Museu da Pessoa

Uma vida de muito trabalho

autoria: Museu da Pessoa personagem: Graciete Muniz Evaristo

Memória Nawa
Depoimento de Graciete Muniz Evaristo
Entrevistado por Jonas Samaúma e Paulo Almeida Nukini
Aldeia Recanto Verde, 06/10/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número ARMIND_HV
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho


(00:00:25)

P/1 - Bem-vinda, Graciete. Muito obrigado por estar contando um pouco da sua história. Queria que você falasse o seu nome, o lugar onde você nasceu.

R - Eu nasci aqui mesmo.

(00:00:43) P/1 - O que a senhora lembra daqui quando você era pequena? Como era esse lugar?

R - Quando eu era pequena esse lugar não era assim não, era tudo mato. Nós morávamos para acolá com meu pai, mas me criei aqui, nasci e me criei.

(00:01:10) P/1 - O que você lembra do seu pai? O que ele fazia? O que ele te ensinava?

R - Meu pai caçava muito, matava muito bicho, anta, porco, tudo ele matava. Tatu, essas coisas assim.

(00:01:25) P/1-

Ele matava mais na espingarda, mais na flecha? Com o quê?

R - Mais na espingarda que ele matava.

(00:01:33) P/1 - Você lembra de alguma história de caçada que ele contava?

R - Não, ele não contava nada para nós. Negócio de caçada, não.

(00:01:42) P/1 - E a sua mãe, morava com vocês?

R - Morava.

(00:01:46) P/1 - Ela fazia o que enquanto ele ia caçar?

R - Nós ficávamos todos em casa quando ele ia caçar. Às vezes ele ia para a mata. [Quando] passava da hora dele chegar, nós íamos atrás dele. Às vezes ele não aguentava, muito fraco, às vezes não comia, vinha arriado no meio da mata e nós trazíamos ele. Cansamos de trazer ele da beira do igarapé, só bebendo água e provocando, às vezes com um macaco encostado nele. Nós trazíamos ele para casa.

(00:02:31) P/1 - Arriado por quê? Por que ele ficava arriado?

R - Eu acho que é porque ele era fraco e não tinha bebido nada, o estômago [estava] limpo, aí dava vontade de beber água, ele bebia e dava gastura. Nós trazíamos ele para casa.


(00:02:51) P/1 - Vocês eram quantos irmãos?

R - Era um bocado, a irmandade muito eu não sei, não. Tinha essas daqui, a Olga, o Jonas Curaca, o Tonho, _______. Eram seis irmãos. Tinha mais, mas já tinham morrido.

(00:03:23) P/1 - Como era a vida com seus irmãos? Vocês tinham alguma brincadeira, ou vocês trabalhavam?

R - Nós trabalhávamos. Não tínhamos brincadeira, nesse tempo não existia negócio de brincadeira, só era trabalhando com meu pai, ajudando ele, batendo no campo, mariscando. É o que nós fazíamos com ele.

(00:03:47) P/1 - Você ia mariscar com seu pai então?
R - Dia de sábado nós saíamos daqui pra acolá, pro centrozinho. _______ no Paranã, mas ele chegava de manhã. Nós trazíamos tanto peixe, eu com a minha irmã mais velha. Maria é o nome dela.

(00:04:07) P/1 - E quais eram os peixes que você mariscava?

R - Os peixinhos que nós pegávamos era piau, aracu, surubim, cará, manguinha, olaia. Tudo ele pegava, hasteando de noite com gargalo, todo peixe ele matava. Ele chegava de manhãzinha [com uma] cambada de peixe bonito, assim a gente fazia com meu pai.

(00:04:34) P/1 - Quando vocês iam pegar peixe tinha algum tipo de ritual, alguma reza para fazer isso ou só mariscava mesmo?

R - Só mariscava mesmo, não tinha nada, não.

(00:04:45) P/1 - Mariscavam mais de noite ou de dia?

R - Mariscava de dia e de noite.

(00:04:51) P/1 - Já aconteceu dele ou você ser picado por arraia, por peixe elétrico, essas coisas?

R - Eu mesma nunca fui. Não sei se ele tinha sido, agora [picado por] cobra ele foi, meu pai.

(00:05:11) P/1 - Quando era picado curava com um remédio da mata remédio, ou remédio da cidade?

R - Acho que era da cidade, da mata a gente não sabia.

(00:05:24) P/1 - Como é que era para chegar na cidade, era perto para chegar ou demorava um tempo?

R - Demorava, ele saía daqui pra rua.

