Museu da Pessoa

A vida nas pensões

autoria: Museu da Pessoa personagem: Milton Lopes de Almeida

Projeto Arte Cidade
Depoimento de Milton Lopes de Almeida
Entrevistado por Rosali Henriques e Marina D’Andrea
São Paulo, 16 de maio de 1999
Realização Museu da Pessoa
Código: ARTC_HV013
Transcrito por Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por Joice Yumi Matsunaga

P/1 – Seu Milton, a gente vai começar com a entrevista com o senhor falando o seu nome completo, local e data de nascimento.

R – Meu nome é Milton Lopes de Almeida, sou de 19 de novembro de 1930, isto é, já estou com sessenta e nove anos.

P/1 – E o senhor nasceu onde, seu Milton?

R – Nasci em Avaré mesmo. Pertinho de Avaré, uma cidade que se chama Monções, pegadinho com Avaré. Aí nós fomos para Avaré. Lá minha mãe me criou, tudo mais, servi o Exército lá. O Tiro de Guerra, lá chama-se Tiro de Guerra. Aqui já é tudo diferente. Mudou tudo. Mudou cem por cento. Brasil na evolução que está, né? Entendeu como é que é? Aí foram indo, servi o Tiro de Guerra lá. Depois de lá já vim, já por mim mesmo, né? Porque em Avaré é o seguinte: lá naquela época lá só tinha, tem até hoje, fazendeiros. Lá tem uma praçona grande e tem só os fazendeiros. Em redor assim está a banca de jornal, tem em volta tudo assim loja, bancos, essas coisas. Quando vem um fazendeiro ali, pode saber, ali tem negócio. Transação, né? Negócio de venda de gado, frango essas coisas, tudo isso aí. Tudo quanto é coisa, porcos, essas coisas. Para mim não tinha altura. Aí pedi para a mãe, falei: “Mãe, acho que eu vou para São Paulo, vou ver como está a vida lá. Se não der certo eu volto”. “Vai, meu filho, você que sabe. Você está livre desimpedido. A minha parte eu fiz, que eu te criei”. “Tá bem, mãe. A bença para a senhora, coisa e tal”. Aí cheguei aqui, sempre escrevia carta para ela, né? Sempre escrevia. Fui diretamente para uma pensão. Tem a Júlio Prestes, aqui em São Paulo, a Júlio Prestes é aqui em São Paulo. Lá eu vi uma pensão. Tinha aqueles mensageiros que tem na pensão, vai lá buscar os passageiros: “Ah, o senhor quer pensão, o senhor quer pensão? Quer pensão?” “Ô, moço, quer pensão?” “Quero.” “Então vai nessa pensão aqui. Adivinha minha gente, quanto que eu paguei por mês, não queria adiantado? Trinta mil réis. É bonito? Não, é uma coisa bonita. Que São Paulo naquele tempo era uma beleza, era um Pão de Açúcar. O próprio mensageiro falou assim: “Ô, mocinho, você fica aí no quarto, vou tirar seus documentos, vou ensinar São Paulo como é que é”. Todo mundo tinha negócio que tem hoje. Hoje mudou, mudou São Paulo de errado cem por cento.

P/1 – Seu Milton, deixa eu só, antes de o senhor vir para São Paulo, contar toda essa história para a gente, primeiro eu queria saber o nome da cidade mesmo que o senhor nasceu, qual que é?

R – É Monções.

P/1 – Monções.

R – Eu, assim, que é Monções porque eu nasci lá. Assim, por exemplo, eu nasci na Quarta Parada e assim, chama um bairro pequeno, Monções. Aí depois já, aí o pai falou assim: “Vamos até Avaré, vamos viver lá”. O tempo da revolução, não sei que ano foi, souber onde era bom parar, eu era pequeninho, tinha minha irmã mais velha, depois era eu. Nós fomos parar sabe aonde? Na mata virgem. Nós e todo mundo lá. Fizemos uma campana lá, ficamos lá. De madrugada assim se via só rojão. Não sei que ano que era, não sei se é 1914. Não, não era isso aí não. Ô, 1914 não…

P/2 – 1932?

R – É, é isso mesmo, foi 1932 mesmo. Mas, mata virgem, foi todo mundo, todo mundo, que nem está acontecendo, assim por exemplo, que parece que está terminando, na Iugoslávia, que todo mundo fez aquela corrente para ir todo mundo chorando, e bomba caindo, bomba caindo. Porque a bomba é o seguinte: ela não cai em uma mata virgem. Sabe por que é que é? Porque quando ela vem vindo ela recebe a friagem ela esfria, ela não explode.

P/1 – Ah, não?

R – Não explode, na mata, naquela mata virgem. Aí foi indo, de madrugada, de dia a mãe ficava com a espingarda e o pai, nós dormia. Nós não estávamos nem aí. Nós éramos pequenos. Eu tinha o quê? Dois anos. Nesse livro, depois que nós crescemos, aí que a mãe explicou para nós. Porque nós perguntamos: “Ô, mãe, o que foi, o que é que é guerra, mãe?”. “É assim, assim, assim, assim, meu filho, e coisa e tal. Você e a sua irmã estava lá dormindo e o pai ficava com a espingarda assim.” Se tem uma onça, um bicho, cobra, essas coisas. Onde tem um foguinho assim ela não encosta não. É um perigo. Depois que acabou a Revolução nós viemos para cá. Voltemos para a cidade outra vez. E cadê a casa para morar? Cadê? Estava tudo no chão, tudo no chão. Vinha aquelas bombas assim que caíam assim, nossa senhora. No tempo de Getúlio Vargas. É.

P/1 – Qual o nome dos seus pais, seu Milton?

R – É Milton, aliás, Antonio Lopes de Almeida.

P/1 – E o nome da sua mãe?

R – Laura Lopes de Carvalho.

P/1 – E seu pai trabalhava com o que, seu Milton?

R – Não, ele trabalhava na Ferrovia Federal, lá em Avaré. Trabalhava naquela ferrovia lá, a Federal, né? E a mãe era costureira, a mãe.

P/1 – Ele fazia o que na ferrovia, seu pai?

R – Ele mexia com as peças de umas máquinas lá, a vapor, né? Vapor, né? Cada um na sua sessão. Mexia naqueles, onde tem aqueles registros de vapor é com ele. Outros mexiam em uma parte, outros mexiam na outra. Direitinho. Para poder a máquina andar. Entrava na oficina para conserto, cada um tem o seu departamento. A dele era só na parte de cima: “tchiii”. Sai, quando tem muita pressão a máquina, aí pega, ele mexia com aquilo ali tudinho. Ele se aposentou ali. Se aposentou.

