Museu da Pessoa

Uma re-posição

autoria: Museu da Pessoa personagem: Denise Bandeira de Melo

Projeto Medley
Realização Museu da Pessoa
Depoimento de Denise Bandeira
Entrevistada por: Luiza / Lila
Local
Entrevista PCSH_HV964
Transcrito por Carina Inês Schmitt Rossi
Revisado por Sâmmya Dias

Título: Liberdade e Luta

Biografia: Denise Bandeira de Melo nasceu em 16 de maio de 1959, na cidade de São Paulo. É a segunda de quatro filhos de Maurício Bandeira de Melo e Maria do Céu Assis Bandeira de Melo., Denise viu seu pai trabalhar em várias áreas, desde caixeiro viajante até no ramo da construção civil, enquanto sua mãe se formou para ser professora, mas foi responsável por cuidar da casa em que viviam. Seus pais são migrantes nordestinos, ambos nascidos no interior da Paraíba, em Cajazeiras.

Sinopse:

Denise Bandeira de Melo estudou em escolas tanto particulares quanto públicas. Fez faculdade e durante esse período se engajou ainda mais no movimento estudantil, principalmente no grupo “Liberdade e Luta”. Mesmo sendo tímida conseguiu fazer viagens, ir à festas e trabalhar com Psicologia. É casada com Rui, e juntos são pais da Isabel e da Clarice.

Palavras- chave: Faculdade Objetivo, Universidade Paulista, gestação, aborto, família, irmãos, Universidade, Pedagogia, viagens, acampamento, namoros, estudos revolucionários, escola pública, escola privada, vestibular, movimento estudantil, Química, organização trotskista, amor livre, medo, migrantes, creche, São Paulo, Nordeste, filhas, separação, Liberdade e Luta, Feminismo, timidez, pânico, força, reflexão, câncer de mama, saúde, mulher, prazer, filhas, divórcio, renovação, terceira idade, dança, exercício, alimentação, recuperação, vida.

R – Então, Denise, eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.

P1 – O meu nome é Denise Bandeira de Melo, minha data de nascimento é 16 de maio de 1959, eu nasci na cidade de São Paulo, no estado de São Paulo.

R – E quais são os nomes dos seus pais?

P1 – Meu pai falecido chama Mauricio Bandeira de Melo e a minha mãe, que hoje tem 92 anos, Maria do Céu Assis Bandeira de Melo.

R – Qual era a atividade deles, profissional?

P1 - Meu pai fez milhares de coisas. Então, ele foi de caixeiro viajante, vendeu relógio, vendeu bebida, vendeu pilhas Rayovac, que nem existe mais, vendeu coisas, caixeiro viajante mesmo. E depois foi para construção civil e terminou fazendo despachante aduaneiro, que é ser despachante dessas coisas nos portos, de mercadorias importadas, etc. Então, meu pai fez tudo, não sei qual é a profissão dele! Enfim, bem adaptado. E minha mãe se formou para ser professora na cidade dela, mas ficou sempre aquela profissão que antes a gente descreveria do lar, minha mãe foi minha mãe e dona de casa.

R – E onde que eles nasceram?

P1 – Meus pais são do interior da Paraíba, de uma cidade chamada Cajazeiras que é quase divisa com Ceará. Os dois são de lá, os dois são filhos de fazendeiro, então eles são migrantes nordestinos, como é a história de milhares de pessoas dessa cidade. Eu posso falar mais? Assim, posso seguir falando um pouquinho?

R – Pode, super!

P – Se eu falar demais você me diz. Então, eles são migrantes nordestinos. Meus pais vieram pra cá já casados, com a minha irmã que é quatro anos mais velha, já nascida. Minha mãe chegou aqui mais ou menos grávida de mim já. Então, na verdade a gente teve uma vida aqui em São Paulo com pouca convivência familiar, porque só veio meu pai e minha mãe. Eles tiveram quatro filhos e eu sou a segunda, né. Tem minha irmã quatro anos mais velha, eu, e eu tenho dois irmãos mais novos. Então meu pai veio pra cá com um contato de trabalho, não é que ele veio totalmente desarvorado, tinha já... tinha uma tia da minha mãe, irmã da minha avó materna, que morava aqui também com o marido dela, eles não têm filho, não tiveram filhos, eles já estão falecidos, e ela era madrinha da minha mãe. Então foi um foi um casal que apoiou muito a chegada deles, meu pai veio com algum trabalho pra ser feito que eu não sei dizer qual seria, mas era um desses. Na época foi caixeiro viajante. Tinha esse nome mesmo, tá, meu pai passava muito tempo viajando. Então a minha primeira parte era dessa família chegando e se adaptando a São Paulo. Não que eu quando criança tenha alguma memória do que queria dizer isto, tá, eles aqui e se adaptando com a cidade, eu não tenho essa memória. Talvez tenha conversas que a gente foi fazendo ao longo do tempo, né. E tanto meu pai quanto a minha mãe foram - minha mãe ainda é - apaixonados por São Paulo. Não tiveram... não foram nordestinos saudosistas, talvez meu pai um tanto, minha mãe de jeito nenhum, pelo contrário. Minha mãe jamais queria pensar em voltar para lá, mesmo visitas para ela eram... meio assim, né: “Vou pelos laços afetivos dos parentes”. Mas nada pela cidade, pelo tipo de vida, pelo... nada disso. Então foram nordestinos bastante ‘apaulistanados’, tá, eles ficaram bastante bem aqui. Então minha primeira chegada aqui, meu primeiro tempo, foi num prédio que a gente morou, num predinho pequeno, né, sem elevador, e era um prédio todo de famílias com filhos meio da mesma idade. Então a minha lembrança era isso, assim, era as escadas onde você brincava, onde o vizinho ‘A’ é seu amigo, o vizinho ‘B’ também. Como se fosse um prédio em que todas as portinhas você podia entrar, você podia almoçar aqui, podia brincar ali, enfim. Então eu sou de uma infância da rua, né, que mesmo muito pequena, era na rua que ‘cê brincava, e todo mundo tava olhando todo mundo. Era um predinho pequeno, ali na... o endereço diz Vila Mariana, perto da Lins de Vasconcelos, na Lins de Vasconcelos bem pra cá, enfim... Então eu morei nesse tempo, e é uma infância que é desse jeito, brincando muito na rua, cheio de crianças, crianças dos vizinhos. Então os vizinhos talvez fizessem esta função do que seria uma família, mas de fato não é, tá. Eu vou falando? Posso ir falando? Você me interrompe pra me re-guiar. A minha história é comprida, porque eu tenho muitos anos.

Então com cinco anos eu mudei de casa, mudei de bairro, era a primeira casa própria dos meus pais. Num bairro um pouquinho mais afastado, que já é o bairro da Saúde (que é hoje da Saúde, na época chamava Mirandópolis, mas hoje chama Saúde), é perto da Praça da Árvore, a referência pra gente era a Praça da Árvore. Então foi... era uma rua que na época a rua era toda asfaltada, mas todas as travessinhas eram de terra, todas elas, e terminava num córrego que hoje é uma grande avenida, mas terminava num córrego. Então, embora minha rua fosse toda asfaltada, não era uma rua de movimento de carro. É... e o fato de ter rua de terra também proporcionava um tipo de brincadeira, na verdade assim, mesmo jeito que eu tinha lá quando eu tava na minha primeira moradia, ela se repetiu, só que com novos vizinhos, outros vizinhos, outras crianças.

Por isso que eu digo assim, aquela vizinhança fez o papel de família, mas como laço de sangue ele é diferente, né, não se sustenta com uma mudança de endereço, e não é que a gente mudou nem de zona, era zona sul ainda, tá. Então são novos vizinhos e novas crianças e nova rua e novo..., talvez menos franqueada, não eram todas as portinhas que eu podia entrar, mas era uma rua cheia de laços de amizade, de vizinhas parceiras. A gente fazia festa junina na rua, e como era rua de terra você podia fazer uma fogueira, você fechava a entrada com bambu, ensaiava quadrilha com todas as pessoas ali, com as crianças, com os adultos. Então eu tenho uma infância que... quem pensar nisso hoje pensa muito do interior, e de um interior bem simplificado né, mas isso aqui foi tudo em São Paulo.

R – E que brincadeiras assim, você tem de recordação, que você gostava bastante?

P1 – Imediatamente eu tenho vontade de falar assim: pula cela, que eu acho que eu era boa. Mas lembro assim, de brincar de mãe da rua, barra manteiga, nem sei se

vocês sabem que brincadeiras são essas, mas eram brincadeiras que a gente brincava o tempo inteiro. Esconde-esconde pela rua imagina isso, brincar de esconde-esconde no meio da rua, nas vielas e tudo. Então era esconde-esconde, pega-pega, duro-ou-mole, pula cela, barra manteiga, mãe da rua, corda, bola, não era bola... eu acho que até tinha vôlei, mas esse jogo bem informal construído ali pelas crianças, carrinho de rolemã andei muito porque minha rua é uma rua meio descida e asfaltada, como eu falei, e com pouco movimento de carro. Então carrinho de rolemã, bicicleta, eu aprendi andar bicicleta sem rodinha com quatro anos eu já andava no outro... eu lembro dessa coisa pela marca das moradias: eu aprendi a andar de bicicleta eu ainda morava no apartamento, então eu não tinha feito cinco anos. Então eram brincadeiras que você podia desenvolver com muita facilidade na rua e é disso eu lembro com muita força.

R – E como era a relação com os seus irmãos? Você comentou que brincava bastante com os vizinhos e os seus irmãos brincavam junto...?

P1 – Então, nós somos quatro filhos, né, mas a gente tem algumas diferenças, a minha...Tá frio, né Alisson? O Alisson tá com mais frio que eu. Eu posso falar assim no meio? Então, os meus irmãos... Então, a minha irmã é oito anos mais velha do que meu irmão caçula, então ela é a minha primeira filha e o quarto filho tem oito anos de diferença. Da minha irmã pra mim são quatro anos, de mim pro meu irmão terceiro é um ano só de diferença, e aí pro meu outro irmão eu tenho diferença de cinco anos. Então são idades diferentes que marcaram um pouco o tipo de relação que houve, né. Então eu fui próxima do meu irmão que eu tenho um ano de diferença, um ano e um mês, bastante tempo. O meu irmão pequenininho ele chega no momento que a gente já tá em outra fase de brincadeira, então eu não brinquei na rua com meu irmão pequeno, eu brinquei na rua com a minha irmã mais velha, que era a turma que ensaiava quadrilha, que ensaiava peça de teatro pra gente apresentar pras famílias numa festinha que a gente inventava, é... Então a minha irmã era da turma mais velha que muitas vezes coordenava coisas com a turma mais nova, as brincadeiras eram muito com meu irmão mais próximo, e o meu irmão mais caçula eu lembro desse bebê que eu podia cuidar de alguma maneira. Quando ele nasceu eu tinha cinco anos, eu também era uma criança, mas pensa que ele tá com três, eu tenho oito, eu já sou uma menina que faz e que tem, né, alguma desenvoltura para entreter uma criança menor, pra cuidar, pra dar a mão, pra... Enfim, então eu tenho menos registro de brincadeira com meu irmão menor, era mais cuidar do meu irmão menor, cuidar não no sentido da responsabilidade de cuidar, isso faz muita diferença. É... Meu irmão foi sempre mais parceiro dessas brincadeiras todas que eu falo, a minha irmã tá nessa mesma rua mas ela tá sempre nesse lugar mais coordenando, mais dando ideias, mais da turma mais velha, que você inclusive tem algum desejo de estar próxima e tal. E tem esse momento em que eu fico mais adolescente, então pensa eu com 12, 13 anos, a minha irmã tem 17, 18, em que dá um desencontro, assim né, porque eu já quase querendo ficar mais mocinha e a minha irmã já achando difícil estar com aquela pessoa que pra ela é criança. Então eu tenho muito desta lembrança que tenha havido algum momento em que esta relação com a minha irmã ficou um pouquinho... É... Eu nem vou dizer que é conflituosa, que a minha irmã é uma pessoa muito da paz, tá, eu acho que eu sou mais explosiva, eu sou mais... Tem fotos minhas emburrada, porque eu acho essa palavra... Assim, é uma coisa que eu lembro de “Ah, a Denise ficou emburrada”. Eu era mais brava, mais explosiva, mas a minha irmã é muito mansa, acho que esta é a palavra, muito mansa, muito apaziguadora, enfim, então não vou dizer que tinha um conflito, mas tinha uma certa angústia ali, eu lembro da minha mãe fazendo alguma gerência, pra dizer “Suzana, dê atenção para sua irmã”, aí minha irmã “Ai meu Deus, eu vou ter que andar com esse rabicho”, e o rabicho era estendido ao meu irmão que também vinha junto. Ela chamava exatamente disso: rabicho. Então eu lembro assim, é uma memória que tem na minha cabeça. Até que eu alguma hora eu de fato consigo ser parceira dela, eu já tipo com 15 anos, eu lembro ela assim entrando na faculdade no primeiro, segundo ano, então ela tá com 18 anos, eu já tenho 14, então eu já sou mais mocinha mesmo, eu acompanhei ela em muitas viagens, por exemplo, e não era mais porque a minha mãe mandava, era porque a gente tinha parceria. Então teve algum momento de desencontro e depois tem uma parceria, e que eu acho importante dizer desse nascimento, desse jeito da minha irmã ser porque é uma parceria muito forte até hoje, né, então uma das fotos que eu selecionei é uma imagem que eu acho, é... uma foto montada que a gente fez recentemente mas que pra mim traduz um sentimento com ela, assim, de muita parceria, de muita união, de muito conforto, então é uma grande amiga, minha irmã.

R – E Denise, que recordações você tem da sua primeira escola? Como que era?

P1 – A minha primeira escola eu também tinha quatro anos de idade, que também foi naquela primeira moradia. Eu tenho uma recordação da pior possível, claro que eu devo ter vivido coisas boas, mas assim, se você me pergunta eu preciso contar a primeira memória, era assim, eu tinha um pânico de ir pra escola, eu sei que a cena que eu lembro é nessa escadaria que eu tô te falando, a gente morava no terceiro andar, era um prédio de quatro, a minha mãe morava no terceiro, tá. Meus pais moravam... a gente morava no terceiro andar. Então eu me lembro assim, eu apanhando, apanhando mesmo pra ir na escola, nessa escadaria. Então a cena que eu tenho é essa, e me lembro entrando naquela escola apavorada, o sentimento era muito de pavor. E aí assim, eu posso contar que também a memória que eu tenho é... Eu... E não é que a minha mãe não foi... Minha mãe, meu pai, nem sei quem que me acomodava lá, né, claro que eu não lembro exatamente disso, mas eu sei que era pra... Dias de convencimento, a surra foi a última coisa, “Não tem jeito, agora ela precisa ir, aí vai desse jeito”, não é que foi a primeira coisa. E eu lembro que a minha mãe então pediu na escola pra eu não entrar no que seria, sei lá, o Jardim, me pôs um pouquinho no pré, porque no pré tinha uma das vizinhas. Eu lembro bem do nome da menina, a Lilian, ela já estava no pré, ela era um pouquinho mais velha que eu, pouquinho, mas a escola me pôs junto com essa menina. Então era carteira já, carteiras de lição, uma professora com a mesa lá na frente. Enfim, já nessa tentativa de apaziguar um pouco meu desespero, então contando essa história, eu posso supor que teve todo uma intenção de me ajudar a estar na escola, e a minha irmã era da mesma escola, só que a minha irmã já tava mesmo no Ensino Fundamental I, que era o primário lá. Também tinha assim um favorecimento, ela entrava comigo, deixavam ela na hora do recreio, mas foi caótico. É... Então eu lembro de cenas... Lembro de uma cena, lembro de duas cenas muito grandes nesse pré que eu fui. Tinha uma horinha do descanso, que a gente tinha que cruzar as mãos e deitar a cabecinha na carteira, e eu tava do ladinho da minha vizinha Lilian pra me ajudar, e ela adormeceu e eu ficava só cuidando dela, né, com o olhinho meio fechado meio aberto, eu não conseguia dormir nem nada, a hora que ela acordasse eu acordava, a hora que ela dormisse eu dormia. Então, pânico. E lembro também que era um menino esmurrando a porta, nunca vou esquecer o nome dele, Marcos, esmurrando a porta, uma porta que pra mim era muito grande nessa sala, e era meio emperrada, uma criança não conseguia abrir, só um adulto. E ele esmurrava aquela porta querendo ir embora, eu queria ser o menino que esmurrava a porta. Aí me voltaram pro tal do Jardim, e aí eu fiquei lá, acho que era lá meu lugar mesmo. Eu lembro de cenas gostosas, eu lembro de colar papeizinhos, a pastinha cheia de trabalhinhos bonitinhos, eu lembro de gostar… Mas foi tenso, tá, foi bem tenso. Aí tem umas cenas meio chatinhas que eu não tenho vontade de contar, mas são tudo coisas de infância, assim nessa mesma situação, mas foi tenso.