(00:05:38) P/1 - Ia de motor ou de remo?

R - Motor.

(00:05:44) P/1 - Quando você era criança?

R - Era tudo criança e nós ficávamos todos em casa.

(00:05:54) P/1 - Você conheceu os seus avós?

R - Conheci, só não conheci a avó da minha mãe, ela tinha morrido, mas o pai da minha da minha mãe eu conheci. O pai do meu pai eu conheci, a avó e o avô.

(00:06:21) P/1 - E o que você lembra deles?

R - A avó contava muita coisa para nós. Ela queria contar negócio de cortar gira, nós começávamos a mangar dela. Ela: “Ah, não vou contar mais, não!”

Aí ela deixava. “Vó, conte vó, é aí que a gente aprende.” Ela: “Não, você não quer aprender!” Aí ela deixava. Aí nós nem ligávamos mais.
Um dia desses eu disse para as minhas meninas: “Filha, se fosse no tempo que avó ensinava para nós essas coisas assim, nós tínhamos aprendido. Tem umas coisas alucinadas dos tempos que amansaram ela daqui, da maloca. Ela dizia que quando foi chegando, a primeira vez que saíram daqui do barracão, eles estavam todos correndo. Ela arrancava todas as flechas: “Papai, não mata não.” Virava a ponta da flecha para baixo, a avó contava para nós. “Papai, não mata não.” Vinha chegando o finado Zeca, até que chegaram. É porque não ensinou… Não se interessam [em] aprender nada.

(00:07:50) P/1 - Você falou que amansaram sua avó? Como foi essa história,

poderia contar?

R - Amansaram. Ela contava para nós que amarravam, levavam brinco, anel, coisas de pintar unha, bolacha, tudo isso aí amarrando nas estradas, no caminho deles para ali. Foram amansando, até que chegaram ali no barracão, depois se acostumaram.

(00:08:28) P/1 - Ela casou foi com indígena, ou foi com patrão?

R - Não, a minha avó era casada da mata mesmo, nasceu e criou. Era cheia de pentes, e elas também tinham muita roupa.

(00:08:51) P/1 - O que mais que sua avó contava para você?

R - Só o que ela contava para nós, nós não perguntávamos mais.

(00:09:03) P/1 - A senhora lembra se ela utilizava alguma medicina, algum remédio da mata?

R - Não me lembro não, isso ela não contava.

(00:09:17) P/1 - E seu avô?

R - Meu avô era arroxo. Meu avô não sentava encostado de netos assim, não. Ele era caboclo, era rústico. Ele botava era nós para correr de casa quando ele bebia, com aquele rifle de fora e nós corríamos. Quem aquietava ele era o pai; quando

aquietava ele, ele ia nos chamar.



(00:09:52) P/1 - Você estava contando do seu marido, que ele teve problema, mas você falou que ele era muito mulherengo. Você sabia disso?

R - Sabia não. Ele ‘pegou’ um infarto e ficou só babando, sacolejando e eu,

gritando pelos meninos. Foi para UTI, passamos o mês de agosto todinho lá com ele na UTI. Quando foi o mês de outubro ele saiu para dentro do hospital mesmo. Ficou, baixaram, saiu e veio embora.
Eu disse para ele que eu vinha embora e ele perguntou se eu ainda voltava para lá para o hospital. Eu disse: “Volto não, filho nosso vai ficar sozinho.” Aí eu vim embora, deixei..
Ele agarrou com quatro dias que chegou lá em casa, dizendo que vivia em um canto que era humilhado. Foi para Rio Branco, partiram ele em banda; diz o Rael que ele botava o coração dele na palma da mão para lavar, para tirar o sangue coalhado quando ele está entupido. Tiraram as veias daqui da perna dele para botar no coração, ficou doente. Quando chegou em casa, pegou um AVC, aí levaram para o hospital. Nós viemos morar mais no hospital que dentro de casa, era assim. Foi indo, foi indo, pegou um AVC, foi para o hospital. Quando veio para casa não andava, não falava. Dessa vez ele foi. Agora fez um ano que ele morreu.

(00:12:00) P/1 - Um ano agora. Ele ficou muito tempo doente?

R - Foi muito tempo.

(00:12:04) P/1 - Ele antes trabalhava de quê?

R - Ele trabalhava de nada, eu que aguentava a casa. Ele só fazia caçar o que comer para dentro de casa, caçar para botar comida em casa. Ele era bom para negócio de roçada, essas coisas assim.

