Museu da Pessoa

Vida cigana

autoria: Museu da Pessoa personagem: Laércio Flávio Mendes da Silva

Minha Casa, Minha Cara, Minha Vida - Cabine São Bernardo do Campo
Depoimento de Laércio Flávio Mendes da Silva
Entrevistado por Nilza Mota da Silva Rocha e Rosana Miziara
São Bernardo do Campo, 09 de Março de 2014.
Realização Museu da Pessoa.
ASP_CB10_Laércio Flávio Mendes da Silva
Transcrito por Iara Gobbo.


P/1 – Laércio, você pode falar seu nome completo?

R – Posso. Laércio Flávio Mendes da Silva.

P/1 – Qual que é seu local e data de nascimento?

R – Nasci em São Bernardo em 21 de dezembro de 1973.

P/1 – E seus pais?

R – Meus pais são de Minas. São mineiros, são lá de Montes Claros e Porteirinha.

P/1 – E como é que eles vieram para em São Paulo?

R – Ah, veio assim, veio fazer um dinheirinho, né? Fazer uma vida melhor. Viajando, vieram pra cá, estabeleceram em São Paulo, aí veio a família toda.

P/1 – Qual que é a origem dos seus pais?

R – São ciganos.

P/1 – Eles são ciganos. E seus avós?

R – Ciganos. A família toda. Agora, os filho também, todo mundo. Tudo cigano, a raça de tradição cigana, a lei do cigano, a língua de cigano.

P/1 – E você fala a língua de cigano?

R – Falo, todo mundo fala.

P/1 – Fala o seu nome e o lugar que você nasceu em cigano.

R – ___00’01”25’”__ e estamos aqui até hoje.

P/1 – E seu pai veio pra cá e se estabeleceu onde?

R – Foi a gente que veio pra Ribeirão, de Ribeirão foi pra centro de São Paulo, aí de centro de São Paulo veio... Ah, veio pra região do ABC mesmo. Aí, paramos aqui em São Bernardo.

P/1 – Quando é que você chegou na região do ABC? Você já era nascido? Você nasceu aqui.

R – É, nasci aqui.

P/1 – E você, em que lugares você morou?

R – Ah, morei em muitos lugares. Morei já em São Bernardo, morei em Santos, já morei em Sorocaba, Itapetininga, Itaim Paulista, São Miguel Paulista, Suzano, em Itapevi, em Jandira, Ivaiporã, Paraná, Londrina, Curitiba, por aí.

P/1 – E desde quando que você tá fixo aqui em São Bernardo?

R – De ficar vindo e voltando, faz mais ou menos uns 10, 12 anos mais ou menos, 10, por aí, mais ou menos.

P/1 – E por que você preferiu essa região?

R – Porque aqui é melhor de negociar e também aqui o povo é mais acolhedor, né? Aqui foi bem melhor, porque nós chegamos aqui, não tinha muita gente assim. Aí, nós chegamos, fomos fazendo amizade com a vizinhança, foi fazendo amizade, nós voltava e viajava, voltava pra cá, as turmas tratavam a gente bem. Aí, ficava assim. Os negócios nossos é tudo aqui.

P/1 – Quais são seus negócios?

R – A gente compra relógio, vende relógio, vende celular, compra celular, vende carro, compra carro, empresta dinheiro a juros, é assim.

P/1 – E você tem uma freguesia aqui?

R – Tenho. Em todo lugar que nós vamos nós temos uns clientes bons.

P/1 – Quais são as tradições assim, que vocês cultivam até hoje, da tradição cigana?

R – Tenta manter? Ah, tenta manter o casamento entre nós, que a gente já faz o tratamento desde pequeno, né, entre nós mesmo, entre as famílias mesmo. Só pega de fora se não tiver mesmo condição mesmo, se não tiver uma mulherzinha solteira pra casar, se não tiver na hora assim, aí nós pegamos. Às vezes

alguma assim, nós combinamos o casamento. De cedo, quando cresce o rapaz toma outro rumo, quer casar com uma garrin, ou quer casar com outra cigana, aí desmancha o casamento. Mas geralmente nós fazemos casamento entre nós mesmos, já planeja desde pequeno. Pega uma filha nossa, dá pra um parente nosso, pega uma filha dele e traz pro nosso filho, pra casar. Aí, fica de troca de família, entendeu?

