Museu da Pessoa

Vocação para o voluntariado

autoria: Museu da Pessoa personagem: Paulo Guilheme Martins da Rocha

Programa Conte Sua História
Histórias de Esperança – 29 Anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Paulo Guilherme Martins da Rocha
Entrevistado por Rosana Miziara e Sonia Teller
São Paulo, 27/08/2014
HECE_HV012_Paulo Guilherme Martins da Rocha
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella

P/1 – Oi Paulo, você pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?

R – Meu nome é Paulo Guilherme Martins da Rocha, eu nasci em São Paulo, no dia 7 de agosto de 60.

P/1 – Paulo, seus pais são de São Paulo?

R – Minha mãe era do interior de São Paulo e o meu pai era de Pernambuco.

P/1 – Vamos começar falando um pouquinho da família do seu pai. Seus avós paternos são de Pernambuco?

R – Sim.

P/1 – Você os conheceu?

R – Conheci minha avó porque o meu avô morreu quando meu pai tinha dez anos. Eu cheguei a conhecer a minha avó que viveu até os...

P/1 – Você sabe um pouco o que o seu avô chegou a trabalhar, o que ele fazia? O pai do seu pai.

R – Ele trabalhava com comércio, com agricultura e quando ele morreu foi um momento muito complicado pro meu pai porque a minha avó se casando novamente, tanto o meu pai como a minha tia foram deixados em colégios internos. Com isso meu pai perdeu boa parte do contato que ele deveria ter com a mãe, mesmo com o padrasto. Isso só foi retomado muitos anos depois.

P/1 – Por que tiveram essa decisão de colocar no colégio interno?

R – Acho que foi mais uma exigência do segundo marido da minha avó, ela cedeu a isso e teve outros muitos filhos no segundo casamento. E com isso as informações do lado paterno chegaram meio distantes pra mim. Depois como adulto eu cheguei a visitá-los. Nós fomos visitá-los quando eu tinha uns sete anos e depois, já adulto, eu voltei e encontrei novamente com ela, com a minha tia, foi muito interessante depois de tanto tempo. Mas era distante.

P/1 – Você não chegou a conviver com ela.

R – Não.

P/1 – O que ela fazia, ela trabalhava fora? Ela trabalhava em casa?

R – Não, trabalhava em casa.

P/1 – E o padrasto do seu pai?

R – Mexia com comércio. E morreu já há muitos anos também, mas eu não tive muito contato com ele.

P/1 – E seu pai estudou até que ano em colégio interno?

R – Ele foi até completar o colegial e aí ele saiu pra fazer o serviço militar. Ele serviu na Base da Aeronáutica em Salvador e depois veio aqui pra São Paulo.

P/1 – Até então ele não tinha trabalhado, ele só estudou o colegial.

R – Só estudou.

P/1 – Aí ele foi pra Salvador...

R – Salvador, serviu, passou um ano.

P/1 – E por que ele decidiu vir pra São Paulo?

R – Porque sentia que tinha mais oportunidades. A gente está falando da década de 50, em termos de trabalho, de emprego, de perspectiva, ele sentia que teria muito mais aqui do que lá, voltando pra Pernambuco, interior de Pernambuco, que era de Garanhuns.

P/1 – Ah, ele nasceu em Garanhuns.

R – Nasceu em Garanhuns.

P/1 – E ele veio pra São Paulo. Você sabe pra qual região de São Paulo ele veio?

R – Veio pra zona Oeste, ele morou na Pompeia, onde, por coincidência...

P/1 – Foi o primeiro lugar que ele morou?

R – Foi. E também morava na Pompeia a dona Araci, minha mãe. Eles se encontraram lá e acabaram casando.

P/1 – E seu pai veio fazer o que aqui? Trabalhar, estudar?

R – Veio trabalhar. Trabalhar, estudava.

P/1 – Ele foi trabalhar do quê?

R – Ele trabalhou na indústria, sempre ligado a controle de produção.

P/1 – Mas ele não tinha formação, ele tinha o colegial e veio, fez faculdade?

R – Ele veio, ele aprendeu. Não, ele não fez faculdade, ele aprendeu muito nos empregos que ele pegou na chegada aqui. E o que ele conta naquela época é que não havia uma exigência como hoje de diplomas, formação e tudo o mais. Era uma necessidade muito grande de pessoas qualificadas, de mão de obra, então a falta de um diploma na ocasião pra ele não representou um problema, aprendeu na prática e acabou ficando nessa área por muito tempo.

P/1 – E você sabe qual foi a impressão dele quando chegou em São Paulo?
R – Ele gostou. Ele gostou muito, ele achou um pouco assustador mas, ao mesmo tempo, bateu com o que ele esperava em dois aspectos. Um, é uma certa pujança econômica, de achar que aqui era o lugar onde estava o dinheiro e onde as coisas poderiam caminhar bem. E o outro, a oferta de informação no ponto de vista cultural. Porque o meu pai, no tempo que ele ficou no colégio, nas férias ele era um dos poucos que passava as férias lá muitas vezes, então, os livros eram o oásis dele, ele lia muito, ele leu muito a vida dele inteira. E por tabela tinha muito interesse em música, também no colégio eles tinham a orquestra de câmara, tudo, então ele desenvolveu um gosto literário, um gosto musical bastante apurado e sentiu que aqui tinha um terreno fértil pra ele procurar mais, fez com que ele gostasse daqui apesar de tudo.

P/1 – E você sabe exatamente como ele conheceu a sua mãe?

R – Eles se conheceram na pensão onde ele almoçava. Ele almoçava na pensão onde a minha mãe ficou. Os dois estavam em pensões, mas a comida da pensão onde a minha mãe estava era melhor do que a da outra, então ele vinha comer nessa pensão e eles se conheceram lá.

P/1 – E a sua mãe? A família dela é do interior de São Paulo, que lugar?

R – É. É de, basicamente eles estão entre Itapetininga, Angatuba e Tietê. Meu avós moraram muito tempo depois em Tietê. Mas na verdade eles moraram muito tempo numa cidadezinha que sumiu, uma aldeia chamada Engenheiro Hermilo. Meu avô trabalhava na estrada de ferro e na medida que o pessoal acabou deixando de lado as ferrovias, a cidadezinha lá onde eles moraram também morreu, sumiu, virou um agregado de Angatuba. E as minhas tias, a minha mãe vieram pra São Paulo, quase todas, teve só uma tia e um tio que ficaram no interior.

P/1 – Por que elas vieram?

R – Pra trabalhar, mais oportunidade de trabalho.

P/1 – Sua mãe estudou?

R – Minha mãe estudou. Minha mãe é professora, ela fez o Normal, tem a licença-prêmio super dedicada sempre, ganhou licença-prêmio e entrou numa escola que era no ABC na época, mudou pouco tempo depois pra São Paulo mesmo e foi até se aposentar.

P/1 – E seus avós maternos, você chegou a conviver com eles?

R – Com eles sim. Até porque na infância, quando tinha sete anos, oito, nove, o grande programa de férias era ir pra casa dos meus avós no interior. Eles tinham um quintal enorme que a gente, com o nosso tamanho, chamava de sítio. Então era muito legal, pelas árvores que tinha, terra, corda, ali era um lugar maravilhoso. Sem contar que lá também a gente podia pegar bicicleta; quando crescemos um pouco mais, ir andar pela cidade, pra fora da cidade. Então, ir pra Tietê era um sonho de consumo, era muito legal. E com isso estar com os avós era uma coisa sempre prazerosa, que eu esperava com ansiedade. Eu e a penca de primos que ia pra lá também, era muito legal.

P/1 – Aí a sua mãe veio e também veio morar na Pompeia.

R – Veio de lá, morou na Pompeia.

P/1 – Quanto tempo eles namoraram, você sabe?

R – Acho que entre conhecer e casar foram três anos.

P/1 – E eles casaram e foram morar onde?

R – Eles casaram em 57, moraram um pouco na Lapa e rapidamente mudaram pro Alto da Lapa. E a minha mãe está até hoje na casa do Alto da Lapa, ficou mesmo, criou raízes e ficou por lá.

P/1 – Lá foi sua casa de infância então.

R – Foi.

P/1 – Aí o seu pai e a sua mãe trabalhavam.

R – Sim. Minha mãe trabalhava meio período porque ela dava aula de manhã só, e o meu pai trabalhava em tempo integral.

P/1 – E quantos filhos vocês são?

R – Só eu, sou filho único. As brincadeiras eram com os primos, tinha uma porção de primos lá, eles supriam a falta de um irmão, uma irmã pra brincar.

P/1 – Descreve um pouco como era sua mãe.

R – Como é minha mãe.

P/1 – Como é.

R – A minha mãe...

P/1 – Eu falo era naquele período da infância.

R – Ela era, tanto como professora, como mãe, ela é muito dedicada, a dedicação em pessoa. O trabalho dela na escola era a vida dela; ela tinha dedicação total, ela chegava antes do horário das aulas pra preparar uma porção de coisas, ela saía depois, ela amava o trabalho dela, assim, de paixão. E ela sempre foi uma mãe muito esmerada também, muito preocupada, tão preocupada quanto esmerada. Ela conta que logo que eu nasci ela usava muito o auxílio da minha avó porque tinha medo, por exemplo, de cortar as minhas unhas, medo de fazer as coisas errado. E essa dedicação, essa vontade de participar da vida, de saber o que está acontecendo e que pode ajudar tudo mais, ela mantém até hoje. Ao mesmo tempo ela parou com o trabalho, mas acha que saiu na hora certa, porque no período que ela se aposentou, década de 80, houve uma mudança no ambiente que ela conheceu nas décadas de 50 e 60, então, os alunos começaram a ser mais independentes, menos dóceis, menos passivos, questionar muito; os professores também, muitos não compartilhavam daquela paixão dela pelo ensino e questionavam remuneração e tudo o mais, greve, então, ela ficava muito chateada quando tinha greve por causa dos alunos. Ela parava porque não tinha como ela abrir a escola sozinha e dar aula pros alunos dela. Então houve uma mudança no perfil e ela fala: “Olha, foi melhor eu ter me aposentado, hoje não daria para aguentar essa violência em sala de aula”, tudo o que ela ouve de desrespeito de aluno, tudo. Eu falei: “Bom, então, foi o tempo”.

P/1 – E seu pai?

R – Meu pai sempre foi muito bom naquilo que ele fez, mas sempre foi também uma pessoa muito séria, muito fechada, até pelo histórico de vida dele. Então ele não era uma pessoa expansiva, não era uma pessoa de demonstrar afeição, era muito mais na dele, meio quieto e tudo, e mesmo no trabalho, então, naturalmente você já tinha uma distância em relação a todo mundo, no trabalho mais ainda. O mundo dele, a casa dele era o castelo dele, ali o lugar dele, ele não queria, quanto menos visita aparecesse... a minha mãe era assim também, então eles não eram de sair muito, de querer conhecer lugares diferentes e tudo o mais, visitas ou de ser visitados, eram bem fechados lá no castelinho deles.

P/1 – E como era essa casa do Alto da Lapa?

R – Essa casa é um sobrado que tem uma entrada lateral, um quintal, uma casa comum, nada de especial. São dessas que vêm em série, tem quatro. Como a nossa era do canto, a nossa tinha um corredor lateral e tinha um jardim. Pra mim, principalmente quando era pequeno, o corredor lateral era muito importante porque era no corredor lateral que eu andava com meu jipinho à noite porque ele tinha farol, então isso pra mim, aquele percurso. E vendo hoje é engraçado, né, tão pequeno, ali tem tão pouco espaço que eu tinha que virar o jipinho e era o máximo, achava aquilo maravilhoso. Mas a casa existe ainda e é engraçado porque na casa dos meus avós também adorava cada cômodo da casa. Nós voltamos, depois que meu avô morreu, minha avó mudou de Tietê e uns 15 anos depois nós voltamos, os primos, voltamos pra lá pra ver a casa. E deu a impressão que a casa tinha encolhido, porque a nossa referência era do tamanho de quem media um metro e 30, um metro e 20, né? E de repente você vai adulto e fala: “Nossa, mas parecia tão grande”. Não é tão grande (risos). As árvores eram altas mesmo, isso não mudou. Foi muito estranho voltar e ver que algumas árvores foram cortadas, a pessoa que comprou a casa não tinha a identificação passional que a gente tinha com as árvores.

