Museu da Pessoa

Ascendendo na vida

autoria: Museu da Pessoa personagem: Eliete Soares da Cunha Rego Motta

P/1 – Queria que você começasse com o seu nome completo, data e local de nascimento.

R – O meu nome é Eliete Soares da Cunha Rego Motta, eu nasci no dia três de maio de 1951 em João Pessoa.

P/1 – E o nome dos seus pais, qual era?

R – Gerson da Cunha Rego e Maria das Neves Soares.

P/1 – O que eles faziam?

R – O meu pai era comerciante, ele tinha uma fábrica de colchões e lojas, né. A minha mãe era dona de casa. O meu pai conheceu a minha mãe vindo de um casamento do qual teve duas filhas. Do casamento com a minha mãe, nasceram mais cinco filhos. Ficamos com eles, até que eles se separaram, aos meus três anos de idade. Ele levou a gente para a casa de uma mulher que mais tarde veio a ser a minha madrasta. Naquela época, ficava com os filhos quem tinha uma condição de vida melhor, não precisava nem discutir na justiça. Lá fomos muito judiados, desde o dia que chegamos. Logo no primeiro dia, a minha irmã de 13 anos tomou uma surra porque mexeu nas roupinhas do bebê dessa nova mulher do meu pai. Nunca mais paramos de sofrer com ela. Ela teve sete filhos e judiou de todos. Ela chegou a dar uma surra de rastelo no meu irmão. O rim dele começou a desmanchar em água. Ele precisou ficar um mês comendo muito doce e sem beber água. Tomávamos banho com água de sal, apanhávamos com fio de ferro. Eu tinha um cabelo cumprido e ela amarrava na mão e me batia na parede, sabe. Assim fomos crescendo. O meu pai tinha um poder aquisitivo bom e numa determinada época ele tomou chifre dessa mulher e arrumou outra. Foi uma outra madrasta. Assim nós fomos indo. Muitos anos depois o meu pai conheceu outra mulher e se separou novamente. Hoje essa mulher é viúva dele e três filhos com ele. Quer dizer, um ela já tinha. O outro é mesmo filho do meu pai. A outra, que é uma menina, acho que eles adoraram. A gente não sabe contar direito a história dela. Depois de um tempo mataram um dos filhos do meu pai e ele sofreu muito. Não conheci esse irmão meu porque quando ele nasceu eu já estava aqui em São Paulo. Fiquei até os 16 anos na casa do meu pai. O meu pai tinha um amigo caminhoneiro e eu, que não aguentava mais sofrer com a minha madrasta, peguei uma carona com ele e fui para o Recife, sem dinheiro, sem nada. Eu tinha uma irmã que morava lá, eu sabia o bairro e o endereço dela. Procurei até que apareceu alguém que conhecia o irmão do marido dela. Era uma família conhecida por Luna. Fiquei na casa dela, que estava passando fome, comendo fubá de manhã, de tarde e de noite. Eu fiquei um mês lá, apesar do meu tio não conversar com o meu pai por causa de dinheiro, lá era como se fosse a minha casa. De lá fui para um colégio de freiras, porque queria ficar internada. Era um colégio particular e o meu tio é quem arcava com tudo. Eu, muito bobinha, não sabia o que era líder. Mas lá eu era tida como uma líder. Todas as madres da escola falavam isso, mas eu não sabia se isso me deixava feliz ou triste. Um dia ela me disse que líder era quem dava exemplos, e me colocou de férias na casa do meu tio. Nessa saída eu conheci um rapaz pelo qual me apaixonei e engravidei.



P/1 – Com quanto anos?

R – 16 anos. Só estive com ele uma vez e fiquei grávida. Voltei para o colégio e fui descoberta grávida. Quando fiz sete meses de gravidez a madre disse que eu não poderia mais ficar lá porque estava dando mau exemplo. Me levaram então para a casa da minha irmã, no Recife. Ela ficou comigo, mas contra a vontade, dizendo que não aceitava gente do meu tipo na casa dela. Naquela época era tudo muito assim mesmo. Ai apareceu uma prima minha, dizendo pra irmos para a casa dela. Lá eu trabalharia pra ela a troco de casa e comida. Fui pra lá e ali eu ganhei nenê. O pai do meu filho não quis saber do bebê. Um dia fui para a casa dos pais dele, que se chamava Alexandre e quando cheguei lá, a família dele foi muito compreensiva. O Alexandre, vendo que os pais dele estavam me apoiando, entrou pra dentro da casa, fez as malas e falou que se fosse pra eu ficar ali, com a criança, ele iria embora. A mãe dele então pediu que eu deixasse o meu filho com ela porque a minha prima já havia me dito para não voltar lá com aquela criança. Até os três anos de idade eu vi o meu filho, depois eu vim embora pra São Paulo. Aqui eu tenho um outro filho chamado Alexandre.