P/1 – E o senhor tinha quantos irmãos?

R – Eu tenho três.

Eu estou com sessenta e nove anos, o Edson deve estar com seus quarenta e cinco, o caçula que está no Rio de Janeiro deve estar com seus sessenta, por aí assim. O caçula é outro, com quarenta e cinco anos, né? Esse de quarenta e cinco anos tem, Sidney Lopes de Almeida. Porque os filhos puxou o nome do pai, e as irmã, quem dá Carvalho é a mãe, puxou a mãe.

P/1 – Mas o senhor teve irmãs também?

R – Tem cinco.

P/1 – Cinco irmãs?

R – Cinco irmãs. Tudo, só uma, porque uma está aqui na, como é que chama? Em Belo Horizonte. Ela casou, a caçulinha casou, aí ficou lá com o marido dela que é fazendeiro, ficou lá. Agora, as quatro estão aqui. As quatro. Porque uma está no Jardim Silveira, Itagira Lopes Martins, me recorda, porque o cunhado morreu, de tanto beber demais. Conselho, conselho não resolve nada. Não resolve nada conselho, né? Agora, Adenir Lopes Martins também, tem o seu Guilherme, trabalhava na ferrovia da Alta Sorocabana, que hoje é Fepasa, entendeu? Agora o outro, da dona Sueli, que é aquela escadinha que desce assim. Tudo a idade. Aquela escadinha. Ele trabalhava na, trabalha na Confiança ainda, até hoje. Fábrica de doces, perto da Tostines ali, do Pari.

P/1 – Então eram oito filhos?

R – Agora, a Shirley Lopes, não me recordo o restante do nome dela, era pastora da igreja. E o senhor Expedito também é pastor de igreja, pastor de igreja, né? Está tudo, a família está tudo bem engrenada, bem certinha. Está tudo vivendo como Deus quer, como Deus não quer.

P/1 – Então eram oito filhos?

R – É, oito filhos.

P/1 – E o senhor é o mais velho?

R – Sou o mais velho da turma. Tem a minha irmã, a Dede Lopes, até ela deve estar com os seus setenta e poucos anos. Acho que o mais velho sou eu mesmo, da turma, né? Da família. Lá chama-se senhores Almeida. A corrente lá é assim, né?



P/1 – Seu Milton, conta para a gente como é que era as brincadeiras de infância lá em Avaré, quando o senhor era pequenininho.

R – Não, ali é uma, ali tinha praça ali, naquele tempo era a maior maravilha. Ô, tinha brinquedo, tinha mais de tudo conforto que o aluno queria. As professoras se fosse preciso levar o aluno na casa é daqui ali na esquina, pronto, estava em casa. Porque uma cidadinhazinha pequena. Cidadezinha pequena ali. Uma senhora ficava doente, a minha mãe corria lá: “Que foi? Que é que é?” Qualquer tipo de chá as mulheres antigas, as vó fazia. E as pessoas chegava no dia certo, pronto, não tinha mais nada. Sarava. Não sei. Sempre eu respeito as vó, né, porque as vó falava assim: “Não, você vai tomar esse chá aqui, é bom”. Eu estava sofrendo um pouquinho do estômago, né? Muito bem. Aí foi conversando com uma mulher da, uma senhora daí, vó mesmo, noventa anos. “Vou trazer uma erva para você, você vai ver.” Acabou tudo. Sabe o que é? Era começo de úlcera. Não podia comer, eu não podia comer nada de molho. Eu gosto muito de massa, né? Ravióli, canelone, com aquele molho de tomate. Aí eu comi aquela, me deu, parece que o estômago abriu e quer só comer, só comer coisa assim de molho. Eu não podia comer não. Ah, punha na boca, voltava.

P/1 – Mas isso o senhor quando era criança?

R – Não, quando eu era criança eu comia aqueles pratão de arroz e feijão assim, né, que a minha mãe punha. Porque naquela época só se falava fogão à lenha. Não dava outra, minha gente. Por que é que o meu corpo está firme? É porque fui criado pela minha mãe. Ela fazia eu comer com farinha, mandioca, essas coisas, e carne mesmo. Porque lá em Avaré é assim, chegava de tardezinha assim, o fiscal chega: “Quantos você quer?” “Quero um só.” “Então entremeia aí.” Porque nesse intervalo eles matavam e punham lá no açougue, escorrendo sangue. Porco também, frango também. Não tinha nada que ficar tudo três, quatro dia na vitrine lá, no freezer lá não. Não pode fazer isso não. Eles multava e eles mandava jogar fora. Carne também, esquisita assim, já começa dar aquele mesmo escuro: “Ah, pode jogar fora”. Lá não entra isso aí não. E até hoje ainda é assim. Por isso que a gente é forte de lá. Essas comidas aqui, depois que surgiu, como é que chama? Fogão à gás, hummm, aí acabou tudo.

P/1 – Seu Milton, mas conta para a gente que tipo de brincadeiras vocês faziam lá? Vocês brincavam de quê? Bolinha de gude?

R – Não, lá tinha os carrinho. Os carrinho. Carrinho mesmo, esses carrinho, fazia aqueles carrinho de…

P/1 – Rolimã?

R – Não, não é nem rolimã. Nem existia falar isso aí. Os carrinho que usava lá pegava um carretel assim, pegava uma taboinha, abria um pouquinho no meio e puxava assim, e ia embora. Ia na loja, comprava os carrinho, aqueles carrinho lá de madeirinha, madeira mesmo. Pronto, era uma alegria. As meninas lá, as garotinhas que estavam indo na escola, eles davam, davam os brinquedos. Sessão dos garotos, sessão das meninas, entendeu? As bonecas eram bonecas de pano. Não existia isso aí naquela época, de jeito nenhum. É na faixa de 1960, 1970, aí que começou surgir, aí que surgiu a Estrela, aí começou a espalhar para todo mundo, para o mundo inteiro.

P/1 – Que tipo de brinquedos, além de carrinho, que tipo de brinquedos vocês faziam lá?

R – Eles mandavam a gente fazer. Tem uma sessãozinha lá, sem ninguém se machucar, né? Pegava, tem as madeirinha, as ferramenta ali, fazia um carrinho, fazia um avião, fazia um trenzinho, tudo ali com martelinho. Aqueles martelinho. Para a gente ir começando a aprender a se engrenar na vida, o que é a vida. As meninas fazia aquelas trouxinha, fazia aqueles bonequinho, desenhava tudo. Tinha de tudo ali. Fica tudo. E nós garoto, nem imagina, nós fazia de tudo ali. Depois começamos a fazer uns grandão, uns grandão, pintar tudo. A cor que a professora mandava. Chegava no dia das festas estava a mesma coisa, estava tudo bonitinho, feito ali.

