Museu da Pessoa

A fauna da Costa Doce no bordado

autoria: Museu da Pessoa personagem: Marcia Pereira de Pereira

Projeto: Mercado Livre - Biomas que Transformam
Entrevista de Marcia Pereira de Pereira
Entrevistada por Grazielle Pellicel
Locais: São Paulo (SP) e Pelotas (RS)
Data: 02/06/2022
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1211
Transcrita por Monica Alves
Revisada por Grazielle Pellicel

P1 - Oi, Marcia. Tudo bem com você?

R - Tudo bem e contigo?

P1 - Tudo ótimo! Pra começar… A gente sempre começa pelo mais básico, né, que é o seu nome completo, a sua data e local de nascimento.

R - Meu nome é Marcia Pereira de Pereira, eu sou natural da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, e a minha data de nascimento é 20 de maio de 1959.

P1 - A sua família por acaso te contou como foi o dia do seu nascimento?

R - Ah sim, sei, (risos) houveram várias histórias. Sempre falaram. A gente fala muito sobre a infância, tem muitas histórias. Não sei se tu queres saber alguma coisa a respeito do meu nascimento… Ah sim, a minha mãe antes de ficar grávida, ela sofreu queimaduras pelo corpo, e depois ela ficou grávida e em função dessas queimaduras, o médico falou para ela que ela não ia ter a gravidez a termo, que é assim, talvez pela falta de elasticidade na barriga, ela tivesse que antecipar o nascimento da criança. Bom, e ela sonhava, preocupada com isso, que aquela criança nascia com algum problema, com mão de porco. Isso tudo ela me contava. Bom, aí eu sei que a gravidez foi até o final, disse que a barriga dela não era muito redonda, porque onde tinha elasticidade, ela se expandia; onde não tinha… Então disse que não era assim muito redondinha e tal. Aí eu nasci bem assim. E aí eu tenho uma tia, que, assim, era muito espalhafatosa e ela foi no dia que eu nasci, ela que acompanhou a minha mãe na sala de parto, não sei porque que meu pai não foi. É que não tinha coragem, né? Naquela época não eram tão corajosos. (risos) E aí essa minha tia, que se chama Corina - chamava, já faleceu -, ela entrou junto com a minha mãe, e aí eu ia… Eu nascendo assim, e a minha tia ia narrando para mãe e aí ela: "Ai Lígia!”. E a mãe: “Que foi?”, preocupada com a história dos sonhos, que a criança tinha nascido com defeito. Cada vez, daquele que a mãe… Que a minha tia dizia: “Ai Ligia!”, a mãe achava que ia dizer "Ai, tem defeito assim, um problema”, [mas, na verdade, ela disse]: “Ah, é uma guriazinha!”. A mãe, “Ai que alívio!". Aí, “Ai Lígia!”, “Que foi Corina?”,“Ai, tem um sinalzinho no ombro!”. (risos) Assim foi o dia do meu nascimento. Coitada da mãe, sobressaltada, mas, graças a Deus, tudo correu bem. E outra coisa é essa história dos meus pais serem primos irmãos, era outra coisa que ela se preocupava também, porque diziam que primos não podiam se casar e não sei o que, então isso era uma outra preocupação que ela tinha, né? Mas foi tudo tranquilo, não degenerou a raça. Acho que também não aprimorou, mas foi em frente. (risos) Acho que é essa história assim que eu lembro.

P1 - E qual é o nome dos seus pais?

R - Meu pai era Amilton Rangel Pereira e a minha mãe Lígia Pereira de Pereira.

P1 - Como é que era o convívio com eles?

R - Era, né? Na verdade, meu pai morreu quando eu tinha vinte anos e a minha mãe [quando] eu tinha trinta. Já faz muitos anos que eles faleceram. Mas era tranquilo assim. Meu pai era muito severo, mas não… Assim, como é que eu vou dizer…

Nunca me bateu, nem nada, ele só olhava para a gente e a gente já sabia o que estava fazendo de errado. A mãe não, a mãe a gente já dava uma… Abusava mais [da vontade dela]. Aí já vinha os beliscões, os puxões de orelha. A mãe era mais tranquila, assim, nesse sentido. Foi bem, eu fui muito protegida, muito amada, tanto pelos meus pais, como pelas minhas tias, as irmãs da mãe; fizeram eu ter uma infância muito feliz.

P1 - E você tem irmãos?

R - Tenho um irmão mais velho, seis anos mais velho que eu.

P1 - Como é que era a convivência de vocês dois?

R - Sempre foi normal, até o dia que ele casou, que aí, graças a Deus, me deu os sobrinhos maravilhosos. E eu não tenho filhos, né, então, mas eu tenho esses sobrinhos que são anjos na minha vida e ele… E, assim, aí agora ele mora em outro estado, no Paraná, então a gente se fala bastante, mas não com a frequência que era quando ele morava aqui, né?

P1 - E seus pais, qual era a atividade deles?

R - O meu pai, comércio e a minha mãe, dona de casa. A minha mãe costurava em casa, fazia uns bicos. Era costureira, mas era sempre em casa, assim, dona de casa.

P1 - Você e sua família gostavam de fazer alguma comemoração, assim, especial?

R - Fora aniversário, Natal, essas coisas assim, sempre se comemorava. Meu pai fazia questão de ter sempre natais maravilhosos, com grandes árvores de natal, foi… Assim, gostava muito de dar presente, presenteava muito a minha mãe. Era bem legal. (risos)

P1 - E era uma festa que reunia a família toda, os amigos?

R - Ah sim, [era] mais a família, porque a família da minha mãe é grande, muito grande, [com] muitos irmãos. Eram oito irmãos: [são] muitos sobrinhos, muitos primos; então as festas sempre eram com a família. Amigos era difícil, um ou outro. Mais era da família mesmo.

P1 - E como é que era a família da sua mãe?

R - Alegre, sempre, de contar piada, musical. Tinha sempre… Eles eram muito ligados à música. Assim, um tocava violão, outro tocava sanfona, aí era sempre muito em volta de música. A família era muito alegre.

P1 - A família do seu pai também era assim?

R - Não, não, a família do meu pai já era diferente, são mais duas irmãs só e não era assim… Eram amigas assim, a gente ia em aniversário, mas fora isso, não eram muito ligados.

P1 - E eles costumavam te contar histórias quando você era criança?