P/1 – E se eles não se gostarem?

R – Aí, separa. Aí, já nem casa também, porque hoje nós tá mais atualizado. Hoje as mulher escolhe os marido, os marido escolhe as mulher. Tipo assim, se não vai dar certo de casar meu filho com a minha sobrinha, não vai casar pra não ter inimizade depois. Aí, fica assim, mas nós tentamos manter no máximo, entendeu, entre nós somente a língua de cigano, tipo casamento, tradição e cultura.

P/2 – Eu queria saber como é escolhido o chefe de vocês.

R – O mais velho, sempre o mais velho, não tem rapaz.

P/2 – Mas não digo assim, o sogro, a sogra ou avô?

R – Tipo, se tiver o avô ou avó, é o avô que é o chefe. Aí, com o avô já... É sempre o mais velho, entendeu?

P/1 – Aí, é bem aceito?

R – É bem aceito não, é porque tem que ser, que já é o mais conhecedor da vida, né? Então, o respeito é maior, pelos mais velhos.

P/2 – Eu queria fazer outra pergunta. Eu queria saber o casamento de vocês se casa só com aquela pessoa ou pode arrumar outra?

R – Foi que nem eu disse pra mulher, tipo assim, a gente faz planejamento de casar entre nós. Aí, vamos supor, se meu filho crescer, conhecer uma brasileira que ele goste, eu não vou obrigar ele casar com a menina, porque eu sei que não vai viver. Vou gastar dinheiro na festa, pra separar e ter inimizade entre parentes é a pior coisa do mundo.

P/2 – Eu digo assim, vocês é uma mulher só, casou com aquela, é só aquela?

R – É, a gente fica com aquela. Se em último caso não tiver jeito mesmo, aí nós separamos, mas desde pequeno fica com a mesma mulher.

P/2 – Eu digo assim, é uma mulher só?

R – É, uma mulher só.

P/2 – Não pode ter mais de uma.

R – Não é que nem árabe, igual os outros falam.

P/1 – Igual na Índia.

R – Mas sempre dá uns pulinhos por fora, mas a mulher é aquela. Não tem jeito, a carne é fraca, o homem é uma raça dura.

P/1 – Quais são as festas que vocês mantêm tradição até hoje?

R – A festa de Nossa Senhora Aparecida, a festa de casamento, a festa de tratar de casamento, batizado na igreja católica, o casamento nosso é um padre... Bem dizer é cigano, porque ele dá passe pros nômades que vêm… Viaja o Brasil todo fazer casamento cigano no Brasil todo. Que ele faz o casamento nosso, de cigano, entendeu? Já conhece as leis de cigano, por isso ele faz o casamento nosso. Aí, tem gente aí que faz o casamento em igreja mesmo. Vai lá, conversa com o padre, depois faz o casamento. A maioria não deixa porque a maioria dos casamento o pessoal é de menor, entendeu? A menina de 13 anos, o rapazinho de 14, 15, mas a maioria não aceita, por isso que vem esse padre que já é acostumado com a lei do cigano, faz casamento nosso.

P/1 – E como é que vocês ensinam a língua pras crianças?

R – Ah mulher, a gente não ensina não, eles aprendem sozinho. Acho que é de tanto escutar vai aprendendo alguma coisinha, vai fala tudo. Vai falando, a menina vai aprendendo. Igual a gente conversando aqui, vai conversando. Aí, mistura um pouquinho da língua brasileira com a língua de cigano, vai aprendendo. É uma coisa mais ou menos assim.

P/1 – E as danças?

R – As danças nossa é o forró mesmo. Porque tem cigano que é uma outra raça de cigano lá, que eles gosta da música tradicional cigana, que são as músicas mais tocada na língua cigana e agora o cigano brasileiro assim da nossa turma assim, gosta mais de brega, sertanejo, música bem apaixonada. Aí, nós bebemos muito, bagunça muito. As festas de cigano... Que nem nós falamos que nós somos ciganos brasileiros, porque nós somos bem da raiz brasileira. E agora tem os outros cigano sde fora de outros país, que gosta daquelas música que passa nas novela, que dança aquelas dança bonitas. Mas nossas mulheres sabem dançar também daquele jeito. Mas nós mantemos mais a tradição de brasileiro, nessas festas assim, de música assim.