P/1 – Que festas que tinham, que o senhor está falando?

R – Ah, lá tinha festa das crianças. E também quando era o Dia das Crianças. O Dia das Crianças Escolar. “Vamos ver quem vai trazer o presente mais bonito de casa. Para isso vocês vão ficar dois dias em casa para fazer. Não tem aula.” Então pegava, fazia, né? Nós fazia um caminhaozão grande, de madeira, né? Pegava lá e pegava lá em casa, punha na mesa da cozinha. A minha mãe dava uma bronca danada: “Oh, meu filho, o que é isso. Aqui é, vou servir o almoço, como é que faz? Como é que faz? Você está aí?”. “Mãe, a professora falou que eu vou ganhar um prêmio, né?” Aliás, ganhar um prêmio não, uma nota. Quanto mais ganhar uma nota melhor, né? Só tirava cem de comportamento e cem na linguagem. E na Aritmética também, entendeu? Nós levava tudo lá, pusemos na exposição, até o prefeito ia lá: “Bonito.” “Oba.” Ia na sessão das meninas e também a mesma coisa.

P/2 – Eu queria perguntar para o senhor, quando o senhor voltou do mato que teve bombardeio, o senhor disse que chegou e não tinha casa mais.

R – Nesse intervalo o Governo Federal foi obrigado a fazer, dar tudo novo. O prédio e tudo. A culpa não foi deles. Porque eles segurou a barra, né, mas não conseguiu. Não conseguiu, porque houve esse bombardeio. Porque lá em casa eu tive vendo na televisão, naqueles tempo mesmo, pensei comigo: “Olha só, uma coisa dessas passando na televisão? Meu Deus do céu”. Do tempo do Getúlio Vargas, 1914, assim, eu: “Epa, espera aí”. Eu tinha quatro anos. Relembrei o tempo da minha mãe. Relembrei no tempo da minha mãe, que a minha mãe parou e ela estava certa. Certinha, certinha: “Meus filhos, vocês vão ver, vocês vão ver quando muita coisa para a frente aí. Muita coisa pior para a frente aí. Porque eu, sua mãe, já está com idade avançada”

– ela já estava com quarenta e cinco anos de idade, minha mãe. Chegava quarta-feira, chegava sábado, ela falava para nós: “Escuta, eu vou para Avaré, eu vou ver minhas filha”. Meu pai não falava nada. Tem a carteirinha, né? Chegava ali, olhava, subia no trem, a mãe. Vinha para São Paulo. Chegava aqui em São Paulo, aqui ia na casa das filha. Tudo, sempre, passava sábado e domingo, já ia embora. Outro dia ela ficava na casa de uma filha em Barueri. No outro ia para Jardim Silveira. O último que ela foi, foi em Barueri com a irmã mais velha. Chegou lá com um bolo, coisa e tal, não teve problema nenhum. Mesmo, costume dela. Gorda, forte, fortona. Nós não podia sair fora da linha dela. Nós não comia farinha igual ela não. A mãe baixava a mão assim, ai, uma mãozona. “Vai tirando a roupa, bota ordem na casa aí.” Aí então ela pegou, chegou domingo, varreu lá, ajudou a irmã. Começou a chegar as irmã. Ela fazia uma reunião em uma casa, na outra e na outra. Reunião. A mãe ficou na ponta da mesa, minha irmã perto dela, mais velha. E os cunhado lá, então assim, assim mesmo. Tudo aqui, um mesão grande. Ela estava almoçando, caiu, por cima do prato. Até hoje que a gente, eu não sei. Não sei como é que foi. Aquilo, a casa da minha irmã virou do avesso. Caiu, morreu. Aí correram lá, chamaram o médico. O médico colocou um aparelho aqui, problema do coração. Ela tinha que fazer regime. Regime, é minha gente, regime. Regime para aliviar envolta do coração, estava cheio de banha. Quer dizer, o coração não teve mais circulação para funcionar, para funcionar assim, a banha fechou ele, parou. Ela não sentiu nada. Não sentiu nada. Caiu assim no prato, eh. As irmã pegou ela pois na cama, chamou o médico lá, mas colocou um aparelho e atrás assim acendeu a luzinha. Vermelha. Coração.

P/1 – Isso o senhor já morava aqui, seu Milton?

R – Einh?

P/1 – O senhor morava aqui em São Paulo já?

R – Eu

já estava aqui em São Paulo já fazia doze anos. Eu, segundo eu estava trabalhando temporário em Santos em uma churrascaria. Eu era o chefe da cozinha, da churrascaria. Porque era, tinha a churrascaria, né, e depois tem uma área para a pessoa pescar, se divertir. Um prédio lá que faz assim: sobe assim, vai indo, vai indo lá em cima, né?

Tem apartamento, tem tudo. Aí depois eu não sei o que deu em mim, eu falei assim: “Quer saber uma coisa? Bom, a churrascaria vai estar fechada na segunda-feira mesmo, eu vou dar um pulinho até minhas irmãs”. Não deu outra, que choque eu levei. Mas que choque eu levei. A minha irmã pegou eu, né? Aí foi na casa de uma, na casa de uma, depois foi para mim. Explicando para mim direitinho, que nem nós estamos conversando aqui. Pensei comigo assim: “Mas como é que pode, maninha?”. “Meu irmão, não deu tempo. Não deu tempo.” A casa dela virou um silêncio. Um cunhado, dois cunhado, passou a mão, esse meu irmão, esse tinha o quê? Doze anos. Olha só, estava lá ainda em Avaré. O velho, o pai estava em Avaré. Estava quase se aposentando naquela, quase se aposentando. Pegou o carro, porque daqui à Avaré eu não sei quantos quilômetros tem. Ele foi puxando. Tem o carrão dele, foi lá, levou parece que o quê? Duas horas. Eles, ó, correram mesmo. Porque daqui lá é longe. Não sei quantos quilômetros tem daqui lá. Aí chamou: “Ô, seu Antonio, seu Antonio, ê”. De madrugada. Ele já reconheceu a voz: “Que foi?”. “Vamos embora, vamos embora. Vamos para São Paulo que a sogra lá está ruim, está chamando o senhor.” Já estava morta, né? Estava só para enterrar. Fizeram autópsia lá, coisa e tal, para liberar o corpo. Aí constatou, constatou, foi isso mesmo: banha no coração. Imagina como é que pode.

P/1 – Seu Milton, vamos voltar só um pouquinho.

R – Vamos voltar.

P/1 – O senhor falou que fez Tiro de Guerra em Avaré.