P/1 – Só um minutinho. Antes de você vir para São Paulo, vamos só voltar um pouquinho atrás. Você conheceu os seus avós?

R – Não. Lembro que o meu pai falava em compadre, que se falava muito na época. Na verdade eu conheci a mãe do meu pai. Ela morreu com 62 anos. A idade que tenho hoje. Mas naquela época com essa idade as pessoas ficavam gordinhas, todas de preto, por conta do luto. Ficava-se sete anos vestindo preto. Cabelinho amarrado para trás, era um negócio diferente. Tenho a idade dela mas Deus me livre de vestir igual a ela!

P/1 – A sua avó tinha o costume de contar histórias?

R – Era muito difícil ela ir em casa porque a minha madrasta não gostava. Ela chorava muito quando ia lá porque via a minha madrasta judiar da gente. Todo mundo, até os vizinhos se manifestavam para ver se tiravam a gente da casa. Mas meu pai nunca tomou conhecimento disso. Ele era da polícia militar, um sargento formado. Tudo dele era resolvido na bala. Todo mundo tinha medo de chegar e falar um negócio desses para ele.

P/1 – E a sua mãe?

R – Quando eu fiz 15 anos, trabalhava na minha casa uma mulher chamada Severina, a gente chamava ela de Biu. Ela fazia uma trouxa de roupas e ia lavar para lavar no rio. Um dia ela pediu para a minha madrasta para me levar no rio e a madrasta acabou cedendo. Eu lembro que o rio não era fundo e eu via aqueles girinos. Ficava morrendo de medo mas colocava o pé na água. Eu lembro de levantar a saia para por o pé na água e ela perguntar: “Eliete, porque você é morena e os seus pais são brancos?”. E eu respondi: “porque a mamãe falou que o irmão dela é moreno, da minha cor”. Eu chamava a minha madrasta de mamãe. Nós éramos cinco irmãos morenos. E então ela me disse que a história não era essa. Ela disse que conhecia a minha mãe, que morava ali pertinho da minha casa e que ia me mostrar aonde era.

P/1 – E você achava que era filha da sua madrasta?

R – Tinha certeza absoluta! Quando eu cheguei em casa a minha madrasta me chamou num quarto e falou: “como pode duas mulheres ficarem grávidas de um filho só?” Eu parei, pensei e não consegui responder. Ela pegou uma garrafa que tinha no quarto e deu aqui no meu olho. Pediu então pra eu contar que história era aquela. O que aconteceu foi que a Dona Biu, essa lavadeira, disse para a minha madrasta que eu é quem tinha dito a ela, que a madrasta não era a minha mãe. Inverteu a conversa e eu acabei apanhando por isso. Ai pronto, eu quis saber quem era a minha mãe. Eu estava namorando um rapazinho, mas nessa época a gente nem dava a mão. Quando chegou em um determinado lugar caiu uma chuva torrencial e uma porta ficou aberta, uma daquelas portas partidas ao meio, que tem muito no nordeste. Falei então para o meu namoradinho se esconder na mercearia que tinha em frente a essa casa e eu pediria para me abrigar naquela casinha com a porta entreaberta. Nessa época mulher não podia entrar em mercearia. Toda mulher lá é Dona Maria e todo homem é Seu Zé. Falei a ela: “Dona Maria deixa eu entrar até a chuva passar”. E ela deixou. Sentei bem pertinho da porta e ela me perguntou aonde eu morava. Meu pai era um homem conhecido e eu falei, que era filha do Gerson da Colchoaria. Foi quando ela disse que eu era minha mãe. Ela tirou da parede aquela foto que eu te mostrei, em que estava eu e minha irmã. Disse que era um retrado de quando eu tinha três anos, idade em que eu sai de lá com o meu pai. Então eu conheço a história por isso.





P/1 – E essa mulher era quem?

