Museu da Pessoa

Viajante, militante, brincante

autoria: Museu da Pessoa personagem: Fanny Abramovich

Memória da Literatura Infantojuvenil
Depoimento de Fanny Abramovich
Entrevistada por José Santos
São Paulo, 28/10/2005
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº ABC
Transcrito por Marcelo Cintra de Souza
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho

P/1 - Então, vamos começar nossa entrevista, Fanny? Gostaria que você falasse seu nome completo, data e local de nascimento.

R - Dia e mês, né? Claro. Eu me chamo Fanny Abramovich, que não é um sobrenome assim… Não chega a ser um Souza para um não-judeu, mas é uma coisa muito comum, que quer dizer “filho de Abraão”. Eu nasci no dia 21 de setembro de um ano aí qualquer, faz tempo - eu não falo nem idade nem peso. (risos) O resto, o que quiser...
Nesse ano em que eu nasci, segundo contava a minha avó, era rosh hashaná, o dia do ano-novo, que estava começando, e era o dia do começo do ano do dragão, do qual eu sou afilhada. Então, pô, nasci abençoada. Nasci em São Paulo, cresci em São Paulo, comecei a trabalhar em São Paulo, enfim, viajei muito - muito, quando dá. Pinta um dinheirinho que você não esperava, eu já troco, vira dólar, vou pra onde der, volto quando puder. (risos) Me fiz educadora e... Bom, você me perguntou, não. Não vou ficar nisso, a ficha de identificação é só esta. Tá bom.

P/1 - Você podia nos falar o nome dos seus pais e qual era a atividade que eles faziam?

R - Mas é claro. Por ordem de importância, por ordem de tamanho, por ordem de idade?

P/1 - De tamanho. (risos)

R - Bom, a minha mãe é assim, ela morreu há quarenta anos quase. Elisa Kauffmann Abramovich, uma santa judia. Bom... Não era bem uma santa. Mamãe era comunista, militante. Passou a ser por um filho de uma amiga da minha avó, da Bessarábia, que estava sendo caçado pelo DOPS ou sei lá o quê... Quem mandava na época, e ficou escondido um ano e meio na casa da vovó. Aproveitou e fez a cabeça da mamãe, que, pelo que entendi, era menor. E ela era uma mulher brilhante, ela tinha feito um desses cursos que acho que nem existem mais, de fazer flor, sabe, camélia, não sei o quê... E militando. Então, um belo dia, o partidão disse pra ela que ela ia ter que ser diretora de uma escola judaica progressista que estava começando e ela foi - não é que ela foi.
Eu me formei na USP; ela era uma educadora muito mais antenada, mais incentivada, mais de vanguarda do que eu jamais fui. Vanguarda de vida... Era uma mulher ousada. Quando eu olho fotos dela, que trazia de tudo, que fazia de tudo... Um dia, eu vi na minha estante uns livros em francês com a letra dela. E eu disse: “Mamãe sabia francês de onde?” E ela falou: “Olha, estudar francês ela não estudou. Deve ter insistido em ler...”. Fui perguntar pra Tatiana [Belinky] e era. Então o mundo era um mundo meio sem limites, era um mundo em aberto. A minha avó, de repente... Eu vou ficar só nisso, senão vai dar os vinte minutos. Você...

P/1 - Não, nós temos...

R - Me interrompe quando você quiser.

P/1 - Claro.

R - Porque a minha era “derretente”. Era “derretente”, enquanto a minha mãe me empurrava pro mundo, pra vida, a minha avó dava o colo. Ela era muito inteligente,

era muito bacana. Eu lembro que quando eu fiz quatorze anos, minha mãe virou pra mim e falou: “Fanny, até quatorze, normal ter mesada. A partir de amanhã, trabalha e te sustenta, te vira, compre o que você quer com o teu dinheiro.” Setembro, o que eu podia fazer? Comecei a dar umas aulas particulares. Enfim, só pra não perder a história, e um pouco depois… Não, quando eu recebi o primeiro salário, deslumbrada, minha avó falou: “Eu quero 10% para os meus pobres.” “Mas, vovó, eu sou comunista!” Como se eu soubesse o que eu estava falando. Ela falou: “Eu não tenho nada contra o teu comunismo. Mas, pros meus pobres poderem viver, pra ficarem vivos pra morar no teu comunismo, eu tenho que deixá-los comendo. Então, você me dá essa parte.” Eu achei um argumento tão lógico. Até ela morrer eu dei essa parte e depois estou dando pra outros…
Meu tio era uma pessoa que ninguém entendia como andava, porque ele tinha um problema ósseo enorme. Ele era relojoeiro, que foi uma sacação da minha avó, de trabalhar com as mãos, e era campeão mundial de remo...

P/1 - De remo?

R - De remo, né? Porque é com os braços, podia. O Adib Jatene, o doutor, ele remava com o meu tio. A minha irmã, que é médica, que foi aluna do Jatene duzentos anos, ele nunca deu a menor pelota pra Irene. Um dia, a Irene falou pra ele: “O senhor sabe que o senhor remou com o meu tio?” “Você é sobrinha do Jacózinho? Espera aí. Você é neta da dona Anita?” E mudou o tratamento.

P/1 - Ah, mudou?

R - Totalmente. E depois, a filha dele disse que ele tinha um retrato no consultório. Sabe aqueles que põem mãe, pai, madrinha. (risos) Ele tinha do titio. Lógico que o meu tio, que mal podia andar, tinha que ser espírita. Então, na minha casa, tinha a minha avó... Lógico, você não sabe de nada, não é da minha família. (risos) A minha avó, que era judia, que fazia as festas, que sabia fazer aquela comida iídiche “maravilhenta”, que distribuía, fazia o enxoval pra menina que ia casar e arrumava crianças pra outros adotarem - quer dizer, isso tudo porque ela tinha esquema de menina mãe solteira e ela já arrumava quem pegasse sem saber, etc e tal. Prudentíssimo.
Meu tio era espírita. Tinha uma dona Íris, salvo engano, que ia lá e baixava, não sei mais o quê. Tinha a minha mãe comunista. Tinha o meu… Coitado, se tivesse voz para alguma coisa: (risos) “Quero sair disso daqui”... A empregada, lógico, a dona Lurdes que era uma espécie de presidente do sindicato dos empregados locais, que tinha uma filha doidinha. E eu, como se fosse pouco tudo isso, estudava no Batista Brasileiro e era louca para entregar meu coração a Cristo. (risos) Quando as pessoas me olham: “Nossa, você escreve, você não tem nenhum preconceito.” “Claro, cresci achando tudo normal, tudo convivia com tudo.”

P/1 - Nossa, que bacana! E o seu pai, qual era o nome dele?

R - Era Francisco. O meu pai não tinha esse brilho, esse vigor, esse fulgor, essa entrega para vida, sabe? Meu pai era seguro, mas não... Não dá! Pra essa gente especial, que ninguém que conviveu com eles esqueceu, não dá pra fazer pé.
O meu avô, do lado da mamãe, eu mal conheci. Eu me lembro dos vestidos de organdi que ele me trazia. Ele era caixeiro-viajante e não sei o que ele vendia. Enfim, todo mundo tinha a sua vida.
Eu cresci vendo o Prestes na minha casa, né?

P/1 - Prestes?