R – Não, o Brasil inteiro. Não foi só em Avaré.

P/1 – Sim, mas o senhor morava em Avaré?

R – Eu morava em Avaré, tinha dois anos.

P/1 – Aí o senhor entrou no Tiro de Guerra?

R – Não, eu tinha dois anos, depois eu servi o Tiro de Guerra, quando eu me apresentei lá, entendeu, no batalhão.

P/1 – O senhor ficou dois anos no Tiro de Guerra?

R – Não, fiquei um ano só, um ano só. Porque no Tiro de Guerra, assim, lá a gente ajuda, sabe quem é? Os comandante. “Ah, manda uma tropa. Manda essa tropa aqui, manda essa tropa lá na minha fazenda, carpir lá, limpar, essas coisas.” É serviço de nós, se nós quisesse receber carteira do Exército. O tenente lá pegou: “Vocês vão para lá limpar a fazenda do capitão”. Só para eles ganhar um cartaz. Os outros ia para outro lugar. Venceu um ano, não chegou nem um ano, liberou nós. Entregou a reservista para nós: “Vocês estão liberados”. Depois de lá falei para a mãe: “Mãe, e agora?”. Vou passar, pegar minha farda do Exército, né? Falei para a minha mãe: “Mãe, dá para outro aí. Passa para outro amigo, colega de escola. Dá para ele aí. Ele vai servir mesmo”. É duro minha gente, ahhh, não é que nem eles estão aqui não. Lá nós pegava na enxada, é. Os outros pegava na enxada, pegava, carpia, fazia isso aqui, fazia, é. Por quê? Para o seu comandante ganhar cartaz, ganhar cartaz em cima deles, em cima da gente, entendeu? Como é que chama? Como é que eles fala? Ponto.

P/1 – E o senhor sai do Exército e vem para São Paulo, é isso?

R – Não, eu... (PAUSA) Eu fiquei lá com a mãe pensando, pensando como é que ia fazer, né? A mãe falou assim: “É, meu filho, o negócio é assim, você sabe muito bem que aqui não tem nada. De futuro para você não tem nada. Agora, se você for para São Paulo seria uma boa, mas não esqueça de escrever para mim. Faça o favor, escreva toda semana para mim, se você está bom, se você não está bom”. Tudo bem. Eu escrevi a primeira carta, escrevi: “Mãe, já estou trabalhando”. Veja só, fui trabalhar de ajudante de cozinha. Não estava nem aí pensando. Porque…

P/1 – Aonde, seu Milton, o senhor foi trabalhar?

R – Ajudante de cozinha? Na Rua Washington Luís. Lá é um horário só. Das seis da manhã às seis da tarde, horário comercial. Eu fui, aliás, fui aprendendo, aprendendo a profissão porque o chefe de cozinha falou assim, fogão à lenha: “Ô seu moço, Almeida, vem cá. Trabalha naquele fogão ali. Porque eu já estou velho, eu vou me aposentar e você vai ficar no meu lugar”. Aí fui pegando a profissão, profissão, aprendiz de cozinheiro, faz isso, faz aquilo, faz aquilo. Aí engatilhei. Ele falou assim: “Olha – para o patrão – ele vai ficar no meu lugar, eu vou me aposentar, chega”. Claro, ele se aposentou por direito. Eu fiquei ali, né, só horário comercial. E a gente naquele tempo trabalhava, nossa senhora, na Rua Washington Luís, na Brigadeiro, uma travessa da Brigadeiro Tobias, onde tem investigações... (PAUSA)

P/1 – Então, seu Milton, o senhor estava contando para a gente que o senhor estava trabalhando de ajudante de cozinha, né, em São Paulo?

R – É, muito bem, eu estava trabalhando de ajudante de cozinha, nessa evolução que tem o chefe, me pegou falou assim: “Eu vou tirar você da pia – lavar prato, essas coisas – colocar você no fogão. Vou arrumar outro ajudante”. Então, quando eu comecei ali, me ensinou direitinho: “Você sempre controle aqui, aqui assim”. Porque o suor era demais. E lá era tudo fechado, é circuito fechado ali. Dali você estava olhando os freguês. Tinha um aparelho lá que, assim, para ver se está bom. A comida se não está boa, para os garçom, né? Garçom, não são que nem o chefe, mas se eles diz: “Não, tá bom chefe, está bom. Está tudo bonzinho”. A faixa de almoço ali era trezentos e cinquenta, quatrocentos, almoço. Primeiro, naquele tempo, punha a sopa. Tem o prato fundo, o raso ia aqui. Enquanto eles comia, tomava a sopa, já ia a bandeja certinho e tudo completo ali. Feijoada, em uma quarta-feira, era quinhentas, seiscentas feijoadas. No mesmo tempo. 1950, 1951, a gente chamava assim: São Paulo da garoa.

P/1 – O senhor chegou que ano aqui em São Paulo?

R – Eu cheguei aqui em São Paulo, se eu não me recordo, foi em 1949, 1950. Era pequenininha São Paulo, era pequena. Era pequeno. Pequenininho demais, nossa senhora. Tinha os bonde, tinha os bonde. Tinha os ônibus pequenos, quinze sentados e dez de pé. Os homem passava, chegava assim só com os miudinho na mão, trocadinho. “Ê, olha o troco aqui, olha o troco. Vamos lá, ê, ê.”

P/2 – Ainda existe aquele lugar em que o senhor trabalhou primeiro?

R – Einh?

P/2 – Ainda existe o restaurante que o senhor trabalhou primeiro?

R – Não, não, terminou, fechou. Tem muitos lugares onde que eu trabalhei, fechou. Dali eu falei assim: “Quer saber de uma coisa? Eu já estou meio sabendo muito bem de chefe de cozinha, então eu vou fazer o seguinte: agora eu vou trabalhar em uma padaria. Eu vou me mexer, fazer faxina lá, só para ir levantando”. Desde o começo o que eu fiz? Fui devagarinho, devagarinho, e já o padeiro falou, o padeiro, o confeiteiro falou assim: “Escuta, vem cá. Você é esperto na limpeza. Então eu vou passar você para cá, você dá uma força porque eu estou demais de serviço”. “Tudo bem.” Aí me ensinou eu, né? Serviço de confeitaria. Eu fui indo. Foi aonde é que eu um dia fui fazer uma massa, ia tirar a massa para fazer o pão-doce, aí.

P/1 – Mas o senhor machucou todos os dedos? Das duas mãos?