R – Era minha mãe legitima. Mas vou dizer que em momento nenhum eu tive emoção. Acho que ela quebrou o gelo. De cara ela xingou o meu pai e eu não gostei porque ele era tudo o que eu tinha. Mas como ela fez, acho que já não aguentei. Passado alguns dias eu apanhei muito muito muito da minha madrasta. Eu tomei alguma surra por causa de alguma coisa que tinha acontecido na escola. Combinei então com uma das minhas amigas para a gente fugir para a casa da minha mãe. As minhas amigas ajudaram e depois de uns dias o meu pai foi me procurar. Ele xingou muito ela, e eu ouvindo tudo. Disse que ela tinha que dar conta de mim se não matava ela. E eu apareci, porque fiquei com medo dele matar mesmo. Ele falou que era pra eu ir embora com ele pra casa naquela hora mesmo e eu disse que não iria. Ele então perguntou se eu queria ir para o colégio de freira, coisa que até então eu não conhecia, e então eu recusei. Eu queria era casa para poder sair de casa. A noite a minha madrasta foi na casa da minha mãe e colocou ela no chão, na lona, disse pra ela não se meter na vida da gente e tal tal tal. Ela disse então que ia me levar e que faria o meu casamento com o rapaz. Então eu fui, nesta condição. Quando cheguei em casa ouvi ela falar com a minha irmã: “fala para a vagabunda da sua irmã que ela não vai casar com ninguém”. Eu já estava perdida e não ia mais me submeter a apanhar daquele jeito. Não sei como o meu pai não sabia das agressões, mas de fato ele não sabia. Um dia fugi de casa e ele ficou sabendo que era por causa dela. Fiquei sabendo que ele foi para matá-la. Então eu acho que ele não sabia mesmo.

P/1 – E como foi a primeira escola que você entrou?

R – Era uma escola particular. Uma casa normal. Uma senhora chamada Dona Emília. Só lembro disso. Saindo de lá fui para a Escola Educandário Cristo Redentor. Lá eu me lembro. Os donos era um casal, Dona Jessé e Seu Lacerda. Era na época da palmatória. O meu pai fazia e levava para a professora. Eu nunca apanhei assim, mas a minha irmã já. Estudei ali até a terceira séria. Também era um colégio particular em João Pessoa. Depois disso fui para uma escola pública, Escola Rural Modelo José Américo, em João Pessoa também. Lá cursei até a admissão ao ginásio. De lá, fui para o colégio de freira, no Recife.

P/1 – E nesse período você tinha amigos?

R – Tinha. Eu sempre fui muito faladeira. Inventava mentiras, aprontava, contava histórias. Fiquei um ano sem frequentar a escola, mas tirava dinheiro do meu pai, juntava com as minhas amigas, frequentava os melhores restaurantes da cidade. Nem sabia pedir a comida, pedia pelo prato que eu via mesmo. Eu era danada, mas nada que justificasse apanhar tanto. E você não sabe da maior. De domingo para segunda dessa semana eu sonhei com ela. Pela primeira vez eu sonhei com ela. Eu estava em uma casa desconhecida e ela atrás de mim, dizendo que sabia que o meu nome era Eliete. Eu tremi da cabeça aos pés.

P/1 – Você disse que quando chegou na casa dessa madrasta ela tinha 13 anos, é isso mesmo?

R – É isso mesmo. E eu tinha três. A minha irmã mais velha tinha quatro anos e os outros eram bebês.

P/1 – E depois quantos filhos ela teve?

R – Sete filhos. Criou todos do mesmo jeito.

P/1 – E você gostava de brincar?

R – No começo a gente não podia ter amigos, muito menos jogar bola na rua. Depois a gente passou a brincar na porta de casa, de passa anel, corre-corre, coisinhas bobas de criança. A gente queria ter a vida das crianças que brincava na rua. Tínhamos tudo, mas não tínhamos nada.



P/1 – Se a sua madrasta tinha 13 anos, quantos anos o seu pai tinha?

R – Não sei bem, mas pelas fotos que eu vi, ele tinha uns 26, 27 anos. Ele tinha o dobro da idade dela. Ele nem se casou com ela. Casou na igreja só com a primeira, o resto só juntou.

P/1 – Você se lembra de como era a sua casa na época dessa madrasta?

