Museu da Pessoa

A comandante de 200 homens

autoria: Museu da Pessoa personagem: Zenaide Maria de Souza

P/1 – Então, vamos começar. Eu queria que a senhora dissesse o nome completo primeiro.

R – Zenaide Maria de Souza. Pântano do Sul. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

P/1 – E a senhora nasceu quando?

R – Eu nasci dia 17 de novembro de 1944.

P/1 – Mas, conta a história do registro?

R – Mas como naquela época, ah, pra registrar, pra não pagar multa, tinha que você registrado no dia do nascimento. Naquela época não havia dinheiro e os pais, meus pais era pescador. Então eles atrasaram. Então eu tenho duas data de nascimento. No registro está 03 de dezembro de 44.

P/1 – Qual o nome dos seus pais?

R – Meus pai era Benja, Ma... Estevan Benjamim da Lapa e a mãe é Maria de Souza da Lapa. A minha mãe nasceu na Lagoa da Conceição e o meu pai aqui na, em Pântano do Sul.

P/1 – A senhora é aqui em Pântano do Sul mesmo?

R – Na hora de nascer, fui pro no colo da vovó. A mamãe era o primeiro filho, não tinha experiência, eu nasci na Lagoa, com uma semana eu vim pra cá. Meu irmão já nasceu aqui.

P/1 – Conta o que seus pais faziam.

R – Meu pai era pescador e a minha mãe era doméstica... Então eu aprendi muita coisa de pesca e gosto muito de pescar com ele, porque sei fazer rede, tarrafa, sei pescar, pesco tainha. São 200 homens e eu que sou a comandante de 200 homens. Sou a única mulher, tainha... O Pântano, porque, antigamente, a praia era muito discriminada, era só pra homem, mulher não podia vim na praia nem passar por cima de uma corda, principalmente se tivesse menstruada ou grávida, ela tinha que ficar em casa quietinha. Mulher das antigas era só pra casar, ter filho, cuidar da casa e marido... Era isso aí.

P/1 – Conta um pouquinho como era na sua casa.

R – A minha casa era, a metade era feita com tijolos e a metade era feita com estuque de bambu com barro. Eu gostava muito quando dava esse Leste que deu hoje, agora, no momento, porque o Leste derrubava todo o barro e ficava só as (gritinhas?) de bambo e eu achava bem bonito aqueles prédios da cidade com aqueles vidros bem piquininhos, eu achava chique a casa era de chão batido, a vassoura a gente ia buscar no mato, a vassoura mansa era pá varrer a casa com aroma e o vassourão era pra varrer o terreiro.

P/1 – Como que era a comunidade aqui?

R – A comunidade era muito unida muito, muito, muito. Tinha umas 20 casas naquela época que eu me criei, muito simples, mas muito ajudando o outro. Uma mãe ganhava um nenê, a filha da vizinha já ia ajudar. A galinha era amarrada no fumeiro que não havia geladeira, conservava ali uma semana. A mãe não saía da cama, 15 dias, era só na cama recebendo caldinho de galinha e cuidado. A gente ia buscar lenha no mato pra cozinhar, lavava-se na cachoeira, que até hoje continua a cachoeira, porque a cachoeira é um tipo Diário da Manhã, Diário Catarinense. ali cria-se toda a história do Pântano e é muito unido, não pode morrer. É duas coisa que não pode morrer no Pântano: é a cachoeira e a pesca da tainha. Se acabar isso

no Pântano, o Pântano está morto.

P/1 – Como que era a pesca da tainha quando a senhora era pequena?

R – Ah, pois é, quando a gente era pequena a gente num podia vir. Só depois de estar cercado a manta grande, que hoje chama cardume, mas para os pecadores era manta de peixe. Então vinha aquela manta grande, vigia, ficava lá no canto da praia e já fazia sinal, se ele tava sozinho... Ele abanava três vezes e aí já se sabia que era pra três canoas, a quantidade de peixe era grande. E se tinha três vigias, uma vinha em cima, outra vinha no meio, outra vinha em baixo e já sabia também. E marcava o manto de cardume de peixe, de 45 mil, assim, era coisa, não tem, não tem explicação. Hoje fala nesse cardume de peixe, mas como a gente viu, assim, dá uma saudade, assim, a gente levava comida, o vigia, que hoje o pessoal chama de olheiro, mas pra nós o vigia continua sendo vigia, ele ficava o dia todo lá no rio das Parcas na solidão, então a gente levava comida, pros pais dos meninos. Meu pai era o patrão, meu pai cercava o peixe, mas eu tinha um vizinho que era vigia, então nós ia levar a comida pra eles e brincar nessa praia aí gostosa. Esse, Costão, nós era umas cabras do Costão, porque pulava, pedra pra nós era coisa pequena, não tinha nada que

nós não pulasse no Costão, fazia muito e

já trabalhava, com sete anos a mãe já começava. Dava quatro bico de renda pra gente começar a trocar, quando começasse a trocar certinho aí já armava

uma renda de biquinho: "Faço renda, sou rendeira, faço renda de biquinho, pra botar na camisa do

meu amor

que é (fitinho?)"(risos) e depois então ali com 12 anos, então a gente já fazia renda pra ajudar os pais para comprar nossas roupa de chita, só roupa de chita metro. Só se fazia, não tinha vestido inteiro, não se comprava nada, só em tecido de metro. E a gente ia pra cidade de pé, ia muito, fui muito pra Lagoa da Conceição a pé pra visitar os meus avós. ali na Joaquina era só um pedacinho de terra. Só uma picadinha, a gente chamada de Picadinha, que era só uma picadinha, que passava uma pessoa só, então a gente fazia renda, né? Com 12 anos a gente já começava, tinha umas paquerinhas. Não tinha namorado, não, mas era só namorado de recado e de olhar. Então, quando chegava às seis horas, religiosamente, a gente arriava a renda e: ‘Vamos brincar de ratoeira!” Ratoeira, a gente juntava aí umas 20 menina e ia brincar de ratoeira, cantar versos. Então uma dizia, assim, pra outra: "Olha, Fulano quer roubar o teu namorado". Namorado de “Oi”, só de recado. Aí a gente dizia: "Não, não, não deixo, eu canto uma ratoeira pra ela" Ah, tava doido que chegasse seis horas, né? Aí a gente dava mão uma pra outra e cantava: "Meu galho de malva, meu manjericão. Dá três

pancadinha no meu coração. Meu galho de malva, meu manjericão, dá três pancadinha no meu coração!" Aí eu queria pra roda que a outra queria roubar meu namorado, aí eu tinha que ir pro meio delas cantar, aí eu cantava assim pra ela: "Não importa que tu calças chinelos que eu já calcei. Aproveita boba, tola restinhos que eu já deixei". Era pra dá de luva de pelica, né? Ou quando a mãe, a sogra não queria que namorasse com filho dela e a gente cantava também: "Minha sogra me tem raiva, minha cunhada também, essa culpa eu não tenho se

seu filho me quer bem. O seu filho me quer bem, o seu filho me adora. Que

tu queiras, que não queiras ei de ser a tua nora!" E tinha muito verso, quando o namorado chamava de feia, a gente também cantava: "Me

chamasse eu

de feia e a minha mãe de feiosa.... Minha mãe é a roseira, eu sou a primeira rosa." E aí a turma cantava: "O galho de malva o vento levou lembrança pro mano que a mana mandou. O galho de malva o vento levou lembrança pro mano que a mana mandou. Eu queria que chovesse, uma chuva bem fininha, pra molhar a tua cama pra você dormi na minha" (risos)