P/2 – Eu queria saber, quando casa cada um já tem o seu lugar pra morar ou mora dentro da casa dos pais?

R – Não, não. Quando faz tratamento de casamento a gente... O noivo tem que entrar com... Se é meu filho assim, no caso, tem que dar um carro novo pra ele e ajudar a bancar as coisa dentro da barraca. Agora, quando é a família da noiva que tem que comprar a barraca e bancar quase que tudo na barraca. Nós só entramos com o bruto, que é o carro e com um dinheirinho assim. Agora, quem banca mesmo a barraca e dá as coisas completas, é o pai da noiva. Entendeu? Já tem que chegar, já tem que tá com tudo armado pra quando tiver o casamento, eles já terem a casinha deles, já terem a barraquinha deles. Assim que nós fazemos.

P/1 – E como é que vocês os ciganos é morar cada vez num lugar com a barraca? Como é que vocês vieram morar no apartamento, no conjunto habitacional?

R – Então, mulher, a gente ficou acampado muito tempo aqui, antes de fazer alojamento, como eu mostrei na foto. Aí, eles falaram assim: ”Vocês saem que nós te dá um apartamento pra vocês”. Aí, pegamos essa ideia, vamos ficar na casa. Que meu sogro já teve casa também, mas como nós viajamos muito, nós não dedicamos muito na casa. Aí, como nós viemos parar aqui no prédio, como nossos maiores negócios é tudo aqui, nessa região aqui, aí, nós viemos e acostumamos mais aqui. E hoje, as nossas mulher preferem ficar no prédio do que ficar na barraca, entendeu? Aí, nós só vamos viajar tipo, se viaja um mês, dois mês, volta de novo, fica na casa mais uns cinco, seis mês. Viaja de novo, faz um dinheirinho, volta. Sempre na necessidade nós viajamos um pouco. Nossos negócios na maioria é por aqui mesmo, por isso nós estamos ficando mais tempo aqui no prédio.

P/1 – Você contou um causo lá fora, que mostra a tradição cigana, do incêndio. Você pode contar a história?

R – Então, aí quando morre alguém da nossa família, aí a gente é acostumado, nós queimamos a barraca da pessoa que morreu com tudo dentro, entendeu? Aí, nós queimamos tudo. Se for a mulher que ficar viúva, ela tem que usar... Cortar cabelo, usar roupa preta, não casar mais. E se for homem assim geralmente faz a mesma coisa, só não veste roupa preta. Já perde tudo que tem na barraca, já arma a barraca em separado pra eles. Luxo não tem mais, que não precisa, porque já tá viúva. A não ser se a moça é nova ou o rapaz for novo, aí nós fazemos outro casamento pra ele. Agora, se for pessoa de idade, aí não precisa mais, já perde todo o luxo, não vai aquela barraca bonita, enfeitada, vai ser uma barraca mais simples, entendeu?

P/2 – Mas fica ali junto com vocês?

R – Mas sempre junto, até morrer todo mundo.

P/1 – Mas você tava contando a história.

R – Não bota em asilo, nem nada, fica com a gente até morrer. Pra nós não existe asilo.

P/1 – Você tava contando a história de queima o fogo, aí você tava contando.

R – É, aí tinha o alojamento, aí quando meu sogro faleceu, aí nós queimamos a barraca, queimamos a barraca dele. Aí, nessa que queimamos a barraca dele, o pessoal viu pegando fogo, né, que a barraca dele era grandona, tinha oito metros e meio de comprimento. Aí, chegou bombeiro pra apagar tudo, e nós: “Não, não apaga não, porque é nossa tradição, não sei o quê”. Aí, com muito custo eles entenderam, aí não apagaram, aí deixou cair a cinza sozinha, senão eles tinham apagado. E pra nós não existe isso não, não pode. A nossa tradição é assim. Vai com tudo dentro. O que tiver novo lá, o que tiver zero, roupa, tudo, vai tudo pro fogo. Depois compra novo, né, dinheiro a gente consegue.

P/1 – E esse alojamento aonde é que era?

R – Era aqui no Silvina mesmo, no alojamento aqui.

P/1 – E como é que era a convivência com as outras famílias?