R – E quando você mudou de casa, para um outro bairro, nesse processo, você mudou de escola também?

P1 – Mudamos todos de escola.

R – E como foi?

P1 – Aí eu estudei... essa escola era particular, essa primeira, a segunda também era particular porque a gente tinha acabado de mudar de bairro e minha mãe teve que acomodar os filhos em algum lugar. É... lembro muito pouco dessa escola, mas eu posso dizer que eu tenho essa lembrança de ser uma pessoa que estava sempre tensa com essa cena de uma escola que pra mim representava uma autoridade, uma coisa que eu precisava me comportar de um jeito que não sabia qual era. E lembro na época, que a gente... nessa escola pra qual eu mudei, que devia ser primeiro... nem sei se era primeiro ano... não era, porque eu tinha cinco anos, era uma escola também de carteiras, assim que eu sentava do lado de alguém, eram carteiras duplas, né, e que a minha coleguinha pegou uma coisa de dentro da minha mala que eu não devia ter levado pra escola, que era uma bolsinha da minha irmã, tudo coisa de criança, gente! Uma bolsinha de miçanguinhas azul clara, que eu botei dentro da mala, pra fazer nada, uma bolsinha linda que eu pus na mala e a menina pegou, e olha, eu não podia ter levado pra escola, a menina pegou. A bolsinha não tinha que estar na escola, foi tudo um caos, tá. Mas a minha mãe foi lá e me apoiou, me ajudou, conversou com a diretora, eu não me lembro da minha tensão em contar isso na minha casa, mas se você me fala: “E essa segunda escola?” Lembro disso. Acho que a coisa começa a ficar um pouquinho mais agradável quando eu vou ficando um pouco mais velha que a gente mudou de novo, porque acho que no segundo ano que a gente ‘tava’ nesse bairro, fomos todos para escola pública, aí acho que deu tempo dessas inscrições nos tempos certos e aí eu estudei na escola pública o Primário, o Ginásio,eu vou falar nessa nomenclatura porque... que é o Fundamental I e II, o Ensino Médio eu mudei novamente pruma escola particular, porque a minha mãe tinha uma preocupação. É... Ela achava que eu precisava melhorar meus relacionamentos, que precisava ter mais amigas diferentes, ela achava que... Eu não sei o que ela achava, precisava perguntar exatamente qual era a preocupação dela, mas eu lembro dela falar isso, queria “Melhorar o ambiente dela”, e tem uma outra coisa que era assim: “Me preocupo que você é muito tímida”, então em nome da minha timidez ela também me mudou de escola. E eu acho que... E aí eu faço um parênteses, né, quando a gente bota títulos, um jeito meio comum de dizer: rotular, né, mas eu quero dizer, quando você bota títulos em comportamentos das pessoas, eles também... Você veste isso, né. Então eu vesti, eu fico tentando entender o quanto que é timidez e quanto que é outra coisa que ficou traduzido como timidez e você consegue... Você segue é... Sendo tímida, enfim, ou apavorada. Eu me chamo de apavorada, tá! Nessa escola de Ensino Médio eu também fui apavorada. A cena que eu me lembro é: a gente na fila da Secretaria, e eu tinha que escolher, era Biológicas, Técnico em Química, veja, e Humanas. Aí na fila a gente ficou conversando com uma pessoa e a menina que estava na minha frente, e a menina escolheu Técnico em Química. Que eu escolhi? Técnico em Química! Que não foi ruim, por isso que eu to falando assim, eu não tinha medo propriamente da matéria, não era isto que me apavorava, eu não tinha medo da escola, no sentido do conteúdo, eu fui sempre uma aluna mediana, mas eu acho que é mais por pavor do que por uma questão intelectual. É, fiz o técnico em Química, não teve nenhum problema. Tinha muita coisa de laboratório, decorei toda aquela tabela periódica, porque quem tinha que estudar Química tinha que estudar mais Química. Não achava ruim não, achava tudo bem. Enfim, então fui estudar nessa outra escola, não sei se melhorou meu ambiente, porque eu diria pra você que... Eu tenho uma amiga, que é uma grande amiga minha, uma amiga muito do coração, muito íntima, até hoje. Só ela. Das outras escolas não têm nada que sobrou, e desse novo ambiente que também foi uma preocupação da minha mãe, tem uma amiga, Silvana, que hoje mora em Niterói, casou, foi morar lá, mas é uma amiga muito querida, assim, a gente tem vidas talvez muito diferentes, tá, mas a gente teve uma adolescência muito próxima, ‘muito junta’, muito gostosa, muito boa, no sentido da parceria com ela, mas desse novo ambiente é ela que eu tenho até hoje, não tem mais. Por exemplo, como minhas filhas têm o Ensino Médio delas, ou mesmo do Ensino Fundamental II, né, e eu sei que são amigas que vão durar bastante, tem bastante identidade, é tudo muito diferente. Então, minha história nas escolas não é muito gostosa, eu não lembro com grande amor, tá. E no Ginásio, nessa minha escola pública eu tenho muitas boas memórias, eu tenho boas memórias, tem mais boas memórias do que pânicos.

R – Em relação a essas suas duas últimas escolas, tem algum professor ou professora que tenha te marcado? E também eu queria saber como foi essa diferença, de ir pra uma escola particular, depois pública, depois particular, se teve... Se você sentiu grandes diferenças.

P1 – Eu acho que assim, pequena que eu tive em escolas particulares, eu não tenho uma memória gostosa, mas era isso, era meu ingresso neste universo, e ele foi um ingresso difícil pra mim. Eu não saberia dizer difícil pelo quê, eu digo que eu tinha medo, minha sensação era essa. A minha mãe não sei o que achava, acho que ela dizia isso: “É tímida”, mas eu acho que eu tinha medo. É... Na escola pública que eu fiz de fato o Fundamental I e o Fundamental II inteiro, eu não sei em que ano exatamente eu cheguei, eu tenho uma lembrança mais gostosa, eu tenho uma lembrança de coisa assim, de um grupo maior, uma coisa menos... Como se eu tivesse menos em evidência, como se eu tivesse mais possibilidades, o espaço da escola era muito melhor, então eu sinto assim, falando aqui com você, a minha sensação é de mais oxigênio. Tinha atividades com mais gente, por exemplo, sabe assim, tipo a festa junina das escolas eram grandiosas, e aquela festa que é dos seus amigos, e o correio elegante, as barraquinhas e dançar a quadrilha eram interessantes, quem é o seu par, e que você vai passar um tempo ensaiando, isso tudo era muito... Eu tenho memória disso, de ter muito prazer com tudo isso, então a escola pública é uma escola com mais amplitudes, de gente, de espaço, de possibilidades de eventos maiores, então é como se eu tivesse mais espaço pra ser, então eu tenho uma memória muito agradável. E na escola particular que eu vou depois, que era o Arquidiocesano, ali na Domingos de Morais, acho que é mais pra Ana Rosa, assim Santa Cruz, estação Santa Cruz do metrô hoje. Era uma escola de elite, assim, os meus pais tinham sempre um dinheiro que era um dinheiro mediano, tá, então pensa, meu pai que sustentava todos nós, sustentava seis pessoas, mas naquela época dava. Meu pai foi também gerente de banco, veja, ele não tinha ensino superior, era segundo grau, mas tudo naquela época cabia de outros jeitos, tá. Então meus pais viveram com dificuldade financeira por bastante tempo e depois ficaram médio e depois meu pai ficou mais bacaninha inclusive, tá, então, estudar na escola particular era um investimento, só eu fui, mas eu quero dizer que as pessoas que tavam lá não tinham um dinheiro parecido com o meu, então eu me sentia também um pouquinho menos à vontade, mas era pouquinho. Eu também fui muito feliz, também era uma escola enorme. Já naquela época tinha que rezar, tinha aula de religião, e eu acho que eu abandonei a coisa da religião aos meus 14 anos, exatamente no Ensino Médio, quando eu entro nessa escola cristã-religiosa, porque eu fui criada nesse ambiente da minha mãe, minha mãe é bastante... Não sei o que, mas bastante religiosa, vou chamar assim, não sei como eu dou esse nome. É... E eu fui criada também indo à igreja aos domingos, fiz catecismo, fiz primeira comunhão, não fiz crisma porque aí eu já tava nessa parte que eu tava abandonando, que não foi fácil, não é fácil abandonar isso dentro da família, mas tinha essa coisa, desse orgulho que a gente tinha naquela época de vestir o uniforme da escola... Tinha uma coisa que toda sexta-feira a gente se juntava no pátio, cantava o Hino Nacional, eu achava muito linda essa coisa, hoje eu faria grandes críticas, tá [risos]. Na época foi gostoso, era uma escola muito bonita, majestosa, cheia de arcos, um pátio interno, imagina essa coisa... Prédio bem antigo onde moravam padres lá... Era chique, grandioso. Não foi ruim não, foi bom. Mas não foi melhor do que na minha escola pública, tá, não foi mesmo.

R – E quando você já estava no Ensino Médio, já se formando, que que você gostava de fazer? Que lugares você frequentava, o que você costumava fazer no seu tempo livre?

P1 – Olha, essa é uma época que eu tenho talvez menos memória, tá. Durante o Ensino Médio, então 14, 15, 16, 17 anos, eu acho que uma coisa que a gente fazia muito era ficar junto. As amigas ficavam juntas. Eu nem tinha dinheiro pra fazer grandes coisas na minha época de adolescente, é que é muito difícil pros jovens de hoje imaginarem o que era... Eu convivo com os jovens, mas eu vivi numa época muito diferente, por exemplo, a primeira lanchonete, uma única na cidade São Paulo, que chamava Nilareiras, era lá na 23 de Maio, ela foi inaugurada nessa época, então não era que você vai num lugar tomar sorvete, entendeu, você vai talvez à sorveteria do bairro. Então essa oferta de coisas para badalar, vou chamar, não tô dizendo balada, mas para badalar, era muito menos. Então o que que tinha? Tinha a rua e tinham as pessoas. Também nessa minha época a rua Augusta foi interditada de passar carro e foi acarpetada. Pode imaginar, a rua Augusta acarpetada? E a gente não era... Não era paquerar de carro, era caminhar na rua Augusta, pra esse flerte todo, pra essa coisa que a adolescência pulsa, sua, e etc, então o que que tinha na adolescência pra fazer? Essas saídas. E acho que era uma coisa que também a gente buscava muito. Eu fazia Panamericana de Artes, Inglês, o Teatro da escola, era muito uma convivência pessoal, isso era muito intenso, era assim que você se divertia. Não sei se tinha festa pra ir, você ir badalar, não tinha os bares da Vila Madalena, não tinha uma Vila Madalena, entende, não tinha isto. Eventualmente festa nas casas das pessoas, não sei quem que tem cacife e energia pra fazer uma festa e você ser convidada, festa talvez, mas era muito uma coisa pessoal: a festa de aniversário da fulana você podia fazer. Esta minha amiga Silvana, que era minha amiga que foi muito parceira desse tempo, ela tinha um apartamentinho no Guarujá, então a gente foi muitas vezes pra lá, muitas vezes, que pra mim foi grande. Eu sozinha viajar? Foi um parto dentro da minha casa, poder ir só com a minha amiga, mas era uma amiga que a minha mãe conhecia a mãe, as outras filhas, etc, etc. O pai dela era falecido, então tinha um acompanhamento. Então ir para o Guarujá só com a minha amiga também foi um feito que a gente fez algumas vezes. Isso são grandes lembranças da minha adolescência. Acho que cinema também era uma coisa grandiosa, né. Eu vou falar uma coisa um pouquinho antes, com meus 12 anos, então a gente tá falando do Ensino Médio, mas 12 anos não tá muito distante. Eu tinha uma tia minha que ia chegar de Recife, morava em Recife, a gente fez roupas novas pra ir no aeroporto recebê-la, estou falando isso pra dar uma ideia, e eu não tinha uma família que era da aristocracia, tá, muito pelo contrário, eles eram migrantes nordestinos e amargaram um pouco esta dificuldade de chegar aqui, de estar aqui. Então, o jeito de se divertir eu acho que era esta... A presença, eu diria que era muito da presença,então era importante ter amigos, encontrar os amigos na casa de fulaninho, todo mundo vai fazer uma coisa na casa de fulaninho, bailinho da garagem, eu sou da época de bailinho na garagem, então era muito gostoso, aquela oportunidade de dançar abraçadinho, e não é namorado e nem vai ser, sabe, enfim. Então tenho muito essa lembrança, acho que a minha adolescência era isto. E algum tempo depois eu começo a acompanhar a turma da minha irmã. Porque era isso, entre meus 15, 16, 17, também eu já fiz viagens com ela, na turma da Universidade. Aí já é outra pegada, mas foi bem, acompanhei direitinho.

R – E nessa época, vocês tinham relações amorosas, vocês ficavam? Como era isso?