P/1 – Quais eram suas brincadeiras na infância?

R – Eu adorava coisas de montar, sempre. Eu acho que isso acabou até influenciando em fazer Engenharia. Mas brinquedos com peças, parafusos, porcas pra montar, Monte Bras Mac Bras, tudo isso me fascinava, montava coisas assim, sempre queria uma coisa diferente do que tinha no script, via os modelos e: “Não, vou fazer uma outra coisa” e saía montando. Adorava. Minha bicicleta também foi outra companhia importantíssima porque era o que me permitia sair de lá e desaparecer pelo mundo. Acho que foram as duas coisas que mais...

P/1 – E com quem você brincava?

R – Quando possível com meus primos, os que moravam aqui em São Paulo, de vez em quando a gente se via. Pra mim ir na casa da minha tia Cecília, por exemplo, que tinha dois filhos que tinham a idade mais próxima da minha, era como ir pra Disneylândia porque eles eram sócios de clube, meus pais não, então lá ia eu pra piscina, ia brincar, jogar em quadra, tudo, era bem legal. Eu tinha uns vizinhos também, mas acabava tendo mais contato com meus primos do que com meus vizinhos.

P/1 – E quais eram as brincadeiras, fora essa coisa de montar, se relacionar assim, na escola, com quantos anos você entrou na escola?

R – Seis pra sete anos. Bom, futebol era o carro-chefe, tinha cinco minutos de intervalo já aparecia uma bola de papel, bola de meia, bola bola, então o futebol era o carro-chefe. Bolinha de gude ainda, parece uma coisa tão antiga jogar bolinha de gude, porque tinha uma parte que o chão era de terra, tinha os buracos lá. Figurinhas também faziam sucesso naquela época, voltou a fazer agora, mas naquela época eram disputadas as figurinhas. E no interior, quando saía desse lado meio urbanóide daqui, agora o grande tchans que não dava pra fazer aqui era subir em árvores. Tinha uma parte dos primos que se dava bem, que sabia, e outra parte que não era do ramo, então, por exemplo eu e meu primo, eu tenho um primo que é um ano mais novo, a gente conseguia ir até o fim da última árvore mais alta, ficar no alto, lá onde o galho ainda era leve e a árvore balançava pra caramba com o vento, pra poder ver a igreja matriz da cidade do alto desse galho, então, subir em árvores. Eu achei muito estranho outro dia no Villa-Lobos um pai...

P/1 – Como é o nome da cidade mesmo? É Angatuba?

R – Tietê. Que a gente passava as férias era Tietê. Eu achei tão estranho um pai tentando mostrar para um filho, no Villa-Lobos, que uma árvore de dois metros de altura que o menino não ia morrer se subisse na árvore. O menino cheio de medo da árvore, chamando a árvore de excelência. Eu olho, poxa, acho que esse menino nunca viu uma galinha, né? É um urbanóide pronto. E a gente subia naquelas árvores, sabia qual era a lisa, que não podia, passava de uma pra outra, era muito legal, muito bacana, é a parte que se eu não tivesse tido eu sentiria falta hoje. E vejo o pessoal lá no Villa-Lobos, às vezes eu tenho vontade de subir em algumas árvores lá.

P/1 – E que rua que é do Alto da Lapa?

R – Na Cerro Corá.

P/1 – E como era a Cerro Corá nessa época?

R – Quando a gente mudou era, por exemplo, só tinha casa à direita do lado de quem sobe, então, do outro lado não tinha nada, você via o Pico do Jaraguá, você via tudo. Não tinha tanto trânsito. Hoje subiram casas e atrás das casas subiram prédios, então, é muito difícil, tem que pegar um ângulo muito bom pra ver o Pico do Jaraguá ainda. E mudou muito. Não era uma rua barulhenta, por incrível que pareça. Hoje, dependendo da hora que você passa você não anda lá, de tanto trânsito que tem, fica parado o trânsito. Já era perigosa pro pessoal descer correndo, os poucos carros, a gente sempre ficava muito ligado, aprender a atravessar direito aquilo. Mas mudou completamente. Pra trás, do lado de trás não tinha casas também, era uma parte bem vazia. Quando nós chegamos lá, a mudança aconteceu quando eu tinha dois anos, mas eu lembro com nove, dez anos boa parte do quarteirão, a parte de trás que dava pra Panamericana não tinha casa, não tinha nada. Tanto que tinha um terreno baldio onde hoje tinha muitas casas do outro lado da rua, tinha um terreno baldio, acabou vindo uma vez um circo, uma coisa que eu me lembro desse vazio, uma das primeiras coisas que tirou esse vazio foi um circo. Todo mundo ficou super animado pra ir no circo, menos eu. Por algum motivo que até hoje eu não sei, eu não fui, eu não iria nem amarrado, alguma coisa me afastava da ideia de circo. Depois eu cresci, continuei não dando muita bola pra circo, comecei a simpatizar com alguns palhaços, os Doutores da Alegria e tudo o mais, mas aquele circo ali, alguma coisa fez que eu não fosse de jeito nenhum.

P/1 – Você não sabe o que é?

R – Não sei, deve ter alguma coisa com vida passada, não é possível. Foi muito gratuito, sabe, não tinha o menor motivo para eu, com quatro anos, não querer de jeito nenhum ir para um circo, quando todo mundo da idade estava indo lá pela bagunça. Não sei.

P/1 – Você era mimado pelos seus pais por ser filho único?

R – Meu pai nunca foi de mimar ninguém, meu pai era muito sério, aquela distância. Por mais que ele gostasse, senti em muitas ocasiões o quanto ele gostava de mim, mas ele não era de amaciar ninguém. Ele era austero, rígido. Ele não precisava cobrar muito porque eu não dei muito motivo, mas não era de muito mel, não. E a minha mãe tem uma tendência a ser o oposto, então, até pra defender o meu espaço também, eu nunca deixei levar muito por esse lado e tentei sempre deixar, manter meu espacinho lá de medo que ela invadisse e desse as regras. Então, não fui mimado, não. E ela também quando precisava chamar as falas também, nunca titubeava.

P/1 – Você falou que entrou com seis anos na escola. Que escola você estudou?

R – O nome da escola era Reinaldo Ribeiro da Silva. Ela fica na Vila Anastácio, no começo da Marginal Tietê, na frente do rio.

P/1 – Mas você ia como pra escola?

R – Ia de ônibus com a minha mãe, porque ela dava aula nessa escola.

P/1 – Uma escola particular?

R – Não, escola estadual. E era uma escola estadual, escola pública no tempo que a escola pública era boa. A diretora era muito rígida, ela tirava o couro dos professores, mas o nível da escola era muito bom, era muito bom. Quando eu completei a oitava série eu prestei para uma bolsa no Porto Seguro, minha mãe foi pra escola pública e minha tia foi pra escola particular. E tinha lá uma peneira pra você entrar, pra conseguir uma bolsa, tudo, e eu consegui. E depois que eu comecei, no primeiro instante eu falei: “Puxa, será que eu aguento o tranco aqui?”, porque a escola era forte, eu fui pra uma das melhores turmas, tudo, e eu fui bem. Muita coisa que eles estavam começando a ver lá no primeiro do ensino médio, colegial que chamava na época, eu já tinha visto. Então o ensino que eu tive nessa escola, embora fosse pública, foi muito bom. Os professores não faltavam, os professores eram interessados.

P/1 – Você lembra das suas professoras do primário? Ginásio? Fala de algumas.

R – Eu lembro. Eu lembro. Lembro da dona Ruth que foi a do primeiro ano, então, muito marcante porque sempre dava música. Nas festas a gente sempre tinha algum número que envolvia, fazia algum tipo de apresentação, jogral, alguma coisa. Ela sempre muito alegre, sempre muito animada. Era uma professora só pro ano todo, então, natural que elas realmente marquem, cada uma marcou. Então: Célia, Terezinha, Maria Valente, todas estão lá no panteão. E eu sempre fui bem na escola, sempre fui muito curioso, muito xereta e via aquele monte de livros com a minha mãe, ela dava aula de quarto ano, sempre deu aula de quarto ano. Então, do mesmo jeito que eu fui fuçar Reinações de Narizinho pra começar a ler o mais rápido possível, porque eu via aqueles livros, sabia, às vezes eu ia de xereta quando era pequeno não tinha idade pra ir pra escola, mas ia, às vezes não tinha com quem deixar e eu ia junto e ficava num canto vendo a minha mãe dar aula e via o pessoal estudando nos livros, dava uma vontade de saber o que tinha o livro de leitura, o que mais que tinha naquele livro. Aí eu aprendi a ler muito rápido, depois comecei a me interessar pelos números que tinha nos livros de problemas lá que minha mãe trazia. Quando chegou no terceiro ano era: “Agora vou pegar aqueles livros lá”. Catei. “Como é que faz esse aqui?”, aí ela começava a dar mais explicações do que eu queria: “Tá bom, já entendi”. Então eu começava o ano letivo já tendo feito todos os exercícios que eles iam dar no outro ano. Adorava. Aí eu ia procurar outras coisas, eu sempre fui muito xereta, muito xereta. Meu pai comprou um livro, um conjunto de livros e uns discos, era um curso de inglês. Naquela época os áudio visuais eram recursos muito fracos, eu lembro que o livro não tinha nenhuma ilustração, mas aí eu catei e comecei a ouvir os discos do meu pai, ele só podia à noite, ele comprou pra ele, né? Mas eu tinha a tarde inteira pra mim, então, comecei a aprender o inglês do curso dele: “Eu já estou na lição 13” (risos) “Você está brincando?” “Não, não, tem isso, tem isso, tem aquilo”. Adorei, achava fantástico isso. Depois começaram a aparecer algumas músicas e não era internet como hoje, que é fácil você conseguir letra, tudo, mas eu ficava assim, que nem um maluco pra ir procurar as letras das músicas e saber como é que era, o que estão falando. Depois, anos mais tarde, puxou o interesse pra outras coisas, por exemplo, o inglês, por ter ido pro Porto Seguro, eu comecei a ver o quanto tinha de semelhança do alemão com o inglês, aí fui atrás do alemão. Acabei trabalhando numa empresa, uma das primeiras, que era de origem alemã também, então, mais um motivo pra ir fazer um curso. E gostei muito disso, procurando, aprendendo o alemão de sobrevivência, me deu vontade saber como seria um francês de sobrevivência, xereta, muito xereta. Se contar metade de uma história pra mim eu vou atrás pra saber o resto porque isso me encanta, parte de línguas, idiomas. E não viajava, né? A primeira vez que eu fui viajar pra fora do Brasil, não tinha condições financeiras de viajar, então foi a serviço com 24 anos. Aí que eu fui ver se o inglês era aquele mesmo. E não era e foi legal também ver que não era, aprender direito. Mas tem uma linha aí, a curiosidade foi sempre uma constante, sempre.

P/1 – E nessa escola ainda, você tinha vida social com seus amigos nessa escola que sua mãe dava aula, na Vila Anastácio.