R - O que você pensa? E as histórias que eu ouvia… Pra chegar ao começo da tua pergunta, quando eu era muito pequenininha, o primeiro som que me vem é a voz da minha mãe, toda noite me puxando o cobertor e contando uma história pra eu dormir gostoso e ter sonhos lindos. Era uma cinderela que morava num palácio e o príncipe era o Luiz Carlos Prestes - verdade! (risos) -, que vinha num cavalo não sei de onde e, de verdade, o comunismo que ela me explicava era uma espécie de palácio pra todo mundo... (risos) Marighella era parente, enfim, muita gente lá o tempo inteiro, era um fervor. Entra espírita, sai espírita, entra comuna, sai comuna, entra sindicato das empregadas, então, quando eu pude, eu fui tratar de morar sozinha, porque realmente era muito barulho. Isso foi a vida inteira e a minha avó me contava, meio em iídiche, meio em português, histórias que eram da infância dela. Eu só vim a entender quando eu vi o Chagall pela primeira vez...

P/1 - Humm...

R - Porque era aquele mundo do rabino voando, dos noivos voando, do cavalo indo ao contrário, poético, azul... Sabe que eu não entendia? Eu morava lá no Bom Retiro, então...
A gente continua nisso? Você é que sabe.

P/1 - Claro. Eu quero que você conte, então, pra quem vai ler depois o texto e que não é de São Paulo o que era o bairro do Bom Retiro nessa...

R - Gente que vai ler que texto?

P/1 - De quem vai ler, vai ouvir o seu depoimento, né?

R - Ah, você esqueceu de falar, tudo bem, não tem problema. É que eu falo muito depressa, não tá um horror?

P/1 - Não, tá ótimo. Tá bom.

R - Tá bom... Bom, eu não tenho texto nenhum sobre o Bom Retiro, mas o Bom Retiro está dentro de mim inteira. Eu não imagino a infância fora do Bom Retiro.
Eu morava na frente do Jardim da Luz e, pra mim, o Jardim da Luz era o meu jardim. Era atravessar, era a minha casa. Lembro que eu estudava aqui, ali, e eu via, andava de bonde sozinha para ir ao Mackenzie, e eu vinha… Com sete anos, eu achava - não com esta palavra porque eu não sabia a palavra - que a Estação da Luz era a fronteira onde apresentava passaporte. Pra cá passavam os eleitos, os que moravam no Bom Retiro, os outros eram os outros. Então, o Jardim da Luz… Meu Deus, lá a gente pulava amarelinha, a gente pulava caracol, você nem pegou essas coisas, né? De cabra-cega, de lenço atrás, de ‘a galinha do vizinho’, de bicicleta, que eu caía sempre. Eu andava pelas trilhas, ia de perna ver as putas que ficavam todas numa ruinha que saía da José Paulino. Eu não entendia o que elas faziam detrás da janela. E aí vinha o meu pai e me pegava e me dizia que aquilo não era lugar pra criança. Era tudo “maravilhento”, era muito bacana.
Eu me lembro que uma vez... Eu sou dispersiva assim mesmo. Não se preocupa que uma hora eu costuro. (risos) Que uma vez o Paulinho Portela, sabe quem é? Aquele diretor do Masp?

P/1 - O Paulo Portela.

R - Ele foi meu aluno, é Paulinho, né? Ele me chamou pra fazer um prefácio de um livro sobre Giverny que eu conhecia, é claro que eu conhecia. E olhei aquilo: Giverny. “No Jardim da Luz”, não sei o quê! (risos)
Eu entreguei. Ele disse: “Você sabe? As pessoas gostaram. O que ficou, parece, um pouco inverossímil, era o bicho-preguiça.” Eu falei: “A única coisa que é de verdade mesmo é o bicho-preguiça. O resto....” (risos) Era em outra proporção, em outra tudo, né? Então, eu penso que… Eu não sou personagem de meus livros, mas eu faço de conta que sou. Enfim, sei lá.
O Jardim da Luz não é mais... Eu fui outro dia e não devia ter ido, porque a...

P/1 - Eles fizeram a reforma, esquisita. Mudou, não é?

R - Ficou outra coisa. Eu morava do lado do rabino, então agora, há pouquíssimo tempo, uma ex-aluna me pediu para escrever uma história do boto, pra editora não sei o quê, e eu dizia: “Eu não entendo nada de boto. Eu sou de São Paulo, do Bom Retiro, o que eu sei de peixe?” Aí, ela: “Mas se você não for, não vai dar. Não vai ser legal.” Eu falei: “Eu sou do Bom Retiro. Meu vizinho era o rabino que fazia contrabando na barba... (risos) Eu sei dessas histórias.” Mas como ela insistiu muito, eu perguntei: “Pode ser bota?” “Pode!” Aí deu... (risos)

P/1 - Mas deu?

R - (risos) Ah, não dá mais pra pôr a culpa no boto. Vai pra onde você quer, por favor.

P/1 - Nãããooo...

R - Você está entre o encantado e o aflito. Isso não vai acabar nunca. Você sabe, né?

P/1 - Mas você que diz a hora.

R - Não, não uso relógio, imagina... (risos) Tá, mas dá pra lavar.

P/1 - Não podemos torturar ninguém aqui.

R - Você acha que eu faço ligeiramente o tipo Fanny “estampadinha”? (risos)

P/1 - Mas o que eu queria perguntar pra você, na sequência, é se você podia descrever… Você já descreveu o ambiente da sua casa, você pode descrever a sua casa fisicamente? Como ela era?

R - Ah, não tem a menor importância! (risos) Eu posso descrever, mas não é isso. A minha casa… Quer dizer, a gente primeiro morava num prédio, na esquina da [Rua] Prates com a [Rua] José Paulino. Outro dia eu encontrei uma menina que foi minha colega de jardim da infância e ela dizia: “Nunca entendi como cabia tanta gente lá”. (risos) Ainda foram fazer uma homenagem, e ainda tinha uma empregada, Esmeralda, que parece que foi a pessoa de quem os jovens mais sentiram falta, porque tinha, como eu direi, um derrière mais apetecível do que essa Jones, ou sei lá como ela chama. Tinha campanha de papel, de... Eu me lembro que, com oito anos, ou menos, sei lá, [eu saí] distribuindo papel: “Vote em Matilde de Carvalho. A feirante do partido.” Não sabia nem o que estava fazendo... (risos)

P/1 - Com oito anos, é?

R - Oito anos. Fora coisas assim, de exploração de menores que eu, judia, gorda, bem nutrida, bem vacinada, fui liderando uma passeata que a menina chamada não veio, e eu dizia: “Abaixo a carestia. Estamos de barriga vazia.” (risos) Quem fez isso não tem problemas com o ridículo nunca mais. (risos). Absolutamente out.

P/1 - Fanny, o seu pai também era do partido ou só a sua mãe?

R - Coitado do meu pai. Não, ele não era, mas ele foi entregar uns papéis que ela pediu e ele que foi preso. Aí diziam: “Fala comunista!” E ele saiu como um corajoso, porque não falou nada. Ele não sabia. (risos) Então, não era... O papai não tinha isso, ele não tinha essa surpresa...
Você sabe, quando eu te disse no carro: “Eu não quero pergunta que eu já sei o que é, me conta. A gente vai lá e vai inventando…” Meu pai não sabia inventar, não sabia brincar. Ele não era uma surpresa, ele sempre era o esperado. Eu acho muito chato brincar de coisas esperadas. (risos)

P/1 - E quais eram os lugares mágicos pra vocês do Bom Retiro, ali?

R - Mágicos? De criança. Bom, Jardim da Luz inteiro, a “rua das putas”, que eu não lembro como chamava, mas era, eu até hoje não entendo... Mas era muito curioso, tinha o bar Jacó, que ninguém ia lá fazer compras com dinheiro. Tinha uma cadernetinha preta e vinha em iídiche, o que era e o número, e a minha avó mandava eu ir lá comprar. E tinha aqueles… Ah, meu Deus, tonéis. Não eram tonéis, sabe aquela coisa de madeira?

P/1 - Aquelas barricas?

R - Aquelas barricas na porta, que vendiam pepino azedo, cebola não sei da onde. Era um cheiro… Arenque, raiz-forte. O cheiro daquilo entrava, eu tô sentindo...