R - História da família? História sempre tive muita, minha mãe lia muito para mim. Histórias, assim, eu gostava de ouvir as histórias de quando eles eram pequenos, das artes que eles aprontavam, travessuras, sempre foi muito assim, de muita conversa, sempre, e muita história.

P1 - E você sabe a origem dele, da família dele? Se é do Rio Grande do Sul também [ou] vieram de outro lugar?

R - Não, todos eles [são] daqui de Pelotas e a origem, meus bisavós eram portugueses, nascidos em Portugal, mas, os outros, todos já vieram para cá e ficaram aqui. Aqui se estabeleceram, criaram família, tanto que a família é quase a mesma, né, porque todo mundo tem quatro avós, [mas] eu só tenho três, né, porque eles eram primos. (risos)

P1 - E eles eram primos de primeiro grau? Sempre conviveram um com o outro?

R - Sim, o meu avô por parte de mãe era irmão do meu avô por parte de pai, eram dois irmãos que casaram com duas mulheres, e ainda tinha o outro, que casaram três irmãos com três irmãs, só que a minha avó por parte de mãe não era [uma] dessas irmãs, porque senão acho que não daria, seria um casamento muito, muito familiar. (risos)

P1 - E você lembra da casa em que você passou sua infância? Você conseguiria descrever ela?

R - Sim, me lembro. A primeira casa de que eu lembro, morei até os meus três anos. Era uma casa de madeira que eu lembro pouca coisa. Assim, eu lembro que meu pai passava filme, não sei como é que ele fazia, uma engenhoca, aí ele botava o cobertor no roteiro e passava aqueles filmes, que ele inventava as histórias, aquelas coisas. Eu lembro dessa casa, que era ao lado da casa do meu avô, que tinha um armazém, secos e molhados. Lembro [também] que eu vivia muito na casa desse meu avô, a gente estava quase sempre lá, porque era bem [do] ladinho [daqui]. E depois, as outras casas, fui morar numa outra casa onde eu conheci a minha melhor amiga, que [existe] até hoje. Com três anos de idade, eu fui morar nessa outra casa e ela… E eu fiquei sentada, assim, na porta da casa, e ela brincando com uma outra amiga; aí ela veio, me convidou para a gente brincar, aí eu fui e ali se tornou uma amizade que [perdura] até hoje. A gente depois foi estudar na mesma escola - naquela época, era segundo grau -, até o segundo grau a gente fez juntas; aí a gente já tinha uns dezessete anos, por aí. Aí a gente meio que se separou quando fomos para a faculdade, né, mas continuamos sempre amigas. E me lembro das casas, a segunda casa que morei, a terceira eu acho, a terceira, a minha mãe e meu pai davam aula de corte de costura, então tinha mesas altas, assim, para as pessoas cortarem aqueles moldes e eu passei praticamente a minha infância em baixo daquelas mesas: ali embaixo era teatro, era casa de boneca, era palco de coisas da minha vida; que era embaixo dessas mesas altas. Não sei nem se elas eram realmente altas, pra mim representava o que era, né, a gente chamava aula, porque era no fundo da casa, assim, era uma peça toda engraçada, onde era ministrada essas aulas de costura e ali eu passei grande parte da minha infância. Depois, quando já era adolescente, com quinze anos, mudei de casa, aí houve também o afastamento dessa minha amiga que eu falei antes, porque nós antes morávamos bem perto. Aí quando eu fui mudar para essa outra casa… Foi lá nessa casa que meu pai faleceu. Depois, a gente veio morar aqui na praia, [em] Laranjal, esse bairro que eu te falei. É praia aqui, Lagoa dos Patos. Não sei se tu queres mais detalhes, assim, das casas; [é] que eu lembro, assim, mais [das] coisas afetivas, né?

P1 - E você quando criança, gostava de brincar do quê?

R - Poxa, eu adorava brincar de boneca de papel, que eram umas bonecas que [se] cortava a roupinha, aí tinha umas alcinhas e a gente prendia, assim, nos ombros das bonecas. Amava brincar com aquilo, [com] brincadeira de boneca, Susi, e brincar também na rua, a gente ficava até tarde da noite brincando na rua. Não tinha celular, né, então a gente brincava muito. Eu brinquei muito na minha infância. Ah, como eu brinquei! E eram essas bonecas de papel que eu adorava e as minha tias, eu tinha duas tias solteiras e elas faziam roupa, principalmente uma delas, fazia roupas para minhas bonecas, capa de chuva com bolsinho, assim, de nylon, as coisas mais queridas [para mim] eram minhas bonecas, eu amava. Eu tinha até bem pouco tempo, até nascer minha sobrinha neta, foi quando eu dei para ela, que me arrependo até hoje, porque ela destruiu tudo, né? Eu guardei e ela destruiu. Mas era assim, eu tive uma infância muito feliz, com muita brincadeira, brincava de pegar - não sei se vocês chamam esse [mesmo] nome aí, era de se esconder -, de apertar na porta das casas e sair correndo, na campainha. A gente fazia muita travessura.

P1 - E desde essa época você já pensava em ser artesã? Você falou que gostava de criar bolsinha, né?

R - Eu não vou te dizer que eu não pensava em ser artesã. O meu pai, como eu falei, era muito severo, a gente nem pensava em fazer outra coisa que não fosse entrar para faculdade, Deus me livre! A gente vivia naquela função de um dia entrar para faculdade, se formar e não sei o que, né? Então eu fui… Assim… Mas eu não lembro de depois. Já mais adolescente, sempre fazia coisas, fiz leque, carteirinha, sempre tinha uma coisa, colarzinho - isso já é bem mais para cá. Na época da novela, que deu “O Clone”, a primeira vez, eu fiz quantidades daquelas pulseiras que pegava aqui no dedo. Vendi horrores daquilo, quantidades! Sempre fiz alguma coisa, mas claro, aí que eu me dediquei, fui tirar a carteirinha de artesã e só depois que eu parei com o meu trabalho normal. Acho que mais adiante na entrevista tu vai me perguntar sobre isso.

P1 - Você tinha costume… É que você falou de ”O Clone”, né? Vocês tinham costume de se reunir para ver TV ou ouvir rádio?

R - Sim. Naquela época, só tinha uma TV em casa. Não era como hoje em tudo que é canto, sala, [toda] peça na casa tem televisão, né? Naquela época, a gente só tinha uma TV e era costume se reunir na sala de noite para ver as novelas, “Jornal Nacional”. Era costume sim, se reunir.