Isso tudo eu canto muito e

gosto de cantar, minha vida é cantar. Eu num canto, eu acho que tu pode deitar mal humorada, mas jamais levantar porque o travesseiro foi feito pra esquecer, né? Aí vem o outro dia e nada como um dia após o outro. "Porque o tempo pediu licença, licença por meio do tempo. O tempo me respondeu, com tudo, tudo tem tempo". (risos)

P/1 – Ótimo! E a senhora aprendeu a cantar nas cantigas de roda.

R – Ah, nas cantigas de roda. Gosto, eu gosto das minhas cantigas de roda, mas eu gosto também de MPB [Música Popular Brasileira], eu gosto do Santana. A música depende é o horário, né? Depende... Gosto muito dessas músicas aí, aquele que toca muito guitarra também que é estrangeiro... O fio de tarde, esqueci o nome dele, uma música bacana, que tem um CD bacana do... É o Santana e o... Ãhn?

P/1 –_____

R – Não, outro. Pink Floyd. Pink Floyd é bom, né?

P/1 – Ah!

R – Ora, num fim de tarde, nessa maré aí é bom pra cantar.

P/1 – Fala uma coisa, a senhora tinha irmãos?

R – Eu tinha um irmão pescador, Ademir Estevan da Lapa.

P/1 – E como que era quando era pequeno, brincar com ele, brigaram muito, brincaram muito?

R – Não,

tu vê a nossa, nós era muito pobre e a gente se unia mesmo, uma vez eu quis dá uma vassourada nele, se a vassoura pegasse eu tinha matado ele (risos)

P/1 – Como que é essa história?

R – Pois eu conto, é que ele estava me irritando muito, muito, muito, perturbando. Aí eu peguei, não era uma vassoura, era uma tranca de fechar a porta. Aí me arrevenegô tanto que eu passei a mão na tranca que quando ergueu o corpo fora, se pega na cabeça, Ademir estava morto hoje. (risos) É porque a gente é muito boa, mas quando a pessoa começa a irritar, tem uma hora que acaba o limite, né? Aí a pessoa: ou dá ou desce! (risos)

P/1 – (risos)

R – Então, nós éramos muito pobres. Eu sempre lembro assim... Eu digo que isso tudo ensinou pra mim, foi um ensinamento e um alicerce que aqui era muito pobre, só vivia da pesca. Tinha, também se plantava banana, tinha café, aonde tem esse loteamento agora aí se plantava arroz. As pessoas não acredita que aqui no Pântano do Sul tinha arroz, mas plantava-se arroz no Pântano do Sul, café, laranja, bananeira. Mas chegava uma época muito ruim do tempo, não dava de pescar, então acabava-se a comida e a farinha a gente comprava no sertão. Então, sempre pai pedia uma farinha na casa do vizinho pra eu, se acabasse o açúcar, era eu que pedia, pra comprar fiado era eu, tudo era eu. E eu acho que isso hoje, pra mim, me ajudou muito, embora triste, assim, não é triste porque era assim com educação, com respeito se pagava, era um empréstimo, né? E quando não tinha comida, eu não comia, minha mãe não comia, mas a comida do meu pai e do meu irmão era sagrada. Nós podia passar com café, mas eles tinha que comer o feijão e o peixe, se não tivesse peixe pra todo mundo. Eu sempre fui muito de dividir, graças a Deus, eu nunca só pensei em mim. Eu penso em todos, eu penso no conjunto, eu prefiro a não comer. Hoje, graças a Deus, tem pra todos, mas se não tivesse, primeiro os meus filhos. Eu lutei muito pros meus filhos estudar pra ser gente na vida, pra ser honesto, tudo. Então era sempre assim, a gente varria um terreno pra ganhar uma banana da vizinha. Era muito pobre, mas era muito gostoso.

P/1 – (A senhora, seu pai e seu irmão que eram homens, vocês?)

R – Não porque o meu pai, principalmente meu pai, ele podia passar sem almoçar de dia, mas à noite ele não passava sem jantar. Se tivesse uma comida só, se tivesse só um pão duro, ele queria, de preferência pra noite, pra ele, e o meu irmão e minha mãe, nós eu herdei isso dela, então sempre a gente dava mais pra eles, né? Porque o meu irmão era o menor e o meu pai trabalhava, né? Então eu me dividia aí com qualquer coisa.

P/1 – E como que era o dia a dia na sua casa? Os pescadores iam muito lá?

R – Ah era! O meu pai era muito infantil. Eu acho que, minha mãe conta, eu não lembro disso, mas o meu pai, seu Luciano, que era o cumpadi que já faleceu, seu Aniba, meu tio (Tinelinhu?)

isso tudo

já faleceu, era uma turma de meia dúzia de homens e a minha mãe conta que elas fazia

renda,

ela vivia tão bem na casa que era do meu avô e o outro irmão de meu pai que era casado e meu avô era vivo, meu avô chamava Benjamim. Então quando chegava a noite, eles fazia um tipo de teatro, que não tinha atividade porque o meu avô botava uma capa grande dessas capas de gaúcho e viajava e era o padre e subia numa caixa grande, que era baú de antigamente, e ia rezar missa. Então, religiosamente toda, toda noite tinha aquele teatro lá. Mas um dia foram carregar o meu avô de cadeirinha e o meu avô caiu por cima de minha tia e quebrou o braço. E ele já era casado, meu avô muito divertido, então eles tinha, assim, uma infantilidade muito gostosa, né? Porque de brincar era o de fazer essas história. E hoje eu tenho um pouco disso também, também gosto de história.

P/1 – Tinha muita festa aqui na comunidade?

R – Ah, muita festa, festa muito boa, era feito barraquinha de bambu. ali no Milton Severo, no Miranda. Então eles faziam do bambu do mato, pegava uns paus, fazia barraca, botava uma vela, era deles navegar com a lancha, e de noite tinha a barraquinha. Então na barraca deles tinha carne assada de panela, tinha carne sopada e nós num comia carne, nós comia uma vez no ano quando tinha festa, né? Era só o peixe. Então era tradição, era barraquinha. Tinha o Mané Cavalinho que era da Trindade e vinha vender doce, cocada, tudo aqueles doce em pedaço. Aí o Mané Cavalinho, lá pela madrugava cochilava e aí a gurizada ia lá, tirava um doce e aí: “Olha, Mané Cavalinho, olha o doce". Aí ele acordava.