P/1 - Humm...
R - As vilinhas, que você não esperava e de repente apareciam, não é? Na tua rua... A gente ia nadar no Tietê, ia sozinha, então...

P/1 - Vocês nadavam no Tietê?

R - Lógico. Não no rio, no clube. O rio, eu não conheci essa palavra poluído, mas não acredito que fosse. Era no Clube Tietê. E meu tio dizia: “Não precisa nada. Chega lá e diz que vocês são sobrinhas do tio.” E eu achava que... Era uma senha mágica: “Eu sou sobrinha do meu tio”, e entrava.
E a minha avó, que era uma pessoa também com uma deficiência física, pra mim ela era “tão gigantesca”, tão forte, que pra mim não podia me acontecer nada com a minha avó lá. Então, quando eu fico vendo essas bobagens de inclusão... (risos) É de outro jeito, sabe? É com outra cabeça. Nunca me passou pela cabeça que o meu tio ou a minha avó tivessem deficiência, nunca. Porque era outro jeito de levar as coisas.
Os negócios que a minha avó fazia... O verdureiro, que se chamava Salim, deve ser da outra parte do mundo, ele fazia as compras para a vovó na quitanda, porque ele sabia escolher melhor. (risos) Ela dava dinheiro, ele comprava, trazia. Tinha a dona Anita, dos ovos, que era uma senhora que vinha de trem de um lugar remoto, como Pirituba, sei lá eu, e ia tirando ovo por ovo e entrava em casa... Um menino, que era louco de pedra, que a vovó conhecia o pai dele, que de vez em quando saía do hospício, qualquer coisa parecida, que não tem importância... Ele tocava a campainha - isso eu soube pela dona Lourdes, que era a senhora que trabalhava lá - e aí a vovó dizia: “Quem quiser fazer xixi, já, porque daqui a pouco o Maurinho entra.” Pegavam toalhas, sabonete especial pra ele, e dizem que ele ficava lá quatro, cinco horas tomando banho. Fora o que entrava de gente desconhecida da rua, porque a gente era vizinho do INPC, Inptec, eu não sei o que era aquilo...

P/1 - IAPTEC [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas], né?

R - É. E vinha gente, que ia na fila receber alguma coisa e entrava, fazia xixi. Então é muito difícil quem cresceu desse jeito não estar aberto para o mundo. Não pode, não tem como! Ou é idiota ou é um... (risos)

P/1 - O mundo que estava na sua casa, não é?

R - Estava. É por isso que eu fico puta, desculpe, mas agora puta mesmo como educadora quando eu vejo essas idiotices: “É preciso tirar a criança da rua.” O que é isso? A única função do educador é pôr a criança na rua, no mundo. A única que lhe cabe... Fazendo o que… Bom, da maneira dele. Depois a gente volta a essas coisas e aí eu falo do meu pedagogo preferido.

P/1 - Ah, tá. Eu não estou entendendo, a sua avó e o seu tio moravam também com vocês?

R - Moravam. E a empregada e a filha também.

P/1 - E você tinha uma irmã?

R - Tenho. Médica.

P/1 - Tá. São duas meninas?

R - Duas.

P/1 - Uma casa animada, então?

R - Animadíssima. Fora que quando eu passei a ter doze, treze anos, sei lá, a minha casa também era a sede… A gente tinha um “clubinho”, mas também era a sede de se encontrar pra ir ao cinema na ‘cidade’ – você nem sabe do que eu estou falando – podia ser o Ipiranga, podia ser o Marabá. A gente ia a pé e antes se encontrava na minha casa. Fazia-se um pequeno arranjo que o porco não era judeu, alguma coisa assim, porque todo mundo comia salsicha

com Ovomaltine(risos) - não, salsicha não era de porco, era uma salsicha diferente... A gente comia e saía andando. Salada Paulista já é… Acho que é minha época de faculdade, assim, de entrar depois. Era muito animado. O meu amiguinho, com quem eu já brincava antes disso, de médico e enfermeira, é o meu ginecologista até hoje, a gente está acostumado. (risos)

P/1 - Ai, ai...

R - Não é assim que você espera as entrevistas...

P/1 - Não, não. A sua eu sabia que ia ser assim. (risos) Mas aqui nas entrevistas, aqui rola de tudo. O entrevistado é quem manda.

R - É que eu fico... Ela sorri, ela está encantada, não é? “Acho que ela não deve aguentar não tem muito o limite das coisas, fala demais.” Você, de vez em quando, bato o olho, tô batendo o tempo todo e você está meio ansioso, falando: “Eu tenho que voltar. Deixo isso ou tenho que voltar. Tenho que perguntar não sei o quê...”

P/1 - Não. É a cadeira...

R - Desculpa, essa foi a pior dos últimos anos. (risos)

P/1 - Sério, não estou ansioso, é que... Continuando o nosso passeio pela sua infância no Bom Retiro, você contou um pouco sobre as suas andanças externas que as crianças faziam. E dentro de casa, quando chovia, o que vocês faziam?

R - Primeiro, ninguém achava que chovia, eu acho. Eu lembro, garoava sempre em São Paulo, era comum.
Eu não sei… Talvez porque eu, como educadora, tenha sido sempre lúdico-brincante, quando eu via aqueles “livros, brinquedos para os dias de chuva”, eu tinha ataque epiléptico. Por que brinquedo para dia de chuva? Uma coisa muito maluca, por que dia de sol não pode? Não precisa? O sol é... Que maluquice é essa? Além, claro, de bonecas, muito... Festinhas de boneca, bom, o repertório usual.
Tinha um brinquedo - mas não era um brinquedo que eu fazia, era da Melhoramentos, isso vocês são capazes de saber - que a gente recortava umas figuras, em preto, um príncipe, o bosque, sei lá o quê, e punha um papel transparente atrás e uma vela. Chamava Teatro Chinês, não sei por quê. Ele era de sombras, isso era absolutamente mágico. Eu sempre li, li, li... Mas isso eu vou deixar para daqui a pouco pra entrar numa coisa constante.
Eu quero voltar ao mágico. Quando eu estava no terceiro ano primário, a minha irmã foi pra escola. Ela era menor do que eu, então a gente foi para uma escola semi-interna, no Batista Brasileiro. Eu adorava o Batista. Então, o pastor - não sei se era uma vez por semana, ele tinha um cavalete [em] que ele punha uma flanela, eu acho, e aí ele tinha umas figurinhas recortadas, que ele punha ali, e não caía, chamava “florenógrafo”. Em vez das bobagens do Spielberg, que acha que sabe de tudo - ele não sabe de nada -, o Luan não caindo na barca, naquele papelzinho branco, aquilo que era mágica. Não é um truque, é mágica. (risos) Era realmente arrepiante. Arrepiante, tinha muita coisa.
A primeira vez que eu fui ao Teatro Municipal. Porque misturava tudo... A minha mãe me levou. Eu lembro que era num camarote, eu nem sabia o que era um camarote, e lembro que quem tocava piano era um homem chamado Günder, que tocava Chopin. Não vem ao caso o que ele tocava, a seleção musical dele, nem nada. A emoção de viver o que eu ouvia, o teatro, os lustres... Até hoje eu vou ao teatro e eu demoro pra chegar ao palco. O todo é muito mais bonito e a invenção do que está acontecendo na minha cabeça.
E tinha coisas assim. Olha, eu falei disso ontem, não sei se lembrava muito mais... Sábado, a gente ia passear com a mamãe na [Rua] Barão de Itapetininga, o que tinha de chique. Então a gente entrava no segundo andar, que tinha a Livraria Parthenon, do Álvaro Bittencourt, que morreu antes de você nascer, e que tinha milhares de livros e a gente ficava lá olhando, mexendo, sentindo, cheirando. Depois passava pra uma loja da Galeria Guarapará - uma coisa assim, nem deve existir mais -, que tinha um balcãozinho que vendia cadernetinha. Não tinha muito aqui no Brasil aquilo ainda. Eu era maluca por aquelas...

