Museu da Pessoa

Uma vida de recomeços

autoria: Museu da Pessoa personagem: Deusdedith do Nascimento Rêgo

Projeto Memória dos Bairros
Depoimento de Deusdedith do Nascimento Rego
Entrevistado por: Kênia e Stella
Local da entrevista: residência do entrevistado, em Itaquera
São Paulo, 2 de outubro de 2000
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Cristina Eira Velha

P/1 - Bom, senhor Deusdedith, para começar a entrevista, a gente gostaria que o senhor falasse de novo para a gente seu nome completo, local e a data de nascimento.

R - É Deusdedith do Nascimento Rego, nascido em 27 de fevereiro de 1934, em...

P/1 - Onde é que o senhor nasceu?

R - Em Oeiras, Piauí.

P/1 - E o nome dos seus pais?

R - Guilherme de Souza Rego e Ivanilze.

P/1 - Qual que era a atividade deles?

R - Meu pai era vaqueiro. Vaqueiro e sapateiro, ele usava as duas profissões.

P/1 - Ah, é?

R - É.

P/1 - E a mãe do senhor?

R - Minha mãe era dona de casa mesmo.

P/1 - O senhor conheceu os seus avós?

R - Conheci só a avó por parte de mãe e o avô por parte de pai.

P/1 - E o que faziam?

R - Um era vaqueiro velho, e a minha avó era dona de casa também.

P/1 - E o seu pai foi ser vaqueiro porque o seu avô era vaqueiro?

R - É o seguinte: naquela época lá a profissão era aquela, era cuidar de gado, essas coisas.

P/2 - O gado que ele cuidava era dele?

R - Era nacional. Tinha umas fazendas nacionais lá naquela época, perto deles. Era colônia agrícola. Então ele cuidava do gado.

P/2 - Era do governo?

R - Do governo, exatamente.

P/2 - Tinha muito gado? O senhor lembra?

R - Naquela época sim. Depois ficou a zero, acabou.

P/1 - E como é que era Oeiras, senhor Deusdedith?

R - Oeiras? Oeiras era a antiga capital do Piauí. Era, naqueles tempos, mais desenvolvida. Hoje, infelizmente a capital mudou para Teresina e decaiu um pouco. É uma das principais cidades do Piauí, Oeiras, e a mais velha.

P/1 - O senhor lembra da sua casa de infância?

R - O tempo de infância?

P/1 - É, na sua casa, como é que era?

R - Lembro sim. Porque eu não morava... foi desmembrado de Oeiras, era um município de Oeiras, pertencia a Oeiras. Então era nada de... muito pobre...

P/1 - Mas como era?

R - A casa? A casa tinha dois quartos, sala etc., e assim por diante.

P/1 - Ficava aonde? Na colônia? Ficava dentro da Colônia?

R - Não, a colônia era meu pai. Agora no meu caso, que meu pai também morreu, eu tinha três anos. Aí minha mãe achou por bem mudar para São Francisco, aconteceu isso. Meu pai morreu e ela... a gente mudou para São Francisco do Piauí, também pertencendo a Oeiras.

P/1 - E o senhor tinha irmãos?

R - Tinha. Três irmãos.

P/1 - Todos homens?

R - Não, tinha dois homens e também uma mulherzinha. Ela morreu também logo. E ficou os três, os três homens. E minha mãe casou já na segunda vez, e teve três filhos. Então ficava assim: com os filhos do padrasto. Ele tinha os filhos da primeira mulher, e minha mãe tinha a gente. Eles mesmo não tiveram filho.

P/2 - Aí quantas crianças na casa?

R - Ah, ao todo era acho que uns cinco do meu padrasto e três da minha mãe.

P/2 - Oito.

P/1 - Tinha muita farra, senhor Deusdedith?

R - Farra?

P/1 - É.

R - Farra, você diz farra como?

P/1 - Da criançada?

R - O velho criava a gente na... era muito durão, sabe?

P/1 - É?

R - E eu trabalhava pra danar na roça.

P/1 - As crianças?

R - As crianças mesmo, as criancinhas já tinham que trabalhar.

P/1 - Com quantos anos começava?

R - Começava a trabalhar, eu me lembro muito bem, com seis, sete anos já começava a trabalhar. A vida era dura naquela época, na roça mesmo.

P/1 - O que é que o senhor fazia na roça?

R - Capinar mesmo, carpir, e tudo. Todo serviço de roça. Na lavoura da cana, por exemplo, a gente carregava a cana, colocava nos jumentos para levar para o engenho etc.

P/1 - Tinha muita cana lá?

R - Tinha. Tinha bastante, viu?

P/1 - É? (riso)

R - E nos meses de moagem.... Não só a cana. Lavrava tudo. Era o milho, o arroz.

P/1 - E tinha que pôr uma roupa especial para ir para a roça?

R - A roupa era a mais velha. A mais velha a gente usava para não arrastar, não estragar a melhor.

P/1 - Mas era de manga comprida?

R - Manga curta mesmo, filha?

P/1 - É?

R - Solta, às vezes a gente ia até descalço trabalhar naquela lama. Era vida dura. A turma gritava, qualquer coisinha... Escola não tinha. Naquele tempo não tinha escola. Às vezes entrava professor dentro de casa, nas horas de folga ensinava um pouco a gente ali as primeiras letras. Era assim.

P/1 - Era em casa?

R - Em casa mesmo.

P/1 - Ele vinha.

R - Escola pública eu tive quando já numa certa idade... lá em São Francisco mesmo, não tinha escola pública. Então tinha que ir para outra cidade, que é uma cidade mais antiga, lá eu fiz o primário. E assim por diante.

P/1 - Simplício Mendes?

R - É, Simplício Mendes. Que é uma cidade do Estado do Piauí.

P/2 - Como é essa escola? Grande?

R - A escola era... Tinha primeiro ano, segundo, terceiro, e assim por diante. Quarto ano.

P/1 - E era muito rígido na escola?

R - Era um pouco.

P/1 - Por quê?

R -

A professora naquele tempo gritava mesmo e a turma obedecia, né, filha? Não é como hoje, a professora fala e o moleque fala mais alto. Então a gente obedecia a professora como quem obedece aos pais.

P/2 - Ela usava palmatória?

R - Não, já naquela época já não usava. Usava na escola particular, usava palmatória. Na escola particular usava aquilo ali com o argumento, como eles chamavam. Tinha que saber matemática, essas coisas...

P/1 - A tabuada?

R - A tabuada inclusive. Quando errava, se errava já viu. Palmatória acertava, queimava.

P/2 - Sobrava um tempinho para brincar?