P1 – Eu acho que a gente não ficava. Acho que pra beijar na boca era uma coisa grande, você não beijava gratuitamente, vou falar do meu universo. Não sei como era todo mundo, eu me achava moderna, tá. Eu vou falar do meu contexto, eu me achava moderna mas não tinha isso de beijar gratuitamente, beijar era um grande passo. Então o flerte era isso, era olhar, era saber que fulano gosta de fulano, tinha muita trancetação de amiga da amiga, amiga não sei o que fala pra outra amiga, amiga fala pro fulaninho, ajeita o encontro, “Eu sei que ele gosta dela”. Era essa trancetação, as meninas aqui, os meninos aqui, era isso. Mas pras vias de fato, não era tão gratuito, nem um pouquinho, pelo menos não da minha parte no universo que eu vi. É... Meu primeiro namorado foi irmão de uma amiga minha dessa última escola, do Arquidiocesano. Eu até tive um namoradinho antes, que eu tinha sei lá, 13 anos, e aí o jeito de eu namorar, ele era também irmão de uma amiga, uma amiga da escola, o jeito de eu namorar era ficar na casa dele, ou então ele ficar na minha casa assistindo televisão de mão dada, etc. Aí eu lembro dele ter me chamado pra ir no cinema e minha mãe disse “De jeito nenhum”, e aí eu não podia fazer nada com ele, então eu desmanchei esse namoro, porque eu falei “Ah, é um namorado que eu não posso fazer nada, pra que que eu vou ter esse negócio...”. Eu lembro muito disso: “Namorado que eu não posso fazer nada, não serve pra eu passear, é só pra ficar na casa dele de mão dada, etc”. Não tinha esse apelo todo, então eu desmanchei o namoro por telefone, e com vergonha, quem desmanchou se passando por mim foi minha amiga, de vergonha e medo, tá, pra você ver o pânico da pessoa! Então, isso eu ‘tô’ traduzindo um pouco como eram as pessoas, ou pelo menos como era eu. Então naquela época era muito... Não era tão gratuito essa... Eu vou chamar de ‘pegação’ num bom sentido, tá, essa disposição do encontro dos corpos, das experimentações, era tudo bastante difícil. Pra você ter uma aproximação física, você era meio namorado. Eu vou chamar essa disposição mais sexualizada pra mim, é nos meus 18 anos, no meu ingresso 17, 18 anos, saindo da escola. Só que eu namorei esse meu namorado que era irmão da minha amiga por 4 anos, então dos meus 17 aos 21 eu tive um namorado importante, que

foi a primeira pessoa com quem eu tive uma relação sexual, é... Era uma pessoa muito querida, eu era amiga da irmã dele, era amiga da família inteira, convivia muito lá dentro, era amiga dos irmãos dele, eu era uma pessoa muito querida pelos pais, pelos irmãos, foi uma pessoa muito bacana, e a gente rompeu esse namoro, não porque a gente se encheu um do outro, exatamente porque a explosão de conhecer todos os outros foi grande, e na época que era isso, eu com 21 anos, aí eu já vivia outro grupo e outro momento, tá, momento de movimento político estudantil muito forte, muito presente na cena política. E aí eu era de uma tendência estudantil que atuava, que militava, e isso abriu muito o universo, então era isso, beijar todo mundo, estar com qualquer um, ‘tá’ namorando mas eu também posso ir dormir com aquele sujeito, eu não to ‘“desnamorando” ele nem ‘tô’ escondendo dele, então essa confusão a gente não aguentou, por exemplo, foi por isso que a gente rompeu. Talvez eu tenha exagerado, talvez a gente não soubesse medir direito as coisas, a gente rompeu exatamente por isso. A gente namorava, eu estava também apaixonada por outro cara, todo mundo sabendo tudo, um cara que também era casado, que a mulher dele estava com outro sujeito, todo mundo sabendo tudo, e numa festa que eu e esse meu namorado demos na casa dele, que era uma casa enorme, eu estava com outro fulano, talvez tenha sido tudo demais, porque não era só que eu estava com outra pessoa, eu estava dentro da casa, da cena familiar, sabe, ainda que a festa fosse para os amigos, mas... Pensando nisso hoje tá, então a gente rompeu por isto, mas eu não queria ter rompido o namoro, por exemplo, não queria, amarguei um sofrimento... Então tem esse pulo, tá, tem esse pulo de um momento meio contido, e depois num ingresso já na universidade, e nessa cena política do movimento estudantil, e isto abre muito meu modo de ver a vida e do meu modo de experimentar a vida.

R – E você lembra dessa época com o namorado com o qual você tinha mais intimidade, de conversar ou com seus familiares, ou com amigos, ou com ele mesmo, sobre prevenção de gravidez, ou doenças sexualmente transmissíveis, vocês conversavam sobre isso?

P1 – É... Então, eu acho que foi uma pessoa com quem eu tive muita intimidade mas, eu volto a dizer, eu estou sempre falando, claro, do meu universo, né, da onde eu estava inserida. Mas não era uma conversa que tinha, não por constrangimento, por falta de universo, não é uma conversa que... Não está no escaninho esse tema, não é que eu não vou pegar porque eu tenho vergonha, não tá na lista, naquele dicionário não tem isto, então não sei se eu era muito desinformada e se a minha categoria era mais informada que eu, mas acho que não. E mesmo na minha família, na minha casa não tinha isso, e aí talvez tenha sido uma particularidade da minha família, não tinha nenhuma conversa sobre isto. Mesmo pra entender o que era menstruação, eu lembro que eu tive aula na escola, veja só, escola pública bem bacana já teve essa aula, que hoje em dia a gente tá discutindo educação sexual na escola, naquela época teve assim, eu lembro que era uma promoção do modes, que era uma marca de absorvente e foi fazer umas palestras pras meninas, contar o que era menstruação, então eu soube bem direitinho lá na escola. Pela minha mãe eu só soube quando eu fiquei menstruada, mas eu já sabia, nem contei pra ela que eu sabia, e eu nem lembro o que ela me contou, que eu já sabia tão mais, enfim. Então assim foi, e quando eu vou namorar, eu tinha algumas ideias, claro que a gente tinha noção, mas essa conversa não existia, então assim, prevenção de doenças, não me lembro de ser nem um medo e nenhuma ocupação nossa. E ele na época... E a gente pra fazer sexo, dizer “Bom, nós vamos transar, eu sou virgem, então vamos...”, a gente combinou, a gente amadureceu a ideia, a gente programou, a gente fez uma viagem, a gente foi viajando de São Paulo até o Rio e a gente ia acampar um lugar aqui, um lugar ali, pra fazer isso, longe de São Paulo, longe de casa, não foi uma rapidinha num lugarzinho correndo, “Ó, sem querer, não deu certo”, foi programado. Aí eu lembro que eu conversei com a minha irmã: “Sul, vou fazer sexo, vou transar com o Valério, como é que é que eu tenho que fazer? Eu tenho que fazer alguma coisa antes? Eu tenho que fazer alguma coisa depois?...” E ele tinha para ele uma informação de que ele tinha... Ele era praticamente estéril, ele acompanhava isso, ele tinha o exame que chama-se espermograma e que dizia isso “Praticamente estéril”, então a gente não tinha nem essa preocupação de ficar grávida, olha só. A gente se preparou, tudo direitinho, fomos viajar, foi muito bom, paramos num acampamento que eu não lembro onde era, precisaria perguntar pra alguém, acho que pra ele. É... Ficamos acampados um tempo, foi tudo muito bom, ai, se eu lembro da primeira relação, eu não lembro direito, a gente ficou assim, dentro daquela barraca muito tempo… Fomos, chegamos até Teresópolis, fomos pro Rio, ‘pra’ Teresópolis, que ele tinha amigos, e voltamos. Só que eu volto dessa viagem grávida, olha só. E isso foi um marco muito... Eu vou chamar de traumático, tá, eu consigo olhar hoje e contar essa história a posteriori, né. Eu volto dessa viagem grávida, então é isso, meu ingresso não foi na minha primeira relação sexual, mas o meu ingresso na vida sexual, eu volto grávida. E foi um grande impacto, assim né, eu lembro também ainda, lembro da roupa que eu ‘tava’, eu voltando do médico de posse do exame positivo, grávida, eu entrando na casa dele, o portão estava aberto. Eu me lembro assim, eu contando pra ele, aquele instante do contar também foi uma coisa muito dura porque pra ele foi alguma felicidade, percebe um cara que dizia que era estéril e engravidou a pessoa, não tá bacana? Tá bacana! E pra mim aquela fração de desencontro foi também uma outra ‘trauletadinha’, assim, né. Então foi complicado, não horrível, porque era de fato uma pessoa com quem eu tinha bastante aproximação, muita confiança, a gente estava juntos não fazia um ano. A gente tinha começado a namorar em dezembro, eu tinha 17 anos, fiz 18 em maio do ano seguinte, e essa gravidez é em junho, julho, acho que julho talvez, mês de férias. Tinha acabado de fazer 18 anos, tinha essa de “Não sou menor de idade”, já ajudava um pouco. E na época, a coisa do aborto, assim como “Nossa, vocês conversavam, vocês se pegavam...” tudo era menos, gente, tudo era muito menos. Então mesmo a minha irmã que era quatro anos mais velha, com esse povo todo da militância, a gente não conhecia ninguém que tivesse feito aborto, que pudesse dar uma indicação, e aí... Então, mas tinha muita gente engajada, tá, então fui na ginecologista engajada que me atendeu, e foi esta pessoa, foi um cara inclusive, doutor, nem sei se vou dizer o nome dele, me indicou uma pessoa, mas me indicou assim ó, escreveu num papel, me deu, “Olha, é como eu posso te ajudar”. Era uma conversa amistosa mas ele não ‘tava’ me receitando, né, ele não podia isso. Era uma clínica de aborto na João Moura, gente, aqui ó, Pinheiros. Era uma casinha, eu já até tentei depois lembrar onde que era, acho que não existe mais, era uma casinha. Então fomos eu, a minha irmã, meu namorado, foi tudo lindo, o cara era um médico, também não sei se eu digo o nome dele, mas talvez melhor também não dizer, foi muito afetuoso comigo. A experiência é toda muito agradável, tá. Da ida ao ginecologista, da experiência do aborto, de voltar pra casa, eu lembro que tudo deu certo, que era assim, a minha mãe que nunca viajava de alguma maneira não estava na minha casa não sei porquê, mas também era assim, era um dia mais quietinha e depois tava bem. Foi uma experiência toda muito feliz, tá, e não teve entre mim e meu namorado a ideia de que “Ah, será que a gente vai ter o bebê?” Também não teve esse tipo de desencontro, o desencontro que eu falo, que foi uma fração de segundo, era o meu desespero, a minha decepção “Que eu estou grávida” e a felicidade dele. E que é muito compreensível, né, então esse foi o meu primeiro aborto, e isso marcou minha vida sexual, eu quero dizer, porque eu acho que eu não fiquei mais bacana depois disso. A minha vida sexual com este namorado nunca mais seguiu gostosa, por exemplo. E aí eu vou atravessar um pouco, falar da discussão feminista hoje em dia como a gente vai ressignificando a nossa história, né, e aí eu posso dizer também isso, ressignificando a minha história com a discussão que existe hoje sobre a mulher, que é assim, eu me mantive ativa sexualmente com ele porque a gente já tinha iniciado essa vida, então era comigo que ele faria sexo, então eu tinha que ter relações sexuais com ele porque a gente já tinha feito isso, então era comigo. Não é que... Se antes ele tinha outras, poderia ser prostituta, por exemplo. Enfim, então não foi bom e na minha cabeça eu “tinha que”, nem era mulher dele, não tava casada, tudo mais mas eu “tinha que”, e pra ele também, veja, então se a gente vai re-olhar a vida, né a gente julgaria ela toda diferente. Era sexo consentido? Ah, era. Era consentido sobre que parâmetros? Parâmetros ruins, entendeu, porque eu não fui cuidar disso, por exemplo, “então ‘vamo’ cuidar: o que que não tá bom?” Prazer? Difícil. Era bem ruim, era ruim, era mesmo porque “tinha que”. Eu precisava satisfazer o desejo dele, não o meu. E assim foi, muito tempo, quatro anos.

R – E após essa experiência, a partir desse evento você começou a ter um pouco mais de cuidado? Essa discussão de preservativos ou qualquer outro método contraceptivo virou algo maior e ocupou um espaço maior na sua vida ou não?

P1 – Eu vou te dizer que eu não me lembro. O fato de você fazer essa pergunta me chama não atenção de eu não saber como é que a gente seguiu. Eu devo supor que devia ser camisinha, porque eu nunca tomei pílula. Então eu ‘tô’ supondo que talvez fosse tabelinha, talvez isso, né, no momento... Miolo da maior fertilidade não, ou talvez coito interrompido, mas eu to falando teoricamente. Se você me perguntar, a minha memória não me diz como era. Talvez fosse um sexo mais raro, talvez um pouquinho de cada coisa porque também na minha época de juventude, camisinha não era uma coisa tão... Eu não quero dizer que não era bem vista, ela era muito pouco manipulada pelos meninos, entende... Eles não tinham... Não é que eles não queriam ou deixavam de querer,eu não sei contar a história deles, eles que precisariam contar,mas eu acho que também não era uma... Como é que se fala, um instrumento que eles soubessem manejar muito, não era somente se sabia manejar ou não, sabe, ele não era tão fluido como entra uma camisinha numa relação sexual hoje em dia, sabe, aquela época não era, não por ideologia "Ai não vou fazer isso... pirulito embalado” ou sei lá que mais coisa. Acho que não era por isto, era por uma falta de proximidade total com a questão. Então, se perguntar “Quais foram os métodos que vocês usaram, já que já tinha ficado grávida uma vez”, não sei dizer. Tô dando por dedução. Não foi pílula, porque eu nunca tomei na minha vida até hoje.

R – E Denise, como foi o ingresso na faculdade, como você escolheu seu curso e essa época de movimento estudantil, várias experiências novas...