R – Tinha, só que o contato foi intensificado na época do ginásio, da quinta à oitava, porque aí além das aulas nós tínhamos trabalho em grupo, e que era sempre lá, então, estava sempre, continuava lá, ia de lá pra casa de quem fosse o anfitrião do trabalho. Às vezes a gente voltava depois pra escola pra jogar bola, então, tinha o lado social intenso, só que depois cada um foi pra um lado, espalhou completamente. Lá não tinha ensino médio, então cada um foi fazer o ensino médio para um lado e a vida afastou. Então, pouquíssimos deles a gente conseguiu reunir há uns quatro anos. E foi muito interessante. Quer dizer, conseguimos reunir por causa do Facebook e tudo o mais, então voltou os amigos do Reinaldo e a gente ficou sabendo quem casou, quem separou, quem morreu. E foi muito interessante, foi uma coisa que me lembrou, o Rubem Braga que fala, né? Pessoas que se encontram muito tempo depois percebem que são duas outras pessoas falando de duas pessoas que não existem mais. Tão longe, tão longe, cada um mudou tanto e passou por tanta coisa, tudo, que já são outras pessoas. É bacana você encontrar e conversar sobre aquele tempo, lembrar de algumas músicas: “Você lembra, nossa, tocava isso”.

P/1 – O que vocês escutavam?

R – A gente ouvia naquela época, é tão velho, você tem que pensar que está falando de anos 60, 70, né? Não tinha FM, que parece uma coisa absurda, né? Tinha Ondas Médias, então, a única rádio que tinha música que a gente ouvia, as duas únicas, uma chamava Difusora e a outra era a Excelsior. O resto, na nossa cultura local dos alunos do Reinaldo só tocava coisa pra gente velha, ou só tocava notícia, então não interessava. A Difusora tinha uma vinheta que falava assim: “Difusora, uma das dez rádios mais atualizadas do mundo, com pesquisas da Cashbox, Billboard, Record World” e realmente, o que tinha de novo era ela que trazia. E hoje, se você for atrás e ver o que a Billboard punha em primeiro lugar, ali tem a história, parte dessa história veio pra nós também. Então nessa época o que teve? Foi o tempo de passar de Beatles pra Bee Gees, Embalos de Sábado à Noite, aí já subiu, pra Michael Jackson, Jackson Five, Motown, na época não sabia da Motown. No final desse período de ginásio, começando ensino médio, foi o tempo que eu fui pro Porto Seguro. E nessa época entra outras coisas graças a um maluco que tinha um programa na Rádio América chamado Jack’s o Caleidoscópio, aí o lado musical foi prum outro lado, do rock, do rock progressivo, Yes, Pink Floyd, Led Zeppelin, aí foi todo um outro caminho musical, né? E até hoje eu curto. Foi muito interessante quando nasceu a minha filha, a Thaís, porque eu segui com o rock, o rock progressivo, tudo, então, ela estava lá no berço e eu fazendo a minha hipnose com ela. Tinha que ter Bach, tinha que ter Yes, tinha que ter Pink Floyd, isso tinha, e ela pegou muito disso, acabou herdando o gosto aí. Juntou o Metal, que não estava no meu plano, mas ela curte muito música também, acabou pegando esse lado. Meu pai gostava, eu gostei, só fui começar a curtir alguma coisa das óperas que ele curtia depois que eu fiquei adulto, antes pra mim era só um berreiro, não gostava, mas depois comecei a perceber uma e outra ária e fui me aculturando, tardiamente, e gostei. E a Thaís também pegou um pouco dessa onda aí, que ela já estava no filme nessa hora.

P/1 – E na adolescência, como foi essa mudança de sair de um colégio público pra ir pra uma escola particular, no caso Porto Seguro?

R – Olha, a sorte é que a escola que eu tinha feito era boa, porque o Porto Seguro era uma escola, não sei hoje acho que ainda é, mas puxava bastante, e eu aguentei bem o tranco, eu sobrevivi a ponto de poder até ajudar aos que estavam lá desde o começo. Então isso me facilitou a vida. Aquele termo de exigência acadêmica eu acabei me dando bem. Quer dizer, a primeira metade do primeiro ano foi difícil, mas os outros dois anos e meio foram tranquilos, estava muito mais sintonizado no vestibular que viria depois, então tirava de letra.

P/1 – E socialmente era igual, as pessoas, os amigos.

R – Não. O interessante é que na época, eu me lembro ter classificado os que tinham um pouco de grana e os que tinham muuuita grana. Porque os que tinham muita grana, esses eram meio parecidos com os que eu tinha deixado lá no Reinaldo, porque era um pessoal de tanta, tanta, tanta grana, que ele não precisava se mostrar, não precisava de nada, não dava bola. A gente teve trabalho em grupo, de novo trabalho em grupo, na casa de um colega em que o pessoal já tinha falado que o cara tinha muita grana; não sei, o pai dele era um grande acionista da Basf, não sei, mas tinha muito dinheiro. E aí eu estava lá na casa dele, a casa era um encanto, acho que tinha dois quarteirões a casa, Pinheiros aqui, piscina lá e o canto onde ele estudava. Eu falei: “Meu, como é que você consegue se concentrar pra estudar com tudo isso na sua frente?”, e aí ele falou uma coisa que outros disseram também: “Ah, você acostuma”. Então pra ele não era nada de excepcional, ele não fazia disso uma coisa pra aparecer para os outros, nada, pra tentar passar uma impressão de que era superior de alguma forma, era assim, normal. Aí quando fazia reunião em um outro que morava num apartamento super pequeno, os pais tinham dificuldades e tudo o mais, o cara vinha do mesmo jeito, não tinha, parece que era indiferente pra ele se a casa era bonita, se o carro era bonito. Isso é muito legal porque quebrou um paradigma que eu trazia, eu imaginava que o pessoal de muita grana sempre seria fútil, sempre com o rei na barriga e nada disso. Então comecei a ver que era gente também, pra mim foi muito didático esse aprendizado naquela época.

P/1 – E quais eram os programas na sua adolescência?

R – Os programas da adolescência era você ouvir música nos dias de semana que não dava pra sair, não dava pra fazer nada, era acompanhar o Jacks o Caleidoscópio até dormir, começava meia-noite o programa, e quando dava, principalmente a gente costurava junto com os trabalhos de equipe, a gente sempre dava um jeito de parar em algum shopping. O shopping acaba sendo às vezes mais importante do que o trabalho. Então você ia lá fazer o trabalho: “Vamos fazer rápido o trabalho pra poder dar um passeio”. E aí às vezes iam grupos grandes, grupos pequenos, três, às vezes seis, oito. Sempre era muito divertido. Uma pena que também esse grupo se desfez, uma parte foi pra fora do país, outra parte foi pra dentro do país, saiu de São Paulo, e muitos poucos a gente acaba mantendo contato, é um ou outro.

P/1 – Você tinha namorada, alguma paixão?

R – Namorada, no meu critério, desde do primeiro ano primário, né?

P/1 – Como que era?

R – A Luísa. A Luísa, agora pensando bem acho que nós dois juntos um em cima do outro dava dois metros, era muito pequeno, de gostar muito dela. Tinha umas paixões que foram platônicas por perceber, já de cara perceber que não ia dar certo. Foi interessante no encontro do pessoal do ensino fundamental que a gente fez depois lá do Facebook, quando nós nos encontramos, alguns comentando sobre as tais paixões platônicas. Ela: “Nossa, mas eu era louca por você” “É mesmo? Porque eu nunca tive coragem de dizer que eu queria também namorar com você. Pô, por que você não falou na época?” (risos) Então isso, naquela época o pessoal era mais platônico, hoje isso está completamente fora de moda, mas tem as paixões platônicas. E os namoros que não duravam muito, não era a ideia que durassem mesmo, tanto deles quanto delas, não era essa ideia. Mas não teve ninguém que marcasse, sabe, essa foi a que me parou no tempo, então não aconteceu nesse período de colégio.

P/1 – E você passeava pela cidade?

R – Passeava pelos shoppings. Não era uma coisa que eu saía de casa: “Vou eu passear sozinho”, quase sempre era amarrado com estar com alguém que ia numa loja de discos no centro, ou que ia correr com carrinho de Autorama na Augusta, ou que ia ver instrumentos musicais na Teodoro, então era uma coisa planejada, tinha um objetivo e tinha mais gente, não era eu sozinhos: “Eu vou”, sozinho eu ia com a minha bicicleta, aí era mais perto de casa porque no Alto da Lapa com tanta ladeira você não vai muito longe, se for não vai aguentar voltar, né?

P/1 – E nesse período você tinha alguma coisa: “Ah, quando eu crescer eu quero ser tal coisa”. Ou você já queria seguir alguma coisa.

R – Eu me lembro de muito pequeno ficar fascinado com os botões do painel do ônibus. Então, naquela época eu quis ser motorista de ônibus; depois eu quis ser bombeiro, depois eu quis ser policial e depois acho que a facilidade com a Matemática, os brinquedos de montar, fui começando a ver uns brinquedos grandes de verdade na rua, me levaram pra Engenharia. Eu sempre gostei muito de escrever também, então na fase de escolher pra que lado que eu vou, entre as letras e os números eu fiquei bem dividido, sabe? Eu não sabia se eu ia prestar pra Engenharia ou se eu ia prestar pra Jornalismo, por exemplo. E no final acabei indo pra Exatas.

P/1 – Mas você teve alguma história, algum parente, alguém que te influenciou?

R – Não. Não. Meu pai ficou fora dessa discussão: “Faça o que você acha que vai te dar mais prazer, mais alegria, como carreira que você acha mais interessante”, não deu opinião, não puxou pra nada, então eu tive uma liberdade total. O que aconteceu é que depois de fazer Engenharia eu voltei depois, aí comecei a fazer Letras, só que aí já estava trabalhando, então, por causa do trabalho eu não conseguia, viajava muito e não conseguia dar sequência, mas eu entrei em Letras, fui fazer Alemão de novo, fui pra Linguística. E tinha que largar. Adorei cada aula que eu tive lá, sabe, de Latim, de Semiótica. Eu pensava assim: “Nossa, será que de repente eu deveria ter ido pra esse lado?”, mas aí eu já estava com a vida bem dirigida pra Exatas e aí curtia dessa forma, até como se fosse um hobby.

P/1 – Como foi, você acabou o colegial?

R – Fiz vestibular e aí entrei...

P/1 – Você não trabalhava, só estudava?

R – Só estudava. Estudava que nem um maluco.

P/1 – Você fez cursinho?

R – Não.

P/1 – Você acabou o colegial e prestou.

R – É, o pessoal conseguiu uma doação de uns livros de um cursinho e no terceiro colegial, junto com a escola, por conta própria eu debulhei esses livros, eu nem lembro agora se era Anglo, acho que era Anglo. Então, e pra ver, se eu não passasse eu ia fazer cursinho no ano seguinte. Mas aí eu passei.

P/1 – Passou em Engenharia?

R – Passei em Engenharia.

P/1 – Qual faculdade?

R – Eu fui pra Poli. E foi interessante porque aí foi uma outra mudança também de tudo. De colegas, amigos, programas, classe social, preocupações, era bem diferente. Quase ninguém, um colega meu que foi comigo pra essa escola e no fim do primeiro ano ele largou pra fazer Medicina, então fiquei só eu lá do grupo do colegial. Era bem diferente. A exigência era diferente, de repente...

P/1 – Que ano que nós estamos falando?

R – 78. 78 foi meu primeiro ano lá. Isso tudo o pano de fundo é ditadura militar, né? Tem todo um, assim como tinha as aulas de Educação Moral e Cívica, aí na faculdade também se percebia a repressão mal disfarçada. Os textos que não podia ler, as músicas que não podia cantar. E tinha toda uma trilha sonora, nesse período da ditadura militar foi muito rico, então, o gosto musical pro lado brasileiro também foi meio moldado por isso. E lá na faculdade tinha o pessoal que era desconectado da música brasileira, o que pra mim foi muito estranho. “Puxa, mas Milton Nascimento todo mundo sabe quem é, Caetano”. O pessoal até sabia mas não curtia, não gostava. Ou o pessoal que só curtia isso e aí cortava o lado Inglaterra, Beatles e tudo o mais.

