Museu da Pessoa

Virando a sorte

autoria: Museu da Pessoa personagem: Antônio Austregesilo Neto

Memória Oral do Idoso
Oficina Cultural Mário de Andrade
Depoimento de Antônio Austregésilo Neto
Entrevistado por _______
São Paulo, 10 de outubro de 1992
Realização Museu da Pessoa
Entrevista nº 16, fita nº 10
Código: MOI_HV016
Transcrito por: Fernanda Regina

R - Bem, meu nome é Antônio Austregésilo Neto, nasci no Rio de Janeiro, 19 de março de 1931, portanto, estou hoje com 61 anos. Filho de Antônio Moraes Austregésilo, do Rio de Janeiro, também médico e Lúcia Azevedo Silva, São Paulo, prendas domésticas. Meus avós paternos são Antônio, também Antônio Rodrigues Lima Austregésilo, médico também e Maria Hermínia que também era do lar. Os avós maternos, então tem o Gustavo Azevedo Silva que não conheci porque morreu quatro anos depois do casamento, médico também, e Maria Orminda Azevedo Silva, minha avó, com quem eu cresci e me criei, uma vez que minha mãe separou do meu pai quando eu era ainda muito pequeno, estava com cinco anos e vim, então, morar com ela, vim residir aqui em São Paulo, na casa de minha avó e ela me acompanhou durante toda a vida.
Não tenho, assim, nada de extraordinário em relação a infância. A infância transcorria, como transcorria as infâncias das classes médias da época. Isto é, nós frequentávamos colégios, naquela época o Jardim de Infância, começava o Jardim de Infância, depois ia para o curso primário, depois se seguia para o ginásio, não é? Colegial e daí por diante. Tentando, assim, relembrar alguma coisa importante da infância. Talvez alguns os amigos, né? Os amigos... Eu acho que, justamente, pelo fato de minha mãe ter sido desquitada de meu pai, naquela ocasião. Veja, o que eu estou dizendo, deve estar fazendo uns 50 anos atrás. Para uma mulher se desquitar há 55 anos, a coisa não era muito fácil não. Tenho impressão que justamente por isto minha mãe beba.
Veja, vamos considerar uma coisa, sou filho único. Eu havia esquecido de dizer isto no princípio. Por aí existe muito aquela ideia, aquela teoria de que filho único é sempre um camaradinha muito paparicado. Eu tenho impressão que, justamente, por minha mãe esse ter sido desquitada naquela época, na realidade, ela nunca me encaminhou no sentido de paparicação. Então, meus grandes amigos, meus grandes companheiros eram, na verdade, os moleques de rua e me lembro bem que dois companheirinhos que eu tinha... Nós morávamos numa casa muito grande lá no Paraíso, na Rua Sampaio Viana, tinha um jardim muito grande e em frente da minha casa estavam construindo uma série de sobradinhos, sobradinhos pequenos. Mas então havia, claro, os pedreiros, aquela coisada toda, mas havia o zelador da obra que morava, inclusive, na obra. Esse zelador tinha dois filhotezinhos, dois pretinhos, um chamado Clóvis e outro chamado Paulo. Eles moravam em frente à minha casa e eram grandes companheiros de travessuras, não é? Fazíamos travessuras sim, tocávamos campainha na casa dos outros, roubávamos campainhas, roubamos muitas campainhas, né? De vez em quando, nós roubávamos... Ih, muito bobinho... Roubávamos leite, naquela época era litro de leite de vidro. Deixava esses litros de leite na porta das casas, e realmente, nós, de vez em quando, pegávamos lá, estávamos com fome, encontrávamos leite e a gente pegava, pegava absolutamente consciente de que estávamos cometendo um crime e era aí que vinha o prazer da garotada, né? Cometer um crime. Mas, evidente, em casa tinha leite, mas esse leite não tinha sabor, né?
Havia muito futebol de rua, a nossa turminha era uma turminha bem camarada, bem camarada, muito amigos, participávamos de todas as festinhas típicas da criançada né? Festinha de aniversário, o São João com o balão, nada, assim, de tão extraordinário neste período, né? Não éramos briguentos porque já nesta época, me lembro bem, havia aqui em São Paulo o hábito das turminhas do bairro que não podia se encontrar com as turminhas do outro bairro, às vezes era bairro próximo, então tinha muito aquela ideia de posse, as meninas daquela região pertenciam àqueles meninos ou o menino do outro bairro não poderia namorar a menina daquele bairro. E realmente, invadir o território alheio era sempre um risco de vida. A nossa turminha não era bem assim, a nossa turminha permitia, de um modo geral, invasões. Para que houvesse qualquer tipo de revolta era preciso que eles passassem das medidas. Era realmente, eu acho, uma turma bastante civilizada, se é que se pode usar esse termo, não é? Não eram selvagens primitivos de jeito nenhum. Bem, fiz o meu curso primário em um colégio muito bom, na Rua Cincinato Braga, é ali também na Bela Vista, era o colégio Nossa Senhora das Mercedes, das Mercedes? Não, das Mercês, desculpe, Mercedes é coisa minha. Mas esse colégio era um colégio muito bom, ele foi montado por três irmãs que eram professoras em um colégio famoso de São Paulo na época chamado Elvira Brandão.
Essas três irmãs saíram de lá do Elvira Brandão, montaram o seu coleginho, apenas o primário, tinha o Jardim de Infância, primeiro, segundo, terceiro e quarto ano primário e eu fui para lá exatamente no Jardim de Infância, era um colégio muito bom porque no segundo ano primário eu já tinha francês. No terceiro ano primário eu tinha francês em inglês. Naquela época, era hábito, terminava-se o quarto ano primário, então se fazia um ano de admissão ou se preparava, se fazia como se fosse uma espécie de cursinho para admissão ao ginásio, né? Bom, os alunos do Nossa Senhora das Mercês, não faziam nada disso. Eles terminavam o quarto ano primário e automaticamente eles ingressavam no primeiro ano do Ginásio, foi o que aconteceu comigo, saí do primário e fui para o Colégio São Luís. Assim, de curioso, em termos de curso primário, acho que nada especial, era uma casa boa, ampla, existe até hoje o local, hoje é um tempo religioso de uma seita, se eu não me engano, uma seita protestante, eu passo por lá e vejo alguma coisa reformada, mas a estrutura principal da casa está lá. Eu realmente, tenho muita vontade de ir um dia falar com o pastor encarregado, pedir licença para entrar e ver se eu recordo o que aconteceu.
Bem, agora estou vendo uma coisa lá, realmente aconteceu uma coisa importante comigo, foi lá onde eu quebrei a cabeça. Saindo do colégio, aquelas brincadeiras muito delicadas, né? Eu devia estar no terceiro ano primário e de repente um daqueles mais espertinhos me empurrou. Eu de costas, bati com a cabeça na guia e quebrei a cabeça. Foi aquela sangueira toda. Aliás, foi a primeira vez que eu convivi com meu sangue, não é? Aquele sangue escorrendo e realmente é uma experiência que ficou, muito bom. Vocês mulheres, com certeza não tem esse problema, né? Vocês não têm essa coisa, não é? Que nós homens de vez em quando podemos experimentar, é realmente muito válido. Aí fui pro colégio São Luís, passei bem no Colégio São Luís. Interessante do Colégio é que fui colega do Paulo Maluf, que está na crista da onda. Mas no Colégio São Luís as coisas para mim se passaram de uma forma um pouco diferente, eu saí de um colégio pequeno, relativamente pequeno, onde as professoras eram quase que amigas dos meninos e vou de repente para o Colégio São Luís, veja, que lá naquela época devia ter uns 70, 80 alunos em todo curso primário e vou para o Colégio São Luís que tinha ao redor de 900, 1000 alunos na época, e isso era um mundo novo para mim. Ali no Colégio São Luís, realmente foi a primeira vez que eu me dei conta de como era importante, na época, o camaradinha, o garoto ter o papai e a mamãe. Primeiro, porque até pra eu entrar no Colégio São Luís, parece que houve uma certa restrição. Os colégios de padres, naquele tempo, não sei hoje como é que está. Mas naquele tempo os colégios de padre eram muito rigorosos em defesa de uma certa moral, né? Que representava a tradicional moral cristã, pelo menos da população aqui de São Paulo, então naturalmente, para aceitar o filho de uma desquitada a coisa não foi muito fácil não. Eu havia ido muito bem no exame de admissão, eu fui um dos primeiros, não me lembro agora exatamente, mas eu devo ter sido ou segundo ou terceiro no exame de admissão, primeiro tenho certeza que não fui. Mas deve ter sido segundo ou terceiro.