R - Sobrava. Nessa escola particular não. Aí nessa que eu estou te falando, onde eu estudei, em Simplício Mendes, tinha recreio.

P/2 - Mas sem ser na escola, em casa?

R - Filha, aí eu brincava atrás dos bois, fogo naquela mata, a brincadeira era essa, viu, filha?

P/1 - Tinha bastante liberdade?

R - Não. Não tinha não.

P/1 - Não tinha?

R - Não. Tinha as horas marcadas para brincar.

P/1 - Entendi.

R - Era assim.

P/1 - Qual era a hora de brincar?

R - A hora certa, que sobrava. Você estava trabalhando, na hora que encerrava para almoçar, qualquer coisa. A gente não deixava de brincar, porque criança é criança, né? A gente furtava um pouco das horas de trabalho, por exemplo, e dava uma brincada, né? (riso)

P/1 - E como é que era... o senhor falou que o pai do senhor faleceu cedo?

R - Eu tinha três anos.

P/1 - E a mãe do senhor, como é que era? Era muito durona?

R - Não, minha mãe era... eu vou ser franco. Eu fui criado mais pela avó.

P/1 - Ah, é? Como é que ela chamava mesmo?

R - Antônia.

P/1 - Como era a dona Antônia?

R - Antônia era boazinha.

P/1 - É?

R - É. Eu apanhei menos do que os outros por isso, porque eu fui criado por ela, e
avó era diferente. Só gritava, só falava, mas bater mesmo era pouco.

P/1 - Os outros apanhavam muito?

R - O João apanhou bastante do meu padrasto, coitadinho. Ele era carrasco do velho. Ele já morreu. Mas ele plantava cipó e colocava para murchar. Ele pegava as crianças, batia e estragava, acabava um cipó, ele pegava outro para bater. Era carrasco.

P/1 - E a mãe do senhor? Ficava brava?

R - Coitadinha, ela não ficava brava não, só chorava. Infelizmente.

P/2 - Ela não batia? Ela batia também?

R - Eu me lembro uma vez que a minha mãe me bateu, com o cipózinho verde.

R/2 - Nas pernas.

P/1 - Nas pernas.

R/2 - Era essa vassourinha. Era aquilo ali, que nós batíamos nos filhos, nas pernas. Mas não adiantava, eles faziam tudo de novo.

P/1 - Seu Deusdedith, e a dona Antônia tinha vida religiosa?

R - Tinha. Católica.

P/1 - Levava as crianças para a Igreja?

R - Levava sim.

P/1 - Como é que era?

R - Filha, naquela época, lá em São Francisco, como eu te falei, hoje é cidade, mas naquela época era um povoado. Um povoado. E tinha a igrejinha, mas não tinha padre. O padre era um homem que ia lá salvar a missa. Lá é o padroeiro São Francisco. Então eu dizia... tinha um festão. Tinha um festejo. Quando era nos últimos dias, quatro dias, passava isso. Mais era para casar, batizar, essa coisa toda. Então a gente ia, eu sempre gostei de ir para a Igreja com a minha avó. Ela me ensinava o Padre Nosso, essas primeiras coisas que a gente ensina na vida, ela que me ensinou.

P/1 - E como é que era a cidade de São Francisco quando chegava o padre?

R - Ah, era movimento. Às vezes vinha muita gente de fora. Vinha gente da cidadezinha. Aqui da cidade então, eles faziam aquelas barracas de palha, um barracão, e vinha uma coisa ou vinha outra. Assim que eles ganhavam dinheiro. Vendia também, bugiganga, roupa, tudo. E passava os quatro dias movimentando, dia e noite.

P/2 - Todo ano, passava o mês, a festa?

R - Não passava mês não, era menos. Ela dura até novembro, depois nos quatro dias que vem. Nos quatro dias, de início de outubro, dia 2, 3 e 4 era movimento pesado. Até já ia para outro povoadozinho também. Saía e ia para povoado, por exemplo. Era assim.

P/1 - Senhor Deusdedith, e lá o senhor sempre trabalhou na roça?

R - Trabalhei na roça. Eu trabalhei na roça desde criança. Depois de casado não, eu tinha comércio

P/1 - Comércio?

R - É. Comércio. Só vendia no comércio.

P/1 - Em que ano o senhor casou?

R - Casei em 1952.

P/1 - Como é que o senhor conheceu a dona Maria?

R - Foi fácil.

P/1 - (riso)

R - Ela era filha do irmão do meu padrasto. E assim. E a gente era do mesmo povoado. Eu estive por aqui solteiro, tive na Bahia, depois eu ia voltar naquele tempo. E cheguei lá, comprei um comerciozinho para vender e terminei casando. Namorei, essas coisas, e aí acabei casando.

P/1 - E vocês se conheciam desde criança?

R - É, desde criança.

P/1 - Vocês brincavam junto e tudo?

R - Chegar a brincar não, porque ela não era de brincar. Além do mais a idade é um pouco diferente. Eu era mais velho do que ela uns onze anos, dez, onze anos.

P/1- O que o senhor tinha vindo fazer aqui em São Paulo? E onde mais o senhor falou que o senhor passou?

R - Eu estive perto de São Francisco, também eu tive um convite para trabalhar num comércio da Bahia. Trabalhei no comércio. Agora o comércio da Bahia naquela época era onde o pessoal desembarcava para ir para São Paulo. Embarcava e desembarcava do navio, aquele navio no rio São Francisco. E então aquele movimentão etc., eu achei por bem vir. Disse: "Ainda ganho esse dinheiro lá, desse São Paulo." E aí vim para cá. Passei aqui, quando foi em 1949 ou 1950, passei dois anos só, solteiro aqui. Aí me lembro, aquele tempo fazia muito frio aqui. Ai, filha! Aquele tempo era horroroso. Era um frio que fazia aqui! 1949, 1950, 1951. E achei por bem ir embora. Porque era muito frio e trabalhei num lugar aí, nessas fábricas aí, trabalhando no Matarazzo naquela época.

P/1 - O senhor trabalhou no Matarazzo?

R - Trabalhei.

P/1 - Aonde que era?

R - Matarazzo era em São Caetano do Sul.

P/1 - Ah, é? Era fábrica do quê?

R - De seda, de lã. Aliás, tinha fábrica de tudo quanto era coisa. Era fábrica de seda, de solda, parece, eram muitas coisas que eles fabricavam aí. Lá naquela época de 1949,1950, 1951, era das maiores fábricas, as maiores empresas aqui era a Matarazzo, né? Matarazzo era forte. Não sei porque faliu. Mas era forte. Hoje estão ali as construções já abandonadas, já esquecidas.