P/1 – Mas como foi esse período na Poli? Como é que eram as aulas, você fez amigos?

R – Foi ótimo porque se antes a nota máxima era dez, agora a nota máxima passou a ser dois, três. E não importava o quanto você estudasse. Foi muito difícil, muito cansativo; uma competição muito grande, muito grande, feroz. Competição, eu que fiz Elétrica, então, no primeiro ano, você fazia o básico e optava por aquilo que você queria. Então, teve amigos meus que queriam Elétrica e foram fazer Metalurgia, porque pra você pegar o que você queria dependia do seu ranking, das suas notas. Aí acabava o primeiro ano, ok, entrei em Elétrica. Aí tem o pessoal que quer Eletrônica, o pessoal que quer...

P/1 – Você fazia o primeiro ano e só depois que optava?

R – Só depois que optava. Então era uma guerra total pra você ir bem durante o ano e poder optar pelo que você quer, senão... “Adoro Elétrica” “Mas você entrou em Metalúrgia, tá, então você pode ir pra Metalurgia”. Era um esquema muito louco. Depois no segundo ano é porque era Eletrônica ou Eletrotécnica; depois porque era máquinas ou linhas de transmissão. Competição, competição, competição, isso me cansou bastante, me deixou cansado de competição.

P/1 – Mas você queria Elétrica mesmo?

R – Eu queria Elétrica. E se eu não pegasse Elétrica eu ia sair, eu não ia fazer outra coisa, não tinha o menor interesse em Engenharia Civil, não tinha o menor interesse em Metalurgia. Ali pra mim foi uma divisão, podia, de repente, ter mudado todo o plano e prestar pra Jornalismo depois. Mas não, passei lá pra Elétrica e fiquei na Elétrica.

P/1 – E você só estudou esse período, você chegou a trabalhar, estagiar?

R – Comecei a estagiar quando estava na faculdade. Então aí eu fazia duas coisas, eu estagiava e eu dava aula particular, então, acabei quase que me sustentando não tanto pelo estágio, mas pelas aulas particulares. Sempre gostei, sempre curti ensinar.

P/1 – Com quantos anos você começou a fazer estágio?

R – Ah, foi logo... entrei com 18. Com 19 anos já estava descobrindo como era na vida real, que era bem diferente da escola, né? Alguns colegas ficaram inclinados pra área acadêmica, eu não, não era o que eu queria, rapidinho eu percebi que não era a vida lá da universidade que me interessava.

P/1 – E você foi fazer estágio onde?

R – Olha, eu fiz estágio em hidrelétrica, fiz estágio em empresa de automação, de empresa de relês, fiz um caminhão de estágio.

P/1 – O seu primeiro estágio você lembra?

R – O primeiro acho que foi na Klöckner em Alphaville. E foi legal, foi um aprendizado, foi um complemento bem bom porque na escola, naquela época pelo menos, a coisa era muito teórica, então eu não era muito chegado a esse lado só teórico, então foi legal, o estágio deu um significado para que eu estava estudando.

P/1 – E você teve algum tipo de atuação política nesse período? Como você vivia a ditadura?

R – Não, eu não tive muita participação, não. A UNE tinha um papel bem mais autêntico do que é hoje, o pessoal ia de vez em quando lá, eu sempre achei que as causas que eles defendiam eram corretas. Até porque na família um dos irmãos da minha mãe virou secretário numa época que o governador era o Maluf, ele foi deputado federal, ele votou contra as Diretas Já. Então isso pra mim, o meu lado político estava desenhado ali, estava muito mais pra concordar com o pessoal da UNE do que com meu tio.

P/1 – Mas você não chegou a ter uma militância.

R – Não, não. Não cheguei. Eu achei que, pra mim, de certa forma estava mais ou menos claro que aquilo estava acabando. Nesse período das Diretas Já a ditadura já estava meio que caindo de podre, a crise econômica só acabou de acabar com ela. E essa visão acabou vindo muito mais no tempo do colegial, porque até 74, quando eu ainda estava no Anastásio não tinha, eu estava totalmente desconectado disso, não sabia o que acontecia, só achava ruim ter as aulas de Educação Moral e Cívica e ter o professor tirando nota quando falava mal da Transamazônica: “Pô, mas como abaixa a nota porque eu sou contra?” Pergunta: “Qual é a sua opinião”, você dá a sua opinião, “Não, essa opinião está errada”. O que é isso, né? Isso me marcou profundamente, esse lado, talvez esse tenha sido o que chegou pra mim de ditadura naquela época, né, mais do que os assassinatos, tudo, que eu não acompanhava, mas, porque ali estavam restringindo a minha liberdade, o meu direito de opinião que eu prezava muito. Então, não era uma notícia no jornal sobre alguém que eu não conhecia defendendo uma ideia que eu não conhecia. Não, era a minha liberdade. O professor me dava uma folha de papel, fala para eu escrever, eu escrevo, argumento, conto, eu acho que é assim, assado, assado, a outra vem e dá uma nota ruim. “Como ruim? Por quê? O que está escrito errado?” “Não, nada está escrito errado” “Está mal escrito?” “Não, não está mal escrito, mas a sua posição é discutível” “Por que?” “Porque você não entende que o Governo está fazendo tudo por nós e não sei o quê, essa obra é muito importante e você vai falar mal” “Então tá bom”. Aí vem uma, o amor à liberdade de expressão. Acho que foi a primeira vez que ele foi desrespeitado e isso marcou muito. Então, hoje eu prezo muito isso. Mas ainda a ditadura era uma coisa muito distante.

P/1 – Mas você estava lá na faculdade, aí estava fazendo estágio. O que mais você fazia? Você namorava nessa época, você passeava? Além de estudar o que você fazia? Como era sua relação com a cidade?

R – Eu comecei algumas vezes a aprender a tocar teclado, o que me levou pra alguns lugares diferentes da cidade nesse aprendizado. Nunca aprendi, até hoje se eu pego uma partitura tenho que pegar uma música por vez e tenha que ser uma música que eu conheça, porque leitura de primeira vista eu nunca incorporei. Mas a música me tirava também de casa para eu ir assistir o pessoal tocar e cantar, então se vinha o Beto Guedes, o Milton Nascimento se apresentando em algum canto, e as aulas particulares ajudavam, lá ia eu, né? Isso me tirava de casa, isso me fazia andar pela cidade. Nunca ia, por exemplo, pra parques, nunca fui de ir pra um parque e ficar sócio do Ibirapuera, por exemplo, ia pra diferentes lugares, parques diferentes. Agora era outra bicicleta, com a qual eu ia pra faculdade também, aí virou o meu meio de transporte quase que único, né? Então, pra pegar ônibus e pra mais tarde de carro pegar e ir pra outros lugares tinha que ser uma coisa bem legal, normalmente era música ou ia comprar partitura, ia comprar discos no centro, ou ia pra shows mesmo, teatro. Teve uma época que eu fui só a teatro. Teatro, teatro, teatro, tinha assistido tudo o que tinha pra assistir, não queria mais. Depois passei uma fase de cinema, depois... e hoje tenho ido bem pouco, faz tempo que eu não vou pro teatro.

P/1 – Aí você acabou a faculdade, você já estava com algum emprego engatilhado, você falou: “O que eu vou fazer agora?”

R – É, o último estágio levou ao primeiro emprego. Então, a transição, e foi um período, 83, foi um período de crise, e crise muito brava, então, não tinha muita segurança de que teria uma efetivação e tudo, mas aí aconteceu, deu certo e eu aprendi MUITO nesse meu primeiro emprego, foi um aprendizado que até hoje me ajuda, não só em termos de relacionamento dentro da empresa, mas até na parte tecnológica, sabe? Informações, conhecimento, áreas de conhecimento que aquele primeiro trabalho forçou a entrar e que tem lucro, tem dividendos aí colhendo até hoje.

P/1 – Onde que foi?

R – Foi numa empresa chamada Combustol, fica na Estrada do Jaraguá. E foi bem bacana. Era muito interessante porque tinha um pessoal muito prático e eu tinha acabado de sair da faculdade, né? Então em alguns projetos eles falavam: “Olha é pra calcular qual é o tamanho da resistência que vai aqui, determinado circuito”, e era a base de um forno, fazia fornos industriais. Eu ia lá pegava o auge da tecnologia que eu tinha aprendido, fazia, fazia, três horas, calculava, tchum: “Olha, 19,34”. Aí o cara que tinha pedido, ele falou: “Ah legal, então bateu”, porque ele queria que eu conferisse se era mais ou menos aquilo. Aí te dava um papel de pão desse tamanhinho que ele tinha feito três contas: “É então, eu tinha chutado que era 20, então 19,34 beleza, em cima”. E aí (risos) isso várias vezes, então comecei a valorizar muito o conhecimento prático. Bom, o cara nunca fez faculdade, aliás esse em particular não completou o ensino médio, mas ele manjava tudo de eletricidade, o cara era muito bom, e provava ali pra mim, o método todo, método dos quadrados curvilíneos. O cara fazia tudo na prática e com duas ou três contas ele chegava. Então, foram descobertas, você vê que cada período nosso tem umas descobertas: nem todo rico é esnobe, no outro período você descobre que nem todo mundo que tem diploma sabe alguma coisa e vice-versa. E por essa época, pouco depois de sair da faculdade, foi uma época de começar a querer trabalhar mais pro lado social, então, foi um período que alguns colegas estavam em grupos de jovens de igreja, Pastoral dos Jovens e tudo o mais. E eu que sempre acompanhei minha mãe até os 11 anos nas missas de domingo e depois comecei a questionar demais e ela me dispensou das missas (risos), eu tive amigos que foram muito engajados com a Igreja Católica e com movimento, aquele pessoal assistencialista mesmo, de levar comida em favela, tudo o mais. E isso de certa forma pra mim começou a despertar, finalmente, uma percepção de que dava pra contribuir de alguma forma, fazer alguma coisa. A primeira contribuição não teve nada a ver com estudo, porque eu acabei indo parar no CVV. Conheci uma pessoa que conheceu alguém que esteve, comentou. E aquilo me chamou a atenção porque era uma carência que não era carência de feijão, de arroz, de dinheiro, às vezes era de amor, de uma amizade, de uma palavra, né? E aí eu fui conhecer.

P/1 – Quem te levou, como você ficou sabendo?