P1 - Você lembra de alguma comida, que volte sua memória da sua infância? Tipo, aquela comida que você amava, que você nunca esqueceu o sabor.

R - Eu lembro de uma torta que a mãe fazia, com bolachinha champanhe, abacaxi e nata. Isso, até hoje. Assim, depois que a mãe faleceu, a minha cunhada fazia também. Eu tentei fazer, mas nunca ficou igual à que a mãe fazia. A mãe fazia essa de bolachinha champanhe e fazia uma que era com amendoim e nata, passava no liquidificador também e o meu pai sempre dizia assim, que não sabia… Quando a mãe fazia uma, tinha que fazer a outra, porque ele não sabia qual que ele gostava mais; ele comia um pouquinho de [cada] uma. E era realmente assim, era divino aquilo, é a coisa que eu mais me lembro, e me lembro sim, daqueles finais de semana que era nos domingos, que era a

tradicional macarronada, salada de maionese, carne assada, a minha mãe cozinhava muito bem, dom esse que eu não herdei dela (risos).

P1 - E nesses momentos especiais, ela também cozinhava? Em aniversários?

R - Sim. Quando tinha festa, aniversário, era tudo feito em casa. Salgadinhos, bolo, tudo era feito em casa. Não tinha isso de chegar em uma padaria e comprar os docinhos, não, a mãe fazia tudo. Ela gostava de cozinhar.

P1 - Nessa época, quando você era criança, já pensava em ser alguma coisa quando crescesse? Mesmo que fosse alguma coisa absurda, assim, “Quero ser uma princesa”.

R - Sim! Eu sempre, a primeira coisa que eu lembro assim, de querer ser, era ser psicóloga. Professora, depois psicóloga. Toda a primeira coisa era querer ser professora. A gente se espelhava, né, naquelas professoras queridas que a gente tinha, eu tinha, e depois eu queria ser psicóloga. Mas quando eu comecei a entender [melhor as coisas], eu sempre quis ser arquiteta, meu sonho era ser arquiteta. Eu consegui. Foi bem difícil, mas consegui. Era meu sonho mesmo.

P1 - E da sua primeira escola, você tem alguma lembrança dela?

R - Muitas! Eu lembro do meu primeiro dia de aula, me lembro da professora, porque assim, quando eu cheguei na escola, elas queriam me botar no pré, eu tinha cinco anos [e] em maio já fazia seis, né, então, pela idade, queriam me colocar no pré, só que eu já escrevia e lia, tinha aprendido em casa e aí meu pai - ou a mãe, não sei quem foi que pediu para eu já entrar direto na primeira série -, me fizeram um testezinho lá que eu passei. Então fui para a primeira série. Quando eu cheguei na aula, assim, eles já tinham tido dois dias de aula e eu lembro assim da professora, era Maria Lúcia o nome dela, eu cheguei assim e ela disse: “Olha aqui uma aluna nova” e me pegou assim, por aqui, me balançou. Ela é um amor. Eu lembro muito bem que ela era nova e tinha o cabelo… Assim, fios grisalhos no cabelo. Ela era muito querida. Tinha também um menino na minha aula que era o Nelson e ele era medonho, ele era virado do avesso, assim, ele fazia horrores. Inclusive, a professora usava o cabelinho assim, botava ‘aqui’ para trás da orelha e o resto vinha para frente, ele dizia que ela usava peruca. E todo mundo: “Não, ela não usa”, “Você quer ver como ela usa peruca?”. Ele foi lá e pegou o cabelo dela assim, puxou com toda força. Claro que não saiu o cabelo dela. (risos) Assim, que eu lembro tão bem disso e me lembro do nosso uniforme também, que era um guarda pozinho assim, xadrezinho azul e branco e tinha uma gravatinha assim azul também. O nome da escola era Recanto Infantil.

P1 - Com o passar dos anos, você teve outros professores também que te marcaram?

R - Ah, vários! Tive o professor Dario, que era meu professor de biologia e ele era casado com uma prima minha e tal, então ele não me chamava na chamada, assim, “Marcia”. Ele não dizia "Marcia", era "Pereira ao quadrado", ele dizia. Pereira de Pereira, né? E tive muitos professores, tive uma professora que o nome dela era Norris e ela me deu de presente um lápis que na ponteira tinha um japonesinho assim de madeira. Eu nunca me esqueci daquilo, ela era muito querida. Me lembro dos filhos [dela], que ela tinha filhos gêmeos. E tive muitos professores queridos e marcantes.

P1 - Você lembra quais eram suas matérias favoritas? Elas mudaram depois de um tempo?

R - Mudaram sim, mas eu gostava muito… Eu era muito estudiosa, sabe? E eu gostava de matemática, de história, português; acho que eram essas as minhas preferidas. Geografia eu gostava também, até pensei em hoje fazer um curso, faculdade de geografia; eu gosto muito.

P1 - E nessas escolas, você estudou todo esse tempo com a sua melhor amiga?

R - Até o segundo grau, sim, juntas. A gente só [se] separou quando fomos para faculdade. Estudávamos na mesma aula, até no Recanto Infantil, éramos as duas. Depois a gente foi para outra escola. Eu fui primeiro, ela foi depois, mas era uma coisa assim de seis meses depois ela já trocou. Ficamos até o segundo grau. Aí ela passou no vestibular para farmácia, bioquímica e eu para arquitetura. Era completamente diferente, não tínhamos nem matérias juntas, assim, cadeiras juntas.

P1 - Indo agora mais para adolescência, qual era a sua principal diversão na época? O que você gostava de fazer para se divertir na adolescência?

R - Na adolescência, a gente saía para bailinhos, brincadeiras na casa dos amigos, assim, essas coisas, jogava. A gente jogava cartas e essa minha amiga, ela tinha um… O pai dela tinha uma casa que era para fora, assim, ficava na beira do rio, a gente ia muito para lá nas férias, passava as férias. Até tem um lugar aí no Rio que se chama Marambaia, aqui também, a gente ia para lá passava as férias e aí era assim, uma adolescência bem comum.

P1 - E mudou muita coisa da infância para adolescência?

R - Não, porque, assim, aquela rebeldia da adolescência, eu nunca tive isso, sabe? Sempre fui calma. E outra coisa, a minha mãe tinha uma confiança assim em mim, sabe, mesmo: a gente saía, sempre saímos eu, essa minha amiga e uma outra amiga, que a gente, os pais se conheciam, né, todo mundo se conhecia, então aquilo era tranquilo. Eu nunca tive problemas, assim, daquelas rebeldias, foi bem tranquilo, mas meu pai me tirava o escalpo se eu fosse rebelde. (risos) Não, mentira, ele nunca me bateu. Mas foi tranquilo, a adolescência foi bem tranquila. Namoradinhos, aquilo de sempre. (risos)

P1 - E como é que você namorava naquela época? Que você falou que seu pai era bem severo, né?