P/1 - O senhor chegou a ir na fábrica lá no Brás?

R - Na do Matarazzo? Não.

P/1 - No Brás não?

R - Não. Eu trabalhei só lá em São Caetano do Sul.

P/2 - Como é que o senhor soube de São Paulo? Quem é que disse para o senhor que aqui era bom?

R - Eu não estou te falando? Um dia eu estou na Bahia, numa cidadezinha da Bahia, na margem do São Francisco, era lugar de embarque e desembarque do pessoal que ia para São Paulo, ia e vinha. Aí tinha movimento. Aí eles falavam, e quando vinham, compravam umas roupas etc., e contavam as vantagens, então achei por bem ir na onda. Mas quase morro aqui com o frio, muito frio, as roupas meio curtas. Sofri para danar naquela época, sabe, filha?

P/1 - E o senhor veio de que para cá?

R - Sabe como eu vim? Passei só em São Francisco, naquela época, passei parece que uns vinte dias viajando, porque aquele navio, navio a vapor, uns naviozinhos, enroscava naqueles bancos de areia, que o rio não estava muito cheio, passava dois, três dias para sair. E passar naquela cidade demorava também meio dia. E assim por diante. Gozado é que passamos uns vinte e tantos dias só em São Francisco. Depois, pegamos um trem em Pirapora, fomos até Pirapora, era fim de linha das embarcações. Daí peguei o trem. Interessante que eu não sabia como era, ainda trazia um dinheirinho, achei por bem pegar o trem de segunda para economizar. Ah, me enganei todo, porque todo mundo naquele trem. Ainda era a Maria Fumaça, sabe? A máquina na frente, jogando toda aquela faísca, fumaça, para trás, e era cheio. Não tinha outra condução para cá, todo mundo viaja de trem. E não tinha onde sentar, aquilo cansava, não agüentava mais, se jogava em cima da gente. E criança adoecia. E desarranjo do intestino. Era um suplício, até Belo Horizonte. Em Belo Horizonte eu fiz a baldeação. Passamos uma noite em Belo Horizonte. O resultado é que aquela turma que estava na estação levava a gente para lá, para dormir. Ah, com medo de perder o trem, sabe o que aconteceu? Não dormi nem um instante. Peguei, passei, na hora pagava lá a pensão. Aí peguei a bagagem, o saco e a mala, e fiquei na estação. E fiquei na estação para não perder o trem, não tinha ninguém. Sorte para danar. Aí no outro dia saímos de lá para cá, com umas camisinhas de manga curta, um frio danado, que naquela época era frio mesmo, não se via o sol aqui em São Paulo. Era aquele frio, aquela garoa direto, forte. E cheguei aqui, para acabar de completar, e tinha vindo, um soldado da polícia aqui de São Paulo para cá. E eu vi o endereço, o endereço na Tiradentes, o endereço que ele me deu, do quartel lá. E eu cheguei na estação do norte, ou seja... peguei um táxi. Eu ainda tinha dinheiro, peguei um táxi. Aí fui até lá no endereço indicado, na Tiradentes, aquilo lá era um quartel. Aí então procurava um soldado etc. "Ah, esse soldado já deu baixa etc". Eu fiquei sem saber o que fazer. Com o saco e a mala.

P/1 - E o senhor foi para onde?

R - Espera aí, meu amor. Aí eu tentei saber se ele tem outro endereço. Aí trouxe umas cartas de umas pessoas que eu conhecia lá, do comércio da Bahia. Aí digo: "Vou procurar esse aqui." Em todas essas cartas. Aí perguntando ao rapaz do correio, ele disse: "Olha, você pega o bonde..." Naquele tempo era bonde. "Você pega o bonde tal, e desce lá no Brás, assim, assim etc." Mas aquilo entrava num ouvido e saía no outro. Então peguei o bonde, o saco e a mala em cima. Para acabar de completar a vida, eu passei o dia todinho... isso era cedo do dia, que eu cheguei aqui em São Paulo. Isso era nove, dez horas, coisa assim. E endereço era na Rua da Figueiras, no Parque Dom Pedro. Passou o dia todinho, não sei quantos quilômetros andei naquela época. Cheguei, já era seis horas da tarde que cheguei lá. Quando cheguei, só tinha um rapaz salteando do lado da porta. Eles trabalhavam na rua, esse pessoal trabalhava nas ruas, limpeza, e à noite ia lá para Itaim Paulista. Aí digo: "E esse rapaz aqui?" "Não, esse rapaz não estava aqui. Quase você não me encontra aqui etc." Eu disse: "E agora, como eu faço para encontrar esse rapaz?" "É o seguinte: eu vou dar o endereço de lá, mas é difícil você encontrar agora de noite." Aí foi me deixar novamente lá na estação do Brás para pegar o trem pra ir para Itaim Paulista. E ainda bem que ele foi me deixar lá. E peguei o trem, lá fui para Itaim Paulista. Aí passou em São Miguel, Itaim Paulista é distrito. Aí cheguei lá já tarde da noite. Aí desci, deixei a mala e o saco no depósito, porque não agüentava mais carregar, foi o dia todinho naquele suplício. E aí cheguei assim num bar, procurar: "Me ensina essa rua aqui." Ele disse: "Ah, essa rua aqui é difícil. " Aí o rapaz: "E essas pessoas aqui etc?" Aí o rapaz conhecia, o rapaz sabia, e era perto da rodoviária. Disse: "Ah, eu conheço" Estava com um medo danado, mas... disse: "Ah, eu sei quem é, eu conheço aí." Aí fui. Morava naquele tempo... era assim, um alagado, cheio de lama, hoje está tudo aterrado, está tudo bom.

P/2 - Onde era?

R - Itaim Paulista. Pertinho da estação, ali era tudo alagado. E eles faziam os barracos, enfiavam pau para fazer os barracos, para não entrar água. Se descuidasse, eles faziam...

(PAUSA)

P/1 - Aí você estava contando que foi lá no rapaz...

R - Aí encontrei o pessoal lá, dentro dessa..., porque o barraco era enfiado em uns paus, dali fazia o barraco.

P/1 - Era em São Miguel?

R - Itaim Paulista. Aí eles ficaram satisfeitos etc., apesar de não conhecer...

P/1 - Ah, ele nem conhecia o senhor?

R - Não. Achei que quando chega assim, o negócio é trabalhar. Estava com a preocupação de trabalhar. "E só o seguinte: está contratando gente."

P/2 - Isso era que ano?

R - Isso em 1950.

P/2 - Hum. E aí?