Depois foi o seguinte, eu tinha uma tia, aliás tia bisavó minha, tia avó de minha mãe, que era muito ligada à igreja. Era uma senhora de muito dinheiro, eu tinha pouca convivência com ela, mas eu conheci, já bem velhinha para mim, não tinha muita convivência mesmo, mas ela tinha uma certa influência junto à igreja, não sei se ela ajudava muito aquelas obras religiosas. Mas ela, então, interferiu com arcebispo naquela época, acho que não tínhamos cardeal ainda, o negócio não estava tão importante. Ela interferiu e aí graças a interferência dela, eu fui aceito no Colégio São Luís.
Eu acho que foi um dos graves erros de minha mãe, minha mãe, na verdade, ela queria que eu frequentasse um ambiente bom, não é? Mesmo porque meu tio, irmão dela, havia sido aluno também do Colégio São Luís, então seria uma espécie de tradição da família, mas eu acho que foi um certo erro porque ali, pela primeira vez, eu me dei conta de como era importante você ter papai e mamãe em casa. Ainda que as relações fossem assim proforma, né? Ainda que fosse apenas a sagrada família burguesa, era importante ter imagem, não é? Veja, a coisa é muito curiosa porque nesse tempo os meninos usavam colarinho e gravata. Para poder ter ideia da coisa, andava-se com uma calça curta, tipo short hoje, meia comprida até aqui, nessa parte, nós usávamos uma camisa de colarinho, gravata e um paletózinho normal, podia ser jaquetão também, mas andávamos exatamente como homenzinhos, não havia essa de andar de camisa esporte como eu estou, como estamos agora não. Então veja, estou dizendo isso por quê? Porque, claro, aquela indumentária fazia parte de toda uma estrutura de colégio. Uma estrutura, por exemplo, em que os alunos usavam farda, nós tínhamos uma fardinha que era obrigado a usar todo domingo. Domingo, nós temos uma missa obrigatória, como bons católicos, nós éramos obrigados a ir à missa das 8 horas da manhã, de fardinha. Você vai ver uma fadinha branca, imagino que dá um trabalho para empregada para mantê-la branca, né, durante todas as missas. Então, esta fardinha, na realidade, representava toda uma mentalidade militar.
Isso não é, não vamos pensar que o Colégio São Luís era Colégio Jesuítas, não vão pensar que isso fosse exclusivo do jesuitismo não, porque outros colégios como São Bento, o Arquidiocesano, que eram irmãos Maristas, né? É, ainda são irmãos Maristas, também usavam o sistema da farda. Na realidade parece que o militarismo e ensino religioso, a coisa estava muito imbricada. Nós tínhamos alguns colégios não religiosos que usavam farda também, mas não tinham o espírito militar que determinava, que imperava nos colégios religiosos, porque, veja, nos tínhamos os postos, nós tínhamos soldados rasos, nós tínhamos os cabos, os sargentos, nós tínhamos tenentes, comandante de pelotão, nós temos os capitães, nós tínhamos os porta bandeiras, nós tínhamos toda uma hierarquia militar, hierarquia essa que se formava toda vez que nós tínhamos aulas do que se chamava exercício pré-militar. E ali, de repente, um menino que era até então companheiro do outro na brincadeira, no jogo de futebol, se tornava uma autoridade. Há um lado positivo e há um lado ruim de morrer, mas há um outro lado que eu às vezes fico aqui refletindo e questionando a validade dele porque, é claro, aqueles valores eram tremendamente rígidos e generalizava para qualquer tipo de valor, naturalmente englobava o valor familiar também.
Ora, eu era a ovelha negra do rebanho porque eu era o único filho de desquitada ali naquelas redondezas, nós tínhamos alguns que eram filhos de viúva, mas filho de desquitada mesmo, não tinha ninguém. O resultado, toda vez... Eu nunca fui assim um aluno muito comportado, nem depois que entrei no colégio também, não fui nenhum aluno brilhante era mediano, me virava, me virava bem, mas cada vez que eu fazia as minhas travessuras, muitas vezes, os padres diziam assim para mim: “Olha tá vendo você é filho de desquitada”.
Eu me lembro uma ocasião, foi terceira série no ginásio, eu estava muito mal, tanto que fui reprovado na terceira série, né? Repeti de ano, foi a minha única repetência, mas aconteceu. E eu me lembro bem que nessa ocasião havia o padre prefeito, era o que tomava conta de todas as classes da terceira série do ginásio, o Padre Lopes ele me chamou assim com ar muito sério, disse ‘preciso conversar com você’ e me levou para clausura. Me levou para clausura lugar, assim, meio misterioso para nós, né, meio esquisito. Entramos lá no quarto dele, ele me botou sentado e queria saber porque que eu estava tão mal nos estudos. Nem eu sabia, eu estava, na verdade, com uma preguiça miserável, sem a menor vontade de estudar, né, mas eu acho que ele esperava uma resposta mais científica, algo ligado com pedagogia, qualquer coisa por aí. Eu disse assim: “Padre Lopes, eu acho que é porque eu sou filho de desquitada”. Bom, e resultou. Tinha entrado no terreno dele, foi uma coisa maravilhosa.
O grande caso é que nessa minha passagem pelo Colégio São Luís, pelo menos até a quarta série, quarta, talvez não tanto, mas até a terceira série, eu vivi certos dramas por causa do desquite de minha mãe e meu pai, mais para frente não. Depois eu fui fazer o clássico, pretendia fazer o curso de Direito, aí no clássico era de manhã, não era mais à tarde, já estava me achando um homenzinho, né? Já pus a minha calça comprida porque foi aos 15 anos que eu pus minha calça comprida, eu já era um homenzinho, já olhava para o meu buçozinho aqui para ver se vinha um bigodinho, né? Namorava aquele lápis de sobrancelha da minha mãe. Quer dizer, se eu pudesse usar esse lápis de sobrancelha e passar aqui no meu bigodinho, seria uma maravilha, né? Pra deixar comprido, mas não tinha coragem, né? É aquele negócio, iam me chamar de bicha, no mínimo. Naquela época não havia essa palavra bicha não, era pior, era censurável. Mas, então, realmente eu não dava muita importância para o problema de desquite.
Entrei, fiz o curso clássico, pretendia fazer o curso de Direito, mas, tem sempre um mas na vida né, mas quando eu estava fazendo esse curso clássico, eu comecei a namorar a minha atual mulher, e fui seduzido, uma criança inocente, seduzida em plena puberdade, foi que me aconteceu, aí me deu um desespero, eu digo: espera um pouquinho, curso de Direito eu não posso fazer, eu tenho que terminar esse curso clássico porque eu tenho que terminar de qualquer maneira, mas o curso de Direito significa mais cinco anos de estudo e eu estou querendo casar. Precisava casar de qualquer maneira, entendeu?