R - Olha, te falar a verdade, meu pai só conheceu o meu primeiro namorado porque eu tinha vinte anos quando ele faleceu, e ele tinha muito medo do meu pai na verdade, (risos) porque o pai era muito severo, mas severo, assim, vou te dizer, era uma cara de bravo. Porque ele não era… Era tranquilo, é que a cara dele dava medo mesmo, uma cara assim de bravão. Mas era assim, a relação deles era legal também. O pai torcia para um time e ele torcia para o outro, aí dava assim umas confusões. Sabe como é, né, torcedor sempre… Mas era assim, tranquilo também. Aí depois, quando o pai faleceu, aí é que eu fui ter mais namoradinhos, né? (risos) Mas, foi isso.

P1 - E você foi para faculdade logo em seguida da escola?

R - Sim, sim. Eu terminei a escola e, ao mesmo tempo, fiz o pré vestibular. Aí fiz o pré vestibular, passei e já entrei para faculdade.

P1 - E como é que foi essa mudança da escola para a faculdade?

R - Não sei, às vezes eu penso, tudo na minha vida foi tão sem graça, (risos) foi tranquilo. Em seguida eu já formei um grupo de amigos, também na faculdade, que foram também… A gente foi junto até um ou outro se desgarrarem, mas a gente foi até o final. Então, era aqueles grupos, a gente fazia aqueles projetos e coisa, à noite, e aí a mãe de um ou de outro fazia aquelas comilanças e a gente comia. Tinha que dormir na casa [um do outro], porque esses projetos de arquitetura eram um terror, né? Tinha que passar noites em claro. Me lembro de ter passado três noites seguidas sem dormir, no trabalho [da faculdade]. Foi um semestre [em] que a gente tinha seis cadeiras de projeto: era elétrico, hidráulico, arquitetônico. Era um horror. Então a gente ficava nas casas um dos outros pra poder… Porque a maioria dos trabalhos eram em grupo mesmo, né? Então tinha uma relação bem boa, assim, de amizade com os colegas e com as famílias. Também tinha muita gente que não era daqui de Pelotas, né, que vinham, então os pais dos outros filiavam os que eram de fora. Era bem legal.

P1 - Tem algum momento marcante da faculdade que você nunca esquece?

R - Tenho uma lição de moral que um professor nos deu que eu nunca vou me esquecer. A matéria, se eu não me engano, era Teoria da Arquitetura e da Cidade e nós tínhamos um professor que ele era mais velho, era um uruguaio, Don Arturo, então ele era mais velho e era muito querido assim, simpático, ele era aquele professor que todo mundo respeitava, né, tinha um respeito muito grande. Inclusive, ele depois foi paraninfo da nossa turma. Ele marcou uma prova e no dia da prova, ele não compareceu, pediu para uma menina que era da…, que cuidava dos corredores, tipo inspetora, pra ficar cuidando da prova. Aí aconteceu que alguém começou a colar na prova, trocou de prova e ela riu assim, meio que não tomou… Como é que eu vou dizer… Não chamou atenção, sabe? Não chamou atenção, fez como se nada tivesse acontecendo e aí, dali começou, que todo mundo começou a colar, colavam uns dos outros, caminhavam. Foi uma baderna, mas como ela havia permitido, todo mundo pensou que ia ficar por aquilo mesmo. Aí quando o professor veio dar as notas, ele disse assim: “Olha, a Isolete - que era a funcionária - contou que aconteceu isso, isso e isso”. E nós ficamos todos de cara no chão, porque a gente respeitava ele, né? A gente nunca pensou que ela fosse contar. E ele disse assim: “Aconteceu isso, isso e isso, então eu vou marcar, anular essa prova e vamos marcar uma outra”, aí ele marcou a prova. Então como a gente respeitava, a gente precisava levantar a nossa moral, que estava muito baixa. [É que] todo mundo colou, né? Todo mundo estudou assim, a mil, sabe, estava com a matéria toda tinindo. Todo mundo! Aí quando chegou o dia que ele havia marcado a outra prova, ele chegou e disse que…, perguntou: "Todo mundo estudou?". E todo mundo: "Sim, sim!" Ele disse: "Bom, acho que vocês estudaram mesmo. Como vocês estudaram, todo mundo vai se sair bem, então não vou fazer a prova. Vai valer a nota da prova que vocês tiveram naquela prova que todo mundo colou". Ah, foi, assim, uma lição de moral que ele nos deu, né? Ele fez todo mundo estudar e aí fez aquilo ali, uma coisa que eu nunca vou me esquecer, assim, que ele… E uma outra coisa também que aconteceu, assim que, eu tinha uma colega que ela era muito boa nas matérias técnicas, né, e ela sempre tirava dez e tudo. Um dia ela saiu, fez a prova e saiu com a rascunho dela e estava comentando com outro colega ali fora da sala de aula, e o colega, esse tinha um irmão que estava dentro da sala de aula - ele e o irmão estudavam arquitetura também - e ele: "Ah, deixa eu ver a tua prova, Marilaine?". E ela deu a prova para ele. No que ela deu, ele pegou a prova dela e deu, botou por baixo da porta para o irmão dele que estava lá dentro. E deu uma baita confusão, né, porque ficou como se ela tivesse dado a cola para o menino lá dentro. Aí ela explicou e todo mundo viu que ela não tinha nada a ver e ela se saiu bem, mas foi bem tenso, assim, isso. E teve um que levou um gravador dentro da roupa para colar, com fone de ouvido. Ah, que gente…, mas era assim. Aí essas coisas assim…

E o dia da formatura, né, o dia da formatura é inesquecível. A minha mãe estava com hepatite, mal, muito mal, assim, mas foi. Coitada, ainda foi lá na colação de grau com aquela chatice toda, mas consegui ir. Foi bem lindo assim. Acho que a formatura de todo mundo é emocionante, né? (risos)

P1 - E quando é que você começou a trabalhar?