P1 – Sim, então, é... Eu na verdade... Eu me formei, na época era... fiz o vestibular, tinha outros... Eram outras divisões, diferente da que tem hoje, tá. Eu prestei o meu primeiro vestibular, eu prestei para Engenharia. Então eu fiz uma coisa que chamava MAPOFEI, era Mauá Poli FEI, era um exame específico para engenharia, eu não lembro se já tinha Fuvest desse jeito, não me lembro. Mas eu terminei o Ensino Médio, fiz, até pra experimentar como era, mas fiz esse MAPOFEI na ideia que eu queria fazer Engenharia, mas eu posso dizer isso, já era na época, tá, mas eu digo hoje a posteriori mas na época também era essa ideia, eu queria uma profissão masculina. Não vou explorar esse tema, mas eu lembro que eu queria isso, tá. E aí... Nossa... Não entrei, aí eu peguei, fui fazer cursinho Anglolatino e fiz pra Biológicas, tá. Eu já tinha feito Química, então agora vou fazer biológicas, não que eu soubesse que que eu queria, tá. “Ai acho que não é Engenharia mesmo... vamos fazer Biológicas”, você vai aumentando seu ‘coiso’... Aí no meio desse cursinho, uma amiga minha, a irmã desse meu namorado, que era meu namorado ainda, tá, eu tinha 18 anos... eu tinha 17 anos, ela falou assim “Dê, eu vou fazer vestibular pra Psicologia aqui no Objetivo”, que era do lado da nossa casa, que depois virou UNIP, que é a Universidade Paulista. Mas na época era Faculdades Objetivo, ali na Luiz Góis, perto dessa avenida onde era um córrego. “Você não quer ir fazer também?”, respondi: “Ah, vou”. Fui. No meio do ano, ainda ia chegar até o final do ano e ia pensar onde é que eu ia escolher a minha carreira, que eu já tava tão... Fui fazer, e claro, passei, eu acho que passam todos os que fizeram a prova, eu não sei dizer, mas eu acho que a mesma lista que estava na prova era a lista que tava dos aprovados, não sei te contar, mas acho que sim, tá, inclusive era uma faculdade que estava se iniciando. E, vou te falar, comecei a fazer. Não tinha na minha... Hoje eu falo pra minha irmã “Sul, ninguém foi falar: Dê, faz vestibular no final do ano pra USP (Universidade de São Paulo), faz pra PUC (Pontifícia Universidade Católica), faz...’” Não... Eu não fiz vestibular pra mais nada, nem no final do ano. E lá segui. Não tinha na minha cabeça que marca isso faria no meu currículo: “Ah, você fez uma faculdade? Ah, qual?” eu respondia “Faculdades Objetivo”, “Ah, ‘cê não fez PUC ?...” Não tinha essa discussão pra mim. Hoje eu falo “Ninguém me falou nada... Ninguém na minha casa, ninguém mais experiente...” Meus pais não estavam inseridos nesse universo, eram migrantes nordestinos em São Paulo, eles não tinham essa noção. Quem poderia alguma coisa teria sido a minha irmã, que era mais velha e já ‘tava’ inserida nesse universo. Mas aí, pensa, ela não tá cuidando de mim, e ela ‘tá’ lá, mergulhada no que é a vida universitária, entende? Então foi assim o meu ingresso. Agora, eu fui muito feliz na minha... Na minha escolha, assim, eu sempre gostei muito de tudo que eu estudei. Eu sou muito feliz com esta escolha que eu fiz, né, eu acho que tem um peso, e eu posso fazer a crítica, não vou também abrir aqui isto, mas fazer a crítica do que que são... Do que é o peso das escolas públicas, do que que é o selo USP, do que que é o selo de outras coisas, e que te selam, assim como eu disse lá: “Tímida, Faculdade Objetivo”. Isso vai matando muito as pessoas, mata pedaços delas, né, então você tem que ter muita consciência, força e reflexão ‘pra’ você seguir adiante. Mas, enfim, fui muito feliz com a minha escolha, e digo pra você, hoje, me entendendo como eu sou hoje, eu seria feliz em tantas outras carreiras, como qualquer pessoa, acho que pode ser feliz numa carreira e noutra. Não é em qualquer uma, mas em mais do que uma certamente, tá. E acho que atualmente, né, nos últimos tantos anos, isso se desenvolveu muito com os mestrados e doutorados, em que você faz um mestrado numa coisa, faz a sua formação inicial de um jeito, e depois você amplia e deriva e transforma. Mas isso não era naquela época, tá. Mas eu sou muito feliz com isso que eu fiz, e na época do Objetivo, no final do curso, que eram cinco anos, ‘cê’ tinha que escolher se você queria se aprofundar na área clínica, na área de educação ou na área de hospital, e eu escolhi clínica, mas eu fui trabalhar na área de educação. Então eu fui sempre me movimentando, mas muito feliz, né, acho que eu sempre fui muito feliz. Eu não lembro se a sua pergunta... Ah, era movimento estudantil. E na faculdade toda eu era do movimento estudantil, era do Centro Acadêmico, era representante de classe, mas eu fazia parte de uma tendência estudantil que chamava ‘Liberdade e Luta’, que recentemente teve um documentário que inclusive ganhou, eu nem achei tão bom como documentário, mas ganhou ele lá, não sei quais eram os concorrentes, e que traduz, eu tenho muitas críticas ao documentário, que eu não acho que traduz exatamente aquilo que foi, mas conta bastante, né, que era uma organização trotskista, todas as tendências estudantis elas eram suportadas por algum partido clandestino, por alguma organização política clandestina, e acho que isso ampliou muito a minha vida. Eu acho que a minha vida, minha personalidade, é marcada por essa participação, né, de trabalhar em prol de um mundo que eu acredito que tem que ser diferente, então aquilo foi gestado naquela época, e o grupo de pessoas que estavam participando dessa luta toda eram pessoas que tinham uma vida, uma pensamento generoso de mão sobre muitas coisas né. Então por exemplo, a ideia ‘amor livre’ se cunhava pra mim naquela época, a gente se cumprimentava com beijo na boca, por exemplo, selinho, que você chamaria de selinho, né. Então ‘cê’ ia em festas que podia ter 300 pessoas, você ia se sentir absolutamente em casa, porque ‘cê’ sabia que qualquer daquelas pessoas eram de confiança extrema, você podia voltar ‘pra’ casa com qualquer pessoa. Essa ideia de você tá vulnerável, de você estar à mercê, não existia. Imagina você estar num lugar desse, que você pode dançar, beber, ou o que quer que fosse, que você está plena. Então eu vivi isto e acho que isso também marca quem eu sou. Então participar de passeata, vender jornal na rua com medo de que se eu fosse pega, e eu... O medo é uma coisa que me atravessa, tá, é isso que eu digo: eu não era tímida, eu era apavorada. Imagina fazer tudo isso, vender jornal no Belas Artes, jornal clandestino, né. Então, fiz essas coisas, e isso... Fazer estudos revolucionários, a gente pra entrar nessa organização tinha que fazer grupo de estudos revolucionários, que era GR, passava por estudar essas coisas pra depois dizer se você quer. Reuniões clandestinas, a gente tinha nome de guerra, o meu era Rebeca, por exemplo. Fazia reuniões muito na PUC porque eu era da parte de escolas particulares. Esta é uma das críticas que eu faço ao documentário, o documentário ele tá muito circunscrito à USP, e eu acho que não era só isso, as pessoas que ficaram, que foram depor ali, que foram fazer seus depoimentos, elas têm uma coisa muito circunscrita, eu acho que falta abertura, não é que eu discorde de nada que tá lá, eu acho que falta pedaços importantes, não pedaços pequenos. Mas então isso foi muito importante, foi muito formativo pra mim, pra quem eu sou, né. Enfim, o pai das minhas filhas é fruto deste universo.

R – E como foi o desenrolar desse período, como foi entrar no seu primeiro trabalho? Você lembra?

P1 – Eu lembro. Eu lembro de me formar e ser um pânico, né, porque você para... E acho que é um pânico pra todo mundo quando você não é mais estudante, e no dia seguinte você não é nada mais, a menos que você já esteja trabalhando, tá, no dia seguinte você não é mais... “Que que você é?” “Nada, não sou nada”. Porque as pessoas se definem assim: “Ah, como é seu nome?” / “Denise” / “O que você faz?”. É uma pergunta, é ato contínuo, gente, ato contínuo ou você é definido pelo que você estuda, e hoje em dia há essa discussão “Eu estou estudante”, né. Essa discussão que se faz toda hoje, eu acho que hoje tem uma profundidade de se apropriar das próprias falas, inclusive: “Eu estou estudante, não sou estudante, eu estou assim, eu não sou assim”. Você parar de ser definida pelo que você trabalha, pelo que você estuda é uma dificuldade. Se você falar assim: “Vai se apresentar em algum lugar e não diga nada nem onde você está, nem o que você faz, diga de você”. Você se perde, você fica um pouco apavorada, inclusive. Difícil você chegar numa pessoa e não querer... Não é enquadrar a pessoa, não acho ruim, você ficar querendo dar uma organizada: “Bem, como é que eu olho pra esse sujeito, como é que eu olho pra esta pessoa, né, ah, ela é desta área...” Você não pergunta “O que que você faz no seu fim de semana?”, que seria até invasivo, né, vamos dizer, mas enfim, uma outra conversa. Então eu lembro que imediatamente, assim, “Precisa fazer uma coisa”, eu fui trabalhar numa loja de roupas, porque eu tinha uma amiga, a irmã dela era dona de uma loja de roupas, eu fui vender roupa. Acho que eu fiquei um mês ou dois lá, achei tudo louco, não podia sentar, eu lembro muito disso, como assim não pode sentar?! Chegava com os pés doendo. E logo eu fui fazer uma seleção para trabalhar nas creches da USP, como professora, porque professora de educação infantil naquela época também era sem definição profissional, tá. Então fui trabalhar como professora nas creches da USP, que é onde eu estou até hoje, eu trabalhei um ano como professora e no ano seguinte fui ser psicóloga deste lugar. Esta rede de creches se amplia, ela era uma creche e vira uma rede, uma rede de cinco creches e aí eu sou também chamada pra ser psicóloga da rede. Então eu fiquei, assim, um ano com a professora, uns dois anos como psicóloga da creche, e já no terceiro ou quarto ano era psicóloga desta rede, que tinha um grupo supervisor, tinha uma pedagoga, uma enfermeira, uma nutricionista, uma psicóloga (que era eu a psicóloga), uma diretora... que é onde eu estou até hoje, né. Aí tem uma história muito grande, hoje em dia as creches estão acabando, a universidade está acabando, e muitas coisas estão acabando, mas é onde eu estou até hoje. Então, com pouco tempo para terminar a minha formação, eu acabei ingressando aí, e aí eu fui fazendo muitos cursos, eu nunca tive vontade de voltar pra academia no sentido do mestrado, de um doutorado. Por exemplo, eu fiz formações no Sedes, que era o Sede Sapiens, que é ali em Perdizes, que é perto de onde eu moro hoje, que tem uma formação, ainda que ela seja bastante escolar, tá, ela é menos livre, mas ela é menos acadêmica, ou o acadêmico que a universidade tem, e me agrada mais. Aí isso já é uma escolha minha. Então eu fiz várias especializações, lá e fora de lá, eu estudei coisas da educação fora de lá, mas depois eu fui tentando mesmo voltar pra uma coisa que eu gosto bastante, que é a Psicologia e é a Psicanálise. Então fiz minha formação lá, eu atendi muito tempo no consultório lá, atendi uns cinco anos dentro da clínica do Sedes, e atendi no consultório particular por uns 10 anos. Então quando você pergunta “sua profissão”, eu assino psicóloga-psicanalista, tá, é que hoje em dia eu não faço mais atendimento, mas eu não acho que psicanálise não é só um modo de você trabalhar, não é só uma técnica, mas é um modo de pensar, e acho que eu me guio por ele. Então até hoje eu faço isso, o meu ingresso, ele foi assim, muito de pronto, acho que eu fiquei perdida uns dois ou três meses, e aí já ingressei desse jeito e foi uma boa formação. Foi muito interessante entrar como professora de crianças de quatro anos de idade, que eram as mais velhas da creche na época, tá. É um universo de trabalho.

R – E como foi essa experiência? Porque você falou que você tava indo mais pra área de Psicologia Clínica, né, daí você entrou na área da Educação e foi dar aula pra crianças pequenas, como que foi?

P1 – Então, eu cheguei na creche e as crianças de quatro anos elas eram as primeiras crianças que tinham ingressado nessa creche, que foi inaugurada em 1982, inaugurou com estes bebês, que em 1986 tinham quatro anos de idade, tinham cinco anos de idade. Na verdade elas entraram com um aninho, em 1985 que eu entro na USP, então a creche existia há três anos, essas crianças tinham quatro, elas seriam as primeiras crianças que da turma que se formou ali, tá. Então fui trabalhar com este grupo, que era um grupo muito querido, era a pérola, eram as crianças que inauguraram, que abriram, que ‘tavam’ lá há mais tempo, as famílias eram todas muito conectadas com todo o grupo gestor, etc. E tinha uma professora, eu fui fazer parceria com ela, então eram duas professoras para esse grupo de crianças, então fui fazer parceria com ela, que era uma professora experiente, eu não. Eu diria que eu fui sempre ‘meio mais ou menos’, como professora ‘meio mais ou menos’. E com muito pouco tempo... e acho difícil, achava que era muito difícil, achava que era difícil coordenar todas as rotinas, eu lembro muito assim: “Nossa, hora de dormir, gente, fazer a criança que não quer dormir, dormir!” Era quase um pesadelo, tá. E essas são discussões que dentro da educação infantil você vai fazer, você vai fazendo, né, que aí dentro dessa minha carreira, eu acho que eu sou mais capaz, acho que isso foi se revelando muito fortemente, de pensar aquelas relações, de pensar aquilo tudo que tá acontecendo. Então se a gente pensar que o pensamento clínico é muito... Eu acho ele muito amplo, porque pensamento clínico não é pra tratar necessariamente doenças, mas ele é pra você tratar das cenas que acontecem,

das relações que estão ali em ebulição, e acho que esse olhar pra mim era mais fácil de ter, tá, por isso acho que eu rápido mudo pra outra cena, porque eu fui me apresentando como essa pessoa que faz esta leitura e não aquela, mas foi super gostoso. Esta pessoa que eu fui fazer parceria, né, de professora, é uma grande amiga minha até hoje. A gente trabalhou juntas uns dois anos, tá, aí depois ela já saiu de lá e tal, mas ela é muito muito muito muito grande amiga minha, né, então acho que eu fui me revelando na minha profissão. E aí assim, claro, eu estudei muitas coisas da área pedagógica, estudei muito Piaget, que é o viés psicológico, mas pensando na educação. É só... Vou fazer só uma vinhetinha pequena: e a educação infantil, ela era uma coisa que hoje eu acho que ela saiu bastante do lugar, muito muito muito. Se tem uma área profissional que saiu do lugar foi essa, ela se profissionalizou, ela se legalizou, ela tem leis que a coordenam muito melhor, etc. Mas naquela época não era, então, por exemplo, a pedagogia na creche da USP ela era muito pouco importante, então o que que tinha lá muito forte? A Psicologia, que pra mim foi bacana numa certa perspectiva, né. A diretora era psicóloga, eu era psicóloga, então discutir um pouco qual é o conceito, que que a gente entende sobre uma família que está levando seu filho pela primeira vez pra fora de casa, que que é receber essa família, que que é receber essa criança. Então foi um lugar muito fértil, a creche é um lugar muito fértil ‘pra’ você poder pensar um modo de fazer educação infantil em que leva muito em consideração os sujeitos, e não as pedagogias, então foi muito bom, tanto que a gente trabalhou, assim muito tempo. E isso foi muito bom pra mim, muito muito muito, o que que era formar esses professores que, em geral, quem que era professor de educação infantil? Quem é estudante e quer um ‘bico’, eram essas as pessoas, e que acham que ok, que se dão bem com esse fazer, né, então eram pessoas de todos os jeitos, sabe. E nesse sentido, muito bacana, sabe, gente aberta, maluca, que tem todo tipo de ideia, gente da Arquitetura, da Física, da Psicologia, da Pedagogia, da Letras, era forte esse universo. Então você pegar aquele monte de jovens e tentar formular ali que havia um trabalho, né, foi muito bom, foi uma grande formação pra mim, tá, porque também eu não era tão mais velha assim, e foi uma grande formação inclusive ‘pra’ pensar o que que é educação infantil no sentido do ponto de vista dos sujeitos que estão ali interagindo: família, criança, profissionais, profissionais da educação, profissionais não da educação, porque alguém que limpa uma creche, se não tiver inserido dentro desse pensamento, vai achar que não é pra você comer direito, porque é pra comer limpando em baixo. Pra pegar um exemplo qualquer, né, e a gente diz que o universo da escola é exatamente o oposto da casa, não é pra ficar limpinho, é pra você poder comer do melhor jeito. Então eu poder pensar todos esses atores e saber como formar essas pessoas, foi muito bacana pra mim. Hoje a pedagogia tem uma presença muito forte, mas as relações que foram engendradas ali dentro, os alicerces sobre o que é esse universo dentro da USP é muito bacana, e eu faço parte dessa construção, assim, né, então foi assim. E aí, depois de um tempo, enfim, fiz a minha formação em psicanálise no Sedes e comecei a atender lá, e aí é muito difícil você não ir pro consultório, porque começa a haver demanda: “Preciso indicar, você não quer?” Tanto que, assim, meu primeiro paciente eu atendi no consultório de alguém emprestado, porque assim, “Olha, a pessoa quer já”, aí uma amiga: “Deixa eu atender no seu consultório?”. E dali eu fui fazendo o meu, enfim, fiquei 10 anos assim, mas faz uns quatro que eu interrompi porque eu quis, porque eu quero fazer outras coisas da minha vida, eu quero também sair da USP [risos].

R – E, Denise, nessa época que você entrou na creche da USP, você comentou que você já conhecia o pai das suas filhas. E aí, você já tava com ele? Como você conheceu? Foi na faculdade?