R – Não, espera um pouquinho, eu vou chegar lá, normal, né? Mas está aqui, está vendo? Eu coloquei a massa do pão-doce, aquela massa grande, pego com a mão assim, joguei assim. Quando eu joguei assim o dedo foi junto. Para mim, eu ia gritar com quem? A frente era lá na frente. Então eu peguei, toquei a mão aqui, desliguei. Peguei um pano branco, sempre tem lá, tirei daqui, amarrei aqui. Cheguei: “Ô, patrão, não sei não. O __ me pegou, engoliu o meu dedo”. Dois dedos aqui. Se eu bobeasse ia tudo, ia tudo. Não tinha jeito. Eu correndo desliguei aqui. O patrão pegou eu, levou no Pronto Socorro do Tatuapé. Lá o Pronto Socorro do Tatuapé era pequenininho. Não tinha o quê? Meus vinte e cinco anos por aí. Meus vinte e cinco anos por aí. O médico falou assim: “Muito bem”. Pegou, fez a operação, operou tudo. Aí, o bisturi entrou aqui, parou aqui. Parei, naquele tempo eu era gordo. Eu era gordo. Fortão. Aqui também a mesma coisa. Enfaixou: “Você vai ficar aí uns quinze dias, nessa sala aqui, para recuperação”. O que não precisava, não precisava. Mas para eles baixar a ficha, né? Toda vez que está funcionando, os médicos estão ganhando. Mas eu comia pão e pão-de-ló, aquilo nem precisava. Aí de madrugada, estava dormindo: “Ô, moço, você está bom?”. Garotão, garotão, né? “Estou bom sim, eu estou melhorando.” Mas o médico olhou: “O senhor está, o senhor vai parar de trabalhar. O senhor vai ficar na Caixa, depois o senhor vai entrar com invalidez e aposentadoria”. Não me recordo naquele tempo a aposentadoria era pouco. Agora estou com quatrocentos e vinte, por causa disso aqui. Eu não sei ficar parado. Eu olhei: “Mas espera um pouco, está funcionando tudo aqui, não tem nada. Eu vou – sou aposentado mesmo – então eu vou fazer o seguinte, eu vou arrumar um servicinho por aí”. Foi onde é que eu arrumei esse serviço lá na padaria. Eu me afastei, eu pensei: “Não vou ficar parado não. Não sei ficar no quarto olhando para as paredes”. Eu já estava acostumado a trabalhar. Foi indo, fui trabalhando, trabalhando. Estou ganhando quatrocentos e vinte hoje. Para quem paga um quarto duzentos e vinte (RISO) de aluguel, ali na Rua Cajuru.

P/1 – Mas o senhor se machucou então aos vinte e cinco anos?

R – É, vinte e cinco anos.

P/1 – Desde aquela época o senhor está aposentado.

R – Eu estou aposentado. Conforme o salário mínimo vai subindo, vai subindo a minha aposentadoria. Naquela época eu sei lá quanto foi. Não sei se é vinte e cinco mil réis ou trinta e cinco, uma coisa assim. Era a aposentadoria, né? No tempo de quem, meu Deus? Sarney não era não, era muito antes. Se me recordo, do Juscelino Kubitschek.

P/1 – Essa padaria que o senhor trabalhava era onde, a que o senhor se machucou?

R – A padaria que eu estava trabalhando? Padaria Londres. Fica ali, tem o Largo do Belém, naquela rua, Rua do Belém ali embaixo, tem uma, na Avenida Celso Garcia. Do lado tem uma fábrica de cristal, de copo, essas coisas. Ela também acabou. A padaria acabou, acabou tudo. Sempre vai acabando. Tem muitos restaurantes, muitas padarias que eu trabalhei, muitas lanchonetes. Muitas churrascarias. Está tudo acabando. Tem uma que eu pulei, a Churrascaria Amazonas. Lá no centro da cidade. Tem a Rua Liberdade ali, eu pegava das quatro da tarde às quatro da manhã.

P/1 – Trabalhou antes de trabalhar nessa padaria?

R – Antes de trabalhar nessa padaria. Aí a turma estava falando assim esse negócio de metrô, metrô, metrô, metrô, mas que é que é isso? Falei para um advogado: “Ô, doutor, explica para nós aqui: que é esse metrô, não?”. “Vai passar embaixo de nós. Nós estamos aqui em cima, vai passar embaixo.” E lá cortou metade da rua, derrubou metade. Ligou para os proprietários, recebeu muito do Estado, recebeu muito do Estado. Aí cortou, fizeram metrô. Fizeram o metrô ali direto.

P/1 – Mas aonde, lá na Liberdade?

R – Na Rua Liberdade. Ali como ficou uma __ pequenininha, aí acabou. Aí acabou tudo, fica só lojas. Perdeu a evolução. Porque ali a colônia, na Rua Liberdade, tem a Rua São Joaquim, que é somente japonês. Tudo quanto é qualidade de japonês. Até as ruas ali são tudo deles. Eles floreia a rua ali do jeito que eles quer.

P/1 – Ô, seu Milton, o senhor falou que quando o senhor veio morar em São Paulo o senhor morava em uma pensão?

R – Pensão, exatamente.

P/1 – Lá no Centro, é isso?

R – É, no Centro. Ali chama Júlio Prestes. Na Julio Prestes ali tem uma rua lá está cheio de pensão ali. Todos os caminhoneiros que vinha do interior, parava tudo ali. Ainda não se falava na, nessa, como é que chama? Esse negócio dos ônibus. Ninguém sabia. Quem fez aquele prédio ali foi a Folha da Tarde, do lado, né? Eles fez ali, ninguém esperava isso aí. E agora isso aí novinho, novinho, o terminal ali, né? Onde é a Julio Prestes. Fizeram aquela plataforma, aquelas coisas tudo lá. Eu me recordo. A ferrovia ali. Aí foi indo, foi indo, foi indo, eu fui evoluindo. Eu fui conhecendo mais São Paulo, né? Porque eu pegava os domingos e falava assim: “Sabe o que eu vou fazer hoje? Vou conhecer São Paulo melhor ainda”. Então eu tinha que pegar o papelzinho, o endereço onde eu morava na pensão, punha aqui. “Se eu me perder eu falo para um guarda, o guarda me leva lá. Ou então explica para mim direitinho.” Naquele tempo era uma beleza. A polícia era uma maravilha. Oxe, como as, então: “O senhor está perdido?” Estava saindo do restaurante, olha. “Ah, muito obrigado, senhor.”

P/1 – Seu Milton, depois o senhor foi morar aonde? O senhor foi para que bairro?