R - Aí, filha, para trabalhar lá na cidade de São Paulo, da Prefeitura mesmo, era faxina, eu tenho a impressão... Não sei nem qual a profissão deles. Aí fiquei lá em São Miguel, esperando das quatro, cinco horas da manhã, até dar oito horas, que foi a hora que chamaram o pessoal. Aí eu ainda tinha um dinheirinho, depois dos exames médicos, essas coisas todas, mandou a gente tirar a roupa, fazer tudo quanto é exame. Aí digo: "Aqui é capaz de eles serem empregado." Aí ainda tinha um dinheiro, assim, que tinha trazido, aluguei uma pensão, fui tomar um banho etc.

P/1 - Aonde que era a pensão?

R - Era em São Miguel Paulista, onde dava um troquinho ainda. Mas vontade é que...

P/2 - Aí o senhor foi trabalhar lá?

R - Que nada! Não deu certo não.

P/2 - Ah, não?

R - Não fui aprovado no exame de saúde, estava muito gripado. Não deu certo, porque eu estava muito gripado, aí o médico... E era por letra, era A, B, C, acho que peguei a letra E. Aí tinha um conhecido lá do comércio da Bahia, ele disse: "Rapaz, eu lhe conheci de lá do São Francisco do Piauí, fazendo uns testes na Cmtc. E eu fiz também, e tal dia eu vou lá." Eu disse: "Não, eu..." Aí ele me deu o sobrenome, mas me deu a ficha mais ou menos, a aparência da pessoa. Eu descobri que era com um tal de Liberato. Eu disse: "Hoje mesmo eu vou atrás dele." Por coincidência, ele estava desenrolado também, esse Liberato, que era de São Francisco, e diversão dele era ir aí para a estação do norte, Roosevelt, e ver os conterrâneos chegar de trem etc. Aí quando eu cheguei, assim, a estação, ele estava lá ainda. Aí encontrei com ele, por coincidência encontrei com ele.

P/2 - E o seu irmão?

R - Meu irmão, filha, não encontrei mais, não encontrei com ele. Depois de muito tempo. Aí, ele disse: "Vamos embora lá para São Caetano", que ele morava em São Caetano. "Vamos lá para São Caetano, vamos lá pegar a sua bagagem." Aí fomos pegar, aí nós fomos a São Miguel, pegamos o trem, o saco, a mala, essas coisas, e fui morar lá com ele, em São Caetano. Aí, ele estava desempregado também, ficamos batendo, até conseguir trabalhar na Matarazzo. E o fato de eu trabalhar na Matarazzo foi o encontro com esse meu colega. Depois de muito tempo, eu andando na cidade, no Jardim da Luz, eu encontro com o meu irmão.

P/2 - Nossa! Você reconheceu?

R - Ah, de cara!

P/1 - E fazia quanto tempo que vocês não se viam?

R - Dava um ano e tanto mais ou menos, filha, no máximo. Dava pouco tempo. No caso aí, foi coincidência encontrar com ele, porque naquele tempo também, lugar de encontro ou passeio era o Jardim da Luz, era na Estação da Luz, por ali, depois o Jardim da Luz. Coincidiu, eu encontrei com ele lá.

P/2 - Era exatamente isso que eu ia perguntar. O que o senhor lembra de São Paulo nessa época, a primeira vez que o senhor veio? Quais os lugares mais marcantes, o que mais marcou o senhor?

R - Era a Estação da Luz mesmo, e era diferente ali naquela época. Era muito diferente. O ruim era o frio. A temperatura era... hoje está diferente, mas naquela época era direto, quase não via o sol, aquela garoa forte. Também não chovia forte, era aquela garoa direto. De forma tal, que filho daqui mesmo era vermelho aqui, você via queimado do frio direto.

P/1 - No rosto?

R - Era vermelho, parecia que estava... até de sangue, queimado. Era assim.

P/1 - Aí o senhor ficou trabalhando...

R - Trabalhei um tempo no Matarazzo naquele tempo, muito pesado também o serviço.

P/1 - O que era?

R - Era descarregando galão de enxofre, ou então lá onde fabricavam aquela seda, eles trabalhavam com a solda, com enxofre, não sei o que era, eu sei que batia nos olhos, e muito ácido, a gente ficava chorando. Achei por bem pedir a conta e sair. Fui procurar outro serviço. Aí encontrei outro serviço até bom na reprensagem de algodão, aqui perto da Estação de São Caetano. Hoje pertence acho que à Chevrolet, aquela zona ali. Eles compravam o algodão, o fardo de seis fitas, reprensavam para mandar para os Estados Unidos. Aí consegui, aí então virei conferente. E me dando bem etc., mas naquela loucura de voltar para o Piauí.

P/1 - E que faziam com os conferentes?

R - Era o seguinte: eles tiravam amostra daquele algodão para classificação. O tipo do algodão, tinha o número um, dois, três, quatro, cinco, até cinco. E reprensavam aqueles fardos, de seis fitas colocava nove fitas. Ficava pela metade o fardo, tem aquelas prensas fortes, que reprensavam, colocava doze fitas. E se mandava, se transportava daqui, de São Caetano para o Porto de Santos, para embarque. É assim.

P/1 - O senhor queria ir para o Piauí?

R - A maior loucura era voltar para o Piauí.

P/2 - O que o senhor sentia mais saudade do Piauí?

R - Tudo, filha. (riso) Naquela época a gente não brincava, eu rapaz novo, e uma festinha, uma coisa ou outra, a gente lembrava, aqui não se brincava. No domingo, por exemplo, o divertimento era ir lá para o Jardim da Luz, ou então ir na casa dos colegas, conversar, falar do Piauí, e assim por diante, tomar uma cerveja...

P/1 - E a dona Maria, tinha ficado lá?

R - Tinha. Não, a gente não tinha casado ainda não, eu estava solteiro ainda. Depois é que... Depois achei por bem, aí peguei um dinheirinho que deu para a passagem, achei por bem ir embora. Pedir a conta e ir embora.

P/2 - No Piauí tinha as festinhas da garotada?

R - Ah, lá sempre tinha.

P/2 - Como era essas festas?

R - Sempre está... no fim de semana tem aqueles forró. (riso)

P/1 - Como é o forró?

R - Forró? Sanfona, zabumba e o triângulo etc. Tinha a sinfonia, a gente cantava também. E aquilo a gente dançava de cedo da noite até pegar o sol do outro dia. Então tinha de semana.

P/2 - Aí vocês resolveram se casar, é isso, quando o senhor voltou?

R - É, filha, lá, quando eu voltei, voltei lá para o São Francisco, um comerciozinho e progredi. Comecei a comprar umas propriedadezinhas, umas casas etc. E progredi, aí achei por bem casar.