P1 – É assim, na faculdade eu me casei... me formei e me casei – ah, teve esse pedaço! – é, eu fiquei acho que um ano, e olha, é outra coisa apagada da minha vida, é mesmo um break assim, sabe um standby que ficou, eu fiquei um ano casada, eu casei em agosto e me separei em agosto do ano seguinte, tá. Acho que assim, eu me casei em agosto de 1982, que eu me formei no meio do ano porque eu entrei no meio do ano, lembra? Eu me formei no meio do ano, me casei com uma pessoa que era desse meu último ano, não era que foi da escola toda, desse último ano, eu me casei com uma pessoa que se chama Milton, e me separei um ano depois. Esse um ano, eu não sei o que aconteceu, nada, não sei nada o que aconteceu! Só sei que ficava lá com ele. Eu tenho uma sensação – é esquisito falar isso – mas eu tenho uma sensação de que eu entrei num mundo paralelo e um dia eu falei: “Gente, meu Deus, o que que eu to fazendo aqui?” Eu lembro de acordar e falar “Que que eu to fazendo aqui”, e falei “Nossa, eu preciso sair daqui”, e engendrei um jeito de ‘sair daqui’. Eu acho que era uma relação tumultuada, era uma relação que tinha muitas brigas, mas não eram brigas horrorosas, eram muitos desencontros, muitos ‘nada a ver’, eu acho, tá. É... E aí eu lembro, eu falei assim “Na próxima discussão eu vou falar ‘eu vou embora’”, aí eu já tinha na minha cabeça, quais eram as roupas que eu ia pegar, qual era a malinha que eu ia fazer, eu não tinha carro naquela época mas de vez em quando a gente emprestava o carro do meu pai ou da minha irmã, então eu já combinei que era um dia que eu ia estar com carro na porta, olha só, eu lembro... Essa cena eu lembro. É... Não sei se ele ouvisse isso o que seria, sabe, que ele existe ainda, que que seria, mas enfim. Eu lembro que foi se não foi exatamente assim, é esta a memória que eu tenho, que aí numa das nossas cenas eu falei “Então eu vou embora”, fui desse jeito: com aquela malinha, com aquele carro que tava na porta, fui pra casa da minha irmã que era casada na época, e aí pronto, aí eu me separei. Aí eu não sei mais, aí divórcio... Na verdade, na época que eu fiz isso, tinha que desquitar primeiro, depois de X anos, tá, então eu ‘tivesse’ casamentinho. Esse casamentinho ele marca, eu falo no diminutivo pelo tempo, mas ele cumpriu uma função, que eu também posso pensar nele olhando pra trás, tá. Embora moderna, amor livre militância política, organização clandestina, nome de guerra, sexo livre … Não consegui sair de casa sem me casar, veja. Então eu acho que eu só casei pra sair de casa. Aí foi desse jeito que eu saí de casa e me autorizei a ter prazer na relação sexual, juntando com aquela primeira parte que eu contei, tá, tinha isso, era muito bom, a minha vida sexual com ele era muito boa, também não sei se ele sabe disso. E acabou, mas era uma coisa maluca, tá, a pessoa é maluca, tudo estranho, e aí nem vale a pena. Assim, morava perto da casa dos meus pais, uma casinha alugada, nem eu nem ele trabalhávamos, quem sustentava a gente era o pai dele. É isso que eu quero dizer, assim, maluco porque ‘tava’ tudo fora do lugar. É... Na época de estudante eu fiz duas coisas pra ganhar dinheiro: eu dei aula particular e cuidei de bebê, baby sitter, então durante esse casamento eu cuidei muito de um garotinho, que era filho de militantes, tá, então tinha... Eu até viajei com esse menino, veja, tudo. Andava com ele, gente olha, a época... Pensa que eu tinha um fusca, eu ia buscar ele sozinha, punha ele aqui e ia dirigindo pra minha casa, não era proibido, tá. É pra vocês verem que época que eu sou, eu sou de antigamente! Enfim, então eu lembro disso, eu cuidava desse garoto, e o pai dele sustentava a gente, mas a gente lia, estudava, fazia nada, não sei, nem lembro, foi um ano assim, tá. E aí me separei e voltei pra minha vida mais normal, voltei pra casa dos pais, mas aí não é nunca igual, você não volta pro mesmo lugar, eu já era uma mulher que tinha sido casada, etc. Então, eu digo isso, talvez pudesse um dia explorar mais essa situação, mas eu para sair da minha casa precisei me casar, mas é da condição psíquica, tá, não é do universo real, não tem a ver com isto. Meu irmão,por exemplo, já tinha saído de casa, meu irmão mais novo, mas é menino, tá, guardando essas... Mas enfim, assim foi pra mim. Voltei pra casa dos meus pais e aí voltei pra minha vida, acho que foi aí que eu fui trabalhar na USP. Não, foi antes, porque é isto, então corrige aquele pedaço lá: não saí da USP e já fui trabalhar, tem esse parêntesis na minha vida, um standby que ficou, não sei, esquisito. Aí que eu fui trabalhar na USP, aí que minha vida social, minhas relações de fato foram voltando. Aí que o Rui, que é o pai da Isabel e da Clarice, que são minhas filhas, uma que tem 29 anos e a outra que tem 21, 22, a Clarice. É... a gente se conhecia, se via, de militância, de vida política, ... Aí nós nos conectamos de alguma maneira. Ele também tinha casado por um ano com uma pessoa, casou aqui, separou ali, conversamos, começamos a sair e fomos morar juntos. Eu entendo que... A gente resolveu “Vamos morar juntos?”, “Vamos morar juntos!”. Fizemos um jantar com meu pai, minha mãe, pai dele, a mãe dele, então esse foi meu novo casamento [posso seguir falando?]. Então a gente viveu juntos por sete anos, antes da minha primeira gestação, que foi a da Isabel. Aí a Isabel nasceu também numa decisão. Eu queria muito ter filhos, já tava de bom tamanho pra mim naquela época, eu tinha 32 anos, a gente teve uma vida muito gostosa juntos, eu e o Rui, muito gostosa, foi a pessoa com quem eu fiz a minha vida adulta, sabe, assim de ser proprietária da vida, dos horários, de você ter que gerenciar a sua casa, ainda que seja de dois adultos, e é muito fácil gerenciar uma casa de dois adultos, você não precisa cuidar de ninguém, não tinha o papel da mulher cuidadora, né, eu trabalhava, ele trabalhava. Então, você vai ganhando dinheiro, você vai poder fazer coisas, ir em restaurante, ir em shows, em coisas que custavam dinheiro… Foram acontecendo na nossa vida, ir viajar para Bahia, isso tudo foi acontecendo, ir para o hotel em Campos do Jordão, ... Não aristocrático, mas assim, poder desfrutar da vida que custa dinheiro, desfrutar da vida, então foi tudo acontecendo muito nessa parceria com o Rui, e foi uma parceria muito bacana, de adentrar no mundo da música, da diversão, de gerenciar a própria vida, de fazer escolhas, etc. Foi muito bacana. Aí a gente... Eu falo, “Ah, foi muito demanda minha, e isso não tira nada de ninguém”, mas foi demanda minha ter filhos nesse casamento, e aí nasceu Isabel, que acho que foi uma felicidade para nós dois, e acho que eu fui uma mãe que pulei lá no fundo desta temática. Eu digo que a maternidade é um campo muito profundo pra mim, muito muito muito, em várias direções, da alegria e da dor, não é só maravilha, mas é um universo muito profundo pra mim, e quando a Isabel tinha três anos, eu e o Rui nos separamos, e hoje também, olhando, não é hoje exatamente, mas é depois que isso tudo aconteceu, tempos depois, eu também entendo que esta vida em que eu fiquei mãe e mulher, a gente não conseguiu se acertar totalmente, não é que eu não consegui ou ele não conseguiu, vou dizer que nós não demos conta. A gente se separou, a gente ficou separado por um ano, então a Isabel fez três anos, eu e o Rui nos separamos por um ano, no ano seguinte a gente volta, e volta por demanda dele. Posso dizer que a separação foi demanda dele e a volta foi demanda dele, tá, e acho importante dizer isso para mim. Acho importante dizer pra mim, não pra mim é importante dizer. Dizer pra mim isto. Na época, claro, eu sofri, mas eu ainda tinha muita juventude, eu quero dizer, ainda olhando a vida com muito horizonte, sabe, assim. A gente morava numa casa alugada, e aí então a gente ia sair pra morar em duas casas alugadas, eu comecei a procurar casa e falei “Nossa ‘meu’, pra pagar o aluguel nunca vou mais fazer nada na minha vida”. Aí decidi que eu não ia pagar aluguel e que iria comprar uma casa. Fui morar com a minha mãe, ou melhor, fui morar na casa de uma amiga com a minha filhinha e comecei a procurar casa e fiz um plano: vendi meu carro, naquela época a gente vendia o telefone, vendi tudo o que eu tinha, pus o dinheiro, comecei a fazer contas e buscar apartamento ... Quando eu achei um apartamento eu saí da casa da minha amiga e fui pra casa dos meus pais, mas aí eu já tinha futuro mais ou menos garantido. Fiz um plano de comprar esse apartamento, comprei. E aí um ano depois, quando eu estou reformando esse apartamento pra me mudar pra lá, a gente continuou se encontrando até porque a gente tinha uma filha pequena, que era importante, a gente tinha ali parceria nisso, bastante parceria, acho que ele foi sempre um pai muito interessado na filha dele, sempre foi, embora tenha sido muito meu desejo de ser mãe, de ter uma criança naquele relacionamento. Aí a gente volta a morar juntos, aí quando a gente volta a morar juntos eu digo “Eu quero ter mais um filho, então se não cabe no seu plano a gente nem retorna”. Eu lembro muito de... Por isso que eu digo assim, a maternidade é um campo muito profundo pra mim, então eu tinha muita clareza. Eu sofri na separação, mas eu também me aprumei em coisas, assim, eu comprei meu apartamento. Foi aí que também ‘andei’ profissionalmente, sabia que eu dava conta de mim mesma, sabia que eu queria ter mais filhos, isso pra mim era rolar o critério. E eu poderia ter um segundo filho de qualquer jeito, quero dizer, podia ser não estando casada, sabe, assim, eu nem tinha formulado, mas eu tinha muita certeza de que eu queria ter outro filho. Ele topa, eu quero dizer que a gente faz esse re-contrato, a gente volta a morar juntos, a Isabel... A gente se separou quando ela tinha três, voltamos com ela tinha quatro, quando ela tem sete nasce a Clarice. Então vai ter um tempinho aí de uma coisinha, de outra. Mas enfim, terminar o apartamento, eu também ‘tava’ fazendo um tratamento ginecológico na época, enfim, e aí fico gestante, nasce Clarice. Nesse primeiro momento da Clarice, o Rui tem uma proposta de trabalho pra ir pro Rio de Janeiro, na época da telefonia celular que estava começando a expandir, né, ele é da área de tecnologia de informação, então estava muito concorrido esse mercado e a gente vai morar um ano no Rio. Então eu vou com uma criança de sete anos e uma de seis meses, moro um ano no Rio, um ano e quatro meses, aí ele recebe uma outra proposta irrecusável pra morar em Curitiba. A gente vai pra Curitiba com todo mundo, casa, escola… Então eu tinha duas crianças com demandas muito diversas, né: a Isabel eu tendo que acomodar já numa sociedade mais estabelecida, porque ela tava na escola, ela tinha amigos, ela tinha a vida social que ela tinha que formular. E o outro é bebê, se tiver a mãe perto tava bom, leite, etc, tá tudo certo, então eram demandas muito diferentes. Eu pedi um afastamento da USP nessa época, que eu podia pedir, mas aí eu fiquei mais tempo afastada do que permitia, então tive que me demitir, a alguma altura eu me demiti da USP. Fomos ‘pra’ Curitiba e quando a Clarice tem novamente três anos, novamente porque nessa mesma situação, eu me separo de novo do Rui, né, do pai delas. Aí a gente lá morando em Curitiba, então foi uma situação mais dramática, eu quero dizer, muito mais dramática. Primeiro eu ‘tô’ 10 anos mais velha, eu ‘tou’ desempregada, eu to numa cidade que eu não conheço ninguém, eu não to inserida naquela sociedade porque eu não trabalho, porque eu não estudo, eu ‘tô’ ali cuidando de duas crianças, tentando inseri-las. Curitiba é uma sociedade bem fechada, não foi fácil nem ‘pra’ mim e nem ‘pra’ Isabel, uma inserção social, eu digo isso, né, então as colegas dela da escola eram difíceis. E a Clarice continuava nessa coisa, feliz, pequenininha fazendo aquilo, com a mãe, numa casa linda, enorme, bem cuidada, tava tranquilo, tá, mas claro que tensão familiar derrama pra todo mundo, então essa separação foi muito dramática pra mim, muito muito muito muito muito, foi um tempo de mortes, morte mesmo. A separação anunciada pelo Rui foi mais ou menos em abril / maio, me lembro exatamente. E aí eu achei por bem encerrar o ano letivo lá porque é isso, né, a Isabel já tinha começado primeiro ano do fundamental em São Paulo, seguiu no Rio de Janeiro segundo ano, fez o terceiro em Curitiba e no quarto ela muda de novo no meio do ano. Aí eu falei assim “Não dá certo, eu acho que eu vou concluir este ano com elas aqui, muito por conta da Isabel, e volto pra São Paulo”. Mas foi um semestre de aguentar ver o Rui saindo de casa carregando as coisas, continuar morando nessa cidade que eu não tenho apoio, não tenho rede de apoio nenhuma, vendo minha vida se desmantelar, não tinha pra onde voltar aqui em São Paulo no sentido de me engajar profissionalmente, e eu passei seis meses viajando de avião, pra lá e pra cá. O único benefício, e aí eu preciso agradecer, é que tinha bastante dinheiro, por isso ele foi pra lá e pra cá, pra procurar casa, procurar escola, arrumar a vida pra vir como elas, tá. Então eu fiquei nesse segundo semestre de 2001 fazendo isso, foi um tempo muito duro, foi um tempo de morte mesmo, eu digo de morte pois eu emagreci sete quilos, os amigos dele se preocupando comigo porque era uma coisa terrível. Mas a gente dá conta. Aí eu diria que esse episódio, dramático desse tanto, e talvez precisasse ter sido desse tanto, ele abriu tantas portas dentro de mim, eu sinto assim, que a gente tem um corredor imenso – pra fazer uma imagem – todas as pessoas, você, o Alisson, a gente tem um corredor, e a gente não tem tempo nem possibilidade de abrir todas as portas, a gente abre muitas, e a gente abre segundo alguma demanda, sabe, assim, a gente não sai abrindo só porque a gente tá andando por ele. E acho que esse evento fez eu abrir inúmeras portas dentro de mim mesma, então acho que eu sou muito uma outra pessoa, uma pessoa que eu gosto bastante. Acho que tem a ver com esse evento, né, de eu ter que me reinventar muito, socialmente falando, né. É... Porque é isso, assim, a minha vida de gente grande – eu falei isso – a minha vida de gente grande, foi engendrada com o Rui, e mesmo que eu tenha tido aquela separação, ‘tava’ muito marcada pela vida que a gente tinha construído, né, então segue desse jeito. A gente vive 16 anos juntos, é bastante tempo, faz duas filhas, então toda minha vida, o que é a minha família, tinha sido ali traçadas sobre esses parâmetros. Então eu perdi muito chão, talvez ele também, mas não sei falar da vida dele, tá. E a gente rompe bastante, até por isso, até pelo drama que eu vivi, assim, eu rompo bastante com esta pessoa. E ele continua morando lá e eu volto pra São Paulo. Então a gente fica mesmo distante fisicamente durante um tempo, né, aí depois de um ano e meio ele volta pra São Paulo, um ano e meio ou dois anos, eu nem sei exatamente, ele volta e vai morar a uma quadra e meia de onde eu moro hoje, que foi onde eu fui morar quando eu voltei de Curitiba. E ele volta por essa demanda, pra ficar perto das filhas. Ele buscou uma casa que pudesse ficar perto delas, então, embora eu acho que nosso casamento não suportou essa prole, não é “não suportou as crianças”, o casamento não deu conta, não eu como mãe ou ele como pai, mas o nosso casamento não coube isso pra ele, talvez pra mim também, não sei mas... Não coube isso pra ele e de fato ele fez uma outra vida amorosa, ele casou, casou de aliança, casou no cartório, deu o nome dele pra mulher dele atual, fez todos os protocolos que a gente nunca viveu. Na verdade, então eu penso que ele fez outra vida, casou com uma mulher muito mais jovem, 20 anos mais jovem, com quem ele não teve filhos, porque é tudo uma elucubração, né. Eu acho que pra ele era isso, entende? Era importante ter esta mulher que não é mãe, ou pelo menos foi,