R - Só depois que eu me formei, porque a arquitetura que eu fiz era na Universidade Federal, então a gente tinha aulas durante…, de manhã, de tarde [e] não tinha como trabalhar. Até hoje é assim, né, esses cursos que são todos os dias. Tu não consegues, porque tu tens aula durante todos os períodos. Depois que eu me formei, é que eu fui [trabalhar], que aí eu consegui o emprego e tal e aí eu fui trabalhar na arquitetura. Não trabalhei muito tempo. Te dizer já: em seguida, eu consegui um emprego na prefeitura, aí eu fui ser oficial administrativo na prefeitura.

P1 - Como você iniciou a sua atividade atual?

R - Foi assim: como eu te falei, sempre fiz alguma coisa de artesanato, né? Aí eu estava trabalhando na prefeitura e eu trabalhava na Secretaria de Saúde, aí eu tive depressão e eu trabalhava com público. Eu passei um período muito ruim da minha vida. Trabalhei dezesseis anos na prefeitura, sendo que nos últimos três anos eu não estava no posto de saúde, eu fui lá para a Secretaria mesmo, fazer o trabalho burocrático. Esse tempo que eu estive no posto de saúde, foi o que me causou essa depressão. Tive uma depressão profunda, né? E eu andava na rua, que eu não queria que ninguém me cumprimentasse. Não queria, sabe, porque era muito complicado. Além de eu ser a linha de frente, as pessoas vinham e xingavam. E eu ainda trabalhava no mesmo bairro que era o posto, então eles, além de serem pacientes, eram meus vizinhos, né? Então eles ligavam para minha casa meia noite para saber se no outro dia ia ter médico, vinham em casa perguntavam para minhas tias se ia ter ficha. Foi assim, um período bem conturbado e isso foi me causando essa depressão. Nisso, me convidaram para trabalhar na Secretaria de Saúde. Eu achei uma boa oportunidade, porque eu ia sair dali da janelinha do posto, né? E aí eu fui. Mas daí quando eu fui para a Secretaria de Saúde, a coisa era pior ainda, porque a gente trabalhava com um programa de mães necessitadas, sabe? Chamava-se um programa que era para bebês, nenê, então foi muito complicado, eu via muita coisa, muita doença, muita pobreza. Eu sei que passei três anos de atestado por causa da depressão, aí foi que eu comecei a fazer coisinhas em casa, bolsinhas e me inscrevi em uma feira que tinha aqui em Pelotas, que tem até hoje, uma feira de artesanato aos domingos. Aí eu comecei a ir e aquela depressão - tomando medicamento sempre - foi melhorando. Por fim, eu me exonerei da prefeitura. Eu tinha dezesseis anos de prefeitura; pedi exoneração, sai sem nada, né? E aí fui melhorando, aquela minha depressão foi melhorando e tudo era ligado ao meu trabalho, aquela coisa toda. Eu fui lá na feira, a gente vai conhecendo outras pessoas, vai falando, conversando, [e] eu melhorei, graças a Deus! Aí resolvi assumir, fiz carteira de artesã, aquela coisa toda; meu marido [também] me ajudava na feira, me ajuda até hoje. E aí foi assim que eu comecei no artesanato pra valer, né?

P1 - E como surgiu a associação?

R - Pois é. Certa vez em um domingo, desses de feira, chegou uma moça lá no nosso estande e me perguntou se eu não gostaria de participar do trabalho. Essa moça era consultora do Sebrae e ela me perguntou se [eu] não gostaria de trabalhar num projeto que eles tinham, que era de valorizar as coisas de Pelotas, né? Porque tem essa tradição de doces aqui em Pelotas, os casarões antigos. E é claro que eu quis, né? Aí fui nessas oficinas que a gente fez de criação de produtos, para… Aí tinha designer, aquela coisa toda. Me convidaram para participar desse projeto que é Bichos do Mar de Dentro, que já existia há um ano, mais ou menos, e se eu gostaria de participar. Aí eu e outras pessoas, a gente ingressou nesse projeto dos bichos, que foi através da Jussara, essa do Sebrae. O Sebrae, naquela época, era nosso parceiro, assim, parceiro dos bichos.

P1 - E como foi a rotina do seu trabalho como artesã?

R - Pois é. Assim ó, a gente tem uma loja, uma loja física que funciona no mercado central aqui de Pelotas, né? Nós somos três grupos nessa loja. Isso, agora, né? O que está acontecendo agora nesses três grupos: nós temos três pessoas que atendem na loja; a gente faz uma escala. Então eu tenho esses dias que eu estou na escala, eu trabalho lá na loja. Como eu bordo, eu sou bordadeira, autodidata, eu levo o meu trabalho lá para a loja que não tem tanto movimento assim, que me impeça de bordar, então eu fico bordando nesse meio tempo. E quando eu estou em casa, faço as atividades de casa e faço meu artesanato em casa também. Porque, claro, eu bordo, por exemplo, uma almofada, eu bordo aquele bicho, daquele que tá ali [atrás], um pássaro, mas depois eu tenho que costurar, fazer a almofada, colocar o fecho, encher. Não é só bordar, né? Eu não passo para outra pessoa, faço o produto até o final. Então, é assim essa atividade que eu tenho lá na loja. E quando estou em casa, a atividade de fazer esse meu trabalho com artesanato.

P1 - Voltando para a parte mais pessoal, você é casada?

R - Sim, eu tenho um companheiro que coincidentemente tem o mesmo nome do meu pai, Amilton.

P1 - Como é que vocês se conheceram?

R - Em uma festa, num bar. (risos) Aí ele me convidou para dançar, a gente foi dançar e tal, e pá, pum! (risos) Estamos juntos há 27 anos.

P1 - Vocês tiveram festa de casamento?

R - Não, não. A gente não se casou, nunca casamos, somos solteiros… Não, ele é divorciado até, eu que sou solteira. (risos) Ele tem um filho.

P1 - Voltando de novo para a atividade de artesã, né, o seu trabalho, você aprendeu a bordar com seus pais? Porque você falou que eles tinham um… De costura, né? Tipo uma aula de costura que eles davam?

R - Isso. Eu sempre [fui] metida assim com a mãe. A mãe me ensinava coisas e tal, mas, na verdade, eu fui encarar mesmo, seriamente isso, depois que minha mãe faleceu. Claro que eu acho que aquela…, aquele dom, aquela coisa, assim, eu acho que veio junto comigo, e também com o conhecimento que ela me passou. E outra coisa também: a minha profissão de arquiteta, ela é muito abrangente, né, então muitas coisas eu tomei emprestada da minha profissão, entendeu, com relação a estética, uso das cores. Isso tudo vem da minha faculdade, vem do estudo, né? Então eu tenho uma boa noção, assim, disso, de estética, graças a isso. Mas do contrário, assim, de cursos, coisa assim, nunca fiz… Fiz até um outro, nada que eu possa…

P1 - Você já chegou a ensinar para as novas gerações, ensinar alguém a bordar?