P/1 – E a senhora na festa adorava____

R – (tosse) Adorava, desculpe. Na festa era muito boa. O baile começava às oito hora e meia noite já

terminava. Agora, hoje começa de manhã, à meia-noite e termina de manhã, não tem graça.

P/1 – Gostava de comer_________

R – Ah, a gente gostava de dançar. Eu trabalhei muito pra igreja, eu sempre fui muito participativa na comunidade. Eu, pra fazer esse salão, que tem o primeiro salão, o pedreiro comeu seis meses lá em casa, nós dando cama, comida e eu tive dois dias de pé, ele sabe, da Escola de Aprendiz de Marinheiro até o centro da cidade angariando fundos pra fazer o salão. Angariei os fundos, eu fazia rifa, vendia os bilhete e eu entregava os prêmio.

P/1 – A senhora, pra quem vive muito perto do mar, quando é pequena, como que é, assim, essa relação, assim? Ia sempre pro mar sozinha?

R – Não, ia pro mar sozinha tomar banho. Engraçado hoje eles falam, né? de Topless. Mas nós quando era menina tomava banho de calcinha

e os meninos tomava banho pelado. (risos) Não tinha aquela, hoje que tem isso tudo, né?

P/1 – Isso.

R –Ah, mas a gente tomava banho à vontade. Ah, brincava, que calor. Amarrava o copo de capilé, esse groselho, numa corda no mar pra gelar, ô, ia lá pra cachoeira… Fazer gelar, não havia geladeira. Ah, era gostoso, era uma festa pra gente, assim, era tudo muito gostoso.

P/1 – Como que eram as brincadeiras (conta um pouco como eram as brincadeiras aqui na praia?)

R – Ah, é. Pois é, essa brincadeira, por isso que hoje eu num tenho colesterol! Porque colesterol, todo mundo tem colesterol quem vai pro computador. Nós brincava de bandeirinha. Três, quatro horas só correndo, já pensasses? Uma salva a outra, bandeira de salvar, bandeira de esconde-esconde (come, come tofadu?) "Faça o que o sinhô mandar. Faço. Vá atrás de folha pra fazer um bola grande" pra fazer, ali era o (comer tofadu, comer tofadu?). Agora

tu vê que nome é. Eu acho que vem lá dos

portugueses, né? Aí fazia aquela bola grande, ia esconder. "Tá quente? Não, tá frio. Tá quente? Tá frio". Essa, pular de corda, corda nós pulava a tarde toda. Corda dobrada, assim,

pra pular corda dobrada é a coisa mais difícil porque hoje tu faz uma fúria, faz uma fúria, bater bastante com a corda e saía dali morto. Não havia ginástica nenhuma, não precisa

academia, né? E a corda dobrada era assim, tu tinha que pular no meio de duas corda, tinha que saí sem tocar na corda pra ter ponto. Isso tudo contava ponto. E num tinha uma corda no nosso tempo, nós

fazia muita corda de cipó, cipó grande____. Eram duas equipe, era sempre duas equipe.

P/1 –____cozinhar, desde pequininha já cozinhava?

R – Ah, cozinhava. Nós ia muito pra pedra fazer piquenique de domingo. Fazer piquenique, feijão, cozinhar feijão, arroz, batata, abóbora. Passava a tarde toda lá nas pedra

na (Boca da Nega?), lá na Navalha e isso aí.

P/1 – (O dia-a-dia ____ sua mãe ajudava?)

R – Ah, sim (ajudava?) tinha tarefa.

P/1 – Quais eram?

R – Fazer renda, era varrer o terreiro, era trazer areia nos (comi branco?) pra arear as panelas de alumínio que hoje é com bombril, mas areava com paninho e pegava a areia bem fininha e clareava, deixava num brilho que era uma beleza, era assim. Tomar banho era de gamela, esfregão. Hoje é famoso, mas, naquele tempo, todo mundo tinha esfregão, aquelas coisas, um esfregava nas costas da outra.

P/1 – E uma bacia de água?

R – Bacia de água, gamela, meio feito de gamela, naquele tempo não

tinha

nem bacia, não tinha dinheiro pra comprar bacia, era gamela mesmo.

P/1 – Esquentava água.

R – Esquentava água na chaleira, botava água fria e uma

lavava as costas da outra. Fazia massagem. Hoje é tudo chique, mas não era.

P/1 – (risos)

R – Comia muito peixe assado, muito peixe no feijão.

P/1 – Qual peixe comia mais?

R – Ãhm?

P/1 – Qual parte do peixe

que mais come aqui?

R – Tudo.

P/1 – Hum!

R – Todo tipo de peixe. Do peixe come tudo. Só bota a lixa fora e as espinha (risos). Eu gosto muito de peixe.

P/1 – Quais tipos, quais espécies?

R – Olha, tem anchova, tem corvina, tem muita raia (pinconha?), raia é muito boa. A raia tem muito colágeno, não envelhece. E a gente come… Se eu fizer um prato de arraia, tu não vai acreditar como era a nossa comida de antigamente. Nem esse sabe, que mora aí...

P/1 – (risos)

R – Porque a raia, ele sabe o que é a raia, então a gente pegava duas, três arraias, cortava em duas, três metades… Comia bem mesmo! Então pegava uma cebolinha, uma salsinha e cozinhava a raia, separada, temperada. E aí a panela de barro já tava cum feijão. Então fazia aquele pirão de feijão, botava aquela arraia por cima e comia com a laranja doce, a laranja azeda, até acabô a laranja azeda aqui. Laranja azeda é muito bom pra saúde.

P/1 – Hum.

R – E agora só tem o limão. Ah, mas comia um prato

de arroz e feijão, fazia renda, podia correr, fazer renda, apanhar café no sertão, isso tudo a gente, não fui, assim, lapidada, não, criei-me bruto, eu sô pra serviço bruto. (risos)

P/1 – (risos)

R – Mas também não tenho medo de nada. Eu enfrento tudo que tem na vida, porque só tem duas coisas que tu, que tu tem na vida, pode pedir pra qualquer pessoa: é sim ou não. Ele vai só te

dizer pra aquilo: é sim ou não. E a vida é feita de, eu digo a meus filho: pro cavalo ganhar a prata e ouro, eles tiveram que dar uma porção de pulinhos, vencer

uma porção de obstáculos; e a gente, pra vencer na vida, assim, honestamente: ter uma casa, ter um emprego ter um estudo, a gente também tem que vencer vários obstáculos. Aí dá mais força, tá mais preparado, senão passa o obstáculo, se tu não fizeste força, não vale a pena, né? Eu penso desse jeito, né?