não to dizendo que é, mas assim nos aconteceu ... Enfim, então eu acabei tendo que reerguer quem é meu ambiente social, quem são minhas amigas, o que que eu gosto de fazer, como é que você se diverte, como é que é que... Tudo... Como é que namora de novo, como é que é se ver mulher, então por isso que eu falo, é um marco muito grande que eu tive que de fato arcar com todas as consequências de quem eu era ou não, de quem eu era, ou de quem eu não era, porque aí era eu respondendo por mim mesma, então era ser mãe, era ser mulher, que mulher que eu sou, que mulher que eu quero ser, que mulher que eu posso ser, que mulher que se interessa por quem, então foi uma vida muito intensa após essa separação porque é uma separação que marca um momento importante. A maternidade, como eu disse, é um universo muito profundo pra mim, então sempre ocupou bastante da minha vida, e aí é isso: filhas com idades diferentes, portanto demandas muito diferentes. Então quando uma está aprendendo a ir pra festinha, a outra está aprendendo a ser alfabetizada, eram sempre coisas muito diferentes, demandas muito diferentes, que pra mim é uma alegria, eu me mantive durante muito tempo encantada com o que é um ser humano desabrochando na vida. Então, isso não é pra mim um prolongamento do cansaço e do trabalho, pra mim é um prolongamento dessa maravilha que é criar pessoas. Mas era uma coisa demandante, tá. Por exemplo, eu aqui sozinha, eu tinha que levar a Isabel na escola, ela entrava de manhã cedo, ela estudava na Escola da Vila, que eu voltei ela pra escola que ela tinha feito a primeira série, achei que eu devia isso pra ela, voltar pelo menos ‘pruma’ escola que ela já tinha conhecido. Então voltei ela pra Escola da Vila, morando em Perdizes, então tinha que atravessar a ponte. Eu pegava aquela criancinha pequena dormindo, punha no carro no banco de trás, levava a outra pra escola, deixava na escola e voltava. Então... Ou, vai buscar na festinha mais a noite, pega aquela criancinha pequena, põe no carro, vai buscar as meninas na festinha, que seja meia-noite, porque com 12 anos, 13 anos não era madrugada. Então, teve um trampo isso, ceifa um tanto da minha vida pessoal, que eu fiz com muito prazer, e aí fui retomando minha vida social. Minhas amigas que eram minhas amigas, mas que eu não tinha coragem de ser amiga delas direito, virei amiga delas de fato. Virei amiga por mim mesma, não porque eu... Não é eu e ele, sabe. Então foi uma parte muito importante da minha vida, muito importante, e acho também importante dizer que até pela minha matéria de estudo eu sempre fiz análise, minha análise pessoal, desde... Nossa, desde muito tempo, desde a Isabel pequena, então, pensa que ela tem 30 anos, então digo que a análise foi um instrumento muito fundamental pra mim. Nessa parte que eu te digo que, eu lá em Curitiba, que pra mim foi uma morte, eu vinha pra São Paulo muitas vezes, eu retomei a minha análise com a minha analista daqui, que eu tinha deixado. Era isso, eu tava aqui três, quatro dias, eu ia no consultório dela, no dia seguinte ia de novo, e ela foi topando e foi fundamental, quero dizer que foi fundamental durante todo percurso, mas claro que no momento que você está sofrendo muito isso é... Na verdade, a minha primeira análise, é importante dizer, foi antes da minha primeira gravidez. Eu acho que o produto da minha primeira análise é sair da minha análise gestante, porque eu acho que pra ser gestante eu também percorri ali um caminho, o que que é ser mãe e ser filha da minha mãe, né, eu lembro que era esse meu tema. E nessa minha primeira análise eu saio indo pra maternidade, e aí eu interrompo e quando eu volto, não volto mais pra essa analista, tá, mas é uma pessoa que eu conheço até hoje. A gente se encontrou depois por outros caminhos, então o percurso da análise é muito importante pra mim, ele também funda muitas coisas minhas, assim.

R - E Denise, como foi esse seu desabrochar, reinventar e re-experienciar, não sei se re-experienciar, mas experienciar outras coisas, né, e ao mesmo tempo, ajudar as filhas a desabrocharem...

P1 – Essas são boas perguntas ’pra’ serem feitas pras minhas filhas, porque acho que elas vão saber dizer bastante. Assim, mas eu vou dizer do meu lugar, né, que pode ser quase que ao oposto do que elas contem, mas assim, eu me sinto muito satisfeita com o que eu pude fazer, né. Eu digo

que pude porque é o que eu fiz, a gente só faz o que pode. Então eu me sinto satisfeita com o que eu pude olhar das minhas filhas, com o que eu pude acompanhar das minhas filhas, e essa juventude estendida, porque elas têm uma diferença grande de idade, me dá muito esse alimento que parece sempre permanente, então eu me sinto uma mulher que tem uma atualidade bastante intensa do feminismo, das lutas todas do que a gente chama de minoria, do como falar muitas coisas, e ‘tá’ muito trazido pelo universo dessas pessoas que são jovens e ‘tão’ na universidade, e etc. E eu sempre estive num lugar que eu tenho muita coisa pra oferecer ‘pra’ elas, mas elas também têm coisas pra oferecer pra mim. E não digo só delas grandes, não, mesmo uma criança que faz uma questão, por exemplo, a Isabel foi um tipo de criança e a Clarice muito outro tipo de criança. A Isabel foi uma pessoa que eu vesti roupas dela do jeito que eu gostava, a Clarice tudo incomodava ela: “Hum não gosto, hum não quero”. E você se vê como é uma personalidade ali se fazendo, e elas são duas meninas, elas não são meninos, e que, enfim, são mulheres hoje, podiam não ter sido, mas são. Enfim, então foi importante isso assim, e por que eu acho, né? Eu interpreto também porque eu nunca tive, nunca, não, mas boa parte delas não tinha um homem dentro de casa, então ‘a casa de calcinhas’, eu posso dizer assim, criou-se um tipo de intimidade, que talvez se tivesse um marido ou um outro namorado presente na minha casa, eu tive dois outros namorados depois que eu me separei, que eu vim pra São Paulo, um que tá comigo até hoje e um antes desse que tá comigo até hoje, tá. Mas não foram pessoas que eu aventei uma possibilidade de morar comigo, até porque isso, tinha uma casa que era muito nós três, não cabia uma quarta pessoa, não cabia um homem ali dentro, e eu acho que eu preciso dizer isto. Então acho que a gente pôde viver muito esse feminino dentro da minha casa, e um feminino que podia ir para os lados que quisesse, e acho que cada uma foi muito de um jeito diferente, então eu pude acompanhar um tanto do ingresso delas nessa vida amorosa. Eu acho que a primeira relação sexual da minha filha foi dentro da minha casa, e ela compartilha comigo mas ela não precisa me avisar, não precisa pedir permissão. A gente sempre pôde ter ali uma intimidade e uma reserva ao mesmo tempo, acho que eu busquei sempre, não vou dizer que eu acertei, mas eu busquei sempre ser uma mãe próxima mas ter muita clareza de que eu não sou amiga delas, amiga delas é amiga delas, eu sou a mãe delas e eu vou estar pra sempre desse lugar. Hoje a gente faz essa discussão, hoje elas são duas adultas, eu diria, ainda que a Clarice seja uma jovem adulta, mas é uma mulher adulta, que delicado que é olhar a mãe que sou eu, também sexualizada, né. Então há delicadezas nesse encontro, e a gente fala “Bom, mas a gente tem que poder falar sobre isso, né?". A revolução feminista também vem pra poder pôr essas coisas em dia, né, na ordem do dia. Então a gente vai com muita consciência, e se experimentando. Não to dizendo que é tudo um mar de rosas assim, mas eu acho que a gente teve uma convivência muito interessante, de muito boa qualidade, de muita franqueza, que não quer dizer não ter intimidade, não quer dizer não ter segredo, não segredos que “Ela não possa saber, porque isso não é hora de compartilhar ou eu não tenho vontade de tá compartilhado com a minha mãe , e acho que pra mim isso é tranquilo e certo, e vice-versa. Por exemplo, muito recentemente, eu acho que foi uma coisa desse ano, eu contei pra elas que eu tinha feito três abortos, e que foi por uma coisa que tinha a ver eu contar. Acho que elas têm hoje pesquisas de outras terapêuticas, de leituras sobre a lua, ah, nem sei dizer os nomes, mas elas têm outras buscas de se conhecer e que às vezes têm essa pergunta: “Você é que gestação da sua mãe?” “Ela não sabe que gestação ela é da mãe dela”, “Ela sabe que ela é minha primeira filha, mas não sei se ela é minha primeira gestação”, percebe? Então teve uma conversa que veio assim, a gente tava no no hall dos quartos, “A, eu fui em tal lugar...” Eu falei assim: “Nossa, esta é uma informação que eu preciso compartilhar” e hoje eu me sinto totalmente podendo, ela nunca teve um bom motivo pra ser dita, tá, eu falei “Ah, gente, preciso contar uma coisa pra vocês”. Era assim: nós três em pé, por sorte estávamos as três, podia ser, eu falei “Ah, eu fiz três abortos na minha vida, um assim, um assado, outro frito, ah desse jeito...”. Contei brevemente as histórias, então pra elas se localizarem em que gestação elas ‘tavam’, tá. Eu tenho dois abortos antes delas nascerem, e um depois delas. Então foi importante, eu to contando isso pra exemplificar que eu acho que a gente tem uma boa história, uma boa relação de mãe, de filhas e de mulheres, acho que eu pude acompanhar bastante e pude ofertar uma casa que pôde acolher o que precisasse ser acolhido, de alguma maneira assim, não precisa ser na minha casa se não quiser, mas pode ser nesta casa. Então na minha ideia eu me sinto satisfeita com o que a gente pôde fazer juntas, né, eu me sinto bem satisfeita com o que a gente pôde fazer juntas.

P1 – E, Denise, como foi pra você entrar na menopausa e, não sei, talvez sentir transformações no corpo, transformações na relação da casa, como que foi esse período?

R – É... eu acho que a menopausa é outra coisa muito grande na vida da mulher, e aí também vou fazer um parênteses, acho que é isso, a discussão feminista hoje ela conta bastante para todos, e até para nós mesmas como a gente sabe muito pouco sobre a gente, como historicamente a gente tem um pouco... Como a gente teve pouco espaço, como muitas coisas que você viveu poderiam não ter sido vividas dessa forma, então a entrada na menopausa ela marca mais um desses lugares, como a gente não sabe nada sobre isto, e ela de fato traz bastante transformações. Então, bem, tem aquilo que eu falo, né, quando comecei minha vida sexual produzindo logo uma gestação, e termino num aborto, e que isso marca meu prazer sexual, minha vida sexual, e que eu começo ela dizendo que eu preciso satisfazer meu parceiro, veja só que louco, hoje na menopausa, também meu prazer sexual fica abalado. Eu vou dizer que também não é só por isto, mas hoje eu falo “Eu busco meu prazer porque eu quero ter meu prazer, não porque eu to devendo prazer pra ninguém”. Então acho que isso são pontas muito diferentes, muito verdadeiras. Junto com a menopausa, eu tenho um câncer de mama, que também foi muito tranquilo pra mim, eu também vivi ele muito tranquilo, uma das fotos que eu selecionei, é eu no hospital, porque foi um dia muito bacana, quem me acompanhou foi meu namorado e minha filha mais velha Isabel. E cada um lá tava cumprindo papéis muito específicos, os dois fizeram questão de ir, eu não pedi pra ninguém ir, é claro que eu iria acompanhada, mas a minha primeira consulta na ginecologista quando eu peguei o meu resultado foi com uma amiga “Ai Lulo, vai comigo porque eu não quero ir sozinha, porque sei lá... ouve junto”. Então eu fui acompanhada por diversas pessoas, não é que precisaria ser meu namorado, minha filha, mas os dois fizeram muita questão e eu achei que tava certo que fossem eles, então eles cumpriram papéis muito importantes pra mim lá, né. E foi um dia muito feliz, eu quero dizer, na foto e a gente está muito feliz, fomos nós três, eram quatro da manhã, mas a gente estava bacana, eu não vivi isso como um “Ai que horror”. E não tive uma extração da mama, era um câncer pequeno, foi uma incisão pequena, claro que tem um 'bololô' nesse lugar aqui, lá dentro fica uma coisa meio embolada, mas é uma cicatriz bem feitinha … Agora não é... Mas é um câncer de mama, é um câncer que diz do feminino também. E é importante, eu quero dizer que assim, entrar na menopausa tem trezentas perturbações, por isso eu fui fazer reposição hormonal, produto não sei se da reposição hormonal, mas tipo, dois anos depois da reposição hormonal eu tenho esse câncer. Aí eu interrompo, e porque que eu fui fazer essa reposição hormonal: porque o meu início na menopausa ele foi bastante... Falta de sono, insônia, falta de interesse pelas coisas, não era que eu ‘tava’ deprimida, mas era assim, tanto fazia, “Quer fazer a entrevista?”/ “Sim” / “Quer não fazer?” / “Ah, também” / “Você quer ir ao cinema?” / “Quero” / ”Você quer não ir?” / “Não quero também”. Então era uma falta de interesse tão absoluto, que tava chato, né. Os calores, que no começo eles eram gostosinhos, eu preciso dizer que os calores no início eles eram, ai, quase um prazerzinho, assim, que começava assim pequenininho, mas aquilo virou um vulcão que era praticamente uma tortura, então esses sintomas se avolumaram e aí eu fui buscar. Busquei um médico bacana, não era homeopata, que eu sempre me tratei com homeopatia, mas ele era um cara que trabalhava com hormônios bioidênticos, eu não sei te dizer exatamente o que que é, mas é um hormônio que tenta ser menos agressivo pro corpo da mulher, então fui nesse sujeito, um cara muito bacana, gosto muito dele, ele me ajudou em muitos pensamentos. Mas o fato é que, enfim, acabou tendo um câncer de mama, né, e aí eu tive que interromper. Aí se é pelo hormônio, se não é, nunca mais você toma. Então, a minha menopausa, eu tinha esse namorado, já estava namorando com o Beto, que é meu namorado hoje, e que o nosso encontro foi muito uma atração física, tá. A gente se encontrou por esse desejo mesmo, desejo um pelo outro. Foi um ‘apaixonamento’ como eu nunca tinha tido na minha vida, então posso dizer que aos 53 anos eu me apaixono como nunca tinha me apaixonado, um desejo sexual enorme, a gente se encontra desse jeito. Só que a gente atravessa a entrada na menopausa juntos, que continuou sendo bacana, mas eu digo, o câncer, a cirurgia, me deu um grande ‘tropeção’. Não porque eu fiquei traumatizada com o câncer, não fiquei, nem até hoje, nem olhando a posteriori: fui muito bem acolhida com diagnóstico. No mesmo dia, assim lá, eu peguei o exame no laboratório, estava com a Clarice e fomos buscar juntas, ela era recém aprendiz de direção, estava dirigindo, eu peguei o exame, eu lembro da gente conversando na calçada, eu fui abrindo o exame porque eu sempre fiz isso na minha vida, sempre olho tudo, aí eu falo: “Clarice, tá dando carcinoma!” Assim, meio tão surpresa, meio a gente tava até rindo da situação, da surpresa, não era do achar engraçado, mas da surpresa. E lá no carro mesmo eu ligo pra ginecologista e já ligo pra esse meu doutor que é o que me acompanhava com os hormônios, e no dia seguinte já fui ‘num’ e noutro. Minha ginecologista já liga pro A.C Camargo Cancer Center e já marca uma consulta pra mim. Então eu fui muito bem acolhida, meu convênio pagava esse AC Camargo. Então, desde sempre foi tudo muito fácil, eu não tive que parar e falar “Meu Deus, e agora?” Fiz uma consulta com uma outra mastologista, só pra ter uma opinião número dois, que não fosse só do hospital que uma outra amiga me indicou, então todo mundo já se falando: “E aí vou com você, vai comigo...”. Então fui com essa minha amiga nessa mastologista que era dela. Na mastologista do A.C. Camargo foi a minha outra amiga que foi comigo, e aí eu preferia amigas do que meu namorado, do que a minha filha, porque acho que eram pessoas que estariam mais compreendendo a situação do que minha filha, meu namorado, sabe. Eu queria alguém pra de fato agilizar a situação, não pra fazer companhia. Então foi tudo muito tranquilo, agendou exame, cirurgia, foi, recuperou bem, bacana, tudo certinho, fomos pra casa. Mas assim, você fica com uma parte do seu corpo, que é uma zona erógena do seu corpo bem danificada, tá, gente. Demora, acho que demora mais de ano. Faz dois anos e meio, vai, da minha cirurgia, foi em março de 2018, em março de 2020 fez dois anos, então você fica bastante tempo com essa área... É um sensível que é meio dolorido, mas também é um sensível, também você quer mas não quer, mas aí... Vai ali, na cena é tudo complicado. Eu acho que isso machuca a minha relação de encontro de prazer, assim, e acho que atualmente, então eu digo assim, do atualmente, eu to nesse diálogo, vou falar assim, nesse diálogo comigo mesma, cadê meu prazer, que que eu quero com ele, que eu quero dele, se eu quero ele. Então fui buscar coisas, por exemplo, tem uma organização que se chama ‘Prazerela’, que talvez você conheça. Eu achei ela, assim, ouvindo a Jout Jout, uma entrevista com a Mariana Stoq, e porque que Jout Jout tá na minha vida? Por conta das minhas filhas! Mas assisti aleatória, assim, “Nossa, olha essa pessoa entrevistando, que entrevista bacana, que coisa interessante”. Fui atrás da ‘Prazerela’, fiz um curso lá e

