Quando tinha greve dos jornalistas, no tempo de... Não me lembro o colega que era presidente do sindicato, eu furei a greve e fui página da Veja. E diretor da Veja confirma, ele afirma que, graças a minha participação, a Veja não faltou nas bancas, ela saiu na hora. Então eu era um funcionário, não digo exemplar, mas era muito bom para a Editora. Depois vem uns diretores lá no meio que não... Meu diretor (disse?) que eu não cabia no programa dele, ele arrumou que fosse demitido. Eu não fui reclamar nunca com o seu Victor, se eu tivesse falado a verdade com ele, ele não teria permitido, porque eu ia na casa do seu Victor, do doutor Richard.

P/1 – Ah é? O senhor conheceu ele assim?

R - Claro, claro, porque eu ajudava, como ele afirmou, segundo o jornal da Abril, uma vez, que eu era fotógrafo preferido dele, ou predileto, como se diz. Então ele me dava coisas confidenciais para fazer, ele e o doutor Richard também. Eu tinha um relacionamento diferente com eles. Muito grato, são pessoas que eu admiro sempre. Bons patrões, excelentes.

P/1 - Como é que ele era, o temperamento do senhor Victor?

R - Ah, era um homem bacana. Ele tinha senso de humor, só não gostava... Porque claro, eu brincava com ele, com outros, é claro. Ele era uma pessoa formidável, um empreendedor sério, mas também sabia brincar. E um homem de uma visão... Ele queria fazer maior editora do mundo, mas depois entre os dois filhos, doutor Richard e doutor Roberto, houve algum problema entre eles, e a firma não chegou a ser a maior do mundo, ficaram duas... Mas chegou a ser a quinta maior do mundo pelo número de material impresso. Tinha, no bom tempo, quando estava na Marginal, chegou a fazer 20 milhões de exemplares, quatro (córums?) por mês em um povo onde metade não sabe ler, não é verdade?

P/1 - E depois da Abril o senhor se aposentou ou foi trabalhar em outros lugares?

R – Não, depois que eu fui demitido fiquei trabalhando como freelancer num trabalho fotográfico de... Porque sobrava muito material fotográfico, para jogar essas fotos fora, precisava... Porque às pressas, quando o material era feito, escolhido aquele que vai publicar, o resto ia para o departamento de documentação, Dedoc, e era preciso... Não pode guardar tudo isso, vira um elefante branco, não tem espaço para tudo isso... Qual seria a palavra certa?

P/2 - Selecionar?

R – Selecionar esse material, exato. O que vai guardar e o que vai incinerar. Então eu fiz esse trabalho durante muitos anos, até que cortaram as verbas. Eu fiquei sete anos fazendo esse trabalho, são 25 anos que eu trabalho. Gostaria de ter trabalhado até a aposentadoria final. Como tem o (Jorge Budswan?), ele tem a aposentadoria da empresa. Quer dizer, recebe salário integral.

P/1 - E Jussi, hoje quais são as suas atividades, o que você faz no seu dia a dia?

R - Eu procuro fotografar, mas tem pouco trabalho, tem pouco. Ano passado foi o pior ano que já teve, talvez 5% da minha capacidade foi usada, você pode imaginar o que significa isso. Então eu procuro, mas tenho... Ano que vem vou fazer 75 anos, fico velho. E então uma coisa que a idade ensina: você anda devagar. É, eu ajudo lá em casa e procuro fazer... Tem sempre coisa para fazer. E eu tenho hobby, aeromodelismo, eu gosto de fazer, mas no momento não... Mas tem meia dúzia de modelos lá, diversos estágios, avião com motor controlado por rádio.

P/1 - E você leva para voar onde?

R - Tem o clube, a gente vai aqui, Mairiporã. Essa é a dificuldade que está acabando com o aeromodelismo no Brasil, não tem lugares onde voar, tem que ir muito longe, Mairiporã.