R – Então, mulher, quando nós estávamos primeiramente, nós estávamos num terreno só nós. Aí, a prefeitura pediu pra nós sairmos naquela parte pra construir alojamento e colocou a gente na parte do fundo, que agora vai ser o CEU. Aí, os povos que chegaram lá, chegaram nesse alojamento no começo, tinham muito medo de cigano. “Ah, cigano vai rouba isso”. Inclusive, roubaram uma bicicleta lá, aí foi falar que é nós, só por eu e minha mulher passar lá por dentro pra ir no mercado. Aí, sumiu uma bicicleta não sei de quem, acusaram o cigano. Aí, foi os pessoal lá pra tomar satisfação, falei assim: “Ó rapaz, nós se for pra roubar nós vai roubar coisa grande, não é coisa pequena não. Primeiro, não vai preso à toa, e roubar bicicleta, isso não é coisa pra nós, não. Olha meu carro aí”, na época eu tava com uma S10 nova, o outro tava com uma outra caminhonete, todo mundo de caminhonete, vai fazer o que com bicicleta? Eu falei: “Nós não precisa disso, não. Primeiro, nós não vai entrar aí pra roubar vocês, vai roubar de quem tem, De quem não tem? Tá pior do que nós. Não, deixa aí”. Com muito custo eles entenderam que não foi a gente. Eu não sei se descobriram quem foi, outro cara, um noia que roubou, mas o preconceito foi muito, mulher. O pessoal tinha medo, passava assim, o pessoal corria. Outro pegava, xingava. As mulheres iam pra rua pra ler mão, pra subir no ônibus, o ônibus nem parava, passava direto. Era parar, só preconceito. Hoje tem muita gente que gosta de cigano, mas foi difícil. Hoje, quase todo mundo aqui já é familiado com a gente, porque o resto. Mas no começo quando chegou essa turma do alojamento, era ruim o negócio, a briga era muito. O povo via a gente brigando lá, chamava a policia pra nós, só que a nossa briga é hoje e amanhã nós tá tudo de bem. Aí, era meio complicado, mas agora graças a Deus tá tudo bem, tudo em paz. Eles estão entendendo mais.

P/1 – Qual foi a principal mudança na sua vida, quando você saiu do alojamento e foi pro apartamento?

R – Como assim?

P/1 – O que que mudou na sua vida quando você saiu do alojamento e foi pro apartamento?

R – Saiu do acampamento? Nós não tava no alojamento.

P/1 – É, saiu do acampamento, desculpa, saiu do acampamento e foi pro....

R – Ah, mulher, no começo foi duro, porque tipo assim, acostumado a ficar no mato, ficar na barraquinha, ter aquela liberdade. Nossa casa não tem porta, não tem janela, já tem aquela liberdade de olhar o mundo. E no apartamento nós chegamos... É muito bom o apartamento, tem todo o conforto. Mas nós acostumados a viver na rua, viver no mundo, chegamos lá já abrimos todas janelas, as portas tudo pra entrar aquele ar assim, que não tava aguentando a fadiga. As nossa mulheres então piorou. A nossa mulher velha, a mais velha nossa, a minha sogra, ela queria dormir no corredor porque ela não aguentava ficar lá dentro. Aí, com muito custo as mulheres ficavam lá fora conversando com você, deixavam ir acostumando, mas só dorme com a porta aberta, não tranca a porta não. E hoje as nossas mulheres gostam do apartamento, não gostam mais da barraca. Volta aquela história lá.

P/1 – E você?

R – Ah, eu vivo dos dois, mulher. Eu gosto da liberdade da barraca, coisa que nós não tem no apartamento. Nem em festa, nem nada, aqui, a gente não tem essa liberdade. Mas aqui é bom o conforto pros meu filho, que tem chuveiro quente. Na época de chuva braba, eles já tem um lugarzinho quietinho, certinho, sendo que na barraca já é chuva braba, a cama armadinha pro lado de fora, os meninos só gostam de andar pelado, entendeu? Gosta de andar livre. E aqui já tem essa liberdade tipo assim, não tem lama, não tem nada, tudo limpinho, certinho. E nossas mulheres já gostaram, tá bom. Mas na barraca é melhor a liberdade, até pra gente fazer essa farrinha é melhor, fazer aquela nossa bagunça, comer carne assada, ligar o som alto, chamar parente. E aqui já não tem essa liberdade. Primeiro, que nem cabe, se eu tiver uma festa cigana aqui não posso chamar porque não cabe ninguém. Aí, nós temos que ir pra um terreno em tal lugar, lugar, lugar pra poder fazer a festa. Mas é gostoso o predinho, não tem o que reclamar, não. A vida dos garron é boa também, não é ruim, não. Aí, nós tamos meio cigano, meio garron, meio os dois.