P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu estava... Eu terminei com 15, 16, eu estava com 17 anos, 17 anos, né? Para os 18. Eu precisava casar de qualquer jeito, queria casar, digo: eu não vou fazer curso de Direito coisíssima nenhuma. Eu tenho que trabalhar. Bom, aí arranjei um primeiro emprego aos 17 anos, quando eu estava exatamente terminando este curso clássico. E o primeiro emprego é aquilo que eu estava dizendo agora a pouco para vocês, foi um misto de picareta de automóvel e corretor de imóveis. Picareta de automóvel era o seguinte: era um camarada que não tinha loja de carro, mas que se tornava amigo de algum conhecido, de algum revendedor de automóvel, então ali ele fazia o seguinte, ele procurava alguém que comprasse os carros do revendedor de automóvel, né, ou procurava alguém que levasse os carros que interessassem pra ele poder comprar. Naturalmente, tinha que ser um preço baixo para ele poder ganhar, claro, vivia disso. E corretor de imóveis foi uma tentativa pouco feliz porque eu consegui vender uma casa, uma única casa. Era um inferno, levava todo mundo para ver imóvel para lá e imóvel para cá, mas na hora de comprar mesmo, ninguém comprava.
Nesse meio tempo, eu já estava exatamente com 18 anos e chegou a hora de fazer o serviço militar. Eu não queria de forma alguma fazer serviço militar, porque isso ia me atrasar vida. Eu precisava eu arrumar dinheiro, eu queria trabalhar porque eu queria era casar. Louco!

P/1 – Paixão...

R – Paixão, paixão, paixão doentia. Bom, arranjei uma carta de apresentação, com esse meu tio, irmão de minha mãe, uma carta que era endereçada a um oficial do exército, que era o camarada encarregado de fazer a seleção entre aqueles que iam ser convocados e que não vão ser convocados. Fui eu muito feliz e contente com a carta, tinha de me apresentar no... Meu Deus era aqui na... Meu Deus, aqui na Mooca na Visconde de Parnaíba, onde hoje é o departamento de imigração, lá funcionava a escola técnica de aviação e o local de apresentação era lá.

Eu contente com a minha carta, dizendo: tudo vai ser muito tranquilo. Aí cheguei lá e perguntei pelo tal tenente. Chamava-se tenente Areco, perguntando pelo Tenente Areco. ‘E o Tenente Areco?’ ‘Não chegou’ ‘E o Tenente Areco?’ ‘Não chegou’. E eu encostado aqui esperando, né? Para não aparecer, não meter minha cara, sem ter falado com o tal Tenente Areco. Bom, Tenente Areco não foi aquele dia, aí não teve jeito, era meu dia de apresentação, chegou uma hora que eu tive que me apresentar e fui convocado. Fui convocado pra aeronáutica e, de repente, virei soldado da aeronáutica. Então, eu era soldado, foi muito interessante, soldado da Polícia Militar da Aeronáutica, negócio muito sério. Eu ia ficar servindo realmente lá mesmo na própria Visconde de Parnaíba.
E o que era horroroso? É que durante um mês nós ficamos no quartel, sem sairmos. Nós tínhamos, assim, uma formação toda diferenciada dos outros, porque como éramos polícia, né? Nós precisamos ser... Veja como eu sou perseguido por essa maldita ética, maldita moral, todo lugar que eu vou tem um negócio da ética, da moral. Tô cheio disso! (risos). Mas nós éramos diferenciados, né? Como éramos diferenciados, durante um mês não saímos do quartel agora. Imagine você, eu apaixonado, querendo ver minha namorada e não podia telefonar, não escrevia, não passava telegrama, até tinha aquela piada do macaco lá da África.

P/1 – Que piada?