P/1 - E quais são as pessoas, assim, que mais influenciaram aí na sua trajetória de vida?

R - Boa pergunta, difícil responder. Claro, minha esposa influenciou, talvez foi quem mais me influenciou. Claro, os pais, principalmente meu pai, que era inventor, eu aprendi... Talvez tenha herdado dele a habilidade manual. Eu faço qualquer coisa com as mãos, com a faca, outras ferramentas... E conhecimento de... Talvez habilidade técnica. Depois tem um colega, que faleceu recentemente, ano passado, aviador, ele me influenciou muito também, porque era uma pessoa muito fina, de gosto fino, paixão pela música, música boa, então ele foi um que me... Devo mencionar. O nome dele é ________. Claro, o senhor Victor Civita, e doutor Richard, eles...

O convívio com eles durante tantos anos me influenciou. E, claro, a esposa, que a gente não se brigou ainda.

P/1 - Vocês são casados há quanto tempo?

R - Que ano é agora?

P/2 - 2000

R – Dois mil, é, nós estamos casados acho que... É, vamos fazer agora em julho 40 anos.

P/1 - E quais são os seus sonhos para o futuro?

R - Olha, os sonhos já não têm muita importância não. (riso) Eu queria terminar... Ah, bom, sempre sonho que a gente seja feliz, que minhas filhas, família, vivam bem. E graças a Deus estão bem encaminhados, né? A outra filha, que tem 32 anos, ela é solteira, mas tem agora uma perspectiva de que vão se juntar. E a outra filha agora vai começar a trabalhar. Ontem... Esses dias ela começou na Bayer já, ela trabalha, faz o estágio, depois volta para a escola, começa a aula lá. Como são sérios, alemães são sérios, mas finlandeses são mais sérios ainda.

P/1 - Ele está falando de seriedade, mas a seriedade independe, talvez, do bom humor, é sério no que faz, é sério, mas o humor... O senhor tem um bom humor bastante acentuado.

R - Ah, sim, eu tenho esse defeito (riso). Eu sempre fui muito brincalhão, eu brinco, às vezes, no lugar, na hora errada até. Mas ninguém é perfeito né? (riso) Mas deixa eu falar: a seriedade, quando voltei da Finlândia, nessa última viagem, em 89... Eu tinha essa mala, ou tinha outro que tinha câmeras objetivas lá... Não, é outra mala maior. E lá na entrada de embarque, verifica... Lá na Finlândia são militares que fazem isso, pelo menos lá no aeroporto. Então eu falei: “Vê se acha a bomba lá.” “O que?” Aí chamou o soldado, me levou na sala contígua: “Agora vê tudo, tira tudo.” Aí o soldado falou: “Senhor, aqui não se pode brincar assim.” (riso) Lá não se brinca no serviço não. Eu estava passando numa estrada com o carro com o meu amigo, e lá à frente (tinha?) algum problema: era controle de bafômetro, eram mulheres. A senhora então veio, falou para meu amigo que estava dirigindo, aí soprou, estava sóbrio; eu falei: “Deixa eu fazer também!” Ô, mas que bronca recebi, não se brinca com isso. Eles são terríveis, terrivelmente sérios. Lá se tem reunião marcada, ele pode marcar oito e 25, é oito e 25 que começa a reunião. Colegas da Abril que foram... Vários foram lá, os diretores, por causa de compra de papel − brasileiro é o maior comprador de papel da Finlândia − eles contaram como são sérios. Mas depois relaxa também. Eles checaram que não é fácil.

P/1 - Mas então, o senhor, que já tinha essa índole bem humorada, o senhor se adaptou bem no Brasil, porque aqui é tudo mais informal, né?

R - Eu não tenho problema quanto a isso. Não, claro, às vezes rola também briga, claro. Não é sempre... Não é todo lugar que vai gargalhando. (riso)

P/1 - E aí, o senhor tem algumas histórias engraçadas aí, que aconteceram com o senhor?