P/1 - Cadernetinhas?

R - Bloquinhos, desses que você bota pra lembrar de alguma coisa, não tinha. Era uma coisa que vinha de longe, da Argentina talvez. Eu era absolutamente maluca por aquilo.
Tinha outras lojas de roupa, tinha a Brasiliense, que era meio o final, aí eram modas, vasculhando, olhando, folheando. Literatura infantil não tinha... Quer dizer, acabou o Lobato, eu vou falar do Lobato, não se preocupa... (risos)

P/1 - Não, não, mas eu ia te perguntar, era isso. Nessa época, tinha muito pouco livro pra criança, não era?

R - Não tinha. Embora eu falasse na... Você vê de vez em quando o Letterman? O David?

P/1 – Não, raramente.

R - Tem um vídeo do Bin Laden, com o sheik cego, que (risos)... Você tem que ver porque é muito engraçado. E eles dizem no final: “Ah! That’s too America.” Então, como a gente falava, “yankees, go home”, qualquer coisa assim, chegou uma hora que não tinha mais o que fazer. Tudo que tinha em português eu já tinha lido. Até umas bobagens que ficavam entre a banca e a livraria, que eram uns livros de M. Delly, que a grande dúvida é se o M era monsieur ou era madame, que contava história do conde bastardo, umas coisas assim. E fui estudar na União Cultural Brasil-Estados Unidos para poder ler...

P/1 - Humm...

R - Porque não tinha mais. Tinha umas coisas do Júlio Verne, que já existia e era do meu pai. Era ortografia antiga... Então, para comprar tinha muito pouca coisa. Tanto que, de repente, eu estava lendo o Zé Lins do Rego, aqueles meninos dele. São cinco volumes, que não era pra criança nunca. Cinco volumes, corpo pequeno, já estava... “Capitães da Areia”, enfim, ia inventando o que dava, mas eu tive que aprender inglês - que não aprendi direito - e depois francês - que eu aprendi direito -, pra continuar lendo, lendo...
Talvez o que acontecia na minha casa fosse tanta coisa ao mesmo tempo que o livro era mais ordenado, contava uma história, sabe? Eu acho, estou raciocinando agora, tinha alguma coisa; marcava, continuava...
Mas eu só quero dizer que depois a gente atravessava… Quando, por acaso, era um dia de tarde, tinha chá no Mappin, nada mais chique. Eu estudava balé no… Não sei se existe ainda, embaixo do viaduto tem uma Escola de Balé de São Paulo, tinha... Nem sei como é que chama aquela rua de bailarina de ponta de pé e tudo. Aí atravessava o viaduto do Paissandu, voltava pela Rua São Bento, ia vendo os sapatos, que eu nunca queria, e daí pegava o ônibus, 71 ou 72, e voltava pra Rua Prates.
Tudo isso é muito nítido, e como vocês não conhecem, então vocês não sabem a florescência que era tudo isso. O pique, as cores do Bom Retiro, o cheiro de comida iídiche com comida baiana que a empregada fazia, feira passando pela porta, a mulher dos ovos, o menino tomando banho por cinco horas, sabe? As reuniões. Eu lembro que tinha uns dirigentes do partido e nessa hora eu tinha que ir para outro lugar. Tinha um passarinho, que eu não sei de quem é aquele passarinho, e toda vez que esse dirigente do partido falava qualquer coisa, o passarinho assoviava em cima e ninguém escutava. Eu acho que era algum stalinista disfarçado e o passarinho sacou antes. (risos) E então...

P/1 - Por que o pessoal se reunia mais na sua casa? Era sua mãe quem convidava?

R - Não, todo mundo tinha a sua turma. A minha avó tinha a turma dela, ela tinha... Eram uns - olha, eu ia falar velhinhas, mas acho que eles eram mais novos do que eu hoje, que vinham e falavam com ela. Tinham um, seu Moisher - eu chamava de Moisher Little porque ele era pequeno -, ele era vidraceiro e devia ter sido apaixonado pela minha avó. Ele vinha todo vestido com aqueles sobretudos do Chagall e com gravata e ficava lá falando, mas era falação em iídiche, eu não sei o que era.
Tinha umas pessoas de ajuda da minha avó. Quem dá não tem que saber pra quem vai dar e quem recebe não precisa saber de quem recebeu e ninguém deve nada pra ninguém. Então chegava a roupa de uma, mais tarde chegava a moça pra pegar a roupa... Enfim, todo mundo tinha a sua turma. Eu só estudei no Bom Retiro na creche e depois, toda essa minha ligação com o Scholem foi como professora. Eu não...

P/1 - Ah, foi só no início, na creche?

R - Só, uma creche. Eu acho que não tinha escola no Bom Retiro, quer dizer, eu não sei. Eu sei que da creche eu fui pro Mackenzie, você vê que é uma trajetória bem coerente, e de lá pro Batista Brasileiro...

P/1 - Você fez o quê, o primário no Mackenzie?

R - Fiz. O primário inteiro não, só o primeiro e o segundo ano. Por quê? Você fez também?

P/1 - Não, não. Estou achando, mas como era o Mackenzie naquela época que você fazia? Naquela época que você começou?

R - Olha, eu vou te contar duas coisinhas. O primeiro ano eu fiz com a dona Nicota. O Ricardo deve ter falado porque ele adorava essa dona Nicota, a gente era colega de classe. E a dona Nicota alfabetizou a gente com a mesma cartilha que ela tinha alfabetizado o meu pai, que foi de lá também. Quer dizer, dá pra sentir o quanto ela era “procurante”, inovadora, “buscante” de outras possibilidades. Nem a cartilha ela mudou! Então, não dava...
O que eu lembro, e tá aqui, é da biblioteca do Mackenzie. A gente saía da aula, no recreio, tinha uma daquelas escadas que só o Hitchcock tinha, sabe aquelas que vão descendo... E lá embaixo tinha todos os livros. Eu lembro que tinha o “Thesouro da Juventude” com ‘th’, capa azul, capa dura, letras douradas, e tinha um que chamava “O Livro dos Contos”, e lá tinha uma história de doze princesas que desciam toda noite de sapato, de chinelo, sei lá, pra não fazer barulho, porque tinha um baile, e aí elas trocavam o sapato, depois destrocavam. Eu ficava lá e pra mim aquilo era tão imenso, tão imenso, que eu nunca caí na bobagem de voltar. É claro que eu vou ter que olhar com meu olho de hoje e não dos sete anos, deixa ela ficar do tamanho que tinha quando eu tinha sete anos, que era, assim, “despirocante”. Era muito lindo!
Virei educadora de tanto que eu conheci os sistemas educacionais. Eu mudava de escola toda... Isso que eu tô te contando enquanto eu estava sob a égide da minha mãe, porque quando eu passei a pagar escola com meu dinheiro, eu mudava de escola em maio... (risos) Me enchia, eu ia embora. Então, no geral eu falo com as pessoas: “Você foi meu aluno, foi meu professor.”.

P/1 - E Fanny, voltando ainda ao Mackenzie, que eu estou achando interessante porque é uma instituição que está aí até hoje, como é que era o rito escolar de vocês?