R – É uma casa de 18 cômodos. Linda de viver. Morro de saudades de lá. Passei a minha infância até os 16 anos lá dentro. Fui lá em 1999 levar o meu marido para conhecer. Hoje a casa virou um convento e a madre não me deixou entrar. É uma casa de muita recordação. Ele comprou dois terrenos juntos. Em um ele fez a fábrica e no outro a casa. Ali ele plantou um pé de manga que eu nunca esqueci. Ficava bem no meio do quintal, ao lado de um poço. Meu pai não comprava leite, comprava vacas e colocava no curral. Tinha muita criação de aves e mandou fazer uma piscina bem grande para os gansos e patos. Até hoje acho aquela casa linda! Ainda em 1999 morava de frente para a minha antiga casa o pessoal que era empregado lá em casa. A gente chamou essas pessoas, conversamos. Conversei também com a Madre, expliquei o porque aquela casa tinha sido vendida. O meu pai teve muito desgosto porque tomou muito chifre daquela mulher. Ele ficou muito envergonhado e vendeu a casa por este motivo. Quando fui para o Recife, ele ainda estava lá. Depois fiquei sabendo que ele construiu em outro lugar e veio a falecer em 1985. Essa casa está lá ainda e acho que a minha madrasta mora lá. Eu não tomei conhecimento de nada. Vim para São Paulo e conheci essa pessoa com quem eu tive o meu segundo filho, Alexandre. Mas não fiquei com o pai dele porque ele era um homem casado.

P/1 – E o que te trouxe a São Paulo?

R – Eu tive um acidente de carro horrível no Recife. Como eu era novinha, 17 anos, já tinha tido um filho lá e achava que ia ficar deformada por conta do acidente. Eu já tinha vontade de sair de lá e então uma vizinha me disse que estava vindo a São Paulo. Vendi todas as minhas coisas pelo preço da passagem e vim com ela, sem conhecer nada nem ninguém. Ela era enfermeira, arrumou emprego no Alto de Pinheiros como babá e eu fiquei presa na agencia de empregos, ouvindo cantada dos caras. Eu não tinha dinheiro e tinha que dormir em algum lugar. Nas agencias você chegava, fazia o seu cadastro e até o final do dia, se não arrumasse emprego, eles pagavam pra você, mas no primeiro mês era descontado todo aquele gasto que você havia dado. Só que na época eles sabiam para onde levar a gente e depois iam atrás. Eu nunca abria a porta, mas eu sabia que eles ficavam rodeando. Se você desse mole eles entravam e dormiam com você.

P/1 – E no Recife, você fazia o que?

R – Lá eu morava sozinha. Eu trabalha na casa da mãe do governador do Rio de Janeiro. Dona Cotinha. Nessa época eu ganhava bem, mas ela só faltava matar a gente de fome. Eu ganhava bem, mas tinha que gastar caso quisesse comer. Então não quis ficar submissa a isso. Sai e fui trabalhar na casa de uma mulher que tinha um filho só, que chegou até a me chamar de mãe. Nessa época eu tive artrite reumatoide e fiquei na casa da minha irmã. Sofri muito sem conseguir mexer as mãos. Eu ficava com a mão em cima de um travesseiro e minha irmã, com raiva de mim, as vezes vinha e metia o prato em cima da minha mão. Eu desmaiava e não via. Quando eu acordava a comida estava lá, derrubada. Minha cabeça coçava e eu não podia coçar, tinha que chamar a minha sobrinha. Isso com 17 anos.

P/1 – Por isso que você quis vir para São Paulo?

R – Não. Quando sai da casa dessa minha irmã melhorei na casa desse casal. Eles moravam em uma casa em Olinda e tinha um menino, gordinho. Não sei até hoje o que aconteceu, mas acho que foi a mão de Deus. Eu estava na casa da minha irmã e fui a uma casa muito antiga que tem no Recife onde se arruma emprego para todo mundo. Pelo menos se arrumava. Quando cheguei, naquela multidão de gente, uma pessoa ia pedindo licença pra eu passar, porque ainda não estava com a mão boa. Fui até o guichê de informação e me mandaram pra uma sala, onde tinha um moço me esperando. Quando cheguei lá, toquei no moço pra ele me ver e ele disse: “é você que vai trabalhar comigo?”. Eu disse: “não sei”. Ele disse que então que a esposa dele, Valdecir, estava vindo e eles queriam que eu cuidasse dele. Eu disse que não tinha força no braço para cuidar do menino que ainda era de colo, mas ele disse que eu tinha sim! A mulher chegou, ele pegou aquele menino que parecia um tourinho, colocou no meu colo e eu não tive forças para carregá-lo. Ele caiu. Disse a ele que eu não poderia cuidar do menino e ele disse que iria me levar e que todo dia de manhã a minha fisioterapia seria praia. Todos os dias de manhã eu tinha que ir a praia, fazer uns movimentos e voltava. Sarei. Fiquei dois anos e alguns meses com eles. Sai de lá muito chorosa, mas estava muito cansada da vida de doméstica. Eu era jovem e queria namorar. A Dona Valdecir era muito bacana comigo, e ele também. Não sei nem o nome dele, eu chamava ele de Juninho. Mas quando sai, tive esse acidente e não fiquei nem um mês morando só. Chegando a São Paulo fui lá pro centrão, na Alameda Cleveland.