R - Não, não me lembro. Ah, difícil, se aparecesse no contexto... Ah, sim, da brincadeira eu me lembro. Quando viemos de navio, um dos passageiros era um rapaz dois anos mais velho do que eu, era um aviador também. Ele veio aqui depois foi para o Peru. Ele tinha aquele sapato... Lembra como Fred Astaire dançava? Era aquele sapato branco com... De pano branco, ponta de couro e salto, coisa assim. Ele tinha isso aí e lavou, pôs lá num parapeito do navio que a tábua parecia peroba. Pôs lá para secar. Eu falei: “Olha, não deixa aí porque o vento vai levar isso.” “Que nada, não tem vento o navio.” − Não tinha vento nenhum mesmo − e largou lá. Quando ele foi embora, tirei um sapato e escondi. (riso) Depois ele foi ver se o sapato estava seco: “Poxa, e você tinha razão, então vai o outro!” (riso)

P/1 - Ele jogou o outro...

R - No Atlântico. (riso)

P/1 - Ai, ai.

R - Outra coisa...

P/2 - E quando ele soube que tinha...

P/1 - Nem contou, né?

R - Não, ele ficou sabendo, mas era tudo festa. Outra coisa que eu fazia antigamente, faz tempo que eu não faço: pôr sal no café do outro, sal. Escondido, escondido, né?

P/2 - (riso) Pôr sal no café.

R - É. E eu tinha uma namorada russa, uma vez, antes da minha esposa, anterior. Ela ia nos visitar, nós morávamos juntos com _______, aí no Jardim São Paulo. Aí eu tinha feito café, e pus sal violento no copo, na xícara dela. (riso) Jogou na minha cara. (riso) “Ah, mas aquela mancha de café na parede.” (riso) Tinha outra semelhante: eu tinha um chefe numa agência de publicidade que eu não era funcionário, mas eu... Mais ou menos. Ele era carioca, e todo fim de semana ele ia ao Rio, porque tinha namorada lá. Ele tinha um Fiat Topolino, lembra? Um Fiat pequeno, de 500, 600 motor? E ele levava sete horas para fazer viagem, saía de noite do Rio, domingo, e segunda-feira cedo chegava em São Paulo. Ele veio uma vez, e tinha que pesar alguma coisa para a gente, então ele parou com um amigo, um colega: “Ô!” Falei: “Um café.” “Hum, é bom um café, depois de ter viajado a noite inteira sem dormir.” E para o colega dele eu pus o sal. Ele não conhecia, toma e “vum”! (riso) Saiu ____________e cuspiu fora (riso). Essa fantástica. Se quiser rir, é um bom remédio.

P/2 - Eu sei.

R - Hoje tem aniversário de uma irmã minha, e ela diz: “Ah, eu não estou muito em condições, mas é bom, venha, porque vamos juntar todos para rirmos.”

P/2 - Rir.

R - É. Está bom, quer pôr ponto final?

P/1 - Não, eu queria então terminar...

R - Ponto e vírgula.

P/1 – Botando, é, uma reticências. O senhor está convidado para voltar aí mais vezes, para a gente conversar mais...

R - Ah, é?

P/1 - O senhor é um ótimo contador de histórias...

R - Ah, não! Eu...

P/1 - Mas eu queria fazer uma pergunta para o senhor, que é a seguinte: como é que o senhor se sentiu contando aqui para o Museu da Pessoa a sua história de vida?

R - Eu estou lisonjeado, porque, pô, eu, simples cidadão, ter essa honra de fazer patrimônio de Museu! (riso) Não é? Não vai ser patrimônio isso? Eu fico contente. Eu não estava contente de vir aqui, porque dia lindo assim, para ir acabando... Mas já foi né?

P/2 - É, você vai...

R - Eu queria... Pode fechar.

P/1 - Agora eu vou combinar com o senhor...