R – Foi assim, tinha uma pessoa que era voluntário e tinha uma amiga que era amiga minha, que quando ela comentou eu me interessei e fui lá conhecer. Eu não sei se mudou hoje, mas o treinamento que a gente fazia, você tinha um treinamento ao vivo. Então vem um cara que já faz isso há muitos anos e ele fica na sua frente como sendo a pessoa que você vai atender. Uau. Olha, fantástico. Fantástico. Aí você é submetido a situações, a dilemas que você não sabe o que você fala, ou coisas que você fala e aí ele reagia sempre da pior maneira possível, como poderia acontecer no telefone, pra por em cheque. Então eram umas situações, esses eram role playings; esses role playings eram terríveis, eram terríveis, era mais difícil o role playing do que o atendimento, porque você ficava numa tensão, né? Eu me lembro de um desses ensaios que ele fez com um colega nosso de turma, o atendimento ia começar, então: “CVV, boa noite” “Boa noite”, e ele não falou nada. Bom, o rapaz que estava do outro lado passou um tempo, começou a se mexer na cadeira e não sabia o que falava. E o outro orientando, né? “Tenho que saber que você está aí”, aí todo um treinamento de se colocar à disposição, de mostrar à pessoa que entendia o silêncio dela também, que não era, se ela não se sentia à vontade pra falar que ela não precisava falar, por à vontade o outro lado, né? Porque o cara trocava, aí ele falava o que deveria ter sido falado. Ou alguém mais experiente vinha e faziam os dois. Olha, um aprendizado maravilhoso, foi um negócio assim... inclusive esse treino chegou uma hora que o cara não tinha o que falar, falou assim: “Olha, é o seguinte, deve ter muita gente ligando pra cá, eu vou ter que desligar porque de repente tem gente querendo conversar, né?”, aí o cara que ficou calado cinco minutos pega e fala assim: “Então a outra pessoa é mais importante do que eu, né? É isso que você está falando?” Tum. Então era uma coisa, você ficava, você pesava cada palavra. E depois no comentário, terminada a tortura: “Você tem que pensar, se a pessoa está ligando ela tem alguma carência que ela quer suprir aqui e você ainda vem e dá a entender para ela que o outro é mais importante?” “Mas eu não falei que era mais importante” “Mas a hora que você fala: ‘Eu vou ter que desligar com você porque tem o outro’, o outro é mais importante”. E disso ficou que teve dezenas de lances assim, assustadores, mas isso mostrou como era importante ter um cuidado no falar. Sabe aquilo que de repente pra você pode ser normal, inofensivo, como o outro ouve? Como isso está chegando no receptor? Comunicação tem um começo e tem um fim, como é que chega desse lado? Então foi um aprendizado. E sem contar das próprias situações que o pessoal vivia. Porque o meu plantão era à noite, então eu saía do trabalho e ia lá pro plantão. E você chegava com aquilo que você achava que eram problemas e os problemas que vinham do outro lado da linha eram tão maiores do que os seus que você, era uma maneira de rever ou de reposicionar a sua visão, os seus problemas, instantaneamente.

P/1 – Quanto tempo você ficou de voluntário?

R – Acho que eu resisti um ano. E aí depois começou a ter muita viagem, eu não conseguia, eu tinha que faltar e começou a ficar complicado, então parei.

P/1 – Conta uma história de batismo ou alguma que você lembra que tenha te marcado.

R – Olha, foram muitas marcantes, muitas marcantes. Eu me lembro de um dia ter chegado particularmente chateado por causa de alguma bobagem do trabalho e tocou o telefone, a primeira pessoa que atendi ela falou: “Olha, estou ligando pela primeira vez, não sou de procurar apoio, auxílio, nada, eu sou muito, eu sou mais eu. Mas é que a coisa está muito complicada, estou sentindo que não vou consiguir aguentar o volume de coisas que estou passando”. E aí a conversa vai, conversa vem, no CVV já estava numa época que não se aconselhava mais nada, pelo contrário, você não aconselha, você só reflete aquilo que a pessoa fala. E você conduzindo a levar a pessoa a contar e a se ouvir também, o que ela está contando. E no final, o problema que levou a pessoa a ligar e a pressão que ela estava vivendo é porque o filho dela tinha morrido. Eu não era pai nessa época, talvez não pudesse avaliar a extensão do sofrimento desse homem, mas fazia uma regra de três na minha cabeça com meus pais pra tentar imaginar a perda. E a essa altura o que tinha acontecido comigo naquele dia eu já não lembrava mais. E quando acabou o plantão nessa noite e eu fui pegar os meus papéis, algumas coisas que eu estava ainda mexendo, com as coisas do trabalho, aí eu olhei assim: “Essa cruzinha aqui é o que eu estava reclamando?”, porque vinham coisas, essa foi muito marcante porque era recente, tinha acabado de morrer o filho dele, né? Mas tem problemas muito maiores do que os da gente e a gente não, a nossa avaliação acaba sendo muito auto indulgente, você sempre acha: “Ah, coitado de mim, olha que problemão que eu estou vivendo”. Nada, nada. Se for ver o seu é tranquilo, você começa a ver o dos outros. E isso puxou também, essa percepção foi muito marcante. Essa do pai foi talvez a mais marcante pra mim. Mas sobre o que é um problema grande e o que é um problema pequeno, e o que dá pra fazer pra ajudar alguém no problema grande, no problema pequeno. Só que a ajuda é grande, a ajuda é pequena? Algum tempo depois eu fui parar na Febem, mas era Febem das crianças. No Pacaembu tinha um prédio enorme que tinha uma Febem, parecia um castelo, grande, e o que acontece é que lá ficavam 300, 400 crianças e eles perceberam que não era bom isso, eles perceberam que era melhor ter grupos menores do que ter um grande orfanato, gigante, então, eles espalharam essa turminha toda pelo interior, foi aí que acabou a Febem naquela unidade grande do Pacaembu. E eu comecei justamente nessa época a prestar atenção nas outras carências. Então, tinha carência de afeto, como eu já tinha no CVV, as carências financeiras, que levavam a toda uma dificuldade social, uma realidade de gente que não teve, sei lá, as oportunidades que eu tive, que muita gente teve, e que mesmo assim sorria, era feliz. Eram crianças de zero a sete anos. A minha turma era a turma dos cinco aos sete. E assim como no CVV teve casos muito marcantes, sabe coisas assim...

P/1 – Você trabalhava, quer dizer, você já estava formado, trabalhava, mas ia de voluntário.

R – Ia de voluntário. Então o trabalho de voluntário nessa unidade era aos sábados. E assim como no CVV, cada dia era uma história, coisas assim fantásticas. Me lembro de uma menina que veio toda animada, era de cinco a sete anos, ela devia ter acho que seis anos. Chegou com uma caixinha, lá um pegava o brinquedo do outro, ninguém tinha suas próprias coisas, era uma coisa muito complicada. E ela estava com a caixinha e tinha um paninho em cima. Aí você ia lá puxar conversa, o lance ali era recreação, então você ia conversar, você ia brincar. “Quem que você trouxe aí, toda embrulhadinha?” “É a Vanessa” “Vanessa? Posso ver a Vanessa?” “Pode, olha que bonita que ela é”. Aí a hora que ela tirou, era uma boneca sem cabeça. Aí sabe aquele décimo de segundo que você fala assim: “Não dê bandeira”? “Ah, que legal, a Vanessa deve estar com frio, vamos cobrir a Vanessa”, cobre a Vanessa (risos). Mas era um período muito bacana porque você sabia, você tinha uma noção, tinha pelo menos um pouco de informação do histórico de cada criança. E eram históricos super complicados, super complicados. E a criançada sempre contente, sempre querendo brincar. Quando a gente chegava lá era uma festa, todo sábado tinha festa. A nossa chegada lá era pra fazer bagunça com eles, né? E você pensava: “Nossa, essa turma, com tão pouco, como é que fica tão contente, tão feliz? Com tudo o que passou já”. Tinha uma menina, por exemplo, que ela adorava quando a mãe ia lá. Essa menina tinha o braço todo marcado de cigarro, a mãe apagava o cigarro nela, e mesmo assim ela adorava a mãe e esperava a mãe, e não era todo domingo que a mãe ia – a visita da mãe era nos domingos. Então você fala: "Mas que mundo esquisito”, quer dizer, a mãe faz isso com a filha, sonega as visitas e a menina está ali super ligada na mãe. E durante a semana quando a mãe não está lá, ou no sábado, está lá brincando, está lá contente. Então, ao longo da minha infância e da minha adolescência eu não tive grandes sobressaltos, eu não tive grandes tragédias, eu não tive grandes carências; não faltou o feijão com arroz, não faltou o carinho, não faltou estrutura. E muitas vezes eu me ponho no lugar desse pessoal que vinha com um humor melhor do que o meu, tendo passado por barras muito mais complicadas. Então isso reforçou em mim uma necessidade muito grande de... não sei se de compartilhar, mas de tentar estar junto com esse pessoal, de, sempre que possível, ajudar de alguma forma, acho que esse é o resumo. Dizem que o voluntariado é um bichinho que depois que você é mordido por ele você fica viciado, você não consegue parar. E comigo aconteceu mais ou menos isso, não consegui parar. Acho que se falasse que, por exemplo, não poderia continuar dando as minhas aulas no fim de semana, tendo algum tipo de atividade mais social no sentido de construtivo, de poder estar junto com alguém que eu pudesse ajudar de alguma forma, compartilhar, acho que eu me sentiria muito tolhido, me sentiria mal. Muito tempo depois houve a possibilidade de sair do país. No tempo que eu não tinha consciência crítica eu achava que os Estados Unidos devia ser um lugar muito legal. Depois que eu fui pra lá muitas vezes, muitas vezes, mudei completamente a minha visão. Sei que eu nunca seria visto lá como alguém de lá, seria sempre um outsider, então exorcizou qualquer vontade de ir pra lá. Mas teve um tempo que eu quase fui pro Canadá. E o que me fez mudar de ideia, e até hoje faz com que eu fique aqui, por mais que o país esteja ficando esquisito, é uma sensação de poder contribuir, já que um lugar onde tem tão pouca oportunidade, tudo é tão desigual, eu consegui ter alguma coisa, juntar algum tipo de informação que pode ser útil pra outros, que eu posso compartilhar, então eu fico por aqui.

P/1 – Mas voltando, que oportunidade foi essa que você teve de sair do país?

R – Porque eu trabalho em uma multinacional americana e acabo indo com alguma frequência pra lá, não a serviço, mas a lazer eu acabei indo com a esposa e a filha pro Canadá.

P/1 – Quando foi a primeira vez.

R – Não, não foi a...

P/1 – Não, que você falou lá atrás, eu tive oportunidade de sair do país.

R – Eu tive oportunidade de sair do país, a primeira vez que eu saí do país foi a serviço.

P/1 – Então, como é que foi?

R – Foi muito legal, foi uma descoberta. Essa primeira ida foi a serviço, foi pra passar dois meses nos Estados Unidos. E naquela época tinha uma empresa chamada Republic, que já não existe mais, tinha um passe livre pelos Estados Unidos. Então eu passava a semana trabalhando e o fim de semana era meu. Então, no fim de semana, sempre era uma ligação estranha assim: “Eu tenho um passe assim e assim e queria ir pra Nova York” “Não, Nova York não tem pra esse fim de semana” “Mas eu consigo então pra São Francisco?”, ficava aquele silêncio na linha. “Pera lá, mas você não ia pra Nova York?” “É, mas era a lazer. Esse final de semana eu vou pra onde? São Francisco, tem? Então ótimo”, e marcava. Então eu fui pra N lugares lá, conheci bastante, curti, gostei. E aí na volta eu acabei ficando pouco tempo nessa empresa que me mandou pra lá, fiquei dois anos, aí depois eu fui pra uma outra empresa, que era know-how alemão e depois eu fui pra que eu estou hoje e fiquei lá desde 86.

P/1 – Que empresa que é?

R – Agora estou numa empresa chamada Rockwell Automation, que é uma multinacional americana na área de automação industrial. Entrei em novembro de 86 lá, estou até hoje.

P/1 – E aí esse trabalho voluntariado foi caminhando como? Depois da Febem...