P/1 – Qual foi a sua impressão ao chegar em São Paulo?

R – Muito assustada. Eu nunca tinha visto um céu cinzento, tanta gente e tanto viaduto. Passei pelo viaduto São João, estava um frio miserável e saia fumaça da boca das pessoas. Nunca tinha visto aquilo. Cheguei na estação da Luz e pedi para o motorista qualquer preço para ele me levar de volta, mas não tinha nem um real. Fui para essa agência de empregos e morei num hotel pela agência. Arrumei um emprego na casa de uma pessoa, mas nunca tinha visto um aspirador de pó. Liguei o aparelho ao contrário, voou pó para todo lado, a mulher tomou da minha mão, eu chorei muito e quis voltar para a agencia. Me mandaram então para a casa de uma mulher cega, bem gorda, para cuidar dela. Também não quis ficar lá. Então me levaram para um lugar, acho que é São Bernardo, não sei, onde o pão era desse tamanho. Eu ficava muito assustada, a vida ali não tinha nada a ver com a vida que eu vivia. Fui para a casa dessa mulher, que comia escarola dizendo que era alface. Eu achava aquilo amargo demais. Que alface era esse de São Paulo? Depois, na hora do almoço, um feijão cozido com água e sal e mais nada, sem uma carninha no meio, nem nada. Eu disse a ela que não ia ficar ali não, porque nem o cachorro da minha casa comia aquele feijão. E não comia mesmo! A comida de lá não é igual o daqui. Eu me matava naquele pão porque não comia a comida dela, só comia pão cascudo, filão. Saia para comprar de manhã e me perdia. Eu sou muito sem direção. Fiquei nessa casa e depois fui trabalhar no Alto de Pinheiros, na casa da Dona Fleida. Fiquei pouco tempo lá, trabalhava de copeira. Usava uniforme e trabalhava servindo aquelas comidas que eu achava chique, tinha que servir ainda com o conhaque pegando fogo. Aqui em São Paulo eu sofri muito. Trabalhei em uma casa em Santana onde a mulher falou assim pra mim: “aqui dorme-se no chão, não tem cama no quarto de empregadas”. Eu era recém chegada, tinha trabalhado apenas em uma casa e poucos dias. Dormi no chão, forrado de jornal e aquilo era muito ruim. Um dia ela disse que queria a sala brilhando.

P/1 – E qual é o seu trabalho hoje?

R – Eu concursei para a prefeitura, para trabalhar como ascensorista. Hoje eu trabalho como recepcionista. Fico na recepção do Museu de Santo André. Já estou lá há quase oito anos. Sou funcionária pública a 22 anos. Demorei muito para conseguir esse cargo.Em 1999 fui a Recife e encontrei a minha prima, que havia acompanhado a minha gravidez do primeiro filho. Ela disse que só me ligaria no dia que achasse o meu filho. No ano seguinte, era feriado, ela me ligou e disse que eu falaria com o meu filho. Ele ligou a partir da vó dele e o meu marido atendeu. Ele me disse que no outro dia de manhã ele retornaria a ligação. Ele retornou, meu marido atendeu e eu fui atender abraçada com o meu filho, que estava com ciúmes. Depois de 28 anos conversei com ele. O meu filho daqui estava com 25 ou 26 anos. A gente conversou bastante e não tive sucesso enquanto eu não o visse. Um dia o tio ligou pra mim e disse que ele viria me visitar. Veio pela Tam e chegaria no aeroporto de Guarulhos. Preparei a filmadora, peguei o carro, chamei o meu filho e fomos para o aeroporto. Nos perdemos muito, mas meu filho chegou e os dois se deram muito bem! Fui para o quarto menor com o meu marido e deixei os dois no quarto grande. Eu moro em apartamento, né. Comprei mais uma cama, arrumei, coloquei guarda roupas.