R - Vocês não sabem? Aquela história do camarada que chega no psicanalista e diz “Doutor, doutor, aconteceu uma coisa horrorosa na minha vida”, “O que aconteceu com você?” “Imagine, doutor eu sou caçador” “Até aí, tudo bem e daí? Qual é o problema?” “Olha, eu fui fazer uma caçada na África” “Sim, tudo bem? E daí?” “Imagine, eu estou vendo o elefante, então eu pego a minha espingarda e faço a pontaria para matar o elefante. Estou lá, na hora em que eu vou atirar, doutor, que coisa horrorosa, caí de cima da árvore um gorila. Um gorila enorme, nisso ele cai e derruba aquela espingarda no chão, aquele monstro, doutor” “E daí?” “Daí ele se aproxima de mim, doutor, ele me abraça e me dá um beijo aqui na boca, doutor. Mas que coisa horrível, depois ele vira, sai correndo e vai pela floresta lá para dentro.” “E dai?” “Daí eu tive que ir embora, vim aqui para o Brasil, não é? E desde aí, eu não durmo mais direito, eu quero que o senhor apresente uma solução para o caso, eu estou muito angustiado, por favor, por favor, me apresente uma solução”. E aí o analista diz “Amigo, nunca tive um caso desse na minha vida. Eu nem desconfio o que eu posso fazer por você, mas olha faz o seguinte volta aqui amanhã que eu vou pensar”. No dia seguinte o cara chega com um mapa, mapa mundi, na parede de consultório “Olha aqui, camarada, você tá vendo? A África é aqui, o Brasil aqui, você tá vendo? Entre os dois têm esse troço azul que é o oceano, Oceano Atlântico, o gorila tá lá, você tá aqui, veja ele não tem condições de chegar até aqui”. “Mas é isso mesmo, Doutor, ele não me telefona, não escreve, não dá notícia”. Então eu estava exatamente como este camarada, não é? Como este camarada esperando o gorila em pleno quartel. Bom, na verdade foram três meses de muita dureza, de muita tristeza, porque, nesses três meses, eu só podia sair no sábado de manhã, dormia do sábado para domingo em minha casa, mas domingo às nove horas da noite, eu tinha que estar no quartel outra vez para passar toda semana. E esse domingo respondia-se lá como pernoite. Bom, na verdade três meses, assim, de muita angústia, muita tristeza, muita dor, mas daí as coisas melhoraram porque eu fui transferido para o quartel general da Aeronáutica, que, nesta época, era aqui no Largo de Santa Efigênia. O quartel general era ótimo, porque eu entrava meio dia, começava funcionar meio-dia e encerrava às cinco horas da tarde. Me deram um carro maravilhoso, eu era encarregado do material bélico do quartel da Aeronáutica, quartel general da Aeronáutica, em 1950.
O material bélico era guardado no quarto que era metade aqui dessa sala e tinha caixotinho pequeninho de bala, tinha uns oito anos fuzis, mais ou menos, né? Algumas baionetinhas, umas coisinhas assim bem mixurucas, mas havia um detalhe muito importante, ninguém podia entrar naquele material bélico sem tocar uma campainha e eu abria ali uma janelinha olhava a cara do camarada para ver se ele era realmente um subversivo, se não fosse, eu deixaria entrar. Beleza, tinha uma campainha para o lado de fora, então estava completo para mim o quadro. Eu fechava a porta meio-dia, arranjei um colchonete, comprava um gibi, comprava um monte de gibis, me fechava lá, ficava olhando meu gibizinho, depois dormia.

Eventualmente, acho que isso aconteceu umas três vezes, foi muito pouco, alguém tocava a campainha, mas não era nada com material bélico não, era para saber alguma bobagem qualquer comigo: se eu ia tomar café, qualquer coisa por aí. Eu estava absolutamente na minha, além do mais, tinha uma comida muito boa, porque não havia diferença entre a comida dos oficiais e dos soldados, era a mesma comida, muitas vezes eu nem almoçava em casa, almoçava lá, que lá era melhor, então tinha toda noite à minha disposição. Não me preocupava absolutamente com horário, entrava meio-dia ainda que se eu não tivesse dormido de manhã, dormia de tarde, foi ótimo. Só que havia um problema, eu tive que deixar o meu trabalho. Bom, depois que dei baixa aí eu voltei a pensar seriamente em trabalho.
O primeiro trabalho que eu tive foi loteamento de venda de terrenos em Vila Gomes Cardim, Vila Gomes Cardim hoje é completamente cidade, asfaltado, tem metrô, aquela época ali perto do Largo Nossa Senhora do Bom Parto subindo para Silvio Romero, era inabitável. As ruas eram de terra, aquilo, realmente, era muito primitivo. Nós então fizemos lá, até foi um pessoal amigo que me ofereceu, fizeram lá um pequeno loteamento e com esse loteamento nós... Eu pelo menos consegui alguma atividade, voltei outra vez a vender automóvel, dessa vez não exatamente como picareta de automóvel porque tinha sempre um ou dois carrinhos de sociedade com um outro para vender e foi nessas condições que eu me casei.
Bom, aí quando me casei aí começam as despesas, despesas um pouco maiores. Eu nunca fui de dar muita importância, nem fui de me preocupar muito com o dinheiro, sabe? Eu era assim meio tranquilo, minha mulher não, minha mulher era altamente preocupada “O que vai ser de nós? Você gasta tudo”. Mas eu realmente gostava de gastar, o dinheiro entrava eu aproveitava para ir a restaurante, sabe, para viajar. Gostava muito de viajar, pertinho, sabe,

Rio de Janeiro, Poços de Caldas, Águas de Lindóia, Águas São Pedro, aqui mediações, Santos, gostava muito de tomar aquele cafezinho, sair daqui de madrugada e tomar cafezinho no Atlântico e voltava outra vez, uma delícia, né? Eu curtia, gostava de ir de manhã lá pra Santos cedinho, comer ostra, tomar vinho branco, eu realmente curtia a minha mulher ficava desesperada comigo, mas ela ia junto.
Aí eu entrei num primeiro negócio um pouco mais sério, que foi uma empresa de ônibus. Foi o seguinte meu sogro era gerente de um banco, então os clientes os clientes do banco tinham uma concessão de linhas para Aparecida até Guaratinguetá. Mas linhas não de ônibus, linhas que chamavam limosines, limosines eram os automóveis grandes de oito lugares, geralmente eram pessoas importantes que usavam, hoje a gente nem vê por aqui. A gente vê... Sabe, esses carros que a gente vê do presidente que é aquele compridão. Pois é, naquela época, os carros americanos que existiam aqui normalmente eram vendidos, eles tinham o banco do motorista cabiam três, depois tinham dois banquinhos no meio entre o banco do motorista e o banco de trás e depois o banco de trás, cabia, na verdade, oito pessoas nesse carro e esse pessoal tinha uma concessão para explorar a linha de São Paulo e Aparecida com essas limosines. Na ocasião, o DNR estava para chegar à conclusão de que a Via Dutra, porque Via Dutra era uma pista só, era uma pista muito perigosa, com muito acidente e eles chegaram à conclusão de que aquelas limosines faziam muito movimento, congestionavam demais a pista. Imagine você que eram 32 horários entre São Paulo e Aparecida com essas limosines. Então o DNR quis trocar, disse olha “Em vez de 32 horários de 8 passageiros, vocês vão botar 8 horários de 32 passageiros” e é um ótimo negócio porque ônibus é muito melhor do carro, sem dúvida nenhuma, sem termo de comparação. Eles precisavam de dinheiro para trocar essas limosines por ônibus e foram então falar com meu sogro e propuseram o negócio para o meu sogro. Mas meu sogro era gerente de banco, né? Ainda estava na bica para ser diretor do banco e ele não sairia do banco, em hipótese alguma para, de repente, se meter numa aventura dessas, né? Mas se lembrou de mim e então falou comigo, eu disse: “Olha, tá tudo bem, mas eu não tenho é dinheiro” porque sempre tomei o devido cuidado para não juntar e ele disse que não era problema “Eu tenho alguma coisa, eu posso te emprestar”. Eu me lembro que na ocasião ele me emprestou 500 mil cruzeiros. Era muito dinheiro, era dinheiros ‘pacas’.