P/2 - Aí como foi o casório?

R - O casório, eu aproveitei a época da vinda do padre. (riso)

P/2 - Vocês casaram em outubro?

R - É, em outubro, dia quatro de outubro.

P/2 - Vai fazer quantos anos?

R - Dia de São Francisco.

P/2 - Quantos anos de casado?

R - Quarenta e sete parece. Foi em 1952. Dá quarenta e sete.

P/2 - Casou só vocês dois ou um monte de gente casou naquele dia?

R - Um montão, ih, filha!

P/2 - Mas como era isso?

R - Foi um casamento de destaque, foi à tarde, à tardezinha, que casava de dez, doze, quinze.

R2 (ESPOSA) - Todo mundo casava no dia de São Francisco, que era o dia que era o único dia que o padre ia.

P/2 - E o de vocês foi especial?

R - Foi especial.

P/2 - Como foi?

R/2 - Veio o Oeiras, que eu estudei lá no Oeiras, e o Deusdedith também era muito conhecido lá no Oeiras.

R - Aí veio muita gente de lá, e música no baile etc. Casamento de destaque, mas nem fotógrafo tinha naquela época.

P/1 - Não?

R - Quem tirou a fotografia foi o padre, o padre tirou uma fotografiazinha numa maquinazinha.

R/2 - Parecia uma múmia.

P/1 - Por que?

R/2 - Estava parecendo uma múmia. (riso)

P/1 - E a roupa? Tinha alguma roupa especial?

R - Ah, é. Casamos de terno branco, de linho. Você vê naquela época como é que era, teve a festa dançante, e teve muita comida etc. E a festa dançante, e eu nem fui lá, na festa, lá. Passaram uns quinze dias, para você ver a ignorância, passaram uns quinze dias foi que a mãe dela foi deixar ela na casinha que eu tinha feito.

P/2 - Quer dizer que vocês casaram e ela foi para a casa dos pais?

R - Dos pais, pois é. (riso) Tinha que acompanhar o que os pais queriam. Tinha que obedecer.

P/1 - Tinha que obedecer. E os pais da dona Maria eram, assim, bravos?

R - É, mas mais é a mãe. A mãe achou por bem... só depois de uns quinze dias é que foi deixar ela lá na minha casa.

P/2 - E o senhor não reclamou não?

R - O que eu ia fazer? Não ia reclamar não.

P/2 - Todo mundo fazia isso?

R - A maioria era.

R/2 - Por que sempre coincidiu três… sabe? Como é que se chama? A menstruação vinha.

P/1 e 2 - Ah, sim.

R/2 - Era incrível. Aí lá vinha compenetrada. E aí...

P/1 - Não dava nem para escolher data, porque tinha que casar no dia que o padre vinha, né?

R - Ah, claro.

R/2 - Não, mas você tinha... Dava mais ou menos uns três dias que ele tinha ido embora, no dia do casamento voltava. Eu acho que era devido àquela tensão.

P/1 - E aí vocês ficaram lá ainda quanto tempo, no Piauí? Quanto tempo vocês ficaram lá?

R - Ah, nós ficamos uns dez anos, filha. Nós casamos em 1952, até 1964.

P/2 - Aí vocês vieram...

R - Aí fomos para Teresina.

P/2 - Para Teresina?

R - Hum, hum. Aí entre vender propriedade, etc. Aí eu tinha feito uma boa casa, aí eu vendi tudo baratinho, porque a gente estava querendo vender, achar um bom preço, faço a metade. Faz uma pechincha, pela metade. E eu queria ir embora. Cheguei lá, fiz um comércio, fiz uma casa lá em Teresina. E o meu padrasto, minha mãe e minha avó acharam por bem me acompanhar também para Teresina. Aí pesou para mim, porque eu tinha um comerciozinho, e eles também já não trabalhavam mais, e pesou. O negócio não deu certo, o comércio também não deu muito certo. Aí o velho morreu, minha avó faleceu também, ficou só minha mãe.

P/1 - Já tinha os filhos, senhor Deusdedith?

R - Já tinha quatro. Tinha quatro filhos, que nasceram em São Francisco, os mais velhos. E lá em Teresina nasceram mais dois. Nasceu o Pedro Paulo e o Manuel Messias.

R/2 - E o Zé nasceu em Brasília..

R - Já o mais velho nasceu em Brasília e o último nasceu aqui, que é o Marcos. Aí, no caso, o meu padrasto morreu, morreu minha avó, aí achei por bem a gente vender a casa, o resto do comércio etc., e peguei o avião... Ela estava grávida do Raimundo Zé. Peguei o avião em Teresina, e baixei em Brasília.

P/1 - O que o senhor foi fazer lá em Brasília?

R - Em Brasília? Aventuras, loucuras. E tenho a impressão que chegando ali achava serviço fácil, que naquela época, naquele tempo, a gente pegava... Nesse ínterim de São Francisco, dessa passagem aí, que foi candidato a ... Aí foi debandado para a sua cidade e eu fui candidato para vereador, tirei o primeiro lugar.

P/2 - Isso foi quando? Em Oeiras?

R - Em São Francisco, que São Francisco foi desmembrado de Oeiras.

P/1 - Que ano?

R - Isso foi em... que ano foi, meu Deus?

P/2 - Depois o senhor lembra. E aí o senhor tirou primeiro lugar?

R - Em primeiro lugar para vereador. Na outra eleição, eu me candidatei como vice-prefeito. Fui eleito e meu colega de chapa perdeu. Aí foi que nasceu a inimizade, a brigada, que lá é forte.

P/2 - Era chapa separada?

R - É. Aí não deu certo, aí veio inimizade e briga. Eu nunca fui de briga! Achei por bem vender as coisas lá e me mudar para Teresina. Como vice-prefeito eu passei, fui lá para Teresina, passei lá os quatro anos em Teresina.

P/2 - Lá em Teresina o senhor entrou na política?

R - Não, não cheguei a entrar na política, não.

P/2 - Aí o senhor foi para Brasília?

R/2 - Aí eu fiquei no comércio em casa e você abriu a...

R - Lá em Teresina.

R - Comprei uma moenda de café naquela época. Mas era uma fiscalização danada, e o meu café não tinha muita aceitação, e não deu certo. Achei por bem vender tudo e vir para cá.

P/2 - O senhor comprava o café de onde?

R - O café era do IBC. Só não tinha torrado, só de moer o café.

R/2 - Moer e empacotar.

R - Empacotar.

R/2 - Aí eu ficava lá no café, ficava lá, ficava na Avenida Santos Dumont, no comércio.

R - Mas também achei por bem vender tudo a casa que tinha construído e mudar para Brasília.