R - É, até que sim. Eu tenho uma sobrinha neta que gosta dessas coisas, assim, não sei se vai, se ainda vai gostar, mas quando ela era pequena, ela bem que gostava de aprender, gostava de desenhar, essas coisas assim.

P1 - Ah, que legal!

R - Eu pretendo. Se eu tiver para quem ensinar ainda, vamos ensinar. Porque é uma coisa que está meio em desuso né, as pessoas não…: "Ah, é bordado a mão", "Ah, que maravilha, bordar!". Porque, né, perdeu assim, o costume de se ter as coisas feitas manualmente.

P1 - Você acha que é importante continuar com esse tipo de técnica manual?

R - Sim, acho, porque uma coisa é tu pegar um trabalho bordado a máquina… Não que não tenha seu valor, tudo tem o seu valor, mas se tu pensar que tu pegou ali, uma almofada, um lenço, alguma coisa e teve mais trabalhando naquilo ali, que escolheram cuidadosamente a cor da linha e tal, que tu aprendeu, que tu errou, que tu cortou, sabe, que às vezes não dá certo, não sei, acho que [não tem] como não valorizar uma coisa assim. É a mesma coisa que a pintura em tecido: poxa vida, né, ali a pessoa se dedicou, trabalhou em cima daquilo ali. Acho muito importante sim.

P1 - Os bichos que vocês retratam no trabalho de vocês, é tudo da fauna regional?

R - Posso te falar, então, sobre os bichos? Assim, ó, os Bichos do Mar de Dentro, que é esse grupo que a gente tem, é um grupo que ele reproduz a fauna sil… A fauna silvestre não, a fauna aqui da Costa Doce. O que é a Costa Doce? É o complexo de lagoas que a gente tem aqui: as lagoas Mirim e Mangueira e Lagoa dos Patos; que Lagoa dos Patos todo mundo conhece, né? E então a gente elegeu nesse bioma todo, a gente elegeu trinta animais para reproduzir. E aí como nós somos vários, né, e fazem parte desse projeto… Eram cinco cidades - [deixa eu] ver se ainda me lembro -: Camaquã, São Lourenço, Pelotas, Rio Grande e Arroio Grande. Camaquã, agora, não tem mais nenhum artesão, então é São Lourenço, Pelotas, Rio Grande e Arroio Grande. Então, são vários artesãos nessas cidades, a gente se dividiu, as técnicas, mais ou menos por cidade. Então: lá em São Lourenço eles fazem biscuit; Pelotas faz costura, bordado e pintura em tecido; em Rio Grande ela faz técnica de coisas com madeira; Arroio Grande também faz um outro tipo de bordado. Então, assim, mas sempre o bicho. No caso desses, que tem anfíbio, mamíferos e répteis, então sempre os produtos, o bicho é o tema desse produto, né? Eu mesmo bordo aves, bordo capivara, sempre os bichos do Mar de Dentro. Então, esse projeto, quando eu entrei, já existia e a gente tinha o apoio do Sebrae. E hoje… Já em 2013… Esse projeto dos bichos, ele está desde 2006, mas em 2013 que houve a reforma do nosso mercado central aqui, a gente resolveu abrir a loja e o Sebrae nos ajudou, né, que no caso eles chamam de institucional: a gente não precisou pagar a Outorga da loja, no caso, da lojinha, assim, do prédio, então o Sebrae nos conseguiu isso aí. Mas, desde então, o apoio do Sebrae, para artesanato aqui no Sul, ele meio que diminuiu bastante assim. Agora a gente não tem mais nenhum apoio, é tudo pelas nossas próprias pernas. Mas, o nosso grupo, tem outros dois grupos lá na nossa loja, Ladrilã, que é um grupo que trabalha com lã de ovelha e redeiras, que elas usam… É um grupo que é da colônia de pescadores, que elas usam matéria prima natural delas lá. Então a gente, sempre quando tem alguma coisa, alguma feira grande, como a gente vai, o Fenearte, ou aquela de Minas Gerais, quase sempre os nossos três grupos são convidados para participar das feiras, como case de sucesso. Quase sempre é. Na última feira que teve lá em Minas Gerais, cinco grupos foram convidados, sendo que três eram esses nossos três, então é uma coisa que me enche de orgulho, disso, né, porque hoje em dia, tirando o nordeste, que tem essa tradição de artesanato, aqui no sul a gente não tem, então o fato da gente ter essa loja no mercado desde 2013 e até hoje ela fazer sucesso, nos enche de orgulho também. Porque onde que tu tem loja de artesanato no lugar - que aqui é quase como um shopping o nosso mercado, não é um mercado assim, ele foi reformado e é muito bonito - então as pessoas vão lá e nos conhecem, sabe, nossos clientes. Claro que é todo tipo de pessoa, mas nós temos clientes: a prefeita, o governador do Estado, são nossos clientes. Então nosso artesanato é muito bem reconhecido, graças a Deus.

P1 - A venda desses artesanatos, ela auxilia de alguma forma na preservação desses animais?

R - Sim, assim, é um… Eu sempre falo isso quando apresento lá a loja, os nossos três grupos têm o mesmo norte, que é de se conscientizar da necessidade de se preservar a natureza, porque, inclusive, nós tivemos um livro que foi editado pelo auxílio da lei Rouanet, né? Nós tivemos um livro que foi distribuído gratuitamente, é claro, nas escolas municipais aqui de Pelotas, que era um livro que era uma história, uma aventura no Mar de Dentro, que no final do livrinho ali, vinha como se fosse o caderno da menina protagonista da história. Então ali tem os bichos que estão em extinção, os que estão em perigo, os que são em… Tudo explicadinho ali. É uma coisa assim, que a gente quer que, por exemplo, tu vais visitar uma criança, tu vais em uma lojinha e compra uma girafa, tu vais em uma lojinha e compra um elefante: onde a criança vai ver girafa e elefante na vida dela? Só se ela for em um zoológico, né? O que ela vai ver normalmente aqui? Ela vai ver um quero-quero, uma capivara, um jacaré do papo amarelo. Isso ela vai ver, mas não essas coisas exóticas que dão para as crianças. Então é isso. O que acontece? As crianças vão amar as capivaras, os cardeais, os zorrilhos, né, então, a partir disso, começa a se conscientizar da necessidade de se preservar esses bichos.