P/1 – Vô perguntar outra coisa. A escola não tinha aqui perto, né?

R – Ah, tinha, a escola do primeiro até a quarta série. Nóis dava verso de sete de setembro. Setembro era cantado o Hino Nacional, fazia verso: “Embora muito pequena, cursando a escola primária, gosto muito de estudar e quero sê secretária - secretária do prefeito." (risos) E tinha uma menina que era mais velha do que eu, aí um dia que ela veio dar um verso dela, ela tinha que trazê uma cesta (pigarreou) fazendo que era cheia de maçã, mas aí ela subiu na mesa e ela era muito pequenininha e ela começou dar o verso, mas ela esqueceu: "Há… Maçãs e maçãs, maçãs trago pra vendê", aí ela num soube mais o verso e perguntô pra tia: "Como é, tia? A branca..." A tia se arrenegô e disse: "Desce daí Leoní" Então isso ficou no Pântano. Quando a pessoa esquece as coisas, a gente diz: "Desce daí Leoní" (risos)

P/1 – (risos) Uma história daqui, assim.

R – Éh, história verídica. (pigarreou) Daqui mesmo, acontecida aqui.

P/1 – Ah,

R – A gente brincava muito de Dom Jorge também. Era tipo uma ópera, uma ópera cantada, era assim: duas, três meninas, a gente ia lá no Costão, pegava pedra, fazia divisão da cozinha e da sala, tudo cercada de pedra. E a Juliana era uma moça e tinha a mãe da Juliana. Os meninos tinha vergonha de representar (pigarreou), então a menina pegava um cavalinho de bambu, fazia os cavalinhos de bambu e vinha montada, aí a mãe chegava, saía da cozinha e perguntava, assim, pra Juliana (tossiu), canta: “Oh, que tens ó, Juliana, que está tão triste a chorar?” Aí ela dizia: Não é nada, minha mãe, é Dom Jorge que vai casá. Não é nada minha mãe, é Dom Jorge que vai casá!" "Bem te disse, oh, minha filha, não quiseste me acreditá. Bem te disse, oh, minha filha, não quiseste me acreditá, que Dom Jorge tem bem costume de toda moça enganá. Que Dom Jorge tem bem costume de toda moça enganá!" Eu lhe juro, oh, minha mãe, pelo Deus que nus criou, eu lhe juro, ó minha mãe, pelo Deus que nos criou, que Dom Jorge num se goza de um outro novo amô. Que Dom Jorge num se goza de um outro novo amô." Aí a turma dizia: (batendo palmas) “Lá vem o seu Dom Jorge com seu

burrinho amontado! Lá vem o seu Dom Jorge, com seu burrinho amontado." Aí ele fazia: "Deus te salve , ó Juliana, em tua sala sentada. Deus e salve, ó Juliana, em tua sala sentada". E aí ela falava pra ele: "Inda ontem ouvi dizê, que você ia se casá. Inda ontem ouvi dizê, que você ia se casá". Ele respondia: "É verdadi, oh, Juliana, vim aqui te convidá. É verdadi, ó, Juliana, vim aqui te convidá." Aí ela respondi pra ele: "Espere um pouco, Dom Jorge, enquanto eu vô lá no sobrado. Espere um pouco, Dom Jorge, que enqua... Espere um pouco, Dom Jorge, enquanto eu vô no sobrado buscá um cálice com vinho que eu pra ti tenho guardado. Buscá um cálice com vinho que eu pra ti

tenho guardado!" Aí ele toma um copo d'água, aí diz: "O que fizeste, ó Julina, neste teu cálice com vinho? O que fizeste, ó Juliana, neste seu cálice com vinho? Que me escureceu as vistas, não enxergo meu burrinho! Que me escureceu as vistas, não enxergo meu burrinho!" Aí ele cai e a turma,

ela diz (batendo palmas): “Lá morreu o seu Dom Jorge, lá

morreu, lá se acabou! Lá morreu o seu Dom Jorge, lá morreu, lá se acabô. Foi o único prazer que eu tive, que com outra não casô." (risos)

P/1 – (risos)

R – Mas era muito gostoso, né? Então a gente passava o tempo assim. Também tinha os Ternos de Reis, os Ternos de Natal. A gente esperava o Terno de Reis, fazia um bolo, fazia beiju, fazia tudo

pra esperar o Ternu. Aí quando chegava a noite,

na época de Natal, de Reis, Primeiro do ano chegava o Terno cantando

lá na casa (canta): "Vinte cinco de dezembro, quando galo deu sinal, que nasceu Menino Deus na noite de Natal. Os três reis, por serem santo se botaram a viajar para chegar em Belém antes do galo cantá. Para chegá em Belém, antes do galo cantá. Meu sinhô, dono da casa, faz favô de me escutá, vem abrir a sua porta pra vê o Ternu cantá. Vem abrir a sua porta, pra vê o Terno cantá.

P/1 – Terno___

R – Terno era um homi, uma vareta (som de sino) ting, ting, ting: uma faca, uma vareta e um violão e tinha um pretinho aqui que tocava gaita também. Mas quando chegava lá pelas

madrugada, o meu pai gostava muito de Terno e a turma dizia assim: “Não, vamos acabá com Terno que o Vademá, a gaita do Vademá, o Vademá já tá morto de bêbado, já

num tá mais tocando nada.” A gaita do Vademá tocava assim (canta): “Café com pão, manteiga não. Café com pão, manteiga, não”.

P/1 – (risos)

R – Intão, assim era, muita criatividade, né?

Tinha o Boi de Mamão, religiosamente, na época de Natal, o Boi de Mamão. Boi de Mamão era muito bom. Chegava de tardinha todo mundo dizia assim: “Eu vô fazê uma ceia pra nós e vê o Boi de Mamão.” O Boi de Mamão cantava de casa em casa, era assim também, ó (canta): "Eu quero sabê, ê, ê, quero perguntá, rá, tárárárá tárárárá rárárárárá. Eu queru sabê, queru perguntá rá tárárárá tárárárá. Se me dá licença, maninha, de meu boi brincá, rá. Se me dá licença, maninha, de meu boi brincá, rá. Ô dona da casa, varra o seu terrero, tárárárárárá rárárárárá. Ô dona da casa, varra o seu terrero. Dá uma volta e chama, ô