R – A Febem eu saí porque a Febem acabou. Eu fui até o dia que fecharam o portão lá: “Não tem mais. As suas crianças, uma foi pra Jaú, outra foi pra Bauru, outra foi pra não sei onde”. Aí eu fui procurar um lugar pra ir. Então entrei em contato, tinha alguns amigos que conheciam alguns orfanatos, ninguém aceitava trabalho voluntário, uma coisa estranha. Bati em umas dez portas diferentes e nada. Aí comecei a procurar pela lista telefônica. E ligava: “Não, não, nós não queremos voluntários, a gente tem o nosso pessoal aqui”. Estranho. Lá pelo sétimo, oitavo, eu cheguei num abrigo no Jardim Ângela e aí a resposta foi totalmente diferente: “O quê?! Você é um voluntário procurando um lugar pra trabalhar como voluntário? Pode vir. O que você puder fazer aqui é bem-vindo, vem pra cá, vem conhecer, ver se você gosta”. E aí eu fui e encontrei um abrigo onde tinha umas 30, 40 crianças e o casal que mantinha com muita dificuldade. O trabalho que eles faziam, eles tinham um centro espírita junto e eles mantinham aquilo tudo com muita dificuldade, tal. E eu acabei me apaixonando por lá, então, da Febem eu fui pra lá. E no começo era muito parecido com a Febem, porque as crianças eram pequenas, então, era recreação mesmo, era ir pra brincar, pra conversar, pra empinar pipa, pra fazer um monte de coisa. Aí elas foram crescendo e eu, que sempre gostei de dar aula particular, fui vendo que eles começaram a ter coisas na escola que elas estavam tendo dificuldade, aí comecei a ajudar a parte da escola também. Nessa altura do campeonato eu levava a minha filha que estava com seus sete pra oito anos pra brincar com as crianças também, porque senão ela, tinha um outro lado da vida que ela não conhecia. Estudando no Dante, no Jardins e tudo o mais: “Tem um pessoal bem legal que você vai conhecer”, e ela pegou o gosto pela coisa, então ela virou a tia Thaís. Com oito anos ela virou a tia Thaís, pras crianças de quatro anos ela era tia, né? E curtiu muito. E pra mim era importante, isso foi importante pra mim, mas foi importante pra Thaís também, de conhecer um outro lado, uma outra realidade bastante dura, bastante diferente da que ela vivia. E pra mim, com o crescimento delas ao pouco eu fui voltando de novo pro compartilhar de ensinamento, já começou a ser menos bagunça e brincadeira pra ser mais matéria, mais curiosidades, por que isso é legal, por que não é, por que você não gosta como te ensinaram isso. E nós ficamos, nossa, acho que nós ficamos oito anos nessa atividade.

P/1 – No Jardim Ângela?

R – No Jardim Ângela.

P/1 – Chama como?

R – Lar Infantil Allan Kardec. E depois, o que aconteceu depois disso? Nessa época teve uma pessoa que trabalhava nesse abrigo que estudava muito, foi ótima aluna na escola pública, foi fazer vestibular e ela não passou. E fez de novo e não passou. E de novo, e de novo, estudando, estudando, dois empregos, sem biblioteca, sem computador, sem apoio de ninguém. Um belo dia ela passou, porque ela estava procurando uma escola pública, né? E aí ela entrou, entrou em Letras na USP, que era o que ela queria.

P/1 – Essa pessoa?

R – Essa pessoa, chamada Nádia. Entre a primeira vez que ela prestou até o ano que ela passou foram 15 anos, então, foi um evento, foi um acontecimento lá na região. E aí eu peguei o final desses 15 anos dela. E ela conversando comigo falou: “Puxa, seria legal se tivesse um lugar onde as pessoas pudessem ir pra aprender, porque a escola não me ensinou uma porção de coisas. Uma coisa que fosse um ponto de apoio pra outras Nádias” “É, seria legal. Por que a gente não faz isso?” Porque nessa época eu também estava trabalhando naquele programa da Escola da Família e estava tendo contato com um pessoal que achava que você ia de ônibus pra Europa e que ia fazer o vestibular em novembro. Então, e você sentir que o pessoal chegava, o pessoal vinha, as aulas eram no domingo – isso era no Brooklyn – no domingo das oito ao meio-dia. O pessoal vinha sem tomar café da manhã, o pessoal vinha a pé porque não tinha dinheiro pro ônibus. E vinha com essa expectativa, que você ia fazer uma mágica, tirar um coelho da cartola e dar um jeito da pessoa conseguir em seis meses por tudo o que a escola não tinha passado. Nesse período fecharam a unidade do Brooklyn, a escola que fervia de atividades, tinha aula de inglês, tinha aula de espanhol, tinha futebol, tinha corte a costura, tinha o preparativo para o vestibular, que era onde eu ia com o pessoal. Então, tinha um monte de atividades, mas aí alguém achou que o Brooklyn não é uma região de risco social e fecharam, cortaram, então a escola passou a ficar vazia, sem nada, sem nenhuma atividade, do que ser aproveitada como ela era. Então estava uma fase assim que falava: “Caramba, não é possível, como é que pode?” Nessa época vem a Nádia falando que era utopia ter um ponto de apoio. “Ah não, por que a gente não faz um? Uma coisa que não venha o governo depois e feche”. E aí a gente foi ver como fazia. Primeiro a gente foi ver se alguém estava fazendo isso na região, e não tinha ninguém.

P/1 – Lá no Brooklyn?

R – Não, Jardim Ângela. Não tinha ninguém. Mas nem pra dar reforço, nem pra nada, né? Bom, então a gente podia fazer. Não é uma escola, porque não vai dar diploma; o problema não é o diploma, é aprender. Um lugar que você fosse pra aprender, já pensou que legal? Então, não é uma escola. É um absurdo, porque deveria ser a escola, né? Vou aprender, então é uma escola. Não não, não é uma escola, o lance não é o diploma, o lance é você aprender. E aí a gente começou os Educadores ali.

P/1 – Quando foi isso?

R – Isso foi em 2007, foi há sete anos que começou. E a ideia era ter um lugar onde se tornasse prazeroso o aprender. Quando a gente começou, os pontos que a gente sabia que seriam importantes, que se mantêm, os nossos pontos, pilares, do que a gente quer fazer lá. Então, por exemplo, a aula tem que ser interessante, de aula chata chega. Cada aula você tem que trazer pra eles alguma coisa que seja muito interessante, muito diferente, muito cativante. É bom que tenha um pouco de diversão também, então se não sai nenhuma gargalhada na sala do lado eu fico até preocupado, tem que ter, tem que ter alguma coisa que o pessoal dê risada. As turmas são pequenas, então é mais raro a situação de alguém, não tem o pessoal falando: “Não perguntei porque fiquei com vergonha”, ou porque alguém chamou de burro e tudo o mais. Ali não, o grupo é pequeno, então todo mundo sabe o nome de todo mundo.

P/1 – E são todas as matérias ou é ministrado tudo junto?

R – São todas as matérias. A gente cobre todas as matérias e a gente separa do que é ensino fundamental do médio. Os do médio são juntos...

P/1 – Esse é o Professores sem Fronteiras?

R – Educadores sem Fronteiras.

P/1 – E como nasceu esse nome?

R – A gente sabia que a gente queria fazer uma coisa além de simplesmente dar a aula. A gente sabia que não era só transferir conteúdo, não era só colocar um chip na cabeça do pessoal e transferir informação. A gente sentia, até pelas crianças do lar, a gente sentia pelo entorno do que a gente conhecia, da dificuldade dos pais e das mães de estarem presentes. Então tinha uma parte da tarefa do professor na região que acaba sendo de dar educação mesmo, não é só o lado ensino acadêmico, né? E o Sem Fronteiras começou por dois pontos. Primeiro porque ninguém queria, quando a gente começou a falar de uma organização assim, onde não tinha nem o nome, era só a ideia, ninguém queria atravessar o rio, todo mundo queria ficar do lado de cá. Então quando se falava em Jardim Ângela, qualquer coisa do lado de lá, é como se fosse uma área proibida. “O quê? Mas lá é muito longe” “Ah, mas lá é violento” “Ah, mas lá é isso”, então ok, a gente quer passar essa fronteira. Aí a gente foi vendo que tinha uma porção de fronteiras. Pra nós, por exemplo, você não consegue dar uma aula de História sem falar de Geografia, porque você tem que contar onde aconteceu isso, pelo menos lá você tem que mostrar no mapa, porque senão você fica falando sozinho, você não mostra onde foi, e se você não contar também onde fica a Bolívia – o pessoal colocou a Bolívia perto da Mongólia outro dia. Então você tem que contar, senão você fica falando sozinho. “O rei Blirb do país chamado Blérbia” “Onde é Blérbia, que Blérbia?”, então se você não conta direitinho: “Olha, esse é aqui, tá vendo o Brasil aqui? Esse aqui está aqui”, então você tem que poder passar da História pra Geografia. Da Física pra Matemática nem se fala. E o Português tem que estar em dia. A professora que entrou com o Português dá aula de Raciocínio Lógico. Então a gente procura gente que tenha uma curiosidade, que tenha uma xeretice, que não tenha muita fronteira no escopo do seu aprendizado, a gente busca muito isso. Então a transversalidade é um requisito e é uma coisa que a gente pratica quase toda aula. E o outro lado é a contextualização. Pra que serve isso? Por que você está me ensinando isso? Serve pra alguma coisa na vida real? Onde vai aparecer isso? E aí você tem que saber contar pra que serve, como é. Então, por exemplo, aqueles probleminhas do móvel que sai de tal lugar e chega depois de tantos segundos, aquelas fórmulas terríveis, o que a turma gostou mesmo foi de calcular quanto tempo leva uma frente fria passar de Porto Alegre e chegar aqui. E aí eles começaram a fazer entre eles também, pra ver quem acertava, quem fazia o cálculo. “Eu acho que... pela velocidade tal, são dois dias” “Não, mas quantas horas?”. E começaram a ver que tem alguma coisa viva por trás daquelas fórmulas chatas.

P/1 – Mas aí estava você, a Nádia, quem mais estava nesse momento?

R – Eu e a Nádia começamos e a Nádia teve que sair logo depois, porque ela começou o curso dela, que ela lutou tanto pra fazer, começou a exigir, até pra Licenciatura e tudo o mais, uma dedicação em tempo que não permitia que ela fizesse o trabalho junto, então ela saiu. Nós temos professores que são contratados.

P/1 – Mas vocês criaram o quê? Uma ONG?

R – Uma ONG. Uma ONG chamada Educadores sem Fronteiras; a gente tem o título de Oscip.

P/1 – E o espaço? Como vocês faziam?
R – Nós alugamos do outro lado da rua do abrigo. E até hoje nós alugamos.

P/1 – E a manutenção, de onde que vocês conseguiram os recursos iniciais?

R – O primeiro recurso veio do Citibank. Porque aí a gente procurou uma consultoria do terceiro setor que mostrou como era o arcabouço jurídico, que aquela ideia tinha que virar um projeto. Houve todo um trabalho. A Carol, não sei se você também conhece a Carol Zanoti, ela participou disso também, dessa construção, e aí com um projeto embaixo do braço a gente começou, então, o desafio de tentar conseguir apoio financeiro. E alguém conhecia alguém que conhecia alguém no Citibank. “Olha, parece que tem a possibilidade.” A gente tinha esquematizado em três partes tudo o que a gente precisava pra começar, né? “Ah, vamos pedir só um terço então, mais fácil, é mais possível que eles aceitem” “Não, vamos pedir dois. Pede dois, porque aí se faltar um vem pelo menos um e a gente começa” “Vamos pedir os três! Pede tudo de uma vez”. A gente foi, colocou o projeto todo com eles e eles gostaram e aprovaram. Foi muito legal. Então o pontapé inicial foi de onde vieram os projetores, os computadores, as carteiras e a gente começou. Esse foi o primeiro apoio.

P/1 – Você continuava no seu trabalho e articulando a ONG.

R – Continuo até hoje. Tenho uma vida dupla.

P/1 – E criança, adolescente, quais são as idades atendidas?

R – São adolescentes principalmente, pessoal de sétima série, oitava série, ensino médio. E também o pessoal que já completou, igual a Nádia, pessoal que já completou e quer voltar pra aprender.

P/1 – É inteiramente gratuito?

R – É. É gratuito.

P/1 – A pessoa se inscreve por matéria?

