Meu avô era um contador de história, ele contava muitas histórias e algumas eu nem acreditava, todo mundo falava seu avô é mentiroso, conta muita história mentirosa, essas histórias do mato, de caçada, de se perder no mato, de precisar usar as ervas, sempre que entrava na mata tinha que colo...Continuar leitura
Meu avô era um contador de história, ele contava muitas histórias e algumas eu nem acreditava, todo mundo falava seu avô é mentiroso, conta muita história mentirosa, essas histórias do mato, de caçada, de se perder no mato, de precisar usar as ervas, sempre que entrava na mata tinha que colocar uma erva para os seres da floresta, para não se perder. Ele passou dias perdido no mato por não ter seguido essa tradição de pedir licença e de se conectar com aquele espaço, e deixar um presentinho para esses seres da mata. só depois de adulta foi que eu fui vendo aquela história com meu avô contando não é mentira porque eu vejo outras histórias contadas também em outros territórios que eu já passei, sobre essa questão da resistência indígena e dos conhecimentos tradicionais.
Minha vó teve que sair da sua terra, inventar um nome, porque não tinha nem registro de nascimento nem nada, chegou muito nova e eu me indignei muito com isso, porque foi tirada da minha família a possibilidade de nascer dentro do seu lugar no mundo, eu nunca me senti bem estando em Salvador. Eu não nasci na aldeia, mas com ela muito presente, que sempre esteve ali levando essa memória da resistência do povo e a memória da ancestralidade indígena muito forte. Eu ficava sempre esperando as férias, para poder ficar com a minha avó e poder caminhar pelas roças, como a gente chamava na época, para poder ter mais contato mesmo assim com a terra, com o campo e a floresta.
Eu não vislumbrava naquele momento retomar para o território, retornar para terra, para o meu lugar no mundo, que eu teria esse lugar em uma aldeia também, mas eu queria ajudar que nenhum outro povo tivesse que sair no seu território, devido às injustiças e proteger mesmo os povos indígenas, proteger os territórios indígenas, foi essa minha motivação e quando eu tinha 16 anos eu decidi fazer direito. Na universidade eu já cheguei como potyra, porque eu comecei na escola e recebi esse nome de uma professora, isso com 10 anos de idade, e na universidade eu já era potyra, eu não me apresentava como Ivana, sempre me apresentei como potyra, então embora exista esse preconceito assim... não o preconceito de fazer bullying esse tipo de coisa, mas de visibilidade mesmo, porque eu estava ali na universidade querendo trazer a temática indígena para os momentos ali das aulas, das conversas, lembrar para todos e todas ali que existia e existe um povo que tem direitos e que dentro da Universidade estava totalmente invisíveis. Talvez eu tenha sido a primeira indígena a ingressar nessa universidade, talvez eu tenha sido a primeira indígena se formar em direito nesta Universidade, mas essa Universidade não me acolheu como uma indígena que precisava também ser. Eu fui oprimida ao me identificar como indígena na universidade por colegas, mas como eu vou dizer... Eu não valorizei esse sentimento deles sabe, eu resolvi fazer a minha militância, e ignorar também eles, tentar fazer a minha parte ali de trazer a temática indígena para sala de aula. Tiveram dois professores que me apoiaram e eu vivia na biblioteca, todos os livros que tinha a palavra índio, eu li.
Em 2004 eu me formei e 2005 eu fiz minha OAB, e aí me ofereci para ser voluntária nessa instituição Thydewa, e a minha primeira missão foi ir pra uma retomada. Estava tendo no povo Pataxó Hã Hã Hãe que fica em Pau Brasil, com uma série de retomadas, nesta época existia um projeto chamado índios-online, que é uma mídia livro indígena, e aí eu já fui com essa missão de estar assessorando a comunidade nesta parte da documentação, e da divulgação do que estava acontecendo lá. Eu nem sabia o que era retomada, nunca tinha ido assim em comunidade indígena, mas eu aceitei o desafio.
Botei a mochila nas costas e uma sacolinha de itens de alimentação, fui bater lá na retomada,pra mim foi bem decisivo, porque eu vi que era aquilo que eu queria fazer mesmo, nós estávamos numa retomada com conflito diário de pistolagem, muitos tiros, tiroteio mesmo, a gente começou a fazer o trabalho de divulgação, tinha que sair escondido, andar pelo mato pra poder levar a informação até onde tinha internet. Teve um momento que a gente não conseguia sair mais, por causa dos pistoleiros, que a gente só conseguiu sair com a reportagem que foi lá fazer uma matéria, mas aquilo ali pra mim foi decisivo, é isso que eu quero, quero ajudar o meu povo. Foi um divisor de águas para mim estar naquele ambiente, embora perigoso com risco de morte, porque era tiroteio todas as noites, a parte de tarde começava e ía até o outro dia de manhã a gente ficar cercado por pistoleiro, todas as mulheres tinham que ficar abaixada dentro do quarto, mulheres e crianças, mas para mim foi decisivo, eu pensei se eu puder ajudar com o que eu tenho de conhecimento, eu quero ajudar. Daí para lá aí, depois desse 2005 eu fiz alguns outros trabalhos voluntários, de forma voluntária, nessa instituição em 2006 foi convidada para ser diretora executiva da Thydewa.