P/2 – Eu queria saber de você, as mulheres trabalham?

R – Nossas mulher leem mão na rua, entendeu? Elas vão pra cidade fazer um dinheirinho e volta. Nossas mulheres não podem trabalharm não. É cuidar dos filhos, fazer um negócio que é tradição antiga, que é ler mão, volta, mas trabalhar mesmo assim de fichar, não.

P/2 – Porque a gente sempre ouviu dizer que as mulheres que trabalham pros homens.

R – Já foi a época, mulher. Os brasileiro pensa que é assim, que tipo os homens são vagabundos e as mulheres que trabalham. Não, o bruto mesmo é o dos homens. Se for depender de mulher que lê mão na rua pra comprar carro novo, comprar comida, roupa pras criança, tudo, nós morremos de fome. O ganho principal é dos homem cigano, isso eles não veem. Eles veem a vidinha delas ali, mas homem cigano que sai pra ganhar, entendeu? O ganho bruto é o nosso, e nós que faz o corre. O dinheirinho delas é só pra ajudar, bem dizer só pras criança, pra comprar coisinha pros menino.

P/1 – Tem um fato marcante assim, que aconteceu na sua vida cigana ou aqui no apartamento, que você queira deixar registrado?

R – Ah mulher, tem muito, posso falar pra você.

P/1 – Conta um causo pra gente.

R – Contar um causo procê? Do alojamento aqui?

P/1 – É, ou da sua vida inteira.

R – Ah, foi quando nós chegamos aqui a primeira vez e os garron começou a xingar nós. Xingaram muito nós aqui, todo mundo xingava: “Ah seus sujos, seus fedorento”, xingava nossos mulher, as criança. E aí, uma vez nós fomos fazer uma festa aqui, fizeram até abaixo assinado pra nós sair daqui a primeira vez. Nós achamos estranho: “Nem chegamos, já quer que nós sai”. Aí, a assistente social falou: “Não, vocês vão ficar, o lugar é seu, vocês têm direito”. Isso daí foi um caso que eu achei muito estranho, tipo chegar num lugar e o pessoal já tocar nós. A gente tá acostumado a ser tocado assim, ficar na barraca três, quatro dias, a vizinhança não querer, chegar a polícia, mandar nós embora. Agora, chegar num prédio que é nosso, mandar a gente embora? Aí, não tem jeito. Aí, fizeram isso daí com a gente. Mas agora de acampamento assim, tem muitas prosas, aí não dá nem pra falar procês. Tem muito.

P/1 – Conta uma.

R – Ah mulher, se eu falar vocês ficam com medo de cigano, é melhor deixar quieto.

P/1 – Eu não fico.

P/2 – Pode contar, né?

P/1 – Não pode?

P/2 – Pode.

R – Teve uma vez que nós tava tendo uma festa, aí chegaram umas visitas. Uns garronzinhos chegaram lá pra visitar nós, pra levar cesta básica. Aí, teve a briga de outra família nossa lá, no acampamento que nós estávamos em São Paulo, no Itaim. Aí, teve briga de cigano com cigano. Aí, cigano com cigano pega revólver, aí um dá tiro pra cá outro dá lá. E essa turma que chegou ficou tudo louco, ficou tudo com medo, começou a sair tudo correndo. Na mesma hora que chegou saiu correndo. Aí, depois que saiu a briga, tudo, acabou a briga, aí pensamos ___00’16”37’”__ não sei o que, aí nós começamos a dar risada pelo jeito que a mulher já viu o revólver na mão, já saiu correndo, essa garrin que viu. Já começou a gritar: “Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus”. Mas não teve tiro assim que nem os outro fala, só pegou, um xingou pra cá, outro xingou pra lá e ficou nisso. Aí, começou chorar, começou gritar, as mulheres pegaram ela, levaram pra barraca, deram água com açúcar pra ela e ficou nisso mesmo. Aí, até hoje nós lembra desse caso, ainda dá risada. Porque a mulher chegou e falando que é cigana “Eu sou cigana, não sei o que”, mas na hora da briga, a mulher correu. Falei: “Que cigana que é essa, gente?” Aí já sabe como é. Mas nós aceitamos bem, chega lá, come, bebe. Mas é engraçado esse causo.