P/1 – Que ano foi isso?

R – Isso foi em 1956/57. Era muito dinheiro, com 500 mil cruzeiros, eu completei minha parte. E lá fomos nós, trocamos limosine, compramos os ônibus. Estava tudo indo maravilhosamente bem. Ô negócio gostoso empresa de ônibus, tirando os acidentes. Mas como negócio, fantástico, fantástico. Não entendo até hoje porque que os ônibus urbanos não dão lucros, sabe? Acho que é porque não estão na minha mão, mas é um negócio fantástico porque o dinheiro não é só à vista, quando é rodoviário o dinheiro antecipado. O passageiro compra antes de viajar, então antes de fornecer o serviço, eu já recebi o dinheiro do outro. Mas o problema foi seguinte nós tínhamos um concorrente, a Pássaro Marrom, e se a empresa que chamava-se Expresso Luxo Aparecida, até então, com limosine, não era concorrente porque o preço da passagem era muito mais caro, né? Um ônibus tornou-se um concorrente direto e a Pássaro Marrom entrou com um processo contra o DNR, contra o DNR, não contra nós, que havia dado concessão e esse negócio durou mais ou menos uns dois anos, dois anos e meio e o DNR ia perder o processo, ia perder. Então o DRN nos chamou e disse “Olha, infelizmente vocês vão ter que interromper linha” o que para nós era um transtorno, né? Mas olha, nós vamos dar um jeitinho, ver se a Pássaro Marrom compra a empresa de vocês”. Bom, vendemos. Mas veja você, vendemos meio forçados porque era um negócio que estava crescendo muito porque já estávamos com linha para Guaratinguetá, linha para Taubaté, já tínhamos linha aqui para Arujá, estávamos indo realmente muito bem, mas paciência.
Vendemos, nós éramos, nessa época, três sócios. Desfizemos a sociedade, cada um botou seu dinheirinho no bolso, mas eu já tinha algum dinheirinho. E aí fui comprar um posto de gasolina. Nesse meio tempo, voltando o filme um pouquinho para trás, eu tinha terminado o curso clássico, eu resolvi fazer o curso de contabilidade porque achei que contabilidade que era importante. Depois, quando vendemos o expresso, eu estava terminando o curso de Economia pra depois fazer a faculdade de Economia também. Aí vendemos o expresso e entrei no posto de gasolina, era um posto de gasolina na Praça Oswaldo Cruz muito bom, era um posto Atlantic, na época, era o posto que mais vendia gasolina em São Paulo, foi excelente o posto. Só que tinha um detalhe o posto era da companhia, nós éramos arrendatários do posto, só comprei na verdade a marca, não é o fundo de comércio, era eu e mais dois e o terreno não, não tinha jeito.
Bom, quando comprei esse posto, alguns meses depois de comprado esse posto, ainda estava pagando o que estava devendo - só o que eu tinha de cara não dava para pagar minha parte ainda - veio a notícia de que iam desapropriar o posto, como, efetivamente, desapropriaram, muitos anos depois, para largar na Avenida Paulista.
Nós entramos em ebulição. Espera aí, se me desapropriam esse posto, né, nós estamos perdidos, não tem mais dinheiro, mais do que depressa vamos tratar de vender esse negócio, claro, passar a bomba pra outro. Foi meio besteira, porque a prefeitura levou anos pra fazer a desapropriação na Avenida Paulista, mas eu realmente me afobei e eles também se afobaram e nós vendemos.
Bom, com esse dinheiro desse posto, eu digo “O que eu vou fazer?”. Eu resolvi abrir um outro posto de gasolina, eu já tava no meio, já tava meio amigo do pessoal das companhias, né? E eu sabia que a Esso, tinha um grande interesse em um posto a ser construído na Avenida Cruzeiro do Sul, esquina da Via Dutra e havia já o terreno, ele tava lá, eles me deram toda a indicação, o terreno pertencia Matteo Bei e eles falaram: “Vocês compram o terreno que a Esso entra com financiamento para construção do posto”. Como não dava também para comprar sozinho, fui procurar um ex-sócio, meu antigo sócio da empresa de ônibus, ele topou o negócio, depois entrou também na sociedade, um engenheiro da Esso que iria construir o posto, então nós três compramos terreno e começamos a construção do posto.
O posto foi muito bem, a construção estava indo maravilhosamente bem, chegamos a inaugurar este posto. A inauguração foi muito interessante, foi tão importante para a Esso, aqui nessa época, em São Paulo, havia um jornal na televisão, no canal 3, chamado Repórter Esso e esse repórter Repórter Esso na entrada do programa, na abertura do programa, apresentava sempre alguma coisa da Esso ou alguma coisa ligada à algum produto da Esso, algum serviço da Esso, né? Pois bem, o posto foi tão importante que durante semanas, a abertura do Repórter Esso era feito com o nosso posto, eu era muito importante porque era eu que aparecia lá cortando a fita do posto. “Olha lá, olha lá, o papai”

P/1 – Nessa época já tinha filho?