maninha, ô

meu boi traveru. Dá uma volta e chama, maninha, o meu boi traveru. Ê, boi, o meu boi brinca bem. Ê, boi, brinca bem direitinho!. Ê, boi, não me pisa a ninguém. Ê, boi, não me rasga o lençol. Ê boi, é do lado da guia. Ê, boi, é da Virgem Maria. Ê, boi, é um pau de Araçá. Ê, boi, que atravessa no caminho. Ê, boi, e não deixa ninguém passá. Ê, boi, e é machurra dourado. Ê, boi e ele torna a machurrá. Morreu, morreu, ai morreu, que será de nós? Vaquero chama o Mateu! Ai, Mateu, chama o dotô". Aí o boi machurrava. Machurrá pra nóis é baxava, aí chamava o dotô, vinha um urubu, vinha tudo quanto era bicho e vinha o dotô e a enfermeira, aí era pra benzê o boi que era pra ganhar uma grana, né? Aí chegava na tua casa e dizia: “Eu benzu esse meu boi, com galho de alecrim, o dono da casa que deu dinheiro pra mim”, aí passava o chapéu, aí já tinha, aí a turma que cantava: “Meu boi pode se mexendo”. Aí o boi mexia de um lado pro outro. "Meu boi tá melhor, pode se mexendo, vaquero que chama, maninha o que tais fazendo? Vaquero que chama, maninha, o que tais fazendo?". Aí o vaquero tocava no boi, aí vinha o cavalinho: "Oh, meu cavalinho, cavalo mimoso. Êta, cai pra dentro, ô maninha, não seja teimoso! Oh, meu cavalinho dá (culestra soda?), laça o seu boizinho, ô maninha, não erra a laçada. Laça o seu boizinho, ô maninha, não erra laçada. Meu boi tá no laço, faz a continência". Aí o boi agradecia: "A dona da casa, ô maninha, tenha paciência. A dona da casa, maninha, tenha paciência". Aí vinha a Chula, que era a última cantoria. Mas a Chula vinha tudo quanto era tipo de bicho. Era (benuncia?), era marimbondo, era mangangava, era maricota, era tudo junto. Então era assim: "Ô, meu rico

mestre sala, ô, meu rico mestre sala, venha, venha a requebrada. Venha, venha a requebrada. Vem trazendo as suas dama, vem trazendo as suas dama junto com seu boi lavrado, é junto com seu boi lavrada, aiá. Olha o marimbondo, marimbondo sinhá. Ô bicho danado, marimbondo, sinhá Ele me mordeu, ô marimbondo, sinhá. A tianinha mandô me chamá, que tinha três coisa para me dá: batata cozida, mingau de cará, peixinho do rio, camarão do mar, quem tem seu amô pode arregalá. Ai, boi, bem mal. Cadê nossa Maricota, cadê nossa Maricota que ainda não apareceu? Ai, que ainda não apareceu, ai, ai. Coitadinha, mora longe, coitadinha, mora longe, no caminho anoiteceu, ai, no caminho anoiteceu, ai. Ai,

Maricota, abraça todo mundo, Maricota" e Maricota ia abraçando. Aí a bicharada: "Lá de dentro vem saindo, lá de dentro vem saindo um lote de mangangava, um lote de mangangava, iai. Nosso boi já vai brincá, ô mato tiro, tiro lá. Aí vai brincá mais adiante, ô mato tiro tiro lá. Aí entra em outra casa.

P/1 – E...

R – Isso dá saudade, né, cara. Essas história que a gente viveu que num tem hoje. Isso me dói até o coração (risos) por isso que eu tô sempre cantando.

P/1 – E Boi Mamão.

R – Boi do Mamão porque era feito do mamão, foi criado do mamão pra fazê a cabeça do boi.

P/1 – _____

R – É uma espécie de Carnaval, Meu Boi Bumbá

lá do Nordeste, essas coisas assim.

P/1 – E é uma vez por ano___?

R – É, por ano. É tudo cheio de pintura, coreografia, né, que chama,

tinha que dançar: "Ai boi, ai mestre sala, ai (bem mal, boi?)"

Aí o boi fazia

uma roda, tirava todo mundo

de lá quando a roda ia apertando, ele abria a roda num instante, era o único que brincava debaixo do boi.

P/1 – Na verdade ele passava por aqui ou cês iam atrás dele?

R – Ah, a genti ia de casa em casa, corria as casas toda do

Pântano. O Boi de Mamão era sagrado. Uma vez o Aderbal mandô buscá o Boi de Mamão que era o mais bonito da ilha pra cantá na casa dele.

P/1 – Não tinha uma história de assombração?

R – Ah, eu tenho uma tia que tem 96 anos, ela tá num asilo agora, mas a minha mãe conta que ela foi mordida pela bruxa. É a mordida pela bruxa é assim: ela chorava a noite toda, os bracinhos, o corpinho dela amanhecia todo roxinho, o meu avô gostava muito, era muito pescadô, labradô, Mané Chico da Lagoa, era parecido com Getúlio Vargas,

andava só a cavalo e lenço no pescoço e chapéu. Era o mesmo tipo que Getúlio Vargas, assim, então um dia um vizinho chegô pra ele e disse: "Ô, Mané Chico, tua menina tá melhor?" Ele disse: "Não!" "Cê num acha que ela tá embruxada?" A gente chamava assim. "Eu acho que tá embruxada e eu já sei quem é a bruxa", meu avô disse assim. E aí passou-se um dia e eles foram pra Lagoa, que aonde tem uma latitude, ali tinha uma casinha do meu avô, ali a gente ia pra Barra da Lagoa, ali era o caminho da chuva, pra ir pra Barra da Lagoa é por ali, então ele tinha venda bem no pé do morro. Aí um dia ele foi de noite contá história pra dormir, aí quando o homi chegô: "Ô, Mané Chico, sua filha está melhor?" “Não, não tá milhó, não, mas eu já sei o que é, eu acho que ela tá embruxada!” Aí chegô uma

senhora pra comprá no balcão e meu avô disse:

"Mas eu desconfiava da dita cuja, né?” Mas eu já sei como que eu vô pegá a bruxa!" Aí ela virou-se pra ele e disse: "Como que tu

vai pegá a bruxa?" O meu avô disse: "Olha, eu vô na cidade, compro a mostarda preta, eu tenho em casa meia, meia arquei, era uma coisa de

madera pra medir

farinha, era o salamim, uma meia quarta, uma quarta, um meio alquei" Dois alqueires de farinha era 45 quilos. Ele disse assim: "Então eu pego meio arquê, quando ela tiver chorando, eu levo meio arquê pru quartu, levo uma vela, acendo a vela, coloco debaixo do meio arquê, joga a mostarda preta em cima dela e rezo o Crê em Deus Padre, que a bruxa, eu queru vê se ela não fica ali pelada. E eu vô pegá ela, e vô levá a chicote pro marido." Aí ela discutiu com meu avô: "E tu tens coragem?" "Pois eu tenho!" Ela disse: "Eu sei que tu tens!" Daquele dia em diante, ela ficou boa, não precisou mais remédio. Até hoje ainda tá viva.

P/1 – E a senhora, nunca viu nada?

R – Ah, eu sô protegida, ah...

P/1 – Protegida?