P1 - Além do mercado de Pelotas, vocês vendem também online?

R - Sim, vendemos online. Tem alguns pontos no Brasil que vendem também os nossos produtos: [em] Porto Alegre, São Paulo, Recife, tem alguns lugares que vendem; o Mateus Solano, que vende a loja das moças, as redeiras (risos) na loja dele. Então é assim, nós temos pontos de vendas bem importantes.

P1 - Tem algum lugar que o artesanato de vocês chegou, que você nunca imaginou que chegaria antes?

R - Sim, foi uma coisa esporádica, né? Assim, não é usual, mas nós tivemos… Bom, eu vou te dizer bem assim, ó, as pessoas chegam lá na loja, compram algum produto, elas dizem: “Isso aqui vai para os Estados Unidos”. Claro, como um presente, como uma lembrança. Não quer dizer que elas vão vender lá nos Estados Unidos, né? É como uma lembrança, ih, pra vários! A gente tinha uma coisa muito interessante lá na loja que era um painel que dizia “where are you from”, [que significa] “de onde você vem”, ali a gente tinha… Nós temos um álbum de lugares, que as pessoas vinham do mundo inteiro, porque Pelotas, um pouco, não é, mas é uma cidade turística, porque tem muito esses casarões que a gente tem aqui, chama muita a atenção e a cultura do doce também, as docerias também, então a gente tem muito turista. Então é comum: “Isso aqui vai para a Austrália”, né? A gente nunca pensa que o produto da gente, aquilo que tu fez ali, tá lá na mão do australiano, do belga, mas acontece sim. (risos)

P1 - E online, vocês já conseguiram vender para outros países também?

R - Sim, sim. Já foi vendido.

P1 - Esse trabalho gera renda para muitas famílias?

R - Sim, gera renda, especificamente dos bichos. Nós somos nove artesãos, claro que ninguém vive exclusivamente disso, mas uma parte importante da renda desses nove artesãos é do artesanato.

P1 - E falando sobre a Costa Doce, quais são as riquezas dessa região?

R - Olha, é como eu te falei, o Doce é pesado o negócio aqui, né? (risos) Agora, inclusive, tem a Fenadoce. Não, a Costa Doce, que é a Costa das Lagoas é um lugar, [com] uma beleza natural incrível, né? Uma água doce, por hora; às vezes meio poluída, às vezes não. É muito legal, porque aqui a Lagoa dos Patos tem ligação com o mar, [então] quando a lagoa está baixa - isso acontece no verão, né - entra água salgada na Lagoa dos Patos e aí vem o camarão, vem peixes de água salgada, e isso é uma das riquezas. A pesca é uma das riquezas da nossa região aqui, né? E eu acho que a beleza natural, tem lugares muito lindos, muito pitorescos aqui. Acho que é isso, assim. Isso, a economia da cidade, basicamente, o comércio, Pelotas é virada no comércio. Tinha indústrias doceiras, coisa assim, agora não tem mais nada: tinha de compotas, doces, pêssego. Acabaram essas indústrias, é uma pena.

P1 - Por que acabou?

R - Eu acho que [é] a situação econômica. Assim, eu acho, não sei porque teria acabado. Não sei te dizer, não sei mesmo.



P1 - E Pelotas, você sempre morou aí, né, desde criança?

R - Sim.

P1 - Mudou muita coisa de quando você era criança até agora?

R - Cresceu, mas é uma cidade bem interiorana assim, sabe, de princípios meio conservadores. Mas cresceu. Foi uma cidade que cresceu assim, como eu te falei, virou muito comércio. Assim, é comércio e serviço, Pelotas. Mas é uma cidade agradável de se morar, com os casarões antigos, tem um centro histórico muito interessante e isso não mudou, né, e nem vai mudar, graças a Deus. (risos)

P1 - Quanto a sua atividade, né, mudou muita coisa desde que você começou?

R - Acho que mudou mais a minha visão do artesanato do que realmente… Porque assim, né, tem coisas que eu acho meio chato [de] falar, mas o artesanato eu considero que a gente faz o artesanato verdadeiro, sabe? Não é aquele industrianato, não é aquele… A gente tem também guardanapo de louça, né, mas assim, não é - como é que eu vou te dizer… - é aquele pano de prato que tu faz, aí tu faz um bicho, é diferente assim, do que aquele artesanato das feirinhas, sabe? Eu sei porque já trabalhei em feirinha, não tô… Não é demérito para as feirinhas que eu tô falando isso, mas o nosso artesanato é um artesanato diferenciado e eu acho que a minha visão mudou com relação a isso, porque eu não sabia o que era um artesanato verdadeiro e agora eu sei que o nosso é. (risos)

P1 - Com esse artesanato também, você acabou conhecendo muito da fauna, né? Ou antes já era presente na sua vida?

R - Sempre gostei de bicho. Gostava, assim, de cachorro, de gato, essas coisas, né, mas agora não, eu não mato bicho de jeito nenhum. E assim, eu amo esses nossos bichos. Eu amo! Uma vez a gente ia para Porto Alegre e meu marido atropelou um gato do mato, eu acho, um bicho assim, olha, guria, se tu vê, foi punk. Eu amo esses bichos, assim, sabe? Eu conheço eles, eu sei onde eles nasceram, onde eles vivem, como é que o quero-quero cuida do ovo, [ao] invés da “quera-quera”, é o macho que cuida, sabe? E assim, como é que o ratão do mato… O ratão-do-banhado é monogâmico. Todas essas coisas, assim. Eu amo essas histórias. E tudo isso, eu vou dizer, nós tivemos muitas aulas, oficinas para a gente aprender tudo isso, porque agora, quando as pessoas entram lá na loja e perguntam sobre os bichos, eu sei responder, sabe, eu tenho propriedade para responder como é que os bichos vivem. Então isso faz eu amar [até] os [bichos] mais horríveis, que tem aquele cheiro horroroso, quando é ameaçado, porque se ele não é ameaçado, ele não tem, então a gente ama. Capivara é a coisa mais amada do mundo. (risos) É isso.

P1 - Essas oficinas que você falou, elas foram um tipo de capacitação?