R – Não. Você não pode se inscrever só pra uma parte, você entrou, você entrou pra tudo. Sem fronteiras, você vai pegar tudo. Você quer o quê? Você está no núcleo do ensino médio? Então você vai ter as oito matérias do ensino médio. Fundamental? Então você vai ter a parte de linguagem, a parte de Matemática, de Ciências, é mais misturado o fundamental, mas você tem todo o conteúdo no ensino médio.

P/1 – E é todo dia, qual é a carga horária?

R – Tem a turma da semana e pra quem trabalha durante a semana tem a turma do sábado. Então ou você vai na turma da semana e vai duas vezes por semana, ou você está na turma do sábado e aí é uma vez por semana. E a gente faz de tudo pra que ao longo da semana a pessoa desenvolva as coisas que a gente comenta no sábado, por exemplo, falando da turma do sábado.

P/1 – E nesses anos, desde 2007 até agora, vocês tiveram vários mantenedores ou é um só, cada vez é um patrocínio?

R – Vários, vários. E tem gente, por exemplo, o Citibank não faz uma manutenção ao longo do tempo, é pontual, então é uma coisa com começo, meio e fim. Eles ajudaram a gente, deram um empurrão no começo, mas aí eles se retiraram. E a gente foi trabalhando a captação em outras empresas. Então veio o Banco Fibra, veio o HSBC, vieram outras empresas que seguiram tocando o projeto.

P/1 – Quantas crianças já passaram por lá, adolescentes?

R – Eu acho que se contar desde o começo acho que 500, 600, mais ou menos. Porque as turmas são pequenas, né?

P/1 – E vocês fizeram parceria ou foram beneficiados pelo Criança Esperança?

R – Foi. Nós nos candidatamos e fomos contemplados, então a gente passou o ano de 2012, 2013 foi começo, acho que foi mais a fase final do trabalho, 2012. Durante um ano eles ajudaram um projeto específico dentro dos Educadores sem Fronteiras.

P/1 – Que projeto?

R – O projeto chamava “Alquimia dos Saberes”, ele era voltado ao lado prático, experimental, então alguns laboratórios que a gente ganhou deles pro pessoal poder manipular coisas e não só aprender em livros. E também o que a gente sabe de Expedições do Saber, que era levar o pessoal pra lugares onde eles pudessem interagir com esse tipo de informação. No caso um pouco mais voltado, era voltado ao lado Química, Física e Português, então tinha um Laboratório Linguagem também, a gente brincava com as palavras, então tem o Museu de Língua Portuguesa, então tinha umas coisas meio fora do esquadro, né? Você fala em Alquimia parece que vai ser só Física e Química e de repente nós estávamos vendo as palavras lá, fazendo alquimia com as palavras.

P/1 – Como é esse processo de seleção do Criança Esperança? Você inscreve, como vocês ficaram sabendo, como é que foi?

R – É muito famosa a existência do projeto, a gente já sabia que eles faziam esse tipo de trabalho há muito tempo. E aí nós nos inscrevemos pra isso, pra tentar ser premiado, vamos dizer assim, escolhidos, por eles. E eles gostaram do projeto. Fizeram uma série de perguntas, trocamos muitas informações e aí foi efetivado e ficamos por um ano com eles.

P/1 – E dá pra saber quantas crianças foram beneficiadas nesse programa?

R – Nesse programa foram 128.

P/1 – E qual é a verba?

R – Ah, eu não me lembro, eu vou ter que resgatar na documentação com você, mas foi o suficiente pra desenvolver essas atividades, quer dizer, ter esses laboratórios, ter os educadores com eles e também promover essa excursões.

P/1 – Qual é o impacto na vida dessas crianças e adolescentes com projetos como esse?

R – O impacto, tem alguns efeitos colaterais que não são o nosso objetivo principal, eles acontecem, mas nós não nos norteamos por isso, tá? Por exemplo, aprovações na escola, desempenho escolar, aprovação em faculdades, aprovação em Etec, enfim, quando a gente está com eles a gente trabalhava mais o lado curiosidade, é o lado fascínio pra que a pessoa perceba que é legal, ganhe gosto pela coisa e vá ela procurar o conhecimento, despertar a curiosidade, aí ela vai sozinha. Pra quem está na parte de captação, o pessoal mede muito por números, quantos que foram aprovados, quantos que não foram. E esse não é o nosso objetivo. Em termos de quantidade nem é o nosso objetivo mesmo, porque a gente não quer ter milhões de alunos nossos. Nós temos mais de 120 cidades que querem que a gente tenha uma unidade dos Educadores nela. E a gente não quer ter uma unidade em cada cidade. A gente acredita que é mais fácil acabar passando pros professores de cada uma dessas cidades, compartilhar de graça o que a gente faz, como a gente faz, seria treinar os educadores.

P/1 – Nessa metodologia.

R – Nessa metodologia. E ajudar a escola de dentro pra fora. Não é ir lá e fazer um McDonald’s do fascínio e em cada lugar, no Rio Grande do Sul, no Amazonas tentar deixar o pessoal fascinado e animado pra aprender. Não. É fazer que isso aconteça onde tem que acontecer que é na escola. Então o nosso alvo mesmo são os educadores. No nosso plano a gente estaria fazendo isso daqui uns três anos, mas estão aparecendo umas oportunidades, talvez, de antecipar isso. A gente pensava: “Depois de uns dez anos de maturação, tudo, a gente consegue compartilhar alguma coisa”, mas eu já tenho algumas coisas legais pra começar a compartilhar. Então tem uns contatos com empresas aéreas pra tentar conseguir passagens, com hotéis também, vão ter outros mantenedores que vão ter que vir pro médio prazo.

P/1 – Quantas pessoas trabalham hoje na Educadores sem Fronteira?

R – Como educadores só seis, sendo que dois são voluntários e quatro são CLT.

P/1 – E no corpo administrativo?

R – Ah, é muito pequeno, nós temos mais três pessoas. É um grupo pequeno. Por enquanto não precisa ser maior. Talvez daqui uns dois, três anos tenha que aumentar.

P/1 – Quer dizer, e o futuro dele é isso que você pensa, essa transferência dessa metodologia, dessa tecnologia que vocês têm.

R – É, do método.

P/1 – Tem 120 escolas cadastradas?

R – Não, tem 120 cidades do Brasil que entraram em contato conosco pedindo pra gente ir pra lá. Mas mesmo sem saber: “Queremos educadores aqui, seja lá o que for. Porque a Educação está numa situação muito ruim aqui na cidade, gostamos do que vimos no site e tudo o mais”. Isso é o número de cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, a gente teve mais de cem contatos de uma cidade. É muita gente. E o quadro que eles pintam é um quadro complicado, seja no Rio Grande do Sul, seja no Nordeste, a desmotivação, falta de interesse dos alunos, violência, droga, pessoal sem ver o motivo de estar aprendendo aquelas coisas. Então, tem um longo trabalho pela frente. E a gente comenta que a ideia dos Educadores é eles acabarem, né? O grande objetivo é fazer a festa de encerramento, vai ser no dia que o Brasil conseguir chegar nos índices de avaliação educacional da Finlândia. E se a Finlândia entrar em decadência não vale, tem que ser a gente subir até onde eles estão hoje. E a gente sabe que isso não acontece tão cedo.

P/1 – E na sua vida, o que mudou desde a criação do Educadores sem Fronteiras?

R – Os momentos que eu passo lá, eles me dão sensação de plenitude, sabe? São momentos que eu sinto que eu estou exatamente onde eu deveria estar no planeta, o que é uma coisa rara, uma coisa que fora das atividades que eu chamo de doação, do lado social, é difícil encontrar momentos que sejam assim, tão intensos, que me complementem tanto, me completem. A sensação que eu tenho, em poucas palavras pra te explicar, é essa, é de sentir: “Olha, era aqui que era para eu estar. Bem aqui. Não era ali, não era lá, era aqui. Era aqui, agora, com essas pessoas”. Então ele me completa. Eu acho que se você tirasse esse lado da minha vida, dessa atividade, seja em Educadores, seja onde for, ela perderia boa parte do sentido. Minha esposa entende isso porque ela tem uma atividade dela também.

P/1 – O que ela faz?

R – Ela dá aula de dança e de yoga. Então ela tem uma atividade com detentas através da dança. E ela, nossa! Quando a gente vem contando cada um da sua atividade: “Nossa, mas foi muito legal, você não... não, você faz ideia! (risos) Sim, você faz, você entende”. E ela curte muito. Como ela também foi mordida por esse bichinho, então ela tem as atividades e fica fácil de entender, vai cada um para um lado. Só que você sabe que é muito importante esse lado, né? E a Thais que é a minha filha, ela falou: “Nossa, parece que isso persegue, né?”. Porque ela manteve contato com boa parte... o abrigo, ele não existe mais, então toda aquela criançada teve que voltar pras suas... agora já não tão crianças, né, voltaram pras suas famílias, espalhadas por São Paulo, pelo Brasil inteiro e a minha filha conseguiu agora, graças ao Facebook, retomar o contato com uma porção delas. Tanto que no aniversário dela em julho acabamos almoçando todos juntos no shopping, uma penca de gente lá. Foi muito bacana rever todo mundo. E ela foi pra Suécia a serviço e agora ela foi por conta própria, está garimpando a possibilidade de ficar por lá, e ela, a pessoa da família onde ela ficou trabalha com ajuda aos estrangeiros, imigrantes. Ela falou: “Pai, você não vai acreditar, a Karen trabalha aqui ajudando o pessoal aqui que veio da Síria, da África e tudo mais. Fui lá ajudar outro dia. Parece até que tem um negócio bom pra fazer um gancho, fazer um trabalho social na África” “Pera lá, mas tem tanta coisa pra fazer aqui no Brasil, né, você tem que ir até a Suécia pra ir procurar gente na África? Está a um quarteirão, você tem coisas pra fazer aqui no Brasil”. Mas enfim, talvez o destino seja lá na África mesmo e lá vai ela. É muito divertida a Thaís, eu pago covert artístico pra ela até hoje, eu sempre achei fascinante o que ela fala, desde pequenininha, curti muito, e continua.

P/1 – Está com quantos anos?

R – Ela está agora com 27 anos.

P/1 – É filha única.

R – Filha única.

P/1 – E seu cotidiano hoje, como é que é? Você vai pro trabalho...

R – No horário comercial eu trabalho nessa multinacional. Boa parte das noites tem atividades dos Educadores que eu tenho que tocar e o fim de semana, sábado dos educadores, domingo é o dia da cachorrada e quando a Thaís está por perto, está em São Paulo, também sair com ela. E de vez em quando dar uma fugida pra descansar um pouco dessa correria toda, aí Monte Verde é um dos pontos mais próximos e mais desejados. “Vamos pra Monte Verde?” “Vamos”.

P/1 – Bom, deve ter milhares de pontos, você tem uma história riquíssima que a gente não tocou e que vai ficar com aquela sensação: “Ai, podia ter falado tal coisa” (risos), mas tem alguma coisa que te ocorre agora, que a gente não tenha falado?