(00:12:23) P/1 - Por que ele não trabalhava?

R - Dizem minhas meninas que ele não trabalhava porque tinha preguiça, aquilo era novo.

(00:12:32) P/1 - Mas não bebia?

R - Bebia era muito.

(00:12:38) P/1 - Ele ficava bravo quando bebia?

R - Logo no começo ele não ficava bravo, não. Ele chegava em casa e dormia. Depois que nós começamos a morar para cá, ele chegava e se botava valente.

(00:12:56) P/1 - Mas ficava valente para cima dos filhos ou para cima da senhora?
R - Não, era mais para cima de mim. Pra filho ele não botava nada.

(00:13:06) P/1 - Como que a senhora fazia? Ele batia mesmo ou...?

R - Ele não me batia porque eu não esperava. Chegavam os outros filhos em cima dele e ele acalmava.

(00:13:24) P/1 - Você disse que todos os filhos são dele. Os quatorze filhos?

R - Tudinho dele.

(00:13:32) P/1 - Você disse que você sustentava a casa, né?

R - Era o negócio de roupa, açúcar, sal, tudo era eu. Ele perfurava, botava um roçado, tocava fogo e eu quem metia a cara, cortava um monte de maniva com os meninos. Nós plantávamos tudinho, plantava milho… Alguma vez ele ia lá.

(00:14:02) P/1 - E o que a senhora plantava no roçado?

R - Plantava milho, mandioca, banana, inhame. Tudo eu plantava.

(00:14:11) P/1 - E os meninos ajudavam?

R - Os meus meninos ajudavam. Eles foram crescendo, viram o que ele fazia comigo. Foram embora para rua, para casa das tias. Eu ficava me batendo sozinha, com os mais pequenos. Foram crescendo. Criei tudinho, graças a Deus.

(00:14:39) P/1 - Eles iam embora por conta de quê?

R - Por conta dele mesmo, porque o pai não ligava. Eu [era] quem dava conselho a eles, que andassem direito para não ter confusão, que eram bons meninos.

(00:15:00) P/1 - E a senhora trabalhava de quê? A senhora falou que sustentava…

R - Da mata, tirando cipó. A gente fazia caçuá bem grande, enchia de vassoura, cipó, piaçava. Tudo eu fazia - cesta, vendia tudinho. Eu juntava com Bolsa Família e comprava as coisas.

(00:15:23) P/1 - Como é que você aprendeu a fazer essas coisas?

R - Aprendi eu mesma, ninguém me ensinou. Eu vi o meu pai fazendo. O meu pai fazia vassoura de piaçava, caçuá, vassoura de cipó. Tudo que ele fazia, o meu pai, fazia para casa mesmo, para vender não fazia, não. Eu aprendi a fazer para vender.

(00:15:53) P/1 - E como é que faz isso? Como é que fazia no seu tempo?

R - Como é que fazia a vassoura?

P/1 - O que a senhora mais gostava de fazer?

R - Eu fazia tudo porque era o jeito. Aprendi a fazer tudinho: vassoura, caçuá, cesta, peneira de peneirar a massa, tudo eu fazia.

(00:16:19) P/1 - Fazia com o material da mata mesmo.

R - Era.

(00:16:26) P/1 - Quer contar um pouco como a senhora fazia isso? Como é feito? Eu mesmo não sei, nem imagino, na verdade, como é que faz!

R - A gente vai na mata, tira o cipó, descasca. Quando chega, ripa tudinho, vira e aí vai crescer. Hoje em dia o pessoal não tece mais vassoura, deixa dentro de uma lata de guaraná, é uma beleza. Dos meus meninos teve três que aprenderam, as mulheres não aprenderam a fazer nada.

(00:17:04) P/1 - Mas por que não? Não ficava fazendo junto contigo quando era criança?

R - Não se interessavam.

(00:17:14) P/1 - E quem comprava essas coisas?

R - Bastava eu fazer. Ainda agora, cheguei [e] me perguntaram se eu ia trabalhar. Se trouxerem o cipó para mim eu faço. Não para eu tirar, puxar cipó, não aguento mais não. Peguei aquela doença velha, eu fiquei sentada na perna, fiquei fraca, mas não fosse isso…

(00:17:42) P/1 - Qual doença você pegou?

R - Corona.

P/1 - Corona! Como é que foi pegar corona? Quando você pegou?

R - Faz tempo, peguei faz dias. Dá febre, assim eu fiquei, mas no tempo que eu era mais nova eu aguentava tudo com meus filhos.