R - Já, a Fátima nasceu em 55, a Heloísa em 57, já tinha duas filhas sim. Mas, olha, parece que o urubu estava realmente pousado na minha sorte, eu acho que não é bem urubu. Eu acho que eu não nasci para trabalhar. Eu acho que cada vez que eu tento trabalhar eu desafio os deuses, né? Então, os deuses se revoltam e castigam. Inauguramos a coisa e logo depois veio a notícia de que a prefeitura ia alargar a Avenida Cruzeiro do Sul e que ia construir uma ponte sobre a Via Dutra e que essa ponte, em uma coincidência cósmica que eu não consigo explicar, devem ser razões lá de cima, dos Deuses, essa ponte estava exatamente por cima do nosso posto. Portanto, o nosso posto ia ser imediatamente desapropriado porque antes de alargaram a Avenida era preciso fazer essa tal ponte, eu até pensei em botar o nome Posto da Ponte, mas na verdade fomos desapropriados, e é uma delícia ser desapropriado pela prefeitura, é uma coisa fantástica porque além deles oferecerem muito pouco, eles não pagam. Ótimo! E, realmente, eles chegaram lá ofereceram uma quantia ridícula pelo terreno, pelo imóvel, que dessa vez era nosso. Nós não podíamos aceitar de jeito nenhum o que havia sido oferecido, aí toca ter que chamar advogado, uma coisa maravilhosa, né? E eu, de repente fiquei a ver neném, a ver neném... Bom, a ver neném eu realmente nunca fico, eu sempre me viro. Nessa ocasião, eu tinha um hobby, eu disse a você que eu tinha como hobby fotografia e nessa época eu tinha um outro hobby e não era fotografia, era rádio, eu tinha uma pequena oficinazinha de rádio em casa, eu me divertia montando tanto receptores como pequenos transmissores, consertava rádio de amigos etc e tal. E nesse período estava surgindo aqui em São Paulo o que se chamava frequência modulada, o popular FM de hoje. E havia uma estação aqui em São Paulo, a Rádio Eldorado que não tinha anunciante nenhum porque em compensação ninguém tinha receptor, então a Rádio Eldorado transmitia música o tempo inteiro. De meia em meia hora, ela era obrigada por lei a dar seu prefixo, então ela dava “Rádio Eldorado, 92 ponto não o quê” e era música, música, música. Digo: bem, tem aí um negócio para nós fazermos, vamos começar a fazer receptores de FM e vamos procurar vender esse breguete em consultórios, bares restaurantes, etc e tal. Agora, eu precisava de um vendedor porque vendedor eu não era, eu sabia montar, mas eu não sabia vender. Bom, aí eu arranjei um portuguesinho formidável chamado Carvalho, esse portuguesinho era uma simpatia, ela era dono de uma padaria que tinha ido à falência, por aí você vê como ele é organizado. Mas o portuguesinho era ótimo, aí propus o negócio para ele, digo: “Ô, carvalho” e ele se entusiasmou, até porque um cara falido só podia se entusiasmar mesmo. E lá foi Carvalho vender frequência modulada. Bom, vender frequência modulada é uma coisa ótima, você tá vendendo uma ilusão, né? O camarada não sabe o que é, aí você tem que dizer: imagina esta sala com música, imagina aquela música suave, e naturalmente, você pinta um quadro na imaginação da pessoa e ela vai se encarregando de transformar aquilo e botar aquilo segundo a realização dos seus próprios desejos. Aí quando você vai instalar, claro, o aparelhinho que nós fazíamos era um aparelhinho bem precário porque havia o problema do preço. Nossa! Naquela época era válvula ainda, aí não havia nem transistor e muito menos circuito impresso. E então era válvula ainda, era tipo um radinho de cabeceira, né? Imagina um radinho de cabeceira, onde a gente ligava os alto-falantes, o som não era aquele som maravilhoso, mas quebrava um bom galho. E lá começamos a fazer esses aparelhinhos e vender, mas surgiu em um pequeno problema, vender à vista era difícil, sabe, ninguém comprava, nos vemos obrigados a facilitar o pagamento, nessa de facilitar o pagamento, nós tomamos calote que era uma barbaridade. Quando eu vi nós estávamos praticamente trocando figurinhas, sabe, trabalhávamos para pagar as nossas despesas, despesas do aluguel da casa, o salário do pessoalzinho que trabalhava conosco, né? Nós tínhamos uma micro indústria, né? E tínhamos os funcionários, né? Então, esse negócio tá mal, tá muito mal. Nessa época, esse meu tio, irmão de minha mãe, me convida para trabalhar com ele para tomar conta de um haras, veja vocês como eu mudo tranquilamente. Haras, vocês sabem, é a criação de cavalo de corrida, mas falei de cavalos não entendo nada, porque não entendia absolutamente nada, o máximo que entendia era o Jockey, fui lá umas duas ou três vezes na minha vida. Inclusive, uma vez fui com meu pai, me lembro bem, meu pai muito feliz, porque ele perdeu todos os páreos e quando chegou no último páreo, ele jogou todas as duplas e naturalmente deu uma dupla que ele havia jogado, deu muita sorte porque a dupla que deu foi uma dupla chamada de dupla azarões, então pagou muito bem e ele conseguiu recuperar o dinheiro que tinha apostado naquele páreo. Eu não entendia nada de cavalo de corrida, mais sério de cavalo corrida eu não entendia não. “Mas olha, não tem problema nenhum. Eu quero que você fique na parte de administração. Tem a parte técnica do cavalo, aquela coisa toda, tem veterinário, tem o administrador, eu quero que você fique só na administração”. Eu digo: vamos ver o que que acontece. E aí eu, de repente, me tornei procurador do segundo haras no Brasil, na época o segundo haras do Brasil, era o São Luís, grande campeão aqui em São Paulo de estatísticas, né? E aí eu comecei, eu fiquei durante dez anos, nove anos tomando conta de cavalo de corrida. Claro que fiquei um expert em cavalo de corrida. Mas esse período tem muito a ver com que exerço hoje, cavalo de corrida tem muito a ver com a psicanálise, vou explicar. É o seguinte, eu ficava, a Fazenda era em Salto, quando tinha que ir para Salto, eu saia de manhã e passava o dia em Salto, depois eu ficava aqui em São Paulo cuidando dos negócios do haras, dos cavalos, inclusive aqui em São Paulo do Jockey e tantos movimentos do roteiro de São Paulo, era um homem mesmo burocrata, simpático economista, né? Era também economista de uma holding que pertencia ao meu tio, ele aproveitou e me botou lá. Naquela época, precisava de um economista que assinasse o balanço das holdings, então virei economista de lá também, era burocrata, ficava atrás da mesa no próprio executivo.
Eu não fazia nada, né? O único esporte que praticava era tomar chopinho, o copismo no fim do expediente e nada além disso, naturalmente a barriguinha ficando maior. Eu tinha dois amigos, um era um tio meu Henrique Austregésilo e o outro, que já faleceu, um advogado Tuani Valdetário e Silva, que estavam fazendo yoga. E eles como estavam começando a fazer yoga chegaram para mim e disseram “Olha só, escuta, você não faz nada, nós estamos fazendo yoga, olha como estamos bem”. Tavam nada, mas estavam fazendo yoga e a barriga deles parecia menor que na minha época, talvez nem fosse, mas parecia ser menor “Você precisa fazer yoga comigo, venha conosco, vamos fazer yoga, o que você faz depois das seis horas?”, falei “Não faço nada, tomo um chopp”. “Então vai lá, duas vezes por semana, na Rua Aracaju”. E lá fui eu fazer yoga, fiquei lá sentado em lótus, tinha o gurizinho que nessa época era o filho do professor (Bolinero?). Então tinha lá o gurizinho, que era o filho, que nos ensinava a fazer aquelas posturas todas de yoga, e eu gostei da brincadeira, eu realmente gostei de yoga. Aí eu instalei na minha casa, - nessa época eu morava na Carlos Steinen, atravessando a Luís Viana, lá no Paraíso mesmo, eu me criei aqui em São Paulo - eu tinha um quarto, eu tinha um quarto, com um quarto de cima, o quarto completamente vazio onde tinha um sofá, carpete e um armário embutido na parede, mais nada, então parecia o próprio lugar para se fazer yoga. Então, todo dia, dias que eu não ia para o instituto, eu ia para lá, para esse quarto, me plantava tal, fazia meus exercícios de yoga, numa boa, tranquilo, sossegado. Aí saía de lá, entrava no chuveiro, gostoso, né? Depois do chuveiro tomava meu whiskyzinho, dosezinha de whisky, relaxava, ia jantar, via televisão, estava tudo ótimo, lindo e maravilhoso.