R – E sô a rainha do Yemanjá. Eu faço parti de Yemanjá. (risos) Mas aqui não tem medo. Eu saio aqui três hora da madrugada, vô pra casa que não vejo nada.

P/1 – Quando a senhora era pequena, a senhora não tinha medo de bruxa, nem nada?

R – Não, a gente quando é, aqui no Costão mesmo______de fantasma dessas coisas, né? Meu avô contava muita história da Lagoa e a bebida do gaúcho, quandu a gente num quiria fazê renda porque a renda doía muito as costas,

aí uma

já atracava já com a ôtra____pedir pra sua mãe pra gente e lá de tarde e na (Bibi do Araújo)

P/1 – Ahãm.

R – Aí, tá. Passava (Delza): "Ô dona Zica", o nome da minha mãe é Maria, mas o apelido é Zica. "O que é?" "A senhora deixa a Zenaide ir na (Bibi do Araújo) rezar numa roupa?" "Vai, mas não demora!" Ah, custô. Primeiro brincava bastante, depois benzê na (Bibi do Araújo?). A (Bibi du Araújo?)

vinha, né? Benzê. "Olha o quê, meninas, o que que vocês querem?" A menina: "Minha mãe mandô que viesse aqui!" "Ah, entra aí", já pegava um galho de alecrim. "Oh, virgem, oh, virgem pura. Eu é que te benzo e as palavras de Deus é que te cura". Quando Deus

andava pelo mundo

curando a (a maior?) de inveja, o maior de raio. Isso

num come, é de cumê,

isso num bebe, é de beber. Isso num anda, é de andage. Que vai com as

onda do mais sagrado. Onde não vejo o galo cantá, nem passaram os cristão batizados. Oh, virgem, oh virgem pura, eu é que te benzo e as palavras de Deus é que te cura." Aí parava a reza: "Xô, ti, xô, ti, galinha. Óh, menina, como que tá tua mãe, como que tá o teu pai?" Era assim que fazia. E nóis____ (Bebia du Araúju?) era (Bebia du Araújo?).

P/1 – Bebia du Arauju, é?

R – Bebia du Araújo. E tem a irmã do Aranti, aqui, que ela benzi. Eu tinha uma cunhada muito “irraivada”. Ela era toda nervosinha. Então um dia ela chegô lá na, na, na Ilda e

pediu: "Ô Ilda, cê qué mi benzê de… Visita?"

A Ilda disse pra ela:

"Benzo".

Aí começô: "Pedro Paulo foi à rua, encontrô com Jesus Cristo, Jesus Cristo perguntô: ‘Paulo o que é procura o

Senhor, eu vim a procura de Zipi, Zipela, Zipelão que sai do corpo daquele cristão’. Ele disse: ‘Pega a lã do carneiro, a lã do carneiro, o azeite de oliva que benzo!’" E era três vezes isso. Mas aí na segunda vez, ela parou e começou a conversar com a cunhada, e conversá e contá e esqueceu da reza. Aí perguntô: "E aí, onde é que nóis tava?" “Ah, tu tava em Roma.” (risos)

P/1 – (risos)

R – A mulher ficô “arrenegada” com a reza que ela parô, ela se perdeu: "Onde é que eu tava?" "Ah, tu tava em Roma!" (risos). Tem muita história.

P/1 – A senhora tinha algum sonho de criança? “Ah, eu

eu quero ser…” Tinha uma coisa muito marcante?

R –

Não, eu sempre fui, assim, muito politiqueira, muito de cantá, muito de dizê os causos da vida. Eu gosto da vida e a minha mãe conta que quando eu tinha uns quatro anos de idade e mal sabia falá, mas ela escrevia uma sacolinha e botava um bilhetinho dentro das compras que queria e eu levava pra venda e o moço entregava. Abria a sacola, tirava o bilhete e eu levava as compras. Até que um dia eu

fiz as

compras e quando cheguei em casa e só cheguei e desmaiei. Desmaiei

era umas 11 horas da manhã. Aí ela disse que eu morri, praticamente morri. Não tinha médico, não tinha nada, e lá na

__tinha uma benzedeira, uma parteira. Aí ela disse que pegô um vestido meu pequenininho, deixô lá morta com os vizinhos olhando e foi tirá uma consulta, como ela disse, tirá uma consulta. Aí chegô na

tal da Luizinha, aí botô o vestidu, a Luizinha começô a benzê e ela disse: "Não, tua menina vai melhorá". Isso foi um serviço que ela foi fazê pra ti e os vizinhos ficaram com inveja. Aí a minha mãe disse que foi uma vizinha que tinha só dois homens, eram os netos, mas muito levados e num faziam compra, ela dizia: "A

menina da Zica é tão pequena e já vai na venda. É tão esperta!" Aí eu num falei. Fui falá duas hora da madrugada, só. Naquele tempo que eu nasci, em 44, o Aderbal Ramos da Silva era cadidato a governador. Era o PSD [Partido Social Democrático] e o____. Se trazia muita fotografia. Quem era do PSD botava muita fotografia nas casas e tudo. Aí, ao invés de chamá o papai ou a mamãe, quando eu acordei diz que eu disse: "Lá está Aderbal Ramos da Silva" (risos). Onde o sinhô acha que eu já vim doida daquela época? Porquê, eu não sei. Eu tenho uma facilidade cum (ligação?) assim, qualquer um, tudo. Para mim nada é difícil, assim.

P/1 – A senhora disse do vestidinho. Qual era as roupas que usava?

R – Ah, era tudu vestidinho de chita, rapai, tudo arremendado. O vestido rasgava, a gente fazia remendo. E hoje já fazem a calça rasgada ou bota uma lista de ôtra coisa aí, né, mas a gente era remendado. A mãe conta que o meus tios pescava no Rio Grande do Sul, então de seis em seis mês eles vinham pra casa, traziam um bom dinheiro guardado. Então elas tinha uma irmã de criação também que eles criaram, tinha um tio muito engraçado. Aí elas foram na cidade, compraram tudo vestido de seda pras filhas e pra essa de criação compraram um vestido de avuá. Era um tecido, mais simples. Aí chegaram em casa e meu tio começô a renegá a pequena, né? "Sapeca pai, sapeca mãe, sapeca filha. A Dilma é da família, também tem que sapecá. Todo mundo vai de seda, só a Dilma de avuá". Ah, diz que essa Dilma sapateava (risos), e era assim,

muito criativo, muito de brincadeira. Qualquer coisa era uma criatividade aqui pro Pântano. O Pântano é assim, eu acho que é ilha toda. Eles chama de Manezinho, mas os Manezinho é espertinho também, dá uma de tolo, mas no fundo eli num é não.

P/1 – Mas o que é Manezinho?