(00:18:07) P/1 - Como foi com o corona, você se curou como?

R - O remédio caseiro, limão, coisa assim. Eu peguei diabetes, tudo isso foi em cima de mim, aí eu fiquei assim, mas eu fiquei mais forte. Eu peguei uma diarreia aí, me acabou. Quando o nego foi me buscar eu estava com diarreia, sentada assim, no pé da barriga. Vai e não vai, uma soneira, mas eu dormia tanto. Se eu me sentasse assim, já estava dormindo.
A minha menina… Eu fui lá, antes da gente subir, ia no pai deles. Ela disse: “Mãe, também a senhora não comia, perdia o sono." Tinha que passar o dia todinho dormindo.

(00:19:02) P/1 - Você não chegou a ter que ir pro hospital?

R - Não fui para o hospital, não. Eu ia andar, andava assim, tropicando nas pernas, fraca.

(00:19:21) P/3 - Você contou pra gente que teve bastantes filhos. Eu fiquei aqui curiosa para saber algumas histórias de parto, se você pariu na aldeia mesmo, se naquela época ia para a cidade, se teve mais alguma anciã que te ajudou nesse momento. Você era sozinha mesmo na mata?

R - Não, eu tinha em casa mesmo, tinha as parteiras. Eu nunca fui para hospital,

maternidade. Eu ganhava neném em casa mesmo.

(00:20:00) P/1 - Parteira Nukini?

R - Era, a minha avó ainda pegou um. Eu morava assim, mandavam buscar as parteiras, a Maria Luiza, Maria Siqueira.

(00:20:17) P/1 - E tinha alguma ciência esse parto? Algum jeito que elas faziam para dar certo?

R - Elas sabiam muita coisa. Aquelas que não sabiam diziam logo, nunca tinham pegado. A Maria Siqueira e a Maria Luiza, elas sabiam. Graças a Deus eu nunca fui em maternidade, ganhava em casa mesmo, tudinho.

(00:20:53) P/1 - Você aprendeu um pouco de fazer parto também?

R - Ainda peguei seis, eu via como elas faziam. Uma mulher que mora aqui, o nome dela é Maria do Negro, estava grávida e o nego foi buscar a Maria Luiza. Quando ele chegou eu já tinha pegado o neném dela.

(00:21:30) P/1 - O primeiro neném que você pegou foi esse?

R - Foi não. Eu morava lá no Meia-dúzia, lá embaixo eu peguei um.

(00:21:40) P/1 - E como foi a história desse neném? Por que te chamaram para pegar, como foi isso?

R - É porque lá não tinha parteira, aí eu fui lá, mas foi de repente. Antigamente não era como agora. Agora qualquer coisa, se não levar para o hospital, para a maternidade, é tirado.
Antigamente era para logo. Minhas filhas, tem uma lá que está com um bucho, não sei se ela já ganhou ou ainda vai ganhar.

(00:22:22) P/1 - Tem algo que você não pode fazer quando vai pegar o neném, que pode dar errado?

R - Se vier bem a gente pega, beleza. Se ele prender aqui nos ombros, a gente só vira ele, logo logo ele nasce. Ainda peguei quatro, mas graças a Deus os que eu peguei eram de repente.

(00:23:03) P/3 - Dona Graciete, como a senhora já foi também parteira dos seus parentes, nesse período que a senhora fez esse trabalho, se alguma coisa desse errado, a senhora tinha conhecimento de alguma medicina para ajudar?

R - Tinha nada não, só na fé em Deus, mas graças a Deus o que eu peguei foi tudo rápido. O nego diz que a Maria tinha problema, ela ganhava o neném, mas não despachava; no dia que eu peguei o dela, ele nasceu com pressa, ela desaguou. Diz ele que nunca tinha visto precisar ir atrás de remédio, fazer remédio. Eu disse: “Não, deixa um mesinho aí, nego véio. Eu não sei de nada, não.” Aí eu peguei ele.

(00:24:22) P/1 - E você sabia fazer remédio da mata também?

R - Não. Da mata mesmo não sei de nada. Agora eu tenho um menino que ele sabe tudo, o Chico. Às vezes ele está em casa assistindo alguma coisa, a Maria diz assim… Aí ele vai lá por trás, atrás de um bocado de folha. A Maria diz: “Lá vem o macumbeiro véio!” Ele diz: “Cala a boca!” Ele te faz um remédio e fica bonzinho.

(00:24:53) P/1 - Foi ele que fez o remédio do corona?