hoje em dia sigo essa empresa. Não resolveu minha vida mas acho que é um lugar muito importante, eu posso dizer que o meu encontro com a ‘Prazerela’ foi muito bacana, acho um lugar muito potente, mas eu não consegui dar o passo número dois, eu só consegui dar o passo número um. E eu to precisando dar o passo número dois, mas eu to no meu tempo, porque hoje eu estou preocupada comigo, e isso faz muita diferença, é isso que eu quero dizer, faz muita diferença. Eu não lembro mais a origem da sua pergunta, mas a menopausa é um momento que é bacana, e que a gente pode ter uma vida sexual interessante, que a gente pode… Interessante pode ser inclusive não querendo mais desenvolvê –la, pode ser interessante desse jeito [risos]. Mas, enfim, eu tenho um parceiro de quem eu gosto muito e é muito interessante, que tem muita disposição pra mim. Então eu acho. E acho que dentro da saúde da mulher a gente sabe muito pouco, e não é a gente, as mulheres, é todo mundo, inclusive os médicos, tá. Acho que muito médico te dá pouca abertura ou te oferece poucos caminhos porque sabe muito pouco, né. Então, é isso, saúde da mulher, mulher, prazer da mulher, lugar da mulher, sofrimento da mulher, é uma coisa que hoje em dia está assim eclodindo, mas a gente é fruto da história, né. Por mais que eu possa fazer uma discussão racional, né, com mais informações, com outras posições, tá marcado no meu corpo uma coisa, né, e no corpo de vocês jovens também, porque vocês são produtos dessa geração aqui, produtos dessa sociedade, né. Pra vocês também deve ter coisa, aí eu não sei de que tamanho e com que peso, aí cada um vai saber da sua história, né. Mas de fato, as vezes eu penso assim, né, a discussão sobre estupro hoje é muito forte, muito intensa, muito presente, né, pra quem busca olhar essas coisas, então se você for perguntar, eu acho que todas as mulheres foram estupradas na vida, acho que todas, porque elas não tinham a noção de que consentir ou não era algo que precisava ser feito, e talvez por pessoas muito bacanas, né. Se você for olhar assim, nossa, essa é uma pergunta complicada pra fazer, você precisaria contextualizar as coisas, né, mas “Ah, acho que sim”.

R – E Denise, se você quiser contar um pouquinho, como foi a descoberta do câncer? Você fazia exame preventivo? Foi um exame específico, ou sei lá, era de rotina?

P1 - São exames de rotina, acho que a gente faz isso, acho que as mulheres estão acostumadas também a fazer isto. O do câncer de mama especificamente é com a mamografia, quero pronunciar bem direitinho porque é um exame muito horroroso. Gente, e eu vou falar assim, eu não acho que ele é dolorido pra mim, eu não passo mal, eu tenho uma história clínica que eu não sou apavorada, não tenho traumas. Mas a mamografia é um exame esquisito. Gente, então as mulheres que têm peito sabem imaginar, os homens que não têm peito... É esquisito, né, uma máquina que prende e quando você fala “Nossa, tá bem ruim”, ainda tem 1 milímetro que é ‘pict’, e eu sempre tenho a fantasia “Ai meu Deus, quando ela vai soltar”, “E se ela apertar o botão do outro lado”, sempre tive essa fantasia, mas eu fico quietinha lá, segurando. E vira, tem piada sobre isso, né, o que que é a mamografia, se joga no chão gelado da garagem, enfim, então são exames de rotina que alguns médicos têm uma periodicidade, outro têm outra, é isso que eu falo, não é uma coisa que tá todo mundo totalmente concordante com tudo e não ‘to’ defendendo que não se faça, mas eu sou dessas pessoas cumpridoras: eu vou ao dentista todos os anos, eu faço meus exames ginecológicos, etc. E esse de 2018, por acaso, eu tinha feito uma mamografia no começo do ano, e eu perdi a mamografia, aí quando eu fui na ginecologista, eu não achava de novo. Não achava, de jeito nenhum esse exame, aí eu fiz outro, veja, por falta de um eu fiz dois, e no segundo deu um nódulo carcinoma, era esse o nome que eu decorei, tá, mas era de exame de rotina. Depois eu achei o exame que eu tinha perdido, tá. E no exame que eu tinha perdido, não tinha carcinoma. Então, foi útil que em seis meses eu fiz dois exames, eu quase que digo “Nossa, o cosmos...”. E foi no mesmo lugar, no mesmo laboratório, né, não é nem pra dizer que eu mudei de... Certamente não é a mesma pessoa que fez o laudo, mas é no mesmo laboratório. Então com seis meses de diferença eu tive um exame que não deu nada e um exame que deu um carcinoma que não tinha um centímetro, tá, foi tudo pequeninho, pego no começo. Ele era um carcinoma invasivo, que quer dizer que ele está pra fora do duto, ele não está só dentro, assim, então ele tem mais risco de ter migrado ‘pra’ algum lugar, o que eu posso contar hoje é do que eu aprendi nesse percurso. É que antigamente quando você tinha câncer de mama, primeiro que tirar a mama toda era mais comum, mesmo quando hoje em dia pra mesma coisa você não retiraria a mama, né. Mas pra falar dos gânglios que estão nas axilas, né, antigamente você também retirava todos, hoje em dia você não faz mais isso, que a medicina foi se desenvolvendo, tem um gânglio que chama Sentinela, que ele é o guardião de todos os outros, se ele não tiver uma célula cancerígena então quer dizer que os outros todos não têm, se ele tiver pode ser que os outros tenham ou não, o meu não tinha. Então essa ideia de que “Ah, não deve ter migrado”, mas mesmo assim, depois que você faz... Bom, aí é a proposta de tratamento, pelo menos na medicina que a gente está mais acostumado, e eu vou dizer assim porque há outras medicinas e que pensam diferente, pensam inclusive o tratamento de câncer diferente, e não vou dizer que é maluquice, eu acho que há outros tratamentos que pensam outras coisas, mas é mais difícil atualmente você na hora do ‘vamo ver’ você sair buscando outras coisas. Eu tinha um câncer bem pequenininho, tão logo se pode diagnosticar, eu tinha convênio médico, etc, e na minha ceara, aquilo ali nas minhas relações, mesmo o médico que me acompanhava, todo mundo dizia “Claro que tem que tirar, tem que tirar”. E o tratamento é: tira, faz a biópsia e depois eles indicam qual é o melhor tratamento pra você. Eu sei que tem pessoas que têm câncer que primeiro fazem uma radioterapia, primeiro fazem uma quimioterapia, depois fazem a cirurgia, então dependendo de cada um é de uma maneira. O meu é: primeiro faz a cirurgia, depois faz a radioterapia e depois você toma um remédio, que o meu caso não é bem uma químio, eles chamam de químio, mas é um remédio pra você fazer uma supressão de todo tipo de hormônio, né, porque o meu câncer era hormônio dependente, se o seu não for, não tem… Então eles diziam assim “Olha, cânceres hormônio dependentes são bacanas porque eles têm esse antídoto, vamos dizer, você toma esse supressor de hormônio e você tem mais uma garantia”. Então eu fiz a radioterapia, eu acho que hoje em dia eu não faria, porque eu acho que é uma agressão pro corpo e se os médicos tiverem me ouvindo vão achar que eu to falando ‘blablablá’, mas eu acho que o mundo é maior do que esse que a gente conhece. Enfim, então eu fiz porque eu também achei que não dava conta de bancar não fazer nada, então eu fiz a cirurgia, fiz radioterapia, que queima bastante, tem fotos eu bastante queimada, não morri de dor nem nada, todo mundo é simpático, gentil, faz o trabalhinho direito, e acho que a radioterapia hoje também tá muito desenvolvida, mexe o menos possível onde não é pra mexer, mas claro que ele dá uma ‘matadinha’ em muitas coisas. É uma radiação poderosa, na época eu perguntava assim “Gente, mas não é que radiação dá câncer? Como é que se cura câncer com radiação?”. Tive boas discussões, agora já nem lembro mais contar, mas todo mundo foi muito fértil nessas conversas comigo, mas a gente aprende isso, não aprende? Que radiação dá câncer, e aí você cura com radiação? Mas tem uma boa explicação que agora eu não sei mais dar. E aí depois que você faz a sua radioterapia, a indicação é você tomar o remédio, que é esse, porque o meu câncer era hormônio dependente, mas isto eu não quis, eu já tava mais senhora de mim mesma e da minha doença e da reflexão sobre ela, de tudo com ela, então eu não tomo nenhum remédio. Por quê? Porque isso vai só trazer a baixa de hormônios, é isso que é a menopausa, a interrupção de hormônios importantes do feminino que se fica naquele ‘coisinho’ tão pequenininho que é isso, toda sua pele, seca sua vagina seca, seus olhos secos, seu cabelo seco, então é todas as partes, dentro e fora, tá gente. Não é ‘boniteza’ que eu to falando, é viabilidade mesmo da vida, né, então... E hoje tem muitas ‘traquitanas’, tá. Por exemplo, tem um hormônio que é ou uma pomada ou é um óvulozinho que você só introduz na vagina duas vezes por semana, e te mantém com a vagina lubrificada, pra você não ter que tomar, etc, então tem muitas outras estratégias hoje em dia. É que eu não faço nenhuma porque meu percurso foi outro, tá. Até por conta do câncer nem esse eu poderia usar, e aí eu de fato fico temerosa, não vou botar hormônio, né. Mas eu quero dizer que talvez haja muitos modos de você se preparar ‘pra’ uma menopausa mais interessante, há exercícios pélvicos, há coisas todas pra você fazer que talvez te preparem melhor ‘pra’ esse ingresso, mas a gente não fala disso, a gente não sabe disso, entendeu. A gente conversa quando a gente é jovem sobre relação sexual e como foi, como é, o que que você fez, que deu certo, que deu errado... Ninguém fala “Gente, e menopausa? Como é? Você já entrou? O que aconteceu? O que que você fez antes?” Não tem essa conversa, não existe essa prevenção, vou chamar assim, sabe? Então a menopausa é um momento intenso também, eu to bem

vivendo ela, acho que ainda to na busca, porque tudo bem, faz dois anos que eu fiz a minha cirurgia, mas tudo bem misturado, né. E acho que eu ainda tô digerindo cada parte, tá, digerindo no sentido de entender todos os meus caminhos. Por exemplo, esse ano eu tinha achado um lugar perto da minha casa que faz ginástica pélvica, e aí que que aconteceu? Pandemia. Então ficou suspenso, né, então é essa coisa toda.

R – Denise, sua menopausa começou com quantos anos?

P1 – 54 eu acho, entre 54 e 55. Eu não tenho uma memória precisa, mas eu acho que assim, 54 ou 55. É declarada mulher menopáusica quando você fica 12 meses sem ter nenhuma menstruação, tá. Então da hora que você para de menstruar, leva um tempinho pra você ganhar o título, 12 meses sem menstruação.

R – E quando você descobriu o câncer, como foi pra você cuidar do corpo físico e, sei lá, da cabeça... mental?