Uma noite, noitinha, eu estou lá fazendo yoga, veja, era uma recomendação do Brunozinho que se fizesse com calção, fizesse tudo sem roupa, peladão. Eu estava só com calção, eu estava lá fazendo minha yoga, depois no final da prática tinha que fazer uma meditação. Meditação era o seguinte, eu tinha um banquinho, banquinho pequenininho, nesse banquinho eu colocava uma velinha, aí podia escolher ou uma pedra ou uma varetinha dessas de incenso, dessas perfumada, sabe? Qualquer besteirinha dessas, aí ficava em lótus e ficava olhando para aquela chaminha, curtindo, num tempo mental de dez minutos, tempo mental é o que você imagina que são dez minutos, voltei lá um dia fazendo essa minha meditação, quando eu ouço o barulho de um besouro na minha cabeça bzzzzzzz. Besouro meu instinto não gosta, de noite em um quarto escuro, com um besouro, não é a melhor companhia não, nunca foi. Eu me levantei tranquilamente, acendi a luz, eu vou pegar esse bichinho e expulsá-lo daqui da área do yoguinha, né? Absurdo! Acendi a luz, procurei, não tinha besouro nenhum, como a janela é veneziana, eu digo “Bom, com certeza ele foi para veneziana, foi embora e tudo bem”. Continuei fazendo o exercício, como fazia habitualmente. Mais ou menos, uma semana depois, eu estou novamente na meditação, quando eu ouço o barulho do Besouro aí eu me irritei. Achei um desaforo, uma falta de respeito, é um vaso iniciado e um besouro voando na minha cabeça, besouro é o quê? Pagão? Eu dei um pulo para acender a luz e eu digo “Eu pego esse besouro e o mínimo que vou fazer é depená-lo e se não tiver pena, eu arranco as patinhas”. Mas, novamente eu procurei, procurei, procurei e não tinha besouro nenhum. Fiquei um pouco encafifado e fui falar com meu mestre guruzinho, falei “Guruzinho, besouro, né?”. Ele disse “Olha, besouro não é porque você não faz milagre”. “Você fez pose sobre a cabeça?”. Aí eu digo “Você tá falando isso por causa do besouro, né?”. Ele disse “Não, pode ser labirinto”. Pose sobre a cabeça é um exercício que a gente inverte a postura, fica apoiado na cabeça e o pezão lá pra cima. “Fiz, realmente fiz”, ele disse: “Olha, não faça, é labirinto”. Não aceitei muito, mas enfim, palavra de guruzinho a gente não discute de jeito nenhum. Voltei lá pra casa e continuei fazendo minha prática novamente sem fazer nada, nem vela, nem besouro, nada, nada, nada pra evitar labirintite. E realmente, nunca soube que labirintite fazia barulho de besouro, mas enfim. Um belo dia, me aparece o tal do besouro, eu acendo a luz, procuro e não tem besouro aí eu fiquei convencidíssimo que não era besouro, que aquilo era alguma outra coisa que eu não sabia o que era. Daí para frente, eu comecei a perseguir a origem do besouro, você vai ver como vou parar na psicanalise, então eu começo a entrar na área do misticismo, do ocultismo, esoterismo.
Vou para a maçonaria, frequento centros espiritas, frequentei terreiros, me associei, inclusive, ao Cesario Morey Hossri que nesta época estava trazendo, havia já trazido o treinamento autógeno que ele havia aprendido com o Schultz na Alemanha, mas estava empregando o treinamento autógeno associado à sofrologia daquele psiquiatra. Tudo isso voltado... Ele estava com um trabalho muito sério de levar a pessoa à vivência dos arquétipos de Jung, então fiz também alguns trabalhos com ele, continuei como (oringueiro?). Bom, eu percorri todos os caminhos do ocultismo, do esoterismo e do misticismo, paralelamente ao meu trabalho. Nesta época, eu me interessei muito por um fenomenozinho, tido como paranormal, que é telepatia. Eu me especializei no fenômeno telepático, a partir de práticas como o tarot e realmente, tive uma das sortes, eu acho que uma casualidade, ou causalidade cósmica, como querem outros, ou influência do Deus lá em cima, não entendo muito bem o que é. Mas, em uma ocasião, quando eu estava me interessando pelo tarot, iniciando a conversa, eu saio do escritório, vou ao barzinho, que existe até hoje na Rua Vieira de Carvalho, eu trabalhava na Praça da República, chamado Caneca de Prata, aquele barzinho na época, ele era isso que eu estou dizendo para vocês, isso é por volta de 1970, mais ou menos. Aquele barzinho era novo e ele fazia muito sucesso porque tinha aquela canetinha de metal gelada, sabe de um chopinho claro-escuro, era uma delícia. Eu tô lá tomando minha canequinha, sentado no balcão, quando chega um cidadão que não era brasileiro e ele queria pedir para o rapaz do bar em inglês, em um inglês assim muito claro para mim, portanto ele não era inglês também, se fosse inglês eu não entenderia, mas se não fosse americano, eu entenderia. Tava muito claro o que ele estava querendo, ele pedia alguma coisa, um chopp e queria um sanduíche, parece que um salgadinho, uma coisa assim. Mas o rapaz lá no bar não conseguia entender e para mim a coisa estava muito clara, então pedi licença, entrei na conversa, fiz o pedido e aí começamos a conversar em inglês. O inglês dele para mim era muito claro, ele era dinamarquês. Então foi ótimo, inglês é uma maravilha, pior é quando pega aquele americano, com charuto na boca, falando inglês e a gente tem... Eu trabalhava, né? Meu escritório ficava em uma empresa americana Companhia Brasileira de Plásticos Koppers, Companhia Brasileira de Estireno, era muito duro, mas convivia com os americanos. Foi interessante porque esse camarada foi quem me ensinou uma técnica especial de trabalhar com tarot e eu comecei a usar a técnica dele, e olha, sem dúvida nenhuma virei uma ciganinha.
Virar ciganinha não era, na época, como não é hoje o que me interessava não, eu queria saber o porquê daquilo, como aquilo funciona, o que é aquilo. Neste período, eu havia lido um artigozinho do Freud, lição número 30 de um trabalho dele, de um livro dele chamado “Novas conferências da psicanálise” quando ele trata de sonho e ocultismo. Isso me deixou muito impressionado porque o Freud, claro que na sua postura cientifica tradicional do século XIX pro século XX, ele não admitia francamente a existência da telepatia, mas ele relatava casos de fenômenos telepáticos que ele havia descoberto a partir da interpretação que ele usava nas interpretações dos sonhos. Aquilo estava no meu subconsciente, né, estava meio guardado aqui no meu pré-consciente. Quando eu vejo um anúnciozinho no jornal, uma dessas chamadinhas que tem nessas coisas de jornal, oferecendo um curso de formação em psicanálise, patrocinado por uma associação chamada Associação Profissional dos Psicanalistas do Estado de São Paulo. Bem, era a última coisa que me faltava porque de resto eu conhecia eu conhecia tudo, né, da parte do ocultismo tinha frequentado tudo. Falei: “Vamos lá para psicanálise” e lá fui eu. Bom, fui lá na entrevista inicial, eles me perguntaram qual era o meu grau de instrução... Ah, nesse meio tempo eu havia esquecido, eu havia feito curso de Filosofia, eu havia feito curso de Filosofia à noite, né, veja, Filosofia por causa do ocultismo. E atrás dessa Filosofia, eu fiz também História porque como eu fiz ali na faculdade Medianeira, que era no São Luís mesmo, era o Colégio São Luís, então fiz também história nessa época. E também fiz história, eu acho que levado também pelo ocultismo. Bom, eu tinha meu curso, meu curso Filosofia, tinha também uma boa carga horária de Psicologia que eles consideraram, tinha conhecimento de Filosofia, então eles me aceitaram, eu consegui dois anos, dois anos de seminário com a exigência que se fizesse análise didática para a formação como analista. Bom, nesse meio tempo - essa então é a minha parte e a parte de hobby, digamos assim - nesse meio tempo, eu saio do haras porque este meu tio resolve abrir um laboratório de produtos veterinários. Então me transfere, me tira do haras, estava inclusive transferindo esse haras de Itu, de Salto e de Itú lá para o Rio Grande do Sul, diminuindo, ele estava encolhendo esse haras, ele queria abrir um laboratório que fosse especializado na produção de polivitamínicos para cavalo de corrida e ele então me pede para deixar o haras e ir para esse laboratório. E lá vou eu para o laboratório para fabricar polivitamínicos para cavalo de corrida. Veja só, como é que se vira, não? (risos). Bom, eu fiquei nesse laboratório até 1972, nesse meio tempo, já tinha terminado meu curso de psicanálise, e em 1972, o laboratório não ia, realmente, bem, eu me senti meio atraído pela psicanálise.
Comecei a montar meu primeiro consultoriozinho, comecei a montar meu primeiro consultoriozinho no Largo do Paiçandu, lugarzinho horroroso, mas era o que dava para funcionar. Então, eu trabalhava no laboratório e atendia no consultório à noite. Também aconteceu um fato quando eu terminei o curso de psicanálise, eles gostaram do meu jeitinho como aluno, me convidaram para ser professor. Aí então, fiquei como professor de uma de uma matéria chamada introdução à psicanálise, trata-se simplesmente de sonhos, de ato falho, só essa parte, era um semestre. O grande causo é que comecei dando aula e atendendo lá os meus alunos, foi assim que eu virei psicanalista.
Daí para frente saí, tive como sair do Largo do Paiçandu, me associei com esse meu tio, esse Henrique aí, abrimos...