R - Eu não lembro. Eu lembro que era uma coisa muito chata. Tinha fila por ordem de tamanho. Eu fui a primeira da fila sempre, do jardim da infância à faculdade, uma escola sem graça. Não tinha, por exemplo, o pastor Eneias, era uma escola protestante também. Tinha essa biblioteca, tinha gente grande, gente que devia ser ginásio, nem sei se eles tinham Científico. Olha, uma escola absolutamente não marcante na minha vida. Eu só lembro mesmo da dona Nicota porque o papai falava dela. Outro dia, a Tatiana me veio com a novidade que ela era montessoriana, eu não sei. Mas o mais engraçado… Não é Tatiana ainda, né? Então vamos continuar...

P/1 - Não, pode falar da Tatiana.

R - Eu sempre perguntava como é que a Tatiana e a minha mãe se conheceram. E segundo rezava a lenda, foi na porta do Mackenzie esperando o Ricardo e eu sairmos. Só que, pelo que você conhece da Tatiana e pelo que eu estou falando da minha mãe, não tem muita chance de isso ter sido verdade, não é? Eu não posso ver minha mãe na porta do Mackenzie esperando eu sair. Realmente, eu não posso. (risos)

P/1 - Mas quem levava e buscava vocês? Iam sozinhas...

R - Íamos sozinhas! Dois bondes. Pegava um bonde até o Largo do Arouche e do Largo do Arouche pegava outro. O nome do bonde eu não sei.

P/1 - Isso com sete anos?

R - Sete, mas não tinha... Como o cinema, como o clube...

P/1 - Que legal...

R - Andávamos sozinhas, a gente era autônoma. A gente resolvia se ia à esquerda, à direita, em frente, marche, volta... Sozinho! À União Cultural Brasil-Estados Unidos eu ia sozinha. Já falava: “Abaixo a carestia!” (risos)
Teatro, sim, eu lembro de um que era... Lembrei! “Piccoli di Podrecca”, e era no teatro, longe. Digamos, não o São Pedro, mas uma coisa daquelas de bairro. Olha, foi a primeira vez que vi marionete.
Do que a gente tava falando?

P/1 - Disso, que você foi ao teatro, viu marionete...

R - Não, mas vinha puxado por quê? Veio muito forte isso, eu não lembro do que eu estava falando antes.

P/1 - Da independência de ir pra todos os lugares.
R - Para o teatro devia ser obrigatório, ou tomava uma multa. Até hoje, menos de doze eu acho que não entra, esse tipo de coisa...
Tudo a gente resolvia sozinho. Férias? Sempre foi em colônia de férias, porque eles também tinham direito às férias deles. Eu delirar, a ponto de achar que eu fui vanguarda, é maluquice, porque tanta vanguarda junta eu nunca vi.
Alunos meus dizem: “Nossa, tudo o que eu sei eu devo a você.” Eu sei de viver... Não sei até onde eles podiam furar mais esquemas. Quando você falou do meu pai, acho que foi esse ano ainda, fim do ano passado, me telefonou uma moça que eu gosto muito, que era editora da Ática, a Carmen, dizendo que ela estava organizando uma antologia sobre o pai e queria que eu escrevesse. Eu falei: “Ah, Carmen, não vai dar. Meu pai não tem graça nenhuma. Sabe, o que é que eu vou... Não dá! Vai ficar uma coisa ‘estreitante’, sufocante...” Ela falou: “Ah, mas eu queria tanto...” Falei: “O que eu posso fazer? Só tive um, eu lamento.” (risos)

P/1 - Não, você estava contando que ele falou que esse hotel não existe mais e...

R - Porque não existe mais nada. A gente ia à casa, à loja da dona Beta, que tinha a camisa jogo xadrezinha. Agora não pode nem experimentar. Tem que comprar de quilo, sei lá. E a gente tinha crédito, fiado, depois vinha e pagava. Não sei como é que era, mas não era absolutamente anônimo.
Estou fazendo um corte de milhões de anos. Quando a mamãe morreu, em 1964, eu falei: “Eu vou ter que sair dessa rápido, porque senão vai entrar o jogo das capitanias hereditárias e eu não vou ser a minha mãe.” Então pedi uma bolsa de estudos para Paris.
Eu não resisto a contar isso no meio: eu lembro que o meu tio tinha morrido, tava tendo um velório que era um corte vertical da sociedade, tinha desde senador da República, professor Adib Jatene, puta, bicheiro, jogo de cavalo, uma loucura!
Legal, eu estou conseguindo chegar nisso, fazer eu comigo. Nesse corte vertical.
De repente toca o telefone e era pra mim. Fui atender e era dona Mariinha Vereb, que era ou tinha acabado de ser minha professora na faculdade, uma educadora importante. Ela falou: “Fanny, parabéns! Eu estou aqui e o resultado é três cruzes, acabaram de me telefonar pra dizer que você está com três cruzes”. Eu falei: “Peguei sífilis e a dona Mariinha sabe.” (risos)

P/1 - Três cruzes?

R - O que podia ser? Um cara da embaixada telefonou pra ela para perguntar se era verdade tudo aquilo que eu tinha feito. Claro que era, trabalhava desde os quatorze, então eu ganhei uma bolsa. E quando eu estava para embarcar, a bolsa dava algumas coisas e as outras você tinha que complementar. Tinha tido uma campanha da Record, de qualquer coisa assim, “Faça Uma Criança Sorrir”. Eu fiz “Faça Uma Professora Sorrir”, e o bairro inteiro entrou na torcida porque eu fui a primeira que fui para fora [do país]. Sem o dinheiro do pai ou da mãe... Então, um dava malha, outro dava...

P/1 - Mas você fez uma campanha mesmo?

R - Entrou todo mundo na torcida. Não era pra tanto. Vendi dez jaquetas. “O que é que eu vou fazer com dez jaquetas e não sei mais o quê…” Era um entusiasmo do bairro, uma torcida, sabe. Eu fui a primeira que fui, eu fui a primeira que foi morar sozinha.
Você podia contar com as pessoas do Bom Retiro. Até para comunista ir trabalhar em Paris. (risos)

P - Que bacana, hein?

R - Então...

P/1 - Era uma comunidade...

R - Era uma comunidade. Era uma comunidade e eu não falo iídiche, lógico... (risos) Ouvi as preces do menino Jesus... Eu fui trabalhar, depois dar aulas particulares no [colégio] Scholem, escolas judaicas, já como candidata profissional. Eu fazia Normal, sei lá como entrei. E a mamãe que era a diretora.
Quando essa moça, a Carmen, me pediu pra escrever sobre o meu pai, que eu estava contando, que eu falei que ele não tinha graça, ela falou: “Ah, mas não tem graça uma antologia sem você!” Não é que não tem graça, é que é muito difícil encontrar uma professora e mulher, debochada, irreverente, lixando pra minha reputação, que ela me precede... (risos)
Falamos umas coisas engraçadas. Eu falei: “Olha, Carmen, a única coisa que eu posso fazer é o pai que eu queria ter.” Ela falou: “Ah, maravilha!”. Aí eu comecei assim: “O pai que eu queria ter era o Sócrates - nunca o filósofo grego, pelo amor de Deus, que eu não gosto destas coisas - Sócrates, o jogador de futebol. Eu ia ser alta, magra, médica, mas o melhor é que eu ia dizer: ‘Pai, eu vou passar o fim de semana na casa do titio. Eu volto segunda-feira’.” (risos) Não é?
Acho que caiu aquele teu negocinho...

P/1 - Essa foi tão boa que o meu microfone caiu.

R - Pro Monteiro Lobato pra inventar histórias pra mim, enfim, outras coisas. Mas, de verdade, eu acho que qualquer mulher...
Em Paris, uma vez, é muito maluco isso...

P/1 - Em Paris, uma vez?