Eu sempre falava que eu queria passar um ano em alguma comunidade, para viver aquele cotidiano, abandonar tudo, então eu fiz isso. Eu passei um ano, nem falava com a minha família nessa época, aí passei um ano sem dar notícias à minha família, então eu comecei a viver aqui do artesanato, eu passei um ano afastada de tudo, foi o ano, final de 2007 e 2008, o que eu vivi realmente do artesanato, vivendo o cotidiano mesmo aqui da comunidade, construí minha casa de taipa, com a ajuda da própria comunidade, uma realidade totalmente diferente da minha, que vinha de uma classe média, onde tinha uns pais super provedores, mas assim foi muito importante para mim, que também foi um marco nesse momento de dizer que era isso que eu queria para minha vida. Depois que eu retomei o contato, meu pai todo dia perguntava, quando você vem pra casa, você é uma advogada, você precisa trabalhar, você não quer trabalhar? Eu quando estava lá pegando lenha na mata para poder cozinhar, eu não estava só, eu estava com outra parente, então ali enquanto estava conversando com ela, eu estava aprendendo com ela. Eu lembro quando eu cheguei, eu passei fome dois dias, porque eu fiquei nesse mesmo coió que eu morei depois, mas eu não sabia como acender um fogão de lenha, eu tinha comida, mas depois não queria mais comer salgadinho e nem biscoitinho, queria comer comida, mas também não queria ir na casa de ninguém ficar pedindo, quando eu decidi realmente ficar, esse meu aprendizado do ficar foi difícil para mim, ir buscar água, pegar a lenha, acender o fogão de lenha, não tinha energia, não tinha como guardar um alimento na geladeira, porque não tinha, então eu tive que aprender a conservar alimentos da forma dessalgando, se fosse carne fresca tinha que cozinhar tudo, esquentando um pouquinho todo dia para não perder, eu tive que reaprender, uma coisa que eu sempre via minha avó fazendo.
Quando a gente puxou um gato de energia, teve essa ideia de puxar um gato de energia, para ter uma energia na cabana, que é o ponto central da nossa aldeia, aí colocaram uma televisão dentro dessa cabana. Foi assim, acabou, porque a gente se sentava todas as noites em roda na fogueira, para ler, eu lia alguns livros da coleção na visão dos índios, nossos anciões contavam as histórias, ou seja, era um momento muito rico, e com a energia isso foi acabando, hoje em dia não tem mais, nós temos o fogo no nosso ritual em todas as festas, mas tem muitos parentes aqui que não vem para o ritual, porque está assistindo televisão. Então, a gente entende que a energia trouxe vários benefícios, porém ela também tirou muita coisa da nossa riqueza, mas também tem a história de uma vida que foi salva pela internet que um parente foi picado por cobra e conseguiu avisar. Então tem os dois lados.
Desde 2019, eu saí da Thydewa e passei ser uma das gestoras da rede, junto com outras mulheres, então naquela mesma proposta dos projetos que a instituição Thydewa lançou, depois de um certo tempo as redes elas iriam caminhar sozinhas, e aí eu saí e comigo levei eu levei a rede junto com outras mulheres, e hoje nós estamos aí tocando essa rede, que não é uma rede que tem CNPJ, mas é uma rede de atuação no enfrentamento a violência, nós fazemos reuniões online, neste momento de pandemia, coincidiu esse momento de saída com a pandemia, que não nos permite mais em ir
até as comunidades, como era a nossa metodologia de ir até as comunidades, fazer rodas de conversas, usar o Teatro do Oprimido, para poder trabalhar às questões dos direitos das mulheres, então com a pandemia a gente não pode mais ir até as comunidades, então a gente faz tudo online, hoje em dia, oficinas sobre direitos, campanhas sobre os direitos das mulheres, o fortalecimento das mulheres, e eu hoje atuo, eu me especializei em Direito das mulheres, direitos de gênero.
Eu criei uma meta na vida com 16 anos, e saber que hoje, eu estou com 45 anos, que eu consegui realizar o que eu tinha me proposto para minha vida, embora tenha tido muitos conflitos familiares, devido a minha
decisão de estar militando, de estar assumindo a minha identidade indígena, acima da minha profissão de advogada, eu tive muitos conflitos com meu pai por isso, mas acho que hoje ele reconhece e aplaude tudo que eu fiz, e toda a minha trajetória com meu povo.Recolher