P/1 – E qual foi a sua impressão quando o viu pela primeira vez?

R – Eu estava lá vendo a esteira e sabia que o meu filho estava com uma blusa xadrez e uma calça jeans. Ele era guitarrista e estava com o instrumento nas costas. Quando eu o vi, fui com tudo para abraçar ele pela primeira vez, mas meu marido foi na frente e abraçou ele. Eu tenho isso filmado. Até chorei de raiva. Levei uma blusa pra ele porque estava muito frio. Levei ele para tomar um café. Eu estava tão desesperada que deixei o carro aberto. Chegamos em casa tarde porque nos perdemos muito e ele tremia de frio! No outro dia ele levantou, mexendo na guitarra. Demorou mas coloquei ele nos moldes da minha casa. Logo ele foi trabalhar e a guitarra ficou mesmo para o lazer. Mais tarde os amigos da banda vieram pra cá e ele me perguntou se eu permitia que ele fosse morar com os amigos. Eu disse que sim e que as portas estavam abertas pra ele. Ele saiu e um dia voltou, porque os amigos voltaram para o Nordeste. Uma vez, no mês de Janeiro, ele foi embora para o Recife passar o carnaval. Meu filho já era casado, divorciado e tinha um filho, que hoje mora em Portugal e se chama Alex. Não teve muita sorte porque se casou com uma mulher que fazia tráfico de mulheres. Hoje ele tem 41 anos e mora em Olinda. Tem uma filha que se chama Raíssa, que ele diz ser a vida dele. Temos contato pela internet. O meu outro filho nunca saiu de perto de mim. Sobre a história do meu marido eu acho que nem quero contar, porque ai eu vou chorar mesmo. Até esse ponto da vida eu não sofri nada. Sofri a partir do meu casamento, que hoje é um fracasso. Eu moro com o meu marido, que é uma pessoa doente. Ele tem toxoplasmose, é motorista aposentado da prefeitura e eu sofri muito com ele. Ele tem um lado bom, porque ganha bem e registrou o meu filho aqui. Eles tem amor de verdade, de pai e filho. Mas eu tomei um chifre e fiquei sem direção até hoje. Por isso nem gosto de tocar nessa parte.

P/1 – E hoje você continua trabalhando como recepcionista?

R – Sim. O meu marido é hoje como um companheiro. A gente dorme em quartos separados. Em 2010 ele perdeu o dedo por conta da diabetes e eu aproveitei esta oportunidade para tirar ele de perto de mim. Deus me perdoe por isso, mas o que ele fez comigo não foi certo. Hoje ele dorme no outro quarto e eu não sai do meu quarto. Lá no quarto dele tem tudo. Ele está aposentado e não precisa se matar. Quem está lascada mesmo sou eu. Eu durmo com o meu neto e todo dia de manhã tenho que colocar ele na perua escolar.



P/1 – Esse neto é filho do Alexandre daqui?

R – É. O Alexandre de lá é conhecido como Xande, e o daqui como Alê.



P/1 – E então este neto é filho do Alê?

R – Isso. Ele tem três filhos.

P/1 – Todos moram com você?

R – Não, mas ele mora pertinho de mim. A gente mora em prédio. O bloco dele é pertinho do meu. Mas deixa eu só contar essa história. O Alê trabalhava em Diadema, em uma loja de material de construção e levou o Xande para trabalhar com ele. De início era só um bico, ganhava 10 reais por dia. Para não fazer confusão com os nomes, disse que ia continuar chamando o Alê de Alexandre e o Xandre, por ter uma barbichinha, ia ser chamado de Rui Barbosa. Então ficou Rui. Um dia ele saiu do banho e jogou a toalha em cima da máquina de lavar e eu pedi pra ele estender a toalha, mas ele nem ouviu. Fui até o quarto dele e disse: “muito obrigado, viu?! Pedi pra você estender a toalha e você nem deu bola”. E então ele disse: “você falou Alexandre, mãe. O meu nome é Rui!”. Rui? Aonde o nome dele era Rui??? Eu achava que ele estava era demente! Até hoje, quando a gente se fala ele diz que é o Rui. (risos).