P/1 - Quanto tempo o senhor ficou em Brasília?

R - Brasília demorei pouco tempo, uns... Não tinha para onde ir com essas crianças, com seis crianças e esse chegou, nasceu também nos primeiros dias, que é o Raimundo José. Nasceu nos primeiros dias que a gente chegou, ele nasceu. E a casa do meu irmão... casa não, barraco, mas naquela época era barraco mesmo, de madeira. Então achei por bem comprar. Andando, assim, na Vila, tinha... que chamava o menino de Uirapuru, dentro de uma feira, e muito movimento, e um comércio para vender. Um comércio bonito, em frente à feira etc. Aí achei por bem comprar, deu para comprar com o dinheiro que eu trouxe. Deu para comprar, eu comprei o comércio. Filha, aquilo terminou a feira, acabou tudo, acabou todo o movimento. Para acabar de completar, à noite instalou forró de tudo quanto é quebrada de mulher da vida, elas estavam até pelada lá. Aí eu digo: "Meu Deus, onde eu vim me meter?"

P/2 - Tinha muito nordestino em Brasília?

R - Demais naquela época. Dava o nome de... como é que era o nome?

P/2 - Bóia-fria?

R - Não era nem bóia-fria. Que coisa, rapaz? Como é que me passa? Esqueci completamente.

P/2 - Mas continua.

R - Mas é que o comércio... Aí eu vim parar aqui, tinha conhecido aqui. Achei por bem vir para São Paulo.

P/1 - O senhor veio de que de Brasília para cá?

R - De Brasília de ônibus, vim de ônibus, cheguei aqui, fui trabalhar como... um colega, esse Liberato mesmo, me arranjou trabalho fiscal numa empresa de ônibus, na Estação São Bento.

P/1 - E a dona Maria ficou lá?

R - Ficou lá. Depois ela... os dois me ajudaram, quis vender, acharam, vendeu lá tudo.

R/2 - Um desastre...

R - Aí veio a família todinha para cá.

P/1 - E aqui na Cohab, como é que foi que vocês vieram?

R - Eu me inscrevi na Cohab, lá no centro da cidade e ficamos aguardando, aguardando, até que me chamaram.

P/2 - Quantos anos?

R - Quatro ou mais.

P/1 - Que ano que era?

R - Isso foi... 1960, 1968 chegamos aqui. Por volta de 1970 e tanto, por aí, assim, filha. Viemos para a Cohab 1. E aí enrolou, enrolou, foram entrando na minha frente, também não deixaram de ser o território dos políticos, sempre os políticos influem um pouco. Aí quando saiu aqui, aí eu aceitei.

P/1 - Como é que vocês ficaram sabendo?

R - Eles avisavam.

P/1 - Não, da Cohab. Da inscrição?

R - Ah, eu já tinha ouvido falar na fábrica, aqui, acolá, os vizinhos.

R/2 - De boca em boca.

R - "Está tendo inscrição na Cohab" etc. Então, achei por bem ir lá e me inscrevi.

P/2 - Vocês já sabiam que era assim, predinho?

R - Eu vi lá na fábrica um, fui dar uma olhada nos apartamentos lá.

P/2 - Aí o senhor gostou?

R - Gostei. (riso) Pior... por que pagar aluguel? Agora eu tenho me dado bem, porque há vinte anos que estou botando os pés aqui. E graças a Deus nunca atrasei, estou pagando as prestações, estou pagando dezesseis e pouco aí. Barato, né? Pago dezesseis e pouco, nunca atrasei. Eles falaram que é vinte e cinco anos.

P/2 - Então está pertinho.

P/1 - Senhor Deusdedith, e quando o senhor chegou aqui, vocês tinham... como que era na rua? Tinha calçada?

R - Ah, chegando aqui, a gente com muita pressa achava por bem também... Só tinha essa aqui, essa parte aqui. Naquele tempo era... parece que era C, era com letra, não tinha nome ainda não. Era letra, parece que era letra C. E os ônibus só vinham até ali, porque tinha um asfaltozinho antigo ali, os ônibus vinham até ali, daqui... a gente vinha de lá de pé, até aqui. Ainda uma lama danada, então colocava um sapato nos pés para chegar até aqui. E no escuro também, não tinha luz nas ruas. Também foi pouco tempo, acho que em menos de um ano eles já colocaram asfalto, já instalaram a luz externa etc.

P/1 - E a lama era mais no dia que chovia, como era?

R - Era direto, porque não tinha asfalto. E naquela época chovia muito.

R/2 - Não tinha esses prédios em frente.

R - Não tinha nada. Depois construíram por aqui tudo.

R/2 - Parece que são seis a oito, são sete prédios.

P/1 - E o abrigo dos velhinhos?

R - Já existia.

P/1 - Como é que era lá?

R - Era aquilo mesmo, filha. Não tinha diferença.

P/1 - Vocês chegaram a entrar lá?

R - Eu nunca entrei.

R/2 - Toda segunda-feira tem um bazar. Eu fui algumas vezes.

R - Eu nunca entrei lá dentro não.

P/2 - Itaquera mudou muito?

R - Mudou. Mudou tudo. Com essas Cohabs, dá uma mudança muito grande. Isso aí não tinha comércio, isso aí só tinha... Não tinha nem uma casa financiada, dessas conhecidas, não tinha. Ela está falando de Itaquera em geral.

R/2 - Nossa, progrediu demais, filha. Itaquera era um buraco.

R - Itaquera, Guaianases, por aqui.

R - Evoluiu muito.

P/1 - E o senhor estava trabalhando em que lugar?

R - Na Coferráz.

P/1 - Coferráz? O que era?

R - Era fábrica de aço, desses para construção.

P/1 - E o que o senhor fazia lá?

R - Eu trabalhava como auxiliar no escritório, trabalhando no departamento pessoal. Depois faliu, a firma faliu, a Coferráz faliu. Eu voltei a trabalhar, aí trabalhar na Suzano. Em Suzano, a firma que eles instalaram em Suzano, acharam por bem adotar o nome de Suzano. E hoje lá... é a que foi lá na Presidente Wilson, no centro.

P/2 - Como é que o senhor ia?

R - De ônibus, pegava, ou de trem. E pegava o ônibus até... pegava, já tinha essa linha de... onde tem... até Santo André, lá pegava um ônibus que passava lá onde é a fábrica instalada, nos limites de São Caetano.

P/1 - E o senhor lembra da época da construção do metrô aqui?

R - Lembro, sim.

P/1 - O senhor chegou a ver a construção?