R – Manezinho é pejorativo pro povo da cidade com o pessoal da ilha, da Ribeirão, Pântano do Sul, Lagoa da Conceição, ______ não tem

estudu, simples, roupinha simples. Então o pessoal da cidade

é que chamava

de Manezinho. Agora eles queri… Mas agora Manezinho somos nós, nem o Guga é Manezinho. Então era um pejorativo. Abaixo tinha o Mercado Público, onde o pessoal de toda a ilha se encontrava ali. E o Ponto Chique era na Felipe Schmidt. Agora

eles roubaram até o nosso ponto de encontro e ficaram com o Mercado Público e acabô o Ponto Chique. Era tudo chique. Manezinho era pejorativo.

P/1 – Ah, é. Vou te perguntá uma coisa. O Mercado Público

fica lá ainda.

R – Fica.

P/1 – A senhora ainda vai lá.

R – Ah, a gente vai lá pra comê um pastel de queijo agora no Mercado, quanto é? É dez reais. Ficô só pro chique, só pru famoso, só pra celebridade. Mas a gente ainda passa lá pra comprá as

coisa. O mercado, né, as nossas lojas ainda ____de mercado, né?

P/1 – E tem algum amigo ou amiga de infância que a senhora lembra muito bem?

R – Ah, tenho vários.

P/1 – Vários. Tem alguma história pra contá pra mim?

R – Não, eu tinha até uma históriaengraçada porque é... Aí os meninos tinha o direito de estudá na cidade, assim, tinha a escola técnica e tinha aqui o Idival, minino, segundo organizaram, mas também gostava de fazê bagunça, de robá uva na casa dos outros. Robá galinha de noite, fazê aquela galinhada. E as coisas roubada, assim, pra ele é o que tinha

mais sentido, né? Então a pessoa usava isso. Aí ele num queria que o pai soubesse e eu tinha um vizinho que era primo dele. E era muito bagunceiro, esse não tinha medo de fazê bagunça e ele chegava sete hora da noite, o Pântano está em

silêncio. Aí ele chegava pra renegá esse Vadu, o nome é Edival, mas a gente chama

ele de Vadu e ele

chegava ali no Vilsu___ah, botava a boca: "Vaaadooo". Ah, o Pântano todo escutava, né? Ele fazia pra renegá o Vadu. o Vadu vinha pra querê matá ele, porque não queria que o pai soubesse que ele fazia essas artes que era enérgico. E tem uma história muito engraçada quando inaugurou o cemitério. Eu sempre digo prus meus filhos: "Hoje eu nunca comprei sapato grande pra vocês porque naquele tempo a gente usava sapato com dois dedos maior. Era sandália de (celulóide?), hoje é sandália plástica, hoje é sandália da Xuxa, mas naquele tempo era de (celulóide?). E a minha mãe comprou uma sandália branca, assim,

pedaço pra eu crescê e a sandália serviu pra uns dez anos. Ela ri, quando eu disse pra ela, ela ri. Então, foram inaugurá o cemitério, fizeram o cemitério ali, mataram dois boi. Ela mesmo daquela, do Sucupira, não tinha ninguém pra morrê, pra ____ fizeram dois bois na churrascada lá no cemitério.(risos) . Se contá isso, vai passar no

filme, aquele filme diz que é história, mas aconteceu aqui, foi verídico mesmo. Foi um dia que nunca me esqueço. Fizeram uma vala bem grande e era (risos) botaram a carne tudo num bambu e o prefeito ainda deu umas faquinhas bem pequenininha pra cortar carne (risos) e nós fomos, mas nesse dia choveu e eu fui e inaugurei a sandália de… Molhei a (celulóide?). Ah, era uma turma tudo de

menino e menina, ah, era tudo de areia. Dá um passo, a sandália saía do pé porque era grande. Eu fui na frente, a sandália ficô atrás. A farra, a farra e aquilo me marcô eu até hoje. Eu tive oito filho e nunca comprei um sapato grande pra eles! (risos)

P/1 – A senhora tinha quantos anos na época?

R – Ah, eu tinha dez, 11 anos. Eu nunca comprei um sapato grande.

P/1 –Risos. Engraçado.

R – Ai...

P/1 – Qual foi a primeira idade que a senhora foi__pescá, mesmo?

R – Ah, pescá? Aí com dez, 12 anos. Eu fazia muita rede. E essas rede, essas tarrafas aí, ó!

P/1 – Ãhn...

R –

Eu ajudava muito meu pai a torcê boia, porque naquele tempo era corda de cipó. Nós ia no mato tirá cipó pra fazê as cordas, não tinha náilon, não tinha nada. Oh, o (xaxu?), ó, esse que tá aí, isso (xaxu?) isso é a âncora de antigamente, era tudo assim as redes, aquilo ali era cortiça, pra fazê hoje é tudo cortiça de isopô, é tudo de ferro, é tudo náilon, mas issu tudo

ia buscá no mato. Fazia cortiça na mão, fazia fogueira bem grande, ficar aqueles ferrus pra furá, fazê o furo pra

pudê botá o cipó na rede. Era tudo artesão. Tudu, tudu, tudu artesanato.

P/1 – O que a senhora sentia quando foi pro mar, mesmo,

pescar pela primeira vez?

R – Ah, legal. Do mar eu adoro, eu não adoro avião. Se mandar eu pros Estados Unidos de navio eu vô,

de avião eu num queru é pra canto nenhum. Fui convidada para ir pra Portugal, dez dias pra gente e passiá, tudo por conta, eu não quis ir de avião. Ah, de navio eu vô até o fim do mundo. Agora de avião, não.

P/1 – A senhora___

R – É legal porque pra gente, assim, não pegamos tempestade, era remo. Ia da ilha para Igarapava, Pinheira, tudo navegando, então pra gente navegá já faz parte, né? Já nasceu navegando.

P/1 – E é de dia, é de

noite, como que é?

R – Não, mais de dia. Eu pescava também muito no Costão.

P/1 – Hum.

R – Matava muita garoupa, muito marimbau vem na pesca lá no Costão, pegá um robalozinho, uma pescadinha.

P/1 – E aí a senhora casô com que idade?

R – Eu casei com 21 anos. Eu casei em 64.

P/1 – E aí teve, esse restaurante sugeriu quando?