R - Eu tinha descoberto, quando eu cheguei, uma praça onde ele morava. Eu nunca soube, lógico, só falta eu saber onde ele morava. Esqueci o número, mas eu cheguei à praça: uma praça como as de Paris, de charme, escondidas; de repente, uma coisa que explodia, que aparecia e não tinha ninguém. Entrei numa imobiliária, eu acho, enfim, num escritório e falei: “A senhora sabe onde o Yves Montand morava?” Ela ficou me olhando, eu falei: “Olha, eu sou mulher, a senhora é mulher, sabe por que eu estou pedindo.” Ela falou: “Claro, número dezessete...” ou qualquer coisa assim. (risos)
Então, como é que eu posso te explicar? Era um ator fantástico, francês, casado com a Simone Signoret. Cantor, comunista e um tesão, você dava pra ele sem camisinha na hora. Quando eu cheguei lá, ele já tinha morrido, mas eu fui dar meus respeitos. (risos)

P/1 - Fanny, você estava contando uma coisa interessante...

R - Se tiver que editar isso, você fala também...

P/1 - Não, está maravilhoso. Tem alguma coisa contra? Não, nada né?
Você estava contando uma coisa daquela vez que você foi pela primeira vez ao Teatro Municipal com a sua mãe, você ficou impressionada porque você via o que você estava ouvindo. Vocês ouviam muito rádio em casa?

R - Claro, eu lembro. Não sei que escola era essa, mas eu lembro que no apartamento em que morava com dezesseis pessoas em dois quartos, eu almoçava ouvindo o Chico Alves. Que rádio seria? Nacional? Não sei. Cantava uma coisa “Criança Feliz”, “Feliz Não Sei o Quê”, alguma coisa. Eu ouvia muito rádio e tinha vitrola.

P/1 - Humm...

R - Sempre teve vitrola. Livro e vitrola, sempre. Também, além de não saber como cabia tanta gente, eu não sabia como cabia tanto livro. Não eram tantos, eu era pequena, mas tinha. Sempre teve. De gente que não era uma gente acadêmica, tanto que a minha maior luta nestes últimos anos é pra tirar o mínimo que ainda ficou de filha da USP. Não quero. (risos)

P/1 - Fanny, você falou então do começo lá do Mackenzie, dos primeiros anos, que não marcaram muito. Depois você vai para onde?

R - Pro Batista.

P/1 - Pro Batista.

R - Adorei o Batista, realmente eu adorava o Batista, eu ficava... Fiquei semi-interna lá, porque eu te falei, todo mundo trabalhava e a Irene, a minha irmã, foi para o primeiro ano, então…
Era, parece, a melhor escola semi-interna. Eu adorava o Batista.
Outro dia - outro dia, não, já faz uns dois, três anos -, deu tanta saudades que eu liguei. Eu perguntei para muita gente, ninguém sabia. Procurei na lista o nome do pastor, ele chamava Enéas Toninho. Eu falei: “O senhor não vai lembrar de mim porque faz uns cinquenta anos, mas eu estou com muitas saudades. Eu sou a Fanny”. Ele falou: “Claro que eu não podia esquecer. Ah! Você era muito sapeca.” (risos)
Eu provavelmente faria o mesmo quando alguém me ligasse. Mas eu adorava o Batista. E foi a época que a minha mãe foi candidata a vereadora... Não falei isso ainda?

P/1 - Não. Candidata a vereadora?

R - Meu Bom Jesus da Lapa!
Até pouco tempo, durante a ditadura… Não sei se quando você passou por lá, sabe aquele pontilhão que tem na Rua Silva Pinto? Não? Passava trem, não sei o que passava lá. Tinha escrito do lado de cá: “Vote em Elisa Kauffmann, a candidata de Prestes.” A mamãe foi a primeira mulher - pelo que me contou o Bolívar Lamounier, não sou metida a saber de história -, a primeira mulher eleita. Só que o partidão, óbvio, não era legal e usava uma legendoca dessas de aluguel, PPM, PP qualquer coisa. Ela foi cassada, acho que nem tomou posse. Ele me contou, o Bolívar. Sabe quem subiu no lugar dela e que também usava uma legendoca de aluguel? O senhor Jânio da Silva Quadros.

P/1 - Não diga... Jânio Quadros! (risos)

R - Quer dizer, a história do país poderia ter sido diferente, sei lá. (risos) Mas foi, ela usou o nome de solteira e então… Sei lá. Isso eu lembro assim.

P/1 – Realmente, sua mãe era animada, hein?

R - Minha mãe era animada. E aí ela morreu...

P/1 - Ih! Soltou de novo…[o microfone]

R - Não tem aqueles da Madonna? (risos)

P/1 - Agora pronto, agora está tranquilo.

R - Não, eram todos animados. O que você vê hoje, de certa maneira, no telefone, das pessoas que ainda estão vivas… O que está acontecendo com o PT, essa depressão coletiva que a gente entrou, é porque tudo pelo que a gente viveu e perdeu gente, foram presos e torturados...
Bom, a primeira vez que eu fui para Londres eu fiquei na casa do Vlado. O filho dele foi meu aluno. Quando você vê tudo isso, fala: “Pra isso?” E a gente era... A gente sonhava. Eu, por nenhuma sabedoria, por pura intuição, resolvi entrar na ficção a tempo de não ter... Daí eu invento outro mundo e vou embora pra lá.

P/1 - E dos seus professores que te marcaram? Você contou desse pastor...

R - Mas ele não foi meu professor. Era diretor da escola, o pastor...

P/1 - Era o diretor da escola, só?

R - É. Naquele livro que eu disse que eu escrevi, a antologia que eu organizei, “O Meu Professor Inesquecível”, todo mundo escreve do seu professor marcante, porque ensinou isso, abre a porta daquilo. Inventei a antologia e eu escrevi de uma professora que eu tinha terror, que pra mim media 3,5 metros, que era uma velha -

talvez tivesse dezoito anos, eu que tinha oito - e que me obrigava a saber de cor todas as bobagens do mundo, todas as estações, onde parava o trem da Sorocabana.
Você já foi para o Amazonas?

P/1 - Não.

R - No dia que vocês forem e forem andar de barco, aí você fala: “Nossa, onde é a margem?” Aí o pescador morre de dar risada e fala: “Não dá pra ver.” Mas eu falei: “Mas onde é a direita e onde é a esquerda?” Não dá pra ver. Então os afluentes… Não dá. E a gente tinha que saber de cor. Não sei se você pegou isso, lembra?

P/1 - Ah! Os afluentes.

R - Todos os afluentes da margem esquerda do Amazonas que você nunca vai ver na vida? Era esse o tipo de coisa importante que a dona Linda me ensinava. Eu percebi - lógico, não com oito anos - que ela foi minha professora inesquecível porque ficou um modelo. Não posso ser, nem de longe, parecida com a dona Linda. Tenho que procurar outro caminho. Consegui não ser dona Linda, isso é uma vitória. (risos)

P/1 - Que bom pra todos, né?

R - Você há de convir que poucos professores tiveram proposta de parceria feita por ex-aluno do pré-primário. E um pouco da escolinha, meninos que a Fannyzinha... Isso é que é honra, o resto é batata frita. Depois, se vocês quiserem, a gente fala disso, num outro capítulo dessa novela interminável. Eu me divirto sempre, você sabe, mas já falei...

P/1 - A ideia é a seguinte: a gente vai fazer um fecho desse período, mas eu queria muito que você voltasse aqui outro dia. A gente te busca só para contar sobre educação. Quando você decide ser educadora e tudo o que acontece e falar da sua obra.

R - Não, tudo bem, porque falar agora ainda tendo que fazer o outro, não ainda tendo… Não é uma tarefa. Ele não vai aguentar botar tanto microfone... (risos)

P/1 - Não, é que tem um limite pra você também. Acho que pra entrevista ficar boa...

R - Tem que estar viva e se...

P1 - E na outra a gente ainda...