R - Não, nunca cheguei a ir lá, mas demorou muito esse serviço aí. Passou acho que uns dois ou três governos, parava. Agora foi que o Covas achou por bem tornar estação de trem de metrô, não sei por quê. Porque a estrutura era para o metrô, o serviço foi feito para colocar metrô. O metrô vai até Guaianazes, que é o limite do município. Achou por bem colocar esse trem aí.

P/1 - E o senhor já tomou o trem?

R - Já.

P/1 - E o metrô, o senhor já andou de metrô?

R - O metrô? Muitas vezes. (riso)

P/1 - O senhor lembra da primeira vez que o senhor entrou no metrô?

R - Ah, lembro.

P/1 - Como é que foi?

R - Eu gostei, porque era rápido, e só tinha aquele trem, assim, que traz para cá. Uma diferença estupenda, né, filha. Da construção a tudo, limpinho, direitinho, arrumadinho, numa certa ordem. Não é muita diferença do metrô para... hoje está um pouco baqueado mas no início era muito bom.

P/2 - E o que o senhor, quando dizia que o metrô ia passar por debaixo da terra, o que vocês achavam disso?

R - Ah, dizia: "O trem vai ser por baixo da terra." Aliás, não sei se foi o Maluf que iniciou. Lá para o lado de norte a sul, quase tudo é por baixo, é subterrâneo. E admirava logo no início, quando começou a virar aquele... Hoje é sem isso etc. A gente olhava ali para o largo de São Bento, ou Praça da Sé mesmo, ele dava uma rodada. Fazia um movimento. A gente não podia entrar também na obra.

P/1 - O senhor lembra do dia da inauguração do metrô aqui em Itaquera?

R - Lembro

P/1 - O senhor foi lá?

R - Fui, mas fui atrasado. Quando eu cheguei lá já tinha terminado. (riso)

P/1 - E quando chegou lá o que tinha?

R - Não tinha nada, todo mundo tinha ido embora, eu vim embora.

P/1 - É verdade que andava de graça no dia da inauguração?

R - Foi. É de graça.

P/1 - Algum amigo de vocês andou?

R - Andou. Mas a gente já conhecia, porque já existia a norte-sul, e também a gente já morando aqui, o metrô já vinha até... antes vinha até Tatuapé, depois passou a vim... construíram Penha. Aí os ônibus vinham até o ponto final na Penha, a gente ia de metrô até a Penha e pegava o ônibus para cá. Era assim.

P/1 - E depois como é que ficou? Depois que tem metrô até aqui, foi mais rápido chegar do que ir até a Penha e pegar o ônibus?

R - Ah, claro, ficou melhor, né, filha. Aí os ônibus começaram a fazer ponto. Agora aqui é que está demorando, não sei por que não instalaram, não puxaram ônibus ainda para esta Estação.

R/2 - É, ainda não veio ônibus para essa Estação.

P/1 - A Estação do metrô de Itaquera?

R - Não, do trem.

P/1 - Ah, do trem José Bonifácio.

R - Isso. Que aí, no caso aí, esse trem sai do... aliás, como é lá para a turma de Guaianases, eles pegam em Guaianases, esse pessoal que vem de Mogi, e pára em... pega esse trem aí em Guaianases, ele para aqui, para na Dom Bosco, que é a estrada do...

(PAUSA)

R - Em Itaquera, Estação de Itaquera, e depois só vai parar no Tatuapé e Brás. Essa Estação ficou isolada, ficou isolada essa aqui do quinze, Itaquera e as outras, também a Patriarca, todas essas outras. A Penha mesmo, estação da Penha, do trem, passa direto, até o Tatuapé. A vantagem é que vai mais rápido. Pegou, parece que é uns quinze a vinte minutos a gente chega. Tinha pedreira aqui perto? Tinha. Aqueles prédios lá do Araújo, eu chamo Araújo aqueles prédios lá, naquela zona lá, rachou muito, porque o serviço da pedreira aí fica próximo. Era tão forte e chegava a rachar esses prédios. Vocês ouviam daqui? Ouvia. Como é que era isso? Era um estouro. (riso) Que horas que era? Era à tarde. À tarde, assim, seis horas.

R/2 - Era uma certa hora do dia, não sei se era onze ou meio-dia, uns estrondos. É, eles colocavam aquela dinamite para estourar... Podia ir ver, não? Não. Eu nunca tive a curiosidade de ir. Eu tinha que trabalhar, não tinha tempo.

P/1 - Seu Deusdedith, vocês mudaram muito a casa, desde o dia em que chegaram aqui, já mudou muito? Aqui?

R - No cimento, a gente deu uma melhorada.

P/1 - O que foi que vocês já mudaram aqui?

R - Ah, tem piso, as paredes.

R/2 - Só aqui na sala, passou massa fina. Porque era daquele tipo ali. A gente só não pintou a cozinha, por exemplo, aí em cima e os quartos ainda continua do jeito que eu recebi.

R/2 - Dois quartos ainda não têm piso. É, também não tem piso.

P/1 -

E tinha escola para os meninos aqui?

R/2 - Demais. Tinha. Logo aqui, em cada quarteirão tem escola. É bem servido de escola aqui.

R - É escola, é feira, é mercado e Posto de Saúde. Aliás até as crianças tinham dias que vinham e já gostavam muito daqui. É, eu gosto muito disso aqui.

P/1 -E quando colocaram a luz na rua, o que mudou na vida de vocês?

R - Ficou melhor, né, filha.

R/2 - Alegria danada. Igual quando a luz falta, né? Aí quando ela volta é aquele grito. Então foi aquilo mesmo. (riso) É, foi uma festa.

R - Mas tinha luz de... A gente ia na Eletropaulo, naquele tempo era Eletropaulo, ou era Light? Não, Eletropaulo. E pedia para ligar, eles vinham e ligava, interna.

P/1 - E em São João Clímaco, vocês tinham luz em casa?

R - Tinha. Era alugada a casa lá.

P/1 - Mas já tinha?

R - Já.

P/1 - Mas aí vocês já tinham televisão, geladeira, não?

R/2 - Tinha.

P/1 - Quando vocês vieram para cá já tinha?

R - Já, filha.

P/1 - O que vocês compraram primeiro?

R/2 - Quando nós chegamos aqui?

P/1 - Não, o que vocês compraram primeiro, assim, de ligar na tomada? A televisão (riso)

R/2 - A televisão, um radinho.

P/1 -

Antes da geladeira?

R - É, depois a geladeira. A gente comprou a televisão, depois comprou a geladeira. Que a geladeira mesmo fomos comprar já depois...

R/2 - (Desde) que nós estamos aqui, esta é a terceira.