P/1 – E tem alguma comida especial?

R – Não, nossas mulheres fazem virado, que é uma comida cigana, né, com banana e tudo assim. Tem virado, tem arroz amarelo, comida mineira. Nós gostamos mais de comida brasileira mesmo. Agora, comida mesmo cigana mesmo assim, não tem não. Nesse ponto aí já não tá mais na tradição.

P/2 – Eu queria saber esses dentes de vocês, o que é?

R – É ouro.

P/2 – É ouro mesmo?

R – É, nós temos ouro pra vender, aí nós pegamos e nós mandamos no dentista, ele pega, derrete e coloca pra gente. É uma forma de proteger o dente também. Tem que escovar, se não escovar já era, perde o dente. É tradição nossa também. Os outros falam: “É, porque vocês bota dente de ouro?” Porque a gente já gosta. Pra cigano é bonito dente de ouro, entendeu? Não é questão que tem muito dinheiro, é que já acha bonito. As criança fica com 13 anos, já quer e já bota dente de ouro nele, se eles quiserem, entendeu? Mas é bonito pra nós, não é pra falar que é cigano não, é porque gosta, acha bonito.

P/2 – É diferente, né?

R – É, é diferente. Já virou marca registrada mesmo. Um que chega já falam: “Cigano”.

P/2 – É, já sabem que é.

R – Pois é.

P/1 – Tem mais alguma pergunta, Nilza?

P/2 – Não, só isso.

P/1 – O que que você achou de contar sua história aqui pro Museu da Pessoa e pra Nilza, que é entrevistadora aqui do...?

R – Ah legal, porque assim já abre os caminhos, né? Já vi que cigano não é aquele bicho que os outros pensam, não é aquele maloqueiro, aquele ladrão. Já vê que é uma pessoa normal, igual a vocês. Só por causa da roupa, por causa do cabelo, por causa do chapéu, por causa dos vestidos bonitos das mulher. Esse povo tem muito medo, porque vai muito pela aparência. Hoje tu vai na cadeia, tu vai ver lá, tu pode contar quantos ciganos tem na cadeia? Vê lá quantos brasileiros já tem? Você tem que ver isso também. Tu vê lá na cadeia, tem muito brasileiro, mas é muito raro ver um cigano, estrupador cigano, não sei o quê. Você vê, esse povo discrimina nós sem... Só por aparência. E tem cara que anda que nem advogado aí, tu vai ver a ficha dele, é pior que de todo mundo aí. Então é bom que conversa assim que já esclarece, pessoal vê que cigano não é aquele bicho que todo mundo pensa, aqueles modo antigo que cigano rouba criança. Hoje nós falamos pro nosso filho também: “Vai lá não, porque os outros te rouba”, entendeu? A mesma história que fala pra gente, a gente fala pras criança.

P/2 – Eu queria perguntar mais uma coisa que eu esqueci. Vocês participam das reuniões com o pessoal aí, da habitação?

R – Quando chamam a gente nós vamos, claro.

P/2 – Do condomínio também?

R – Sempre vamos, nós vamos. Sempre quando chama a gente, a gente vai sim. Já é até conhecido já, a Rose já conhece a gente. Mas a gente vai sim, toda reunião que tem nós vamos, sim. Quando é chamado, quando lembra de nós, nós vai. Agora, que nem o da sedinha lá de alugar, nós não fomos, acho que nós estávamos viajando, que tinha que pagar pra poder usar. Aí, eu precisei da sede lá pra levar... Pra ver uns parente nosso lá, não pude porque tinha que pagar na hora e cadê a chave? Mas fora isso daí. Mas nós vamos sempre na reunião sim.

P/1 – Obrigada. Foi ótimo.


FINAL DA ENTREVISTA