R - Pra ele foi. Foi lá em casa, me trouxe um bocado de limão e fez um remédio. Bebeu, ficou bonzinho. As minhas meninas também curaram assim com coisa de limão, mas eu ainda fui lá.

(00:25:21) P/1 - Foi no mesmo dia que você tomou remédio que você curou do corona?

R - Foi nada. Eu ainda fui lá no hospital, ainda estive internada.

(00:25:34) P/1 - A senhora foi internada? E o que você lembra desse período de internação, foi difícil? Como é que foi?

R - Fui. Meu filho, eu não sei nem dizer, porque eu fiquei sem sentido. As meninas davam comida para mim, eu dizia assim: “Leva para o teu pai, teu pai está precisando.” “Mãe, o pai já morreu!” Eu dizia: “Mas leve.” Era assim.
É porque eu tenho diabetes, mexeu com tudo. Quando era para eu sair o doutor foi lá e disse que eu não tinha mais. Tinha ficado boa do corona, só o que estava matando era a fraqueza e diabetes. Eles me deram remédio e tomei, graças a Deus.

(00:26:28) P/1 - Nesse tempo a senhora morava aqui, ou morava em outro lugar?

R -

Não, morava lá onde eu morava.

P/1 - Era onde?

R - Lá na [cidade de] Assis Brasil.

P/1 - Assis Brasil é aqui no rio, é no município?

R - É aí para baixo.

(00:26:52) P/1 - Eu queria saber como é. Quando foi que você saiu aqui dessa aldeia?

R - Rapaz, nós morávamos ali na beira do rio, aí ele comprou uma casa lá em Assis Brasil. Ele vivia assim, passava um mês em casa, outro não. Ele só queria morar no centro.
Eu tinha uma menina pequena, a bichinha na frente, tudo carregado. Quem mora em centro não sai descarregado, tudo é carregado. A bichinha chorando, eu disse: “Minha filha está cansada, mamãe também, minha filha, mas não posso fazer nada.” Era andar até o fim da vida. Ele olhou para trás: “Por causa de tu eu vou sair desse centro”, veio me esculhambando. Ficou em pé lá no meio do caminho, nós íamos daqui para lá. Eu disse: “É mesmo? Só quer saber de centro?” Fomos carregar, ele arrancou a casa… Ali mesmo eu queria ir embora, carregava palma, as palhas. Isso aqui meu doía tanto. [passa a mão na cabeça] Tinha um boi, os meninos me ajudavam. O nego, o Chico e o Rael me ajudavam, botavam palha em cima e um bocado de tábua e vinham para cá.
Ai se naquela hora a gente não chegasse… Eu fui arrancada por ali.
A minha menina levou uma queda, bateu isso assim dela [mostra o quadril] na cadeira na escola, inchou as costas dela. Os quartos dela não cabiam roupa. O Zé Peba foi deixando nós na rua, de lá eu fui bater em Cruzeiro, na casa da irmã dele. A irmã dele disse assim: “Por que você não vem embora?” Eu disse: “Minha irmã, como é que eu vou embora? Eu não tenho nenhuma casa por aí.” “Tem sim, lá em Assis Brasil. Ele comprou uma casa, ele não falou pra você?” Eu disse: “Não estou nem sabendo.” Ela disse: “Besta, tem que passar o dia de ano na sua casa, ele comprou uma casa.”

(PAUSA)

R - Eu cheguei aqui, disse que eu ia para lá, ele disse que não ia. Eu disse: “Mas eu vou, tem a casa!” “Quem foi essa fuxiqueira que foi te dizer que eu tinha casa lá em Assis Brasil?” “Quem me falou foi sua irmã. Ela perguntou pra mim por que eu não ia embora.”
Juntei minhas coisas e carreguei para a beira do rio, de lá fiquei de carona. Ele ia mandar os meninos botar a placa para vender, aí a Glória: “Tá vendo, se não fosse eu ainda morava na República!”

(00:30:34) P/1 - O que a senhora acha diferente de morar na aldeia aqui, e morar… Não sei se era cidade ou morar fora do [povo] Nukini.

R - Eu morava lá em Assis Brasil, achava era bom. Eles me perguntavam se eu vinha morar aqui. Eu dizia: “Posso ir para passear, mas para morar mesmo…”
Agora que ele se foi, eu não volto mais. Vai vender a casa, vai comprar aquela do Chico Velho para mim.

(00:31:11) P/1 - E você lembra quando aqui foi demarcado? Você lembra disso?

R - Não tem lembrança, não. Nesse tempo eu não morava aqui, eu morava fora porque ele não parava num canto, subia, derrubava.