R - Sim, sim. Nós tivemos oficinas com ecólogos, biólogos, com designers de formação de produto, formação de preço, venda, muitas oficinas, muitas e isso, o apoio, eu agradeço muito ainda o Sebrae que foi nosso parceirão. Tinha a Fibria também, que era um… Eles tiveram essa contrapartida, eles tinham que nos apoiar, eram obrigados. (risos) Pode falar.

P1 - Depois desses apoios que vocês tiveram, as coisas melhoraram pelo menos de alguma forma?

R - Ah sim, como eu te falei, foi conhecimento que a gente adquiriu e de tudo, porque, por exemplo, a formação do preço, a gente aprendeu a valorizar o nosso trabalho. Eu sei a diferença de antes de fazer as oficinas e agora, de colocar valores a tudo: é a água que tu gastas, é a luz. E nada disso a gente valorizava antes, antes de fazer essas oficinas, né? Várias, muitas a gente fez. Como entregar um produto, como embalar o produto, tudo isso aumentou muito o crescimento da gente.

P1 - Além do seu trabalho, tem alguma coisa que você gosta de fazer, um hobby?

R - De férias? (risos). Eu gosto de vencer, eu gosto de jogar. Eu tenho um grupo de amigos muito grande, que a gente costuma se reunir. É, eu acho que é isso. Cultivar amigos, cultivar amizades.

P1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje?

R - Minha família. Sem dúvida nenhuma, minha família em primeiro lugar. Isso é mais importante que tudo. E o trabalho, né? Se a gente não trabalha, não ganha; se a gente não ganha, não sobrevive. Mas eu acho que é isso. Eu sou taurina e taurino precisa de muita segurança, de conforto, de comodidade, segurança e estabilidade. Então é isso, eu espero através do artesanato [e] tô conseguindo. (risos)

P1 - E tem algum sonho que você ainda não realizou e quer muito realizar?

R - Ah, eu vou te dizer que meu sonho é ser feliz, é só o que eu quero: ser feliz e ter saúde. Acho que os sonhos, assim, eu já realizei, graças a Deus.

P1 - Quais os sonhos que você já realizou?

R - Ter minha casa, meu carro, meu marido do meu lado, saudável Tenho uma tia de 83 anos que mora comigo, [que] é meu coração. Tenho minha faculdade também, foi um sonho que eu realizei. Acho que é isso, sonhos de uma pessoa interiorana.

P1 - Voltando um pouquinho, que você comentou da sua tia, você falou que você tinha uma relação muito melhor com suas tias: você pode falar um pouco sobre isso?

R - Ah, eu vou chorar. (risos) Elas eram irmãs da minha mãe, né, e assim, teve períodos na minha vida que nem tudo foi tão bom, né? Meu pai, quando meu pai morreu mesmo, e as minhas tias, solteiras, elas nos tomaram - aliás, não foi só a mim, assim, meus outros primos também - como filhos, né? Então a gente tem uma relação com elas assim, que é de outro mundo. Eu sempre digo: "Eu nunca perdi a minha mãe, ganhei, tinha três mães". Tanto sempre [que no] dia das mães era presente para as três, e eram as nossas mães mesmo, assim, sabe, se dedicaram a vida pra gente, deixaram a vida delas pra gente, pra cuidar da gente, sabe? Elas além de cuidarem dos irmãos, os sobrinhos foram filhos delas assim. Agora minha tia mais velha faleceu em 2016, eu acho que foi em 16, que é a tia Corina, essa que estava lá no parto quando eu nasci e tenho a Dadá que está comigo até hoje, está com 83 anos. [Ela] é a nossa bonequinha, é a nossa mimosa, não tenho palavras. Eu sempre digo isso, eu falo isso e as pessoas, ainda se tu falar, elas vão dizer que eu digo isso sempre: "Ainda que eu caminhe, que eu me arraste de joelhos, eu nunca vou pagar a obrigação que eu devo para elas". E não era obrigação, que elas sempre fizeram tudo de coração pra gente, assim, mas são as nossas mimosinhas. E eu tenho a Dadá ainda comigo, a Dadá é a mais moça delas, irmã da minha mãe. Ali está ela. (risos)

P1 - A gente já está encaminhando para a parte final da entrevista: tem alguma coisa que você gostaria de acrescentar? Ou alguma coisa que eu não perguntei e você acha que é necessário falar?

R - Não, eu falei dos bichos. Eu não sei se falei do quanto sou feliz por participar desse grupo, né, e também foi assim, um divisor de águas na minha vida, né? Foi [embora] aquela depressão. Artesanato, os bichos, né? E aí eu tenho esse laço com as meninas que são minhas colegas, as artesãs que são do meu grupo e as artesãs dos grupos que fazem parte da nossa loja. Então foi uma amizade assim que a gente tem, de irmã mesmo, sabe? Eu nem consigo imaginar a minha vida sem elas. Eu digo isso: um dia se eu tirasse em uma mega sena, por exemplo, eu não ia deixar de ter a minha loja junto com elas, né? A gente é extremamente amiga, assim, e eu sou muito feliz por isso, muito agradecida por fazer parte disso tudo, sabe? Acho que é isso. Sou muito chorona. (risos)

P1 - Quer dar uma pausa, tomar uma água?

R - Não, tá tranquilo.

P1 - Qual você acha que é o seu legado para as próximas gerações?

R - Meu legado? Olha, vou te dizer, eu quero que uma…, a primeira coisa, que as pessoas, quando eu me for, se lembrem de mim com muito carinho e quero que a natureza seja mais preservada. Eu tô fazendo a minha parte com relação a isso, né? E quero que nunca deixe de existir bordadeiras, nem que pintem em tecido, sabe? Quero que tenha sempre o artesão, quero que tenha o marceneiro, porque a vida vai, assim… A gente complica demais as coisas e é tudo tão simples, é só tu ver a pessoa brava e: "Escuta, tu acordaste com alguma coisa? Posso te ajudar?". Então é isso, eu quero que o mundo seja bom, assim, gostaria que o mundo fosse e queria deixar um legado de amor.

P1 - E por último, o que você achou de contar um pouco da sua história pra gente?

R - Ah, achei muito legal! Estou emocionada assim, achei bem legal mesmo. Eu só falo muito, eu acho, né? Eu acho que falo muito. (risos) Então, achei muito interessante e quero ver o resultado do que vai evoluir isso aí, né, quero ver nossa relação. (risos)

P1 - Ficou ótimo. Queria te agradecer em meu nome e do Museu da Pessoa, por ter cedido a sua história pra gente.