P/1 – Acabou.

R – Só pra concluir... Abrimos uma clínica, ele fazendo eletroencefalograma, eu fazendo psicanálise, depois levamos um tombo, porque não pagavam...

P/1 – Antônio, só pra gente concluir porque, infelizmente, dava pra ficar um tempão com o senhor aqui, mas tão pedindo pra cortar, a gente tem muita curiosidade, mas não temos mais tempo. Eu teria três perguntas pro senhor, pra gente finalizar. Uma pergunta é o que representa o besouro, que conclusão o senhor chegou do besouro? Agora, o mais importante... Qual é o sonho hoje? E o que o senhor teria pra dizer para as pessoas mais jovens? Para essas novas gerações que estão vindo aí,

R – Bom, veja, o besouro eu posso te explicar dentro de uma linguagem esotérica, é uma manifestação do elemento ar, eu, na realidade, não consegui explicação científica nenhuma para o besouro, não sei o que é. Não tenho certeza que é labirinto, hoje eu tenho certeza absoluta que labirinto não foi. Não sei dizer o que é o besouro. Meu sonho, eu não sonho, eu vivo, eu não tenho nada para realizar, é tão cretino o que eu quero, é tão pequenininho, por exemplo, hoje eu quero jogar sinuca, mas eu não posso dizer que seria um sonho, eu vivo o que eu quero, eu diria pra você que eu sou uma pessoa de bem com a vida. Não tenho angústia nenhuma em relação a morte, existem pessoas que são muito preocupadas com a morte, eu cheguei à conclusão, talvez para isso eu valide muito esse caminho do ocultismo, do esoterismo, hoje me sinto integrado ao Universo e condenado a estar inserido nele. Eu não tenho como me desprender, eu não tenho um caminho diferente fora a integração. Os orientais dizem isso de uma forma muito interessante, eles chamam de integração com o cosmos, eu sempre lia e compreendia isso em um nível muito respeitoso, sabe, num nível muito colorido de glória de poder, de coisa divina, eu acho que não é pra ser dito assim não, é pra nós termos a consciência de que nós não temos para onde ir, é preciso perceber a utilidade de tudo que nós fazemos, como é útil o que nós estamos fazendo aqui, porque quer você queira, quer você não queira, tudo isso vai desaparecer. Um dia você vai ficar velha, contra isso não há jeito, então é essa inutilidade, essa sensação de inutilidade é que trás a segurança, sonho só existe para aquele que imagina que vai haver alguma coisa importante, né? Mas eu não sou importante, imagine um camaradinha lá na Estrela Vega, sei lá, dizendo “Olha, aquele cara, coitado, ele está querendo um Santana e não pode ter”, imagina a briga do Collor e do PC Farias, imagina se vai ser importante pra quem está lá... Não tenho, um sonho não tenho. Pra juventude? Curta, curta numa boa, pro jovem é isso, o importante é saber curtir. Agora, curtir implica em conhecer, nisso eu sou epicurista, eu acho que prazer antes de ser vivenciado precisa ser pensado, precisa ser refletido, não é qualquer coisa que dá prazer, porque muitas coisas trazem no fim, uma profunda frustração. Certo?

P/1 – Certo, nós agradecemos.