R – Bom, em relação ao trabalho, acho que para eu dar uma linha pra tudo isso. Eu acho que muita gente vê, por exemplo, o trabalho dos Educadores como sendo um trabalho acadêmico, um trabalho educacional. E alguns professores chegam lá pra dar aula e eles têm o dom de ensinar, eles conseguem navegar de uma matéria para a outra, o cara dá Matemática e Biologia, Física, gosta de tudo, é xereta e tudo o mais, mas falta, às vezes o principal, que é a capacidade de você enxergar nos alunos que chegam, de enxergar o ser humano. E não uma caixa vazia onde você vai jogar conteúdo. Então tem um lado amor que é um negócio básico, fundamental e que, na minha visão, ele vai muito além do que os Educadores, ou do que a Rockwell, é uma coisa muito mais ampla, que é necessária lá e que é necessária em toda parte. Então quando me perguntaram uma pergunta dificílima, qual religião? Fazia parte lá, junto da data de nascimento, endereço, religião. Qual a religião? Quando eu comecei, até os 11 anos eu fui lá com a minha mãe pra ir pra igreja, aprendi os canto da missa, tudo, e depois comecei a perguntar, fazer perguntas que não estavam no script, eu fui meio saindo aos poucos, o que me levou ao Espiritismo, respondeu algumas perguntas e aí depois comece ia procurar, sempre xereta, comecei a investigar outras religiões, eu que falo, o pessoal, o que falam os muçulmanos, o que falam os budistas e acabei concluindo da minha cabeça que é tudo meio igual. Um bom judeu é igual um bom cristão, que é igual a um bom espírita e não tem muito sentido. Então se pergunta hoje qual é a sua religião. Tá, Budismo é filosofia, sei lá. Põe aí Ecumênico. Por sentir, por uma série de descobertas. Eu acho que o CVV ajudou, a Febem ajudou também, de ter bem claro que a divindade mora em tudo, em todo mundo. Então o amor vem daí, é difícil você separar: “Não, eu gosto desse, mas eu não gosto daqueles” “Ah, não gosto dos ricos porque eles são esnobes”, não, eu descobri que não são. Sabe, descobertas de: “Não, isso é assim”, os rótulos acabaram, ao longo da minha vida eles foram caindo um por um, né? Então hoje o que eu sinto é que a energia que passa por mim, pelos alunos é a mesma que está em cada ser vivo, nos animais. Adoro as ONGs de animais também, se pudesse, se tivesse dois sábados na semana ia dar um jeito de fazer alguma coisa com o pessoal do Vira Lata é Dez, alguma coisa assim, porque eu gosto muito do trabalho deles, acompanho no que eu posso. E todos os trabalhos que são movidos pelo amor você percebe e eu não sei o quanto vocês têm contato, um que foi um inspirador foi o próprio Wellington Nogueira do Doutores da Alegria.

P/1 – Ele é conselheiro aqui.

R – Ah, é?! Olha que legal!

P/1 – É um dos maiores alunos da Karen, que é diretora daqui.

R – Olha, que bacana! Você sabe que depois de conhecer o trabalho deles ele apareceu numa festa e tal, a gente foi lá tietar, né? “Vamos ou não vamos?” “Vamos”. Aí vamos lá. E no final, até no começo dos Educadores ele deu uma série de dicas. Algum tempo depois eu fui lá pra conversar com ele, tudo. Eu sempre fui grande fã do trabalho deles. Eles têm umas... não sei se você chegou a ver as rodas artísticas que eles fazem dentro? Não as que eles fazem, eles têm as internas, onde eles treinam, as duplas treinam com as outras duplas e depois eles têm a orientação. Nossa, é muito legal! Mas você sente ali uma certa eletricidade no ar, você sente um amor, você sente uma vibração que é... no final, sem que eu soubesse, perceber isso foi o meu caminho, né? Porque se eu for olhar pra trás onde tinha esse amor? Na Febem, tinha no CVV, tinha no abrigo. E na verdade tem em todo lugar. Então você não exclui, na verdade. Uma pergunta, né? Por que excluir os parentes do seu amor pelo mundo? Ou os animais. Ou os vegetais. E aí natureza. Então quando falo do termo holístico, não, holístico é bem mais holístico do que normalmente o pessoal fala. Então hoje eu sinto isso com muita força, muita intensidade. E eu procuro nortear a minha vida nessa direção. Quando começa a faltar e começa a ficar muito tecnóide eu tento correr, tá errado, não é por aí, é por aqui. E o aprendizado é diário, isso no meio industrial, no meio dos Educadores com o pessoal de outra geração, é muito divertido.

P/1 – Paulo, o que você acha que ações como essa do Criança Esperança podem ajudar instituições, ONGs como a sua?

R – Pode ajudar a concretizar sonhos. Essas ONGs, na verdade, muitas delas estão realizando sonhos. Aquelas que lidam com pessoas, que estão ajudando, seja criança, seja idoso, essas ONGs estão tentando levar pros atendidos alguma coisa que está faltando pra eles, que a ONG acha que pode suprir, pode ajudar, e o Criança Esperança ajuda, dá o meio pra você fazer. Porque se você não tiver a força da grana que ergue e destrói coisas belas não rola, você pode estar cheio de vontade, com grandes planos, mas pra transformar em realidade tem que ter o Citibank da vida, ou tem que ter um Criança Esperança da vida pra tornar realidade, né? E você percebe que muito do que é feito nessas ONGs talvez não precisasse se a realidade do país fosse outra; se você tivesse uma distribuição de renda menos desigual, se você tivesse mais oportunidades, se você tivesse condições básicas de saúde, de segurança pra toda população talvez não precisasse. Não precisaria dos Educadores se o sistema educacional fosse decente, fosse bom, por que precisaria? Mas já que é assim, alguém tem que fazer, vamos fazer. E é a hora que aparece um Criança Esperança da vida e isso ajuda, isso é o que junta a vontade de quem tem vontade de ajudar com os recursos que eles têm e podem propiciar pra nós. Então aí que o sonho vira realidade. O impacto na vida das pessoas, que você perguntou antes, é muito grande porque não fica só na vida da pessoa, você acaba impactando a família também. Então alguns alunos que acabaram sendo aprovados pra, por exemplo, Unicamp, Unesp, a família entrou também no envolvimento: “Puxa, meu filho vai mudar de cidade”. Teve uma que passou na Unicamp e estudou que nem uma doida durante esse ano na Unicamp pra não perder o ano na Unicamp, mas também estudou no vestibular aqui, entrou na USP no ano seguinte e voltou pra São Paulo. Então, a vida dessa turma muda, muda. E os que não foi um exame, uma coisa assim, o que eles comentam é que mudou a maneira de ver o país, mudou a maneira de ver a própria vida, sabe, começaram a descobrir uma série de coisas, começaram a ter uma noção do que podem fazer. Eles chegam muito achando que não podem nada, que não conseguem nada. Teve uma menina que estudou conosco, que ela achava que não deveria prestar o exame da Emesp, embora adorasse música, porque era muito difícil e ela não tinha instrumento pra ensaiar. Bom, no final ela conseguiu se virar, de tanto a gente empurrar ela arrumou um instrumento com uma amiga e ela passou no exame. No que ela passou no exame ela percebeu que ela podia passar em alguma coisa. Chegou um ponto ela falou assim: “Aqui é o lado prático, vou procurar o lado teórico também”. E aí ela fez o vestibular para Música e entrou no vestibular também. E lutava com mil dificuldades financeiras, não morava com os pais, morava com a avó e hoje ela se sustenta dando aula de Música. E continua na Emesp, continua estudando também na faculdade, super animada, já tem um grupo, já toca na noite e dá mais aulas, e começa a viajar. Então pegou um caminho. E todo mundo falava pra ela: “Não, mas Música não dá”, ela mesmo comenta, tem eventos que ela vai dar o depoimento dela: “Falaram pra mim que Música não dava dinheiro, que eu nunca deveria ir pra Música e mais do que sobrevivendo, eu estou vivendo, estou vivendo, estou curtindo, adorando”. Então, o quanto que, qual é o impacto, o que é grande, o que é pequeno, é difícil de dizer, né? Aí o pessoal fala: “Nossa, mas eu esperava que você tivesse atingido dois milhões de pessoas”. Não, dois milhões é quando a gente multiplicar por conta da escola pública, agora não são dois milhões. E você falar, por exemplo, foi só uma pessoa. Nossa, foi uma pessoa inteira. Eu me lembro de sábados lá na Febem em que um sorriso teria valido um sábado inteiro. “Ah, mas é pequeno” “Não é pequeno, a sua régua está errada. Se você acha que isso é pequeno tem alguma coisa, troque de régua”. Quando você fala do impacto, às vezes, pensar de uma ou duas vidas específicas, você lembra dos casos, assim como eu lembro daquele caso do CVV, né, mas você lembra de casos que são muito marcantes. E o que a gente fez, na verdade, não foi nada, a gente só deu elementos pra pessoa desabrochar, é mérito dela, ela que foi atrás, ela procurou, ela se esforçou e fez. Não tem muito isso de: “Não, nós fomos o Pigmaleão”. Não. Seria uma ilusão total, né? Enfim, não sei se isso dá uma certa linha pra história inteira, né? O cultivo da curiosidade. Outro dia fizeram, um grupo de alunos tinha um trabalho pra fazer na faculdade sobre uma ONG voltada à Educação e vieram bater na nossa porta. “Podemos ir aí, podemos fazer uma visita?” “Sim, pode vir”. Aí mandaram as perguntas, tinha 70, 80 perguntas, um monte de perguntas. Perguntaram, perguntaram, perguntaram. Aí uma certa altura o cara falou assim: “Mas, meu, você consegue resumir em três palavras o que a pessoa encontra aqui?” “Três?” “É, três” “Mas força de expressão?” “Três palavras, escolha três palavras”. “Uau. Então tá bom, as suas três vão então: fascínio, curiosidade e amor. Pronto, leva essas três”. Não sei como eles usaram isso no trabalho, mas é um resumo dessa história inteira. Eu sempre me fascinei muito com as coisas. E quando você se fascina, você vai contar uma coisa muito fascinante pros outros, aí a pessoa acaba pegando por osmose, ela fica fascinada também: “Nossa, é mesmo?”. Leitura é um problema pra nós, é um dilema. Porque a pessoa que lê mal tem problemas em Biologia, em Física, em Matemática, não entende nada. O enunciado da Matemática ela não entende porque não consegue ler direito. Então pro pessoal que não gosta de ler, todo mundo gosta de um causo, pode não gostar de ficar lendo, mas gostar de uma história todo mundo gosta. Então o que às vezes eu faço, maldosamente, é começar uma história bem legal, alguma crônica que seja, uma prova de desinteresse e quando chega no meio: “Ok, daqui pra frente vocês vão descobrir, vocês se virem pra descobrir como termina a história” “Como assim? Você não vai contar?” “Você não queria saber?”, então por exemplo, uma crônica, um conto da Lygia Fagundes Telles, “Venha Ver o Pôr do Sol”. É muito legal, um casal que se reencontra depois de algum tempo, o cara marca um encontro no cemitério e a menina não entende porquê, eles vão passeando pelo cemitério, depois acontece alguma coisa com a menina. Então, você vai lendo e lendo, e com as palavras, tal, tal, tal, o pessoal vai se ligando, se ligando, a hora que eles estão bem sintonizados, que dá umas sete folhas a crônica, você chega lá pela quatro, você para. “Agora você vai procurar”. “A Pata do Macaco”, do Jacobs, você lê até a metade: “Será que o cara voltou ou não voltou?”, eu não vou contar. “Você vai contar, né? Nem na semana que vem você vai contar?” E aí depois alguém vai e conta pro outro: “Meu, dá hora, muito legal!”, vê no Facebook. “Você leu?” “Eu li, mas eu achei que era um ET que ia parecer e não sei o quê”, aí vão. Então, semear o fascínio, de alguma forma você tem que fazer com que a pessoa chegue naquilo e perceba que é fascinante, né? Mas se você não fizer isso primeiro tendo o ponto de vista seu na pessoa, no outro, não rola. Fazer como fosse uma receita de bolo. Então, tudo isso está muito junto, né? E é isso.

P/1 – Ótima a sua história, queria agradecer!

R – Ah, obrigado vocês de dar opinião!

P/1 – Você é um ótimo contador.

R – Vocês podiam visitar a gente um dia lá.

FINAL DA ENTREVISTA