R – Depois do casamento porque aí

eu me separei, tinha 21 anos de casado e já tava com oito filhos e eu tive paixão de não estudá, então eu

queria deixá prus meus filhos era

o estudo. Eu tava naquela casa e não tinha como eu estudá elis, então eu vim pra praia, criei um quiosque. Aí os filhos disseram pra mim: "A senhora não bota um quiosque na praia". Eu disse: "Por quê?" "Vão fazê queixa com o prefeito e o prefeito derruba!” “O prefeito derruba se eu fizer, se eu não fizer o prefeito num derruba!" Aí eu fui lá na madeireira e falei com eles e disse: “Eu não tenho dinheiro. Eu queria que vocês me vendesse____pra mim. Pode sê madera inferior porque o quiosque pode sê derrubado, mas eu vô fazê". Aí fiz o quiosque. Quando quiosque tava pronto pra botá luz, aí fizeram queixa na prefeitura, o prefeito mandô desmanchá o quiosque. Aí, cheguei em casa, assim, apavorada, vim aqui e

vi tudo no chão, muito triste, mas eu disse pra eles: "Não, nós vamos fazê o seguinte: nós vamos vendê a casa e a gente vamu comprar um terreninho pequeno e fazê uma casa de madeira", que a minha é de material, "mas deixar de estudar

vocês num vão deixá, isso

eu garanto pra vocês!” Aí no outro dia o prefeito mandô me chamá. Aí entrei na sala dele, aí ele perguntô se eu não sabia que era proibido. Eu disse: "Será que na ilha não tem tantas coisas que são proibida e estão de pé? O sinhô num sabe o que eu tô passando e nem tem culpa porque eu tô passando, mas tô passando por isso, isso, isso e isso. E quando acabô de me escutá, ele passô a mão no telefone e mandô o fiscal da prefeitura vim aqui e fazê um quiosque pra mim.

P/1 – Aí foi surgindo o restaurante?

R – Aí aos poucos foi surgindo o restaurante. Aí os filhos estudaram. Já tão quase tudo estudado. Eu tô gerando emprego pra comunidade pra mim, que é a minha vida. Há coisa melhor do que isso? Só dois disso, né? (risos)

P/1 – (risos) E como surgiu o nome Pedacinho do Céu?

R – Pedacinho do Céu surgiu porque eu tinha me separado, eu tenho minha filha mais velha que diz que o nome é dela ______ pra ela num, num

discriminar muito, tem que apoiar. Então um dia eu tava aqui sentada sozinha, a gaveta era deste tamanho, não tinha dinheiro, hoje a gaveta é desse tamanho e tem mais dinheiro, gaveta foi feita a facão, nunca mais esqueço e ela, as meninas faziam uns salgadinhos pra mim em casa: coxinha, tudo, fritavam. E eu tinha uma estufazinha e eu

cozinhava o milho, cozinhava em casa pra trazê pra cá. Um dia eu tava aqui sentada olhando pro céu. O céu tava muito bonito, um ar muito e eles queria botá, assim, um nome em inglês tipo McDonald's, aquelas coisa assim, né? Fizeram um desenho dos bonecos. Aí eu disse: "Não, não é bem assim, o bar vai sê Pedacinho do Céu" e é registrado como Pedacinho do Céu, tudo. E ficô assim.

P/1 – E a senhora cozinha?

R – Ah, graças a Deus. Eu sô artista de cozinha. Eu quiria fazê um cinema pra cozinhá ou uma novela. Sô cozinheira fazendo comida e caçando (rainha?) ___, tainha na brasa. Eu queria participar, é loca mesmo, né? Essa mulher é

louca!

P/1 – Que louca, delícia!

R – Eu num acho que eu sô bem certa também, né? Porque eu tenho a turma toda da minha idade, mas eu num sô como elas. Elas são diferentes. Elas são bem quietinha lá no canto, elas têm medo de participá. Eu faço entrevista pro Jornal Nacional, eu faço entrevista pra tudo. Eu ganhei, o que que eu ganhei, não falô, eu fui premiada duas vezes!

P2 – Troféu!

R – Troféu, dois

troféus, que troféu,_____de ganhá esse troféu, é o bonezinho da ilha, é, eu ganhei junto com a Débora

Bloch do Rio de Janeiro, Mulheres com Arte, né? Essa, a prefeita me entregô. Cê sabe quantas pessoas forum homenageada? Atendi o telefone, atendi aí. “Si fô uma tal du jornal diz que eu num tô, não quero mais falá”, aí eu dei esse título: "Mulheres com Arte". Aí

a prefeita, ela que me entregô em mãos e ela gosta muito que eu faça versinhos, na hora eu fiz um verso, assim, pra ela: "Senhora dona prefeita, quero lhe agradecê por essa grande homenagem que acabo de recebê. Enquanto estivé viva, dela num vô esquecê." Aí o Esperidião tava junto. O Esperidião tinha perdido a eleição. Eu fiz pro Esperidião: "Agradeço Esperidião que está aqui presente, esqueça o que já passô, agora é bola pra frente. Daqui um futuro próximo, será nosso presidente!" Ele falô: “Faz de novo, Zenaidi!" (risos)

P/1 – A senhora é dona de restaurante e pescadora

também.

R – E pescadora, e mãe.

P/1 – E mãe.

R – Ainda tenho dois

netos, criando dois netos.

P/1 – Jornal?

R – É.

P/1 – Folha de São Paulo?

R – É.

P/1 – E a senhora comanda um monte de homens pescadores?

R – Ah, 200 homens. Pega a mão nu____pega essa cortiça pra esse peixe num fugir, rapaz. Corta a rede, corta, abre, abre, abre essa rede, abre, abre! Quanto mais peixe, só eu e as mulher fica com ciúme, mas elas nunca chegaram perto pra sê. Eu sô uma mulher livre. Eu sô igual uma borboleta com duas asa pra voá. Os filhos tudo me apóia, num tenho marido, elas têm marido, né? Ah!

P/1 – E os peixes que ___são tudo frescos?

R – Tudo, tudo. (canta) "Quem é du mar não enjoa, não enjoa", lárárárárárá. Eu gostu muito de cantá: "Naquela mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim. Eu não sabia que doía tanto, com a mesa no canto, com a sala e o jardim, se eu soubesse como é a vida, essa dor tão sofrida, eu não sofria assim. Agora resta uma mesa num canto, ninguém mais se fala do seu bandolim. Naquela mesa está faltando eli e a saudade dele está doendo em mim.”

P/1 – Que ótimo! Eu vou terminar a ___ agora. Eu quero perguntar, então, pra senhora, primeiro, o que achou de ter falado comigo,

aqui na entrevista.

R – Não, pra mim, assim, é muito importante a gente divulgá a nossa comunidade e a nossas história e servir

alguma pessoa que procuram disso pra defendê a sua tese, fazê as coisas, ficá de história pra outros lugares. Não há mais nada melhor do que convivê em conjunto, né? Participá. É dando que se recebe. É perdoando que se é perduado. E é morrendo que se vive para a vida eterna. (risos) Mas se a morte é um descanso, eu prefiro vivê cansada.

P/1 – (risos). Muito obrigada___Tu é linda, viu.

R – Tu achô? Vai ficá no livro?

P/1 – (risos) Vai, ô!

R – Não, eu vô falá cum sinceridade. Tu tens mais dificuldade em lugares contá história, num tem? As pessoas, assim?

P/1 – Sim, tenho mais dificuldade, mas com a senhora não.

R – ____

P/1 – Brigado. Vô pará senão a gente vai ficar conversando.