R – Não, eu já andei morando por aí, eu estava em Santos. Santos passei para cá, fui morar na, só naquela pensão que eu morei ali a, estava escrito: “Pensão Familiar”, que eu pagava trinta mil réis por mês, só ali eu fiquei cinco anos. Aí eu já conhecia muito bem São Paulo, né, mais ou menos. Ah, você quer saber de uma coisa, aliás, estava morando ali, depois dali falaram que ia desmanchar tudo aquilo ali. Os prédio velho. Então eu fui para a Rua Conselheiro Furtado. Tem a Praça João Mendes, desce aquela rua, aqui do lado. Ali eu já pagava sessenta mil réis, para dormir e tudo. Já era diferente. Que eu não tinha café, não tinha mais nada, não tinha almoço, não tinha nada. Isso também é uma coisa que, pois é, né? Porque na pensão que eu morava, na primeira, ali tinha todo o conforto.

P/1 – Quando é que o senhor vem morar no Belém?

R – Aqui no Belém aqui vai fazer uns dois anos que eu estou aqui, dois anos.

P/1 – O senhor gosta aqui do bairro?

R – O bairro é uma maravilha. Ali tem de fartura, o que quiser.

Agora, nós fizemos, sempre senta os mais velhos, ali ó. Porque ali, aquela que tem uma praça do lado, tem umas mesinha ali que os caras gosta de se divertir. Os velhos de lá. Ali tem de tudo. Ali tem advogado, tem delegado, tudo aposentado. Os coronéis do Exército, tudo mora por ali. Então fizemos um abaixo assinado, escrevemos ali. Ah, não deu outra. Colocaram uma guarita da Polícia Militar ali. Puseram, pois. Só de ver que tinha o metrô. Porque o metrô ali ia trazendo muita gente ruim. Aí encheu o bairro.

P/2 – Isso era onde? Em que lugar? Em que lugar era essa guarita da polícia?

R – Não, fizeram uma guarita da Polícia Militar ali no Largo do Belém, que não tinha.

P/2 – Ali na igreja?

R – Em frente da igreja. Só porque quando surgiu o metrô vinha vindo gente ruim, de lá para cá. Não sei da onde que vinha aparecendo, começou a ficar feio o bairro ali. Porque bairro para pegar, para chamar a Polícia Militar, ihh, até ela chegar. Ali não, ali é dois pulinho e pronto. Porque ali tem o, se nós está pertinho da polícia ali, tem o circuito interno de lá, então está vendo que nós está aí. É. Nós estamos sentando ali, de lá ele está olhando.

P/2 – E o senhor falou o pessoal que joga ali na praça?

R – É. São todos eles aposentados, muito mais do que eu, nossa senhora. (RISO) Muito mais do que eu.

P/2 – Eles jogam dominó?

R – É, dominó, brincadeira só. Só de brincadeira, nada de isso aí, alastrar dinheiro, essas coisas, né?

P/2 – O senhor também joga lá?

R – Não, não, eu não jogo não, mas eu estive olhando ali, vendo direitinho ali, tudo é só brincadeira, para se divertir. Tudo cabelinho branco. Ihh, muito mais do que eu. Nossa senhora. Aqueles de noventa anos, cento e dez anos. É o cara do Exército, outro é do, da Polícia Federal, outro é, como é que chama? Da Polícia Militar. Ehhh.

P/2 – Foi pedido pelos moradores que fizessem as mesinhas?

R – O abaixo-assinado?

P/2 – É.

P/2 – Para vir lá? Todo mundo. Ah, encheu umas trinta folhas. Foi na mão do governador do Estado. O secretário de Segurança Pública falou assim: “Ah, é? Deixa, daqui uma semana está lá. Eu vou mandar fazer uma guarita ali”. Nesse até agora, principalmente aquele mercadão, Barateiro, né? O circuito interno pega ele todinho lá dentro.

P/1 – Seu Milton, o senhor é casado?

R – Não, não. Eu tenho uma senhora que vive comigo vinte e cinco anos, né? Entendeu? Porque eu quando pensei, minha gente, em casar, já era tarde.

P/1 – O senhor tinha quantos anos quando o senhor pensou em casar?

R – Não, eu estou com ela já são vinte e cinco anos. Com essa que está comigo, porque eu fui atender lá, __ jornalista aí, né? Estou com ela há vinte e cinco anos. Essa é uma maravilha. Uma dona de casa que é uma beleza. Trabalhadeira, viu?

P/1 – Mas vocês moram em pensão?

R – Mora em pensão, por enquanto, né? Porque nós vamos sair de lá. E você sabe o que é que é? Aumento.

P/1 – Está muito caro?

R – Não, vai aumentar. Se eu pago duzentos e vinte, com essa rodança do real que já caiu, está prejudicando não só eu, quase tudo no geral. A dona chegou lá falou assim: “É, seu Almeida, por lei, pelos aumentos que está por aí também sou obrigada a acompanhar”. “Ah, é? A senhora vai acompanhar? Muito bem. Quanto a senhora vai querer aqui?” “Quero trezentos.”

P/1 – Mas isso é por pessoa, seu Milton? Ou por casal?

R – Por casal, por casal. Com isso não recompensa. Ali dentro é uma maravilha. Não tem criança, tudo limpinho, tudo asseado. Um respeita o outro. Há conjunto. Agora, eu vou fazer o seguinte, eu vou para a casa da minha irmã, no Jardim Silveira. Vou ver se a, a companheira chama Maria, Maria Lúcia Pereira da Silva. Vou para a casa da minha irmã lá, ver se o porãozinho está lá. Acho que eu vou para lá e chega. Fazer a transferência da minha aposentadoria para lá.

P/2 – Mas essa o senhor paga com comida ou sem?

R – Não, a pensão ali?

P/2 – A pensão.

R – É o quarto, agora, a gente mobília o quarto.

P/2 – E a comida?

R – Não, não, não. É de compra.

P/2 – É fora.

R – É fora, tudo fora.

P/1 – Não tem café? Não tem nada lá?

R – Não, não, não. Ali a pensão é o seguinte: aluga-se quarto. Quer dizer, a dona da pensão dá liberdade para por o que quiser lá dentro. Só não tocar fogo na pensão lá, né, só não tocar fogo. Mas do resto a gente tem que, né? Armar o circo, como dizem. Comprar fogão, comprar isso, comprar aquilo, cama, essas coisas. Comprar os seus mantimentos. Aí a patroa pega e faz tudo, tudo, tudo, como o restante ali.

P/1 – Vocês cozinham no quarto, então?

R – Cozinha no quarto mesmo. Só aquele quartinho ali. Se você for alugar outro que é quatrocentos.

P/2 – Mas esse quartinho dá para um quintal?