(00:31:28) P/1 - Você conheceu o seu Humberto?

R - Eu conheci. Até agora, quando o compadre Humberto estava doente. Eu vi, fui lá. Ele estava batendo o coração bem devagarinho. Eu fui em um dia, no outro dia ele morreu. Eu fui num sábado, e no domingo ele morreu.

(00:31:48) P/1 - E o que a senhora lembra dele?

R - Eu não me lembro de nada, porque ele morava lá [longe] e nós morávamos para cá. Era difícil a gente ir lá.

(00:32:04)

P/1 - Uma coisa que eu esqueci de perguntar. Quando você era menor se você via muita coisa de seringa, as pessoas, o seu pai?

R - Quando o meu pai era vivo nós cortamos muito seringa. Depois de casada mesmo eu cortei seringa.

(00:32:25) P/1 - E como era o seu trabalho na seringa com seu pai?

R - Nós colhemos muita seringa. Arrombava um galão assim, só derramando o leite dentro.

(00:32:37) P/1 - E essa seringa ficava pra vocês mesmo?

R - Não, era do Bolota, do pessoal, do Josué.

(00:32:51) P/1 - Você lembra como isso acabou?

R - Acabou assim mesmo, o pessoal não quis mais cortar.

(00:33:02) P/1 - O que mudou depois que acabou?

R - Mudou muita coisa, porque ninguém não cortava mais.

(00:33:23) P/3 - Eu não lembro se eu ouvi você contar alguma coisa da sua mãe. Acho que aprofundou muito em avó e avô no começo, falou um pouco do pai, mas acho que da sua mãe eu não lembro de ter ouvido alguma história.



R - A mãe também era muito sofredora, meu pai gostava de bater nela. Quando ele morreu eu não morava aqui, não. Ele morreu, ela ficou por aqui, aí pegou aquele câncer, morreu minha mãe. Eu não vi ela, não.

(00:34:08) P/3 - Faz tempo que ela morreu?

R - Acho que faz, os meninos devem saber quando ela está….

P/2 - Oito anos, já.

(00:34:20) P/1 - Você chegou a aprender alguma coisa com a sua mãe?

R - Não. Mamãe não dizia nada para gente, não conversava com a gente.

(00:34:30) P/1 - Não falava nada?

R - Nada.

(00:34:36) P/1 - Sua mãe era Nukini também?

R - Era, mas ela cortava gira assim, ela esculhambava com o senhor, e o senhor não sabia o que ela estava dizendo. Quando ela estava com raiva do meu marido ela esculhambava com ele e ele me perguntava o que ela estava dizendo. Eu dizia: “Eu não sei, pergunte a ela.”

(00:34:52) P/1 - Ela falava na língua?

R - Era.

P/1 - E a senhora chegou a aprender alguma coisa da língua?

R - Não, não aprendi nada.

(00:35:05) P/1 - Mas ela não falava com vocês na língua?

R - Nada.

P/1 - Falava português também.

R - Uhum.

(00:35:15) P/1 - E ela fazia reza?

R - Não.

(00:35:18) P/1 - Esses antigos, você lembra se eles tomavam ayahuasca?

R - Nesse tempo não existiam, não, agora que começaram.

(00:35:31) P/1 - Seu avô, sua avó também não?

R - Não.

(00:35:45) P/2 - A senhora se lembra um pouco de como era a convivência de vocês irmãos quando eram jovens em casa? Quando eram todos jovens a senhora se lembra como era que vocês viviam, se vocês eram unidos, se não eram unidos?

R - Meus irmãos… O Tonho não vivia em casa, ele vivia assim, embolado na casa de um, na casa de outro. O único que vivia dentro de casa era o Curaca, nós não brigávamos, não.


(00:36:26) P/1 - Você tem alguma lembrança com algum neto seu?

R - Meus netos, eu tenho lembrança de tudo.

P/1 - Tem algum momento especial que você viveu?

R - Eu tenho lembrança dos meus netos todinhos. Olha lá, todos por perto.


(00:37:01) P/1 - Gostaria de agradecer a senhora pela sua linda entrevista, contou muito bem mesmo, muito obrigado mesmo. Queria saber se você quer contar mais alguma coisa que eu não perguntei da sua vida.

R - Não tenho mais nada para contar, não.

(00:37:28) P/1 - O que você achou de contar um pouquinho?

R - Muito bem, pelo jeito que eu contei, né?

P/1 - Obrigado, Graciete!