P/1 – E hoje, quais são as coisas mais importantes pra você?

R – Eu, porque eu me amo e adoro a vida. Meus netos, meu filho Alê e o meu filho Xande. Peço muito a Deus pelo meu filho Xande, mas por não ter participado tanto da vida dele, ele não está no meu primeiro plano. Do fundo do meu coração. Meu trabalho eu não acho muito importante, não acho interessante. Em janeiro eu comprei uma casa na praia e ao me aposentar, o que falta pouco, vou embora pra lá. Não para morar, mas para ficar uma temporada. Estou com 62 anos mas não aceito muito essa idade. O tempo passa e a gente não percebe. Eu vivi poucas coisas boas. Vivi mais as ruins. Aprendi muitos hábitos bons, mas não os vivi. Na minha casa eu sou a figura forte. Meu marido nunca mandou em nada. Nunca soube tomar a posição de dono de casa. Continuo sendo o alicerce da família. Tanto é que a minha nora não dá conta das coisas sem mim. Eu sei que é difícil. Hoje ela está passando por uma dificuldade muito grande. A perna dela parece que está toda manchada de sangue.

P/1 – E os seus sonhos, quais são?

R – Não tenho muitos. Já tive, mas como nada foi resolvido, tenho poucas expectativas. Parece que já estou na contagem regressiva. Queria eu ter trinta anos hoje em dia. Eu ia me endemoniar. Meu sonho hoje é morar na praia. Não vender o meu apartamento em Santo André para poder ficar de lá pra cá e só isso. Estou acostumada a viver com pouco e acho que está bom. Acho que não tenho mais tempo para fazer as coisas. Não me sinto velha. Sou vaidosa, passo batom e não deixo o cabelo branco aparecer.

P/1 – Dona Eliete, pra gente fechar, como foi pra você contar a sua história?

R – Eu gostei. Foi legal sim! Pensei que eu fosse ser mais explorada nas perguntas, né. Achei que eu ia chorar, porque esta fase com o meu marido é muito doida. Até poderia em uma outra oportunidade contar um pouco melhor, mas dei uma esticada para não bater nas feridas, porque a que tem aqui é desse tamanho, e se ela ficar inflamada eu sei que vou chorar muito. A vida da minha família é meio parecida. O meu pai tomou chifre da minha madrasta. Eu do meu marido e o meu filho da mulher dele. É muito complexo. Eu sou difícil de perdoar, mas o meu filho tem o coração mais maleável. Foi muito difícil o que o meu filho passou. Ele se abalou demais. Inclusive a doença que o meu marido teve foi por conta desse episódio. Eu não, porque eu coloco pra fora. Em algum lugar eu preciso falar das coisas! Houve uma época da minha vida em que eu não perdoava de jeito nenhum o que o meu marido fez comigo. Você sabe que o pessoal do nordeste gosta muito de faca, né. Uma vez eu dei uma facada dele. Eu ficava pensando que poderia matá-lo, porque eu não merecia o que passei. Quando você tem sã consciência de que não merece aquilo, você tem vontade de fazer uma besteira. Eu só dei essa facada nele porque ele jurou levantar e vir me bater, coisa que já era costume dele. Falei pra ele não passar vontade e ele veio mesmo me bater, quando eu veio, a faca pegou no braço dele. Sorte, porque se fosse em outro lugar, eu não teria arrependimento. Eu sei o quão bacana eu fui com ele. Nem gosto de lembrar desse casamento. Eu ainda falo pra todo mundo o seguinte: ele é o meu companheiro, mesmo depois de tudo o que passamos. A gente não dorme na mesma cama, mas dormimos no mesmo teto. O salário dele é somado ao meu e dividimos tudo. Quem divide sou eu, porque ele não enxerga mais. Sou muito verdadeira, não gosto de mentira. Administro o dinheiro dele e meu e não temos problemas. Ele sempre está com os netos e passa o dia em casa. Minha vida não tem muitas novidades nos últimos tempos. São as crianças, o trabalho e o meu marido doente. O meu filho e minha nora só trabalham. Ela leva o pequeno para o trabalho e volta a tarde, e eu continuo lá no museu. No ano que vem me aposto e vou lá pra praia.

P/1 – Obrigado por contar a sua história, Eliete.