R – Dá. Sai do corredor, um quintal. Assim, daqui já vai para a portaria, abre a portaria. Depois abre o portão de lá da frente. Tanta segurança que não resolve nada, ‘tchu, tchu, tchu, tchu, tchu.’ Porque do lado derrubou um prédio velho…

P/1 – E tem banheiro no quarto, seu Milton?

R – Não, não tem banheiro não. O banheiro é fora, tudo fora, tudo fora. Toma-se banho, vai lá, se tem um lá no banheiro tomando banho tem que esperar. Volta, espera. É isso aí. Pensão é assim. Todas as pensão é assim, todas as pensão. A não ser se a pessoa ache um quarto que tem um banheiro dentro, que tem uma pia dentro, água e tudo ali. Quando quero, a patroa quer água, ela vai com o baldinho, enche lá, pronto. Por quê? Está pagando. Está pagando a água, está pagando a luz, vamos gastar. É assim que aumentou, né.

P/2 – E quantos quartos tem a sua pensão?

R – Ali, porque, ali deve ter um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, fora lá em cima. Lá em cima deve ter uns dez. Uns vinte e cinco.

P/1 – E mora muita gente lá?

R – Mora, mora muita gente. Me parece que tem dois vazios em cima e dois vazios embaixo, vazio, né? Porque a pessoa acho que vai guardando uns trocadinhos, e puxa em um aluguel. Porque é muita coisa. Chega todo mês, sai limpinho para a mulher. Mas não, a mulher não faz nada. Ouve, tem que levar lá.

P/1 – E ela não mora na pensão, a dona?

R – Não. Ela, todos os donos de pensão moram longe. Não quer nem saber. Deixa só a encarregada. A encarregada ali, ela paga pouquinho de aluguel. Por quê? Porque ela zela. Qualquer tipo de erro, ela vai lá, devagarinho chama a pessoa, avisa direitinho: “Vamos se acalmar”. Por exemplo, uma coisa assim, vamos supor, porque lá não existe essas coisas. Lá, chegou dez horas da noite, não tem um rádio ligado. Até de dia, até de dia não tem rádio ligado. Porque são casal, união, porque dá a união, que se estão ligado o rádio tarde da noite, abaixa bem baixinho o volume. Não perturba o vizinho do lado. Porque parede com parede, prejudica a pessoa. E vamos vivendo, por enquanto, né? Mas a única dor da gente é isso aí, né? Aluguel. Difícil, chega o fim do mês, olha. Um chega lá paga trezentos e cinquenta…

P/1 – E está incluído água e luz?

R – Está incluído água e luz. Está incluído. Já vem certinho. Já não vai perder o tempo dela subir lá em cima, chegar assim: “Ô, a conta da água está aqui. Sua parte é o seguinte”. Mas nunca essas pessoas donos de pensão, até hoje, não entregam o recibo da luz para a gente somar a minha parte. Eles fazem do jeito que eles quer, do jeito que eles não quer, né? Tanto o recibo da água como o da luz. Não traz. Só pega e fala assim: “É tanto”.

P/2 – Mas não mostra então o papel?

R – Não, ‘tchu, tchu, tchu, tchu’. Porque mostrando para a senhora, só por exemplo, a senhora fala assim: “Escuta, me traz o recibo da água aqui que eu bato na maquininha aqui eu vejo a minha parte”. Não traz. Segundo, eu queria saber uma pergunta: por que é que certas pensão não dá o recibo, o comprovante que eu pago aluguel? Sabe por que é? Uma vez um pensionista lá, eu falei para ele assim: “Aperta a mulher para a mulher dar o recibo. Porque aí, o guarda pediu a você”. “Que dê o comprovante?” O comprovante quer dizer que você paga o aluguel, o que seja, o recibo. A mulher não dá não. Ela não dá, não dá. Só vai, só chega lá assim, chamou, apertou a campainha: “Olha o aluguel”. “Tá.” “Quanto que é?” “Duzentos e cinquenta, por enquanto.” Eu estou pagando duzentos e vinte, né? Outro, trezentos e cinquenta. limpinho, limpinho, só, mais nada.

P/2 – E se um dia ela falar que o senhor não está pagando e quer despejar?

R – Não, ela não faz despejo. Ela faz despejo se a pessoa abusar muito, né? Passar de quatro meses, cinco meses. Ela reconhece. Que a vida hoje não está fácil não, não está fácil não. Ela está sabendo. Se ela vai num quarto de um e o outro: “Não recebi”. Segunda: “Eu estou desempregado”. “Ah, então fica sossegadinho aí, não esquenta a cabeça não.” É assim, entendeu? Se a pessoa também abusar, aí já... Ela não faz despejo, ela só pede o quarto. E ó: “Você não precisa pagar nada, vai com Deus e desocupa o quarto”. Porque ela está sabendo, está sabendo se está dando muita confusão aí. Porque lá em cima, lá perto do metrô tem uma pensão. Sei lá o que a mulher falou lá, chegou de manhã cedo, foi acordar um rapaz lá, um tal de Cearense, lá. Ah, meu filho, não deu outra. O cara pegou e ‘pá’. “O que você veio fazer aqui essa hora? Veio acordar eu? Por quê? Só por causa de aluguel? Então leva”. Matou a mulher. E o cara correu, ó.

P/1 – Mas o que é que a dona da pensão faz se a pessoa, para tirar a pessoa de lá? E se a pessoa não quiser sair?

R – Não, lá…

P/1 – E se a pessoa não quiser sair de lá?
R – Aí sim, aí ela chama, manda para o advogado dela, aí o advogado manda uma intimação. Ele assina os termos de saída, o oficial de justiça vai lá. O oficial de justiça vai lá, e pega e, entendeu? “Está aqui, assina aqui. Você tem quinze dias, ou dez dias, para você sair daqui.” Pronto. Se não sair, encosta o reforço.

P/2 – Mas daí como ninguém tem recibo não vai ter como comprovar…

R – Aí, a dona da casa não tem nada que chiar. Eles já fazem isso aí, a senhora sabe o que é que é? Para a dona da pensão não ter dor de cabeça. Para não dar recibo, não dar nada. Não dar dor de cabeça para ela. Se eu morar uns três, quatro anos, estou cheio de recibo assim, se eu ficar um mês, dois meses sem pagar ela, não pode fazer nada. Não pode fazer nada. Não pode, né? Não pode fazer nada comigo, de jeito nenhum. Por quê? Por exemplo, se eu estou desempregado, né? Então eu estou caçando emprego. Quando chegar e falar assim: “Por que o senhor está atrasado? O senhor tem o comprovante?” “Está aqui.” Aí ela pega fala assim, porque a polícia não tem nada a ver com o assunto do departamento de pensão, não tem nada que ver com isso. Ela não tem nada a ver com isso não, entendeu? Isso aí é o advogado e o juiz, e o oficial de justiça. Então são eles que tem que mexer com isso aí. Não é porque os policiais pega, vem acompanhando a carona, já aconteceu em uma pensão lá. O rapaz falou para mim. Eu falei para ele: “O que está acontecendo aí?”. “Não, dois policial foi lá, pegou as coisas do casal, pôs tudo na rua.” “Mas como assim? O rapaz está pensando o quê? Que está morto? Não conhece lei? Ela não pertence para a polícia não, não senhor. Isso aí é assunto de justiça. Que primeiro vai com o advogado. Aí o advogado manda uma intimação para ele. Vai lá o oficial de justiça ele assina e acabou. Aí está liberado. Parece que tem uns trinta dias para isso aí, para procurar lugar.” Hoje em dia está assim.