R - Tem alguma coisa que vocês acham importante, que amarre, que fale?

P/1 - Eu queria só que você falasse um pouquinho. “Olha eu já li de tudo, lia, lia”,

mas você pode falar algumas coisas que você leu que marcaram na...?

R - Posso.
Evidentemente, na época tinha a editora Melhoramentos. Tinha uma história que alguns de meus professores contavam, dia sim, dia não, que eu odiava, que era “A Galinha Ruiva”. Talvez por causa da cor dos meus cabelos, prever o meu futuro, vocês lembram dessa história? Uma história idiota, que não tinha mais tamanho, e as pessoas me acham uma puta educadora... “Ô” (risos)


“Se não me ajudar a pegar o centeio, eu não dou o pão...” Uma história horrorosa - horrorosa não, é uma história idiota. Eu lembro dessa Coleção Tic-Tac e umas outras bobagens.
Paixão… O único volume que eu guardei desde a minha infância até hoje, é o único volume, único exemplar da coleção inteira do Monteiro Lobato. Eu vivo dando meus livros, a gente faz uma revisão, “não vou ler mais isso, não vou ler mais aquilo”, passar. Eu sou madrinha de não sei quantas bibliotecas e faço um monte de coisas, mas esse eu ainda tenho, os dezoito. Fascinação total, lagartear ao sol, comer jabuticaba e ler aquelas histórias. Eu virei brasileira por Lobato, antes eu era só do Bom Retiro, o Lobato que me apresentou ao Brasil e o Teotônio que me fez acordar para urgência do já em termos de Brasil.
Claro que eu não reli mais os didáticos, os “ensinantes”, porque eu não gosto de nada disso, mas me parece que assim mesmo são bem melhores e bem menos idiotas do que os que fazem hoje, não vou garantir. “Petróleo” também nunca reli, mas as “Memórias da Emília” eu realmente adoro e “A Chave do Tamanho, A Chave da Natureza”, realmente, é uma volúpia, é um deleite. É uma risada, é um inesperado, é um...
Acho que quis ser duas coisas, como profissional, na minha vida: uma chacrete, não tinha condições pelo tamanho, outra... É sério! (risos) Com tudo que eu estou falando, é lógico que eu adorava o Chacrinha, e ele falava… Às vezes eu pegava o ônibus pro Rio, o Cometa, eu ia ver, e ele falava: “Aquela menina que sabe tudo.” Terezinha! Uma maravilha. E Emília, um pouco da Emília eu consigo ter. Mas ainda não dá pra entrar num auditório e dizer: “Eu sou independência ou morte”, ainda não tanto.
Quando eu pego esses volumes eles vêm com o cheiro da minha casa, com o cheiro da minha infância, com aquele papel grosso, com a poeira, com o fogão vermelho da minha avó, que ela ganhou sei lá de quem. Sabe, volta tudo. Uma vez eu fiz um artigo sobre Lobato para um site português - eles me pediram, o Vidas Lusófonas -, e em que eles pedem que a gente se apresente. Eu falei: “Fanny Abramovich, autora de não sei quantos livros infantis e [que] espera proporcionar ao seu leitor pelo menos 10% do prazer que Lobato lhe deu.”

P/1 - Humm!

R - Um tempinho depois - não tão tempinho, uns dois, três anos depois - eu reli por isso e por aquilo ou sem pretexto nenhum porque eu gosto de ler, reler Lobato. Falei: “Mas 10%, que ousadia!” Se eu chegar a dar 5% de prazer do que ele me deu... Sou viciada em livro, por conta do Lobato. E agora, só para encerrar, sabe como eu ganhei essa coleção?
Eu tenho esse tamanho hoje, você imagina o tamanho que eu tinha aos sete, oito? Não me deixavam entrar na turma da queimada, nem na turma da bola. Se eu não podia fazer outra coisa, eu resolvi ser a primeira da classe, ou a primeira da escola. Minha mãe, irritadíssima, falou: “Qual é o presente que você mais mais quer?” Eu falei: “O Lobato.” Pra mim, ela falou: “A gente pode ver isso. Se você sair do primeiro lugar e entrar no segundo eu te dou “Reinações de Narizinho”. Se você passar pro terceiro, “Saci”.” Se eu chegasse ao quinto, eu ganhava a coleção completa, pra largar essa bobagem de querer ser a primeira.
Pode coisa melhor? (risos) O Fernando Henrique foi meu professor também e não me ensinou nada tão importante... (risos)

Observação: Sem o início do diálogo na gravação.

R - Aí ele falou: “Pretensiosa e metida...”. Acho que vocês sabem que eu não sou, mas eu sou das poucas pessoas que viveram na casa da Tatiana e eu trabalhei lá, fiz teatro, televisão com ela. Quando o André morreu eu fui a primeira da não-família chamada. Eu conheço a literatura dela. Não é que eu possa falar bem, mas eu a conheço em vários aspectos...

P/1 - Olha, vamos começar com b de biblioteca.

R - Pode ser, adoro.

P/1 - Então, tá. Como é que você chegou a essa biblioteca lá?

R - Da Tatiana?

P/1 - É.

R - Sem gravar?

P/1 - Já está gravando.

R - Ué, e cadê aquela luzinha diferente? (risos)
A Tatiana e a minha mãe eram muito amigas. Onde elas se conheceram, vamos deixar passar. Enfim, eram realmente muito amigas. Eu não sei exatamente quando eu conheci a Tatiana, sei que a Tatiana fez parte da minha vida desde sempre. Não desde nenê, mas desde sempre.
Eu lembro de festas na casa da Tatiana, nunca vi uma alegria igual. A Tatiana sem sapato, dançando, jogando copo pra trás cheio de vodca (risos)... Você achou animada a minha casa? Você não sabe o que era a casa da Tatiana, porque era artista, russo, a mãe dela, os irmãos moravam todos perto, os sobrinhos, os netos,

todo mundo entrava e a bailarina que chegou não sei de onde, o outro...
Eu lembro de fazer teatro com eles, de ter começado; felizmente… Como se fala abortado de uma maneira mais fina? Largado de lado a carreira nada promissora de atriz, mas eu fazia o Tesp.

Eu tinha essa cara - essa não, eu tinha uma cara de menina, estava boa pra fazer umas menininhas, então participava realmente de tudo.
Como eu trabalhava - e eles, evidentemente, sabiam -, quando fui fazer cursinho, o Júlio resolveu me chamar para ser bibliotecária dele, arrumar a biblioteca e me pagar pra isso. Era uma bolsa, uma mesada que ele estava me dando, para eu poder fazer o cursinho em paz. Eu demorei pra descobrir, mas é óbvio. E eu, óbvio, não tinha lido d... Como é que ele chama? O da biblioteca tem um sistema... É um nome que começa com d, daqui a pouco eu lembro. Não sabia, absolutamente, o que era organizar uma biblioteca, não tinha ideia de coisa nenhuma, ainda só não tinha medo de subir em escada e ficar tonta, essa parte dava. Eu ia de táxi, eles pagavam, eu atendia o telefone. Mais tarde eles desciam, a gente conversava, eu arrumava mais três livros, a gente conversava mais, falava de não sei quê, mais dois livros e almoçava. Sempre tinha gente dormindo lá e o Júlio me levava pro cursinho no carro dele pra não chegar atrasada.
Mas nem mãe e pai faziam uma coisa dessas, me chamando para ser bibliotecária. Simplesmente irresistível, não tem o que pensar. Eles sabiam que eu era viciada, dependente, Vera Fischer na veia, de livro. Não sabia organizar livros, detalhes; também não esperavam que eu organizasse, acho que eu comecei por ordem alfabética, eu não sei. Então eu ficava lá olhando, limpando, abrindo estantes, rodeando estantes até ali...
Tinha tudo o que você pudesse imaginar. Eu não sabia que aquilo existia, você poder tocar naquilo tudo, poder cheirar, pegar e era mais grosso do que você imaginava.