R/1 - Não, ela está falando de quando a gente chegou do Piauí.

R - Ah, foi a televisão, foi, foi. Depois veio a geladeira, e assim por diante.

R - Primeira coisa que nós compramos foi a televisão. Ainda tem umas duas beliches, ainda é de 1970, ano 1970.

P/1 - Vocês não dormiam em rede não, quando chegaram aqui?

R - Não, é muito frio. Hoje até que dá um pouquinho, mas naquela época era mais frio.

P/1 - Vocês trouxeram?

R/2 - Ah, eu cortei, pra forrar as camas. Agora cobertor era só uma manta. Era um sofá, aí eu abria o sofá, e aquele monte entrando, que nem rato, em cima da cama, para se esquentar, para cobrir com aquela manta. Meu Deus, muita loucura.

P/1 - O que falta aqui no bairro?

R - Aqui falta banco, né, filha, uma agência de banco, falta luz.

P/1 - E praça? Tem praça aqui?

R - Tem. Logo aí na praça Brasil tem, mas a gente não frequenta.

P/1 - Não? Por que?

R - A turma de rua toma de conta, e a molecada. No caso aí só durante o dia é bem frequentado. A mulherada, muitas mulheres bonitas vai fazer... como é o nome? Fazer cooper.

P/1 - O que vocês acham que tem de melhor aqui, o que vocês mais gostam daqui?

R - É muito sossegado, não tem muita bagunça não. Agora a gente só dentro de casa mesmo. Aqui é bem melhor. Esse aí é meu filho. Esse aí, ele trabalha com informática.

P/1 - Deusdedith, agora para terminar, a gente gostaria que o senhor dissesse, assim, o que o senhor gostaria que tivesse nesse bairro, assim, no futuro, daqui cinquenta anos, como que o senhor gostaria que ele fosse?

R - Cinquenta anos? Filha, é o seguinte: eu acho que aqui está completo. Eu falei que só agência de banco que falta, mas aqui está bem servido de condução. Se melhorasse os ônibus também. E outra coisa que não me agrada aqui: é essa entrada dessas peruas, essas peruas aqui é uma bagunça, são dirigidas às vezes por gente que não regula bem a cabeça. Essas lotações aí, clandestinas, o diabo, é uma ganância, uma correria. Eu não pego elas, muito difícil. Porque é tudo gente que não me agrada bem o comportamento deles.

P/1 - E tem alguma coisa mais que o senhor gostaria de falar, da sua vida, do bairro, o senhor gostaria de deixar registrado?

R - No caso aí, eu desejo melhoras, né, filha, que progrida, porque tem meus filhos, e a gente deseja sempre o bem estar deles, e para a vida, e que melhore mais, e assim por diante.

P/1 - O senhor tem netos?

R - Tenho.

P/1 - Quantos são?

R - Neto, já tem dez.

R/2 - Não, são onze?

R/3 (FILHO) - Esqueceu do meu?

P/1 - Onze netos.

R - Onze ao todo.

R/2 - Tem um bisneto.

P/1 - Nossa, já tem até bisneto?

R - É. Já tem bisneto.

P/1 - E como é que é a sua rotina hoje, o seu dia a dia?

R - Ultimamente, filha, a aposentadoriazinha é pouca, e passo porque meus filhos me auxiliam. E ultimamente adoentado, esse negócio aí, isso até um dia sei que vou me hospitalizar para fazer uns tratamentos. Assim, só sei porque eu vi meus filhos progredirem. Outra: a segurança aqui, que a gente teme, em casa o que preocupa mais é isso, é a questão da segurança, porque a gente vê o exemplo dos outros. Graças a Deus que por enquanto está em paz, não está acontecendo nada, mas o que a gente pode esperar? A gente já viu acontecer com os outros. A gente teme, né?

P/1 - Seus filhos moram todos aqui em Itaquera?

R - Não. Um mora na Vila Rica, outro mora em Poá, outros moram...e assim por diante.

R/3 - Santo Amaro.

R - Santo Amaro. Vão casando e vão se... vão saindo.

P/1 - Eles casaram com moças daqui mesmo?

R - É, sim.

P/1 - Mas daqui de Itaquera?

R/2 - Não. Só um. Só o Pedro Paulo, com uma menina, que era vizinha aqui do prédio, acharam por bem casar.

R/2 - É daquele apartamento ali.

R/3 - Não parava de encher o saco, a gente falou: "Casa logo isso aí" (riso)

R- (riso) Os demais, eles casaram com moças de fora.

P/1 - E como é que é a vizinhança aqui na Cohab?

R - Filha, eu me dou bem, sabe? Não tenho o que dizer, não, a gente se dá com todo mundo. Aqui no prédio, por exemplo, às vezes aparece alguma pessoa mais diferente, mas a gente vai levando, para não criar caso. É assim que a gente leva a vida.

P/1 - Tem muito nordestino?

R - Tem bastante.

P/1 - Tem mais gente de onde?

R - Aqui mesmo, tem mais gente que é do nordeste mesmo.

P/1 - E de Piauí, da sua terra, o senhor chegou a encontrar alguém aqui?

R - Tem.

R - No prédio? Não, aqui no prédio não, mas tem vizinho, tem o Henrique e muitos outros, tem bastante gente. E lá na zona de São João XV, não sei porquê, a gente vinha vindo, uma pessoa do Estado e aquilo ali vai chegando"Tem fulano que mora lá." E vai chegando. A quantidade daquela zona ali de São João XV, por ali, ih, como tem nordestino, piauiense, muita gente. Meu caso mesmo, eu vim para cá com a família, e os irmãos da mulher acharam por bem vir também, então é uma quantidade.

R/2 - Vieram tudinho. É, até meu pai e minha mãe também vieram, mas morreram, né?
P/1 - E os seus irmãos, vieram não?

R/1 - Também. Um está em Brasília, hoje trabalha em Brasília. Ele chegou em Brasília desde o início, achou por bem ficar por lá mesmo. Assim, já se aposentou. Ganhou casa etc, está para lá. E o outro veio parar aqui, veio antes de mim, veio primeiro do que eu.

P/1 - E eles vieram por quê? Vocês disseram: "Aqui é bom, pode vir que é bom." Era assim?

R/1 - No caso aí, não sei porquê, filha, a gente estava dizendo: "Não vem, que precisa trabalhar, a vida é dura." Mas eles acharam por bem vir para cá.

P/1 - Está jóia, então. A gente agradece muito a sua entrevista.

R/1 - Desculpa, eu não sei me expressar bem no caso, né?

P/1 - Não, imagina. Foi ótimo, altas histórias o senhor contou. Está bom? Obrigada.