P/2 – São muitas as vezes que a polícia vai retirar?

R – Não, que eu tenho visto, o rapaz falou. Agora, tem uma pensão lá no Belém, para cá um pouquinho do metrô. Rua Elói Cerqueira, é ali. A dona da pensão parece que é bacana. Ah se é comigo, ah se é comigo. O moço ficou um mês e quinze separado, coitado, parado, sem emprego sem nada. Ele é polidor. De _ lógico né, mas como a coisa está feia, se ele ganha oitocentos, vai em uma firma, a firma fala assim: “Não, só te pago quatrocentos”. O cara fica sem saída. Ela pegou, chegou, deu uma volta assim, ela chamou dois guardas. Os guardas, esses assim, que andam assim patrulhando. Chega assim: “Moço, pode ir tirando as coisas para fora. Vou te ajudar”. Pegou, depois fecha a porta, trava, a dona da pensão. Aí tem coisa no meio. Aí tem coisa no meio. Porque está, não, não....

P/1 – Ô, seu Milton....

P/2 – O que é que o senhor acha que é?

R – O que é que eu acho?

P/2 – O que o senhor acha que é a coisa que está no meio?

R – Aí tem coisa no meio entre a dona da pensão e esses policiais. A senhora adivinha o que é... Como tem esses caras aí que já foram para a cadeia, que foi para a cadeia nenhuma não. Seu Visconde? Ele ficou só uma hora lá dentro, cortando na política, né? Cortando o assunto. Ficou lá uma hora só e saiu, pronto, acabou. Tem, tem muito, tem muito, tem muito, tem. É ou não é? Mas ficou nisso. Eu acho isso muito errado. Por isso que eu, se eu sou o camelô e estou trabalhando aqui, chega toda semana tem que dar cem pau, propina? Então está errado, né?

P/1 – Ô, seu Milton, a gente vai encerrar o nosso depoimento, eu queria fazer uma pergunta para o senhor: o senhor está trabalhando atualmente nessa padaria? É isso?

R – Ah, eu trabalhei em muitas padarias. Muitas padarias.

P/1 – Mas essa que o senhor está?

R – Porque pelo tempo que eu estou aqui em São Paulo aqui, né, desde a idade dos meus vinte anos, por aí assim, uma coisa, né? Mas eu trabalhei em diversas padarias. Mas cada uma delas vai fechando. Fechando, porque é tempo, tempo delas, tempo delas. Aí vai, a maioria das padarias, lanchonete, essas coisas, fecha. Sabe por que é que é? O aluguel. Porque o dono proprietário não quer saber se a coisa está feia, se está bonita, se está ruim, se está, né? Por exemplo, se eu alugo esse pedacinho aqui. Vamos tirar uma previsão, né? A senhora fala assim para mim: “Esse lugar aqui – vamos supor – é meu”. Bom, venceu meu contrato. Agora eu vou lá para renovar, agora eu quero dois e meio. Posso pagar? Não posso pagar mais não. Por quê? Minha produção aqui não está dando para cobrir essa despesa. Vai fechando. Tem que fechar. Fechar e entregar a chave para o homem: “O senhor aluga para quem você quer”. Tem diversos por aí que têm mais de seis meses, um ano, está tudo fechado.

P/1 – E a que o senhor trabalha atualmente é a Princesa do Triângulo, é isso?

R – É a Princesa do Triângulo, na Avenida Sapopemba, 1311.

P/1 – E o senhor está trabalhando lá desde quando?

R – Ah, ali já vai fazer oito, doze anos. Doze anos mas eu, como aposentado, a chefia e os diretores da aposentadoria eles não podem saber não, eles cortam, eles cortam. “Nossa, se o senhor pode trabalhar, então vamos cortar a aposentadoria e você fica só com o aluguel.” Porque lá eu ganho seiscentos, mais quatrocentos e vinte, né? Né? Com mais quatrocentos dá para ir tirando a vida ali, entendeu? Agora, o que eu quero terminar é o seguinte, esse negócio de pensão: ah, não vai, não entra.

P/1 – Vocês vão morar na casa da sua irmã, é isso?

R – Não, eu vou para a casa da minha irmã, eu vou para lá.

P/1 – É em Silveira?

R – É em Jardim Silveira. Itagira Lopes Martins.

P/1 – Mas é aqui em São Paulo isso?

R – Aqui em São Paulo. Jardim Silveira é aqui, para lá de Osasco. Que tem Carapicuíba, tem mais quatro estaçõezinhas. Bairro dela, né? Está aposentada, está recebendo a aposentadoria do marido, né? E aluga os quartinho ali em cima. Agora, quando ela veio para cá, ela fez só embaixo, né? Um cômodo e cozinha. Aí foi subindo, foi subindo, foi subindo. E foi só alugando e deixando embaixo. “Mano, venha para cá. A sua idade não dá mais para você ficar para São Paulo trabalhando lá, fazer doce. Essas coisas.” O jeito dela brincar comigo. Então eu vou. Eu agora vou levar, eu quero ver se a Maria, a minha esposa, se ela vai acostumar. Se ela acostumar, tudo bem. Se não acostumar ela tem que procurar o, ir para a casa do tio dela. O tio dela está aposentado, mora em Itapeva.

P/1 – Da sua esposa?

R – Passou tudo para ela. Nossa senhora. Ele é aposentado da federal. Médico, médico ele é. Está com seus oitenta e sete anos. Ele não aguenta mais. Quem vai receber o dinheiro dele, a outra irmã dele.

P/1 – Ô seu Milton, tem mais alguma coisa que o senhor queira falar, que nós estamos encerrando o nosso depoimento.

R – Está encerrando o depoimento? A única coisa que eu gostei muito aqui, ser bem recebido por vocês, né? E oxalá, se precisar de mim, estou sempre às ordens. Estou encerrando por aqui.