Depois você vê que tinha outro que era o mesmo em outra língua e descobrir onde vem a página de créditos e olhar e não sei mais o quê e não sei mais quanto. O Júlio, eu não sei, nem acredito que, mas a Tatiana lia em qualquer língua, eu acho que até em húngaro. Pra mim é definitivo, quem sabe húngaro dá conta de tudo.

(risos) Então eu desconfio que até húngaro, não posso afirmar, mas ela lia tudo.
A Tatiana, a imagem que eu tenho dela mais forte, desde sempre, é sentada naquela cadeira, a mesma, com os óculos. Ela tinha óculos... Foi o que eu também copiei dela direto. Ela tinha óculos na escrivaninha, óculos no criado-mudo, pra ler embaixo, óculos na cama, óculos... Não ficava procurando, nem andava de bolsa, pegava os óculos e lia. Ela estava sempre lendo, sempre lendo, relendo, “trilendo”, comparando. E ela lia tudo, sabia tudo, ela tinha uma curiosidade absoluta por tudo.
A Tatiana é até mais “naja” do que eu, ela só é covarde porque é outro estilo de vida.

(risos) Evidente, não tem nada que ver com covardia, mas a “najice” dela ela esconde muito bem escondido, eu sei porque eu fiquei muito tempo lá dentro.
Mas o que mais me impressionou na Tatiana, sempre, e que eu não posso esquecer... No escritorinho dela tinha aquela maquininha que vocês devem ter visto, que ela ganhou quando ela fez dezoito anos, do pai. Uma maquininha de datilografia. Do lado aberto, marcado com lápis, o capítulo, o parágrafo, dois parágrafos, que iriam virar o script do dia seguinte: do Monteiro Lobato, das “Fábulas Animadas”, ou de qualquer coisa. Ela lia, não anotava nada e batia direto no estêncil, que você não enxerga. Você não sabe o que é estêncil, depois eu te explico. (risos) Você chegou a ver o estêncil? Você não enxerga, é branco no branco. Pra mim, qualquer demonstração de segurança a partir daí é ridícula, porque eu nunca vi ninguém tão seguro, quer dizer, direto, shock, shock, shock. Não dava nem pra reler, pra fazer cópia naquilo.
A Tatiana foi a pessoa - foi não, mas foi no sentido da minha vida inteira - mais próxima de Diderot que eu conheci. (risos) Fora isso, ela era uma grande amiga. Claro, ela era amiga da minha mãe, ela era admiradora, devota da minha avó, como todo mundo foi. Quando a mamãe ficou muito doente, quando eu enterrei a mamãe, dois dias depois eu fui direto pra casa dela, sabe? Depois eu fiquei com um pouco de vergonha na cara. O Júlio era psiquiatra, não dava pra ser tão escancarada, não é? (risos) A Tatiana, o Maurício Segall também, não tiveram nada que ver com isso, foram sempre os amigos da minha mãe com quem eu sempre contei. Não contei para pedir dinheiro emprestado, eu contei para as coisas da vida, não é?
Eu acho, se eu achar certo, que a Tatiana acha que eu sou a filha que ela não teve e que segue os passos dela. Porque na época da minha mãe eu dava aula, na época dela eu dei de escrever. Pode ser? Pode muito bem ser. (risos)

P/1 - Você estava falando da biblioteca. Eu fiquei pensando assim: você deve ter visto livros incríveis. Quais eram os tesouros dessa biblioteca?

R - A biblioteca está lá, igualzinha. Depois eu não sei.

P/1 - Você não se recorda a época de você ter descoberto o livro...

R - Ah, quando eu tinha o quê? Dezessete, dezoito. A gente não sabe, a gente acha que vai entrar na USP e que sabe tudo. A gente não tem ideia da extensão da ignorância, hoje é claro que eu tenho... Nem se dê ao trabalho de explicar, porque eu não sei o quê... Mas naquela época eu tinha uma pretensão, eu achava que eu tinha, sabe? E, não sei, com certeza a literatura russa ela me apresentou. A húngara não sei se tinha sido traduzida, os infantis não, porque eu já era grande, ou me considerava grande. Os de teatro, com certeza, as biografias - tô lembrando da Melhoramentos, porque ele era muito engraçado. Enfim, sei lá, eu pegava, levava, ganhava, “gosta, leva”.
A Tatiana foi sempre assim. Ano passado, quando ela fez 85 anos, eu fui na festa e ela estava com um vestido, daqueles vestidos indianos, túnicas, brilhos, que eu usava aos dezoito. Descalça, andando pela casa aos 85 anos. (palmas e risos) E limpando os óculos pra ler depois. Eu queria fazer mais anos assim.

P/1 - E Fanny, quando a Tatiana começa, em 1985, a lançar os livros infantis dela...

R - Você não acha que eu sei isso, né?

P/1 - Ahn?

R - Você não acha que eu tenho uma ideia disso?

P/1 - Não, eu estou te dizendo essa data porque antes ela tinha feito teatro pra crianças, uns tantos anos, mas como autora ela fala: “Debutei com 65 anos e...” Você se lembra desse período, quando ela lançou os primeiros livros?

R - Não. Assim, vivamente, não. Não sei, eu podia estar em Paris, realmente não lembro. Eu lembro de um livro dela, era uma coleção que eu estava coordenando. Pedi e depois eu falei: “Olha, quem que você quer que faça a quarta capa?” Ela falou: “Você, lógico.”
Não era por isso. A Tatiana produziu muito, mas eu acho… Não sei se 1965, pode ser, não a idade, não a dúvida sobre... Quando me perguntam se eu escrevo pra criança, às vezes eu digo: “Eu não estou pronta ainda pra escrever pra criança”. É muito difícil escrever para criança. Eu não tenho uma capacidade de síntese, eu nem sabia que eu sabia escrever pra gente grande, mas eu comecei com pedagogo, juvenil, infantojuvenil e o mínimo que eu me arrisquei foi oito. Pequeno de jeito nenhum, eu não sei. E eu acho que 1965, na lucidez dela, estava num bom momento de começar com as crianças. Não é à toa que elas adoram o que ela escreve. (risos)

P/1 - Bem, eu acho que está ótimo, Fanny.

R - Não sei...

P/1 - Você tem mais alguma questão, um assunto, um episódio passado com a Tatiana que você queira lembrar? Deve ter centenas, não é?

R - Pois é. Eu dormia lá, eu comia lá, eu... (pausa)
Desliga, por favor.
Eu tenho um grande amigo, que é professor da USP, o Antonio Dimas. Não sei se vocês conhecem. Um “puta” talento, um cara engraçadíssimo, que gasta o humor dele ensinando, procurando as crases, os cedilhas. O Dimas me disse uma vez que eu era uma hedonista de esquerda, é o que a Tatiana é. (risos) Ela é uma hedonista, ela sempre foi. E… Como é que se chama isso? Ela encarou muitas, não de bravata, de vanguarda de vida, muitas que eu soube, imagine as que eu não soube? (risos) Então, essa... A Tatiana é deleite, ela até faz tudo que pedem, ela não está mais com saco pra discutir, ela acha mais fácil fazer, mas o que dá tesão ela faz legal, o resto ela faz assim... Eu sinto pelos livros que chegam pra mim, tudo isso. Eu gostaria que ela botasse mais a público essa crítica “najística”, quer dizer, a cabeça dela é pior que a minha e ela está sempre de avó, protegendo. (risos) Ela é ótima, eu gosto muito, muito dela.

P/1 - Então está ótimo, Fanny. Obrigado pela sua entrevista.