P1 – Então, olha, é isso que eu falo. Assim, eu vivi isso dentro de casa. Eu acho que as pessoas que são próximas de mim também poderiam falar disso, eu não fiquei apavorada, tanto que ‘pra’ Clarice, que é a minha filha mais nova, que foi há dois anos, tudo bem, ela tinha 20 anos, ela tava... É isso que eu falo, assim, a universidade é um universo muito pulsante, muito convocador, muito tudo, e... Eu acho que ela lembra pouco, a gente conversando ontem, esses dias ela falou assim “Mãe, eu lembro pouco, nem lembro do dia que você foi pro hospital”, porque eu não trouxe um pânico para minha casa porque eu não vivi um pânico, eu não vivi uma tragédia, eu não chorei nunca, por exemplo. A minha emoção aqui é mais de pensar o lugar da mulher do que do câncer em si, assim, sabe. Eu não vivia com pânico, não sei o que dizer, eu não vivi uma tragédia. Me ocorreu pensar “Puxa vida, eu faço tudo tão direitinho, eu não fumo, eu não bebo, eu faço ginástica, eu como tão direitinho, eu não como carne, eu fiz análise a vida inteira, eu sou tão arrumadinha, não paro em lugares proibidos, eu... Porque eu vou ter câncer?”. Mas assim que é. Mas eu quis fugir desse pensamento, sabe, ele vem na sua cabeça “Nossa, não é que eu não devia não ter, não é que câncer é de outras coisas?”.Não é. O ser humano é uma coisa muito complexa, incrível, rica e muito tudo. E você tem que se surpreender com essas coisas e tentar entender do que que elas estão falando pra você, o que é que elas estão falando sobre o que com você. “Denise, o que você tá conversando?”. E acho que essa é uma conversa que não se encerra, então eu posso te dizer que eu não vivi com pânico, eu não vivi como tragédia, eu não me senti castigada, nada, eu vivi muito tranquilamente. Eu penso que dentro da minha casa... Não sei exatamente como é para cada uma, não é uma conversa que a gente teve, isso acho que é a vida sendo vivida, talvez mais adiante a gente possa falar “Gente, como foi pra vocês?”. A Clarice vai dizer “Ah mãe, nem lembro”, a Bel falar “Puxa, mãe, eu fiquei angustiada”, não sei, não é uma conversa que aconteceu ainda, tá. Não aconteceu, mas eu não vivi como tragédia nem como desespero. Pra ninguém, nem pras minhas amigas, ... Foi tranquilo, vou dizer ‘tranquilo’ dentro dessa coisa que não é... Não fico satisfeita de ter tido câncer, tá, é uma marca em mim, é uma marca. É isso que eu to dizendo, eu percebo que tem marcas em mim, ela me deu uma atrapalhada na minha vida sexual, posso te contar, enfim, né. Tem esse ‘cortinho’ aqui também, mas acho que a minha cabeça foi bem, assim, acho que eu to fora da análise já faz uns quatro ou cinco anos. Eu fiz o ano passado um intensivo de um ano, mas a minha questão era outra, era tentar pensar na minha mãe, que tá esperando a morte todo dia, e ela tá esperando não porque ela esteja doente, mas todo dia ela acha que pode ser amanhã. Eu acho que isso foi uma coisa muito dura pra mim, e acho que eu fui buscar uma nova analista. Enfim, então a análise que eu busquei o ano passado foi mais pra tratar as questões com a minha mãe, que aí é um outro capítulo, tá.

Mas eu posso fazer um parêntesis, assim, mulher que viveu para o marido, entende, aí o marido morreu, meu pai morreu faz 11 anos, então a vida acabou. Claro que não são todas as mulheres que viveram a vida assim, mas eu quero dizer que tem muitas mulheres. Era mais fácil que uma mulher estivesse caindo nessa vala e não naquela outra, então foi muito importante. Mas assim, o câncer, eu não ‘tava’ em análise, mas claro, eu sou uma pessoa que tem um trabalho feito comigo bastante, e eu não precisei voltar, não precisei dessa ajuda mais intensa, assim. Sabe, eu acho que eu vivi com a tranquilidade que era possível ser vivida, tá. Não foi nenhum pânico, nem me senti... Ah, preferia não ter tido, tá, gente, mas teve. Deve falar de mim pra mim mesma.

R – E Denise, quando você descobriu, e após o tratamento, como era os intervalos dos exames, e hoje, se tem algum cuidado a mais.

P1 – Eu entrei no A.C Camargo Cancer Center, que é um centro de câncer, né, assim que eles se apresentam, então você entra nos protocolos deles. Eu sei contar o protocolo deles, não sei contar como são outros, então é uma coisa muito… Exames mais frequentes, e qualquer coisa diferente, aí te manda para aquele especialista, então sei lá. Eu sei que eu sou acompanhada por uma mastologista, que foi a minha cirurgiã, pelo oncologista clínico, os dois faziam um acompanhamento meu e me acompanharão por cinco anos. Por exemplo, quem que me receita o remédio que seria o supressor de hormônios, que tem dois, tá, o Anastrozol e o outro eu não me lembro o nome, é o oncologista, não é a mastologista. Quando eu fui seguir com ele, eu falei “Olha...”. Quando você termina a cirurgia, tem toda essa conversa, com um, com outro, como são os passos, quando você vai fazer a radioterapia, você primeiro faz uma consulta com o radioterapista, radioterapeuta, não sei, é um médico que faz radioterapia. Conversa muito, te explica muito, por isso eu tive a oportunidade de perguntar “Mas como que é? Causa câncer? Cura câncer?”. Eu não sei, eu não lembro mais tudo, mas eu tive bastante oportunidade de conversar e perguntar tudo o que eu quis, e se eu quisesse uma segunda consulta podia também, tá. Aí você faz, e aí então quando eu fui pro oncologista ele também diz “Ó, os passos são esses ...”. Mas a medicação tinha que começar não sei que tempo, na consulta que eu volto pra dizer pra ele. Então como é eu pergunto pra ele “Eu não vou tomar o remédio, pra você ‘ok’ me acompanhar assim?”. Porque se ele me dissesse “Ah não, só posso te acompanhar se você fizer tudo o que eu to dizendo que é pra você fazer”, eu teria tomado outro curso, eu não tomaria o remédio. Eu não me arrependo, renovo essa decisão. Bom, também é assim, é uma decisão que não adianta eu “Ah, agora me arrependi, quero tomar dois anos depois”, aí ele disse que não tem sentido, porque o remédio é ‘pra’ matar qualquer outra célula que tivesse perdida no seu corpo. Eu entendi que era uma coisa assim, ele depende de hormônio ‘pra’ se alimentar e se desenvolver, se você não vai dar, ele não vai se desenvolver, não sei se a célula perdida pelo corpo vai morrer, ou se só não vai se desenvolver, mas seria um remédio pra você tomar, e ele traz consequências, e eu não queria mais nenhuma, tá. Mas ele falou “Não, por mim ok...”. Também uma pessoa bacana. Aí assim, eu sempre tive um exame que é uma coisa no fígado, que agora não sei se são as 'bilirrubinas', que é sempre um pouquinho aumentado, mas historicamente aumentado, o meu é assim, da minha irmã é assim, é uma coisa que tem a ver com nosso corpo, nossa família, tá. Ninguém tá doente, o fígado não está mal, mas aí o cara vê isso e me manda ‘prum’ endócrino, aí ‘cê’ vai lá, faz um endócrino… Aí ele topa e não tem nada. Aí ele me manda pra hematologista, aí eu digo, porque a minha hemoglobina tava 12, e o cara achava que talvez tinha que ser 13, eu falei “Olha, eu tenho anemia desde que me conheço por gente”. Eu não tenho mais, a minha anemia foi curada na menopausa, porque eu tinha uma anemia por um fluxo muito abundante, e eu sempre tratei, busquei, etc, mas minha vida foi assim, uma vida de uma pessoa que estava sempre lutando com a anemia, então eu tenho um corpo que também funciona de outro jeito. Manda pra hemato... Eu tenho meus exames desde 1975, levei todos ‘pra’ ela, fiz um mapa, ela fala “Nossa, não, tá linda, não precisa”. Aí ela fala da área dela com segurança, uma segurança diferente do que o cara, do que o oncologista fala, ela fala “Tá ok, a gente pode acompanhar sempre que houver necessidade”. Aí tem um ‘nodulozinho’ na tireoide que boa parte da população tem. Aí tem um nódulo meu que tem 0,9 de tamanho, aí o deadline pra você fazer pulsão, que é enfiar uma agulhinha e pegar um pedacinho, é 1cm, só que eu ‘tô’ dentro do Hospital do Câncer, 0,9 vai pra pulsão, aí eu falo “Olha, mas eu tenho um exame anterior, que é 0,9, se eu tiver e trouxer você topa não fazer?”,“Topo”. Aí eu vou lá, levo meu exame, falo “Olha, 0,9 e 0,9, não aumentou nada”,“Ta bom, então não precisa fazer, só acompanhar”. ‘Tô’ falando isso pra dizer que são cuidados que eles vão tendo, mas eu me sinto bastante esquartejada lá, eu não acho que o hematologia fala com o oncologista, fala com a mastologista. Eu é que faço a conversa entre eles e não gosto, me esqueci qual era o argumento que ele tinha, eu preferia que eles conversassem, e uma hora falei assim, falei pra mim mesma “Acho que eu vou ficar só com um, só com o oncologista”. No ano passado eu falei pra mim mesma isto: “Vou ficar só com o oncologista” porque me deu a ideia assim. Oncologista clínico não parece que ele vai te acompanhar geral? Aí fui lá, falei “Olha, eu vou ficar só com você, não vou mais na mastologista”. Aí ele disse: "Não, pelo amor de Deus, se você vai ficar só com um, fica só com ela”. Aí eu já não tinha nem os pedidos dela de exame, nem nada. Aí vou fazer consulta com ela agora, porque aí depois também veio a pandemia, ficou tudo suspenso, nunca mais eu a vi, vai fazer um ano. Eu tenho consulta com ela agora na próxima sexta, ‘vamo’ ver. Mas eu não me sinto... eles têm super um discurso, até propaganda no rádio, “Aqui tratamento integrado, você humanizado…”. Não ‘tô’ fazendo uma crítica, é um hospital grande, é um hospital escola, eu estou sendo também atendida junto com estagiário, estagiário não, são residentes, né, gente finíssima, pessoas competentíssimas, às vezes gosto até mais da conversa deles do que com médico. Eu pergunto muitas coisas, eu tenho muitas dúvidas, então a pessoa derrama pra mim muitos saberes, e eu gosto disso, mas eu me sinto bastante... Sim... E eu mesma não sei fazer essa junção, se é que é pra saber, né. Então, eu vou... Assim que você faz... Que você terminou, lá, março, você faz consultas uma vez por mês. Com a cirurgia eu ia lá toda semana pra ela ver o corte. Então isso tudo vai se espaçando, hoje em dia eu tenho um intervalo de seis em seis meses, eu visito um, eu visito o outro com exame, não é que ela pede mamografia de seis em seis meses. Às vezes é um ultrassom, às vezes é uma mamografia, às vezes é um exame de sangue com tais coisas, eles vão ali temperando isto, mais ou menos no intervalo de seis meses eu vou, seis, sete. A ideia é que até cinco anos você é devolvida ‘pra’ população, aí você tem risco igual a qualquer outro, é essa que é a questão, aí eu acho que hoje eu faria como qualquer pessoa. Eu visito a ginecologista, faço exames ginecológicos, que se você me perguntar “Ah, é pra fazer mesmo?”, não sei. Hoje em dia eu ‘to’ interessada naquele coletivo feminino que tem ginecologistas, fica na Vila Mariana, que acho que chama Coletivo Feminino mesmo. Eu também tentei marcar uma consulta agora nesses últimos meses, mas aí seria não presencial e aí eu falei “Não quero ingressar desse jeito”. Então eu to num standby, mas eu me sinto velha tentando buscar coisas que são muito importantes que vocês busquem com 20 anos, né. Um pouco isso, assim, né? Eu fui ouvir uma pessoa falando do seu ciclo menstrual, de todas as diferenças dia por dia da sua vagina, da sua secreção vaginal, eu acompanho algumas pessoas, tá. Eu posso hoje conhecer isso, mas eu não posso mais fazer isso, percebe, eu não tenho mais esse ciclo menstrual, eu não tenho mais essa vagina, não tenho mais isso, e eu lamento, lamento que a gente tenha sido interditada tanto, né. Eu to falando, assim, muito desses ‘exemplinhos’, eu podia falar de outras coisas que também são grandiosas, mas disso que revela o lugar da mulher numa coisa mais cotidiana que é a tua vagina, por exemplo, todo dia você olha pra ela algumas vezes. Então é isso, assim, é bom que vocês possam estar perto disso tudo. Vocês, eu digo os jovens, não vocês as mulheres. Os jovens, os homens e as mulheres, né, porque também fico pensando “Homens também não sabem de nada sobre as mulheres, e também que tensão naquele lado de ter que lidar com esse universo que eles também conhecem pouco”. Então é só difícil pra todo mundo, e acho que hoje em dia tenta-se desvelar muitas coisas, e faz muita diferença, faria diferença ‘pra’ nossa saúde mental e física. Faria muita diferença. Todo mundo seria mais feliz.

R – E, Denise, me conta uma coisa: como o coronavírus e essa pandemia afetaram os seus dias, sua rotina. Já vi que adiou os seus exercícios pélvicos, mas que mais?

P1 - Eu acho que, por exemplo, eu tenho uma casa que eu gosto, que é confortável. Eu sou uma pessoa que é assalariada da USP, então eu não tive preocupação com o meu financeiro, não tive preocupação com o meu negócio, eu tenho uma amiga que é dona de restaurante, duas, por exemplo, tá. Meu salário cai lá, a menos que um dia que tudo quebrar, quando o país quebrar eu também vou quebrar junto, então, percebe que eu sou uma ultra privilegiada?

E eu preciso contar isso, né, então eu tenho uma casa gostosa, que eu escolhi, que é confortável pra mim, meu salário cai todo mês. O que que ficou muito diferente? De fato, esse aprisionamento, eu ‘tô’ falando da minha vida, não vou falar do país, gente, porque aí eu não vou parar nunca mais de chorar e eu não quero falar sobre isso mesmo, tá, do país e não é só do país, é do mundo, porque essa ideia de globalização ela é isso, você se sente dentro do mundo totalmente. E o coronavírus trouxe isso tão forte ‘pra’ gente, né, o que é estar vivendo no mesmo globo terrestre? Acho que é incrível isso, interessante, né, de pensar nisso. Eu não ‘tô’ aqui deixando de lado os incêndios, não quero falar nada disso, do nosso presidente, não ‘tô’ deixando isso diminuído, eu ‘tô’ falando aqui da minha vida, então estou falando da minha casinha, confortável, que quase que me constrange, né. Mas eu tive que... Eu sou uma pessoa que eu gosto de estar na minha casa, eu adoro ficar no meu quarto, eu adoro, eu gosto do meu quarto. E aí, a minha filha mais velha, neste ano exatamente, tinha declarado sua partida de casa, ela também foi pega pela pandemia e a saída dela foi bastante tumultuada, diria que acabou agora, no dia nove, mas começou em janeiro. Janeiro ela anunciou que em abril ela ia mudar. Aí março, pandemia, então ela não mudou pra onde ela ia mudar, mas ela foi passar a pandemia em outra casa. Aí no meio disso tudo que não se resolve, ela muda pra casa que ela ia mudar, nisso ela fica grávida do namorado, parceiro bacana. E resolve então que não vai mais morar nessa casa, vai morar nesta outra, então, tumulto. Mas o fato é que ela saiu da minha casa fisicamente desde o começo da pandemia, então sobrou eu e a Clarice, minha filha mais nova de 22 anos. Então eu vou falar deste lugar, tá, desse universo. Então ficamos nós duas a conviver 24 horas, isso é uma coisa inédita e eu não posso dizer que ela é um prejuízo, isso é um patrimônio que eu ‘tô’ ganhando, ‘tô’ ganhando esse patrimônio, gente. Conviver com a minha filha de 22 anos, 24 horas, ver ela assistindo aula, ver ela dormindo, ver ela irritada, ver ela ‘desirritada’, ver 24 horas, ter que combinar com ela o que nós vamos comer, o que nós não vamos comer, se a gente vai deixar ‘fulaninho’ vir visitar, se a gente não vai deixar ‘fulaninho’ não visitar, porque tem o meu jeito de estar na pandemia, tem um jeito dela estar na pandemia, e qual é o acordo que nós temos que fazer porque dividimos a mesma casa. Então, eu quero dizer que é um patrimônio inalienável essa convivência com ela, eu acho que a gente se conhece de um jeito que a gente não teria, porque normalmente ninguém pararia ‘pra’ ficar vivendo com a sua filha assim, então é uma lindeza essa parte, e posso dizer que, assim, a gente vai vivendo muito bem, a gente tem uma... Eu penso né, também aqui do meu lugar, não sei o qual é o discurso dela , mas eu acho que a gente tem bastante harmonia, a gente compartilha de muitas opiniões, que compartilhadas ou bastante articuláveis, às vezes não são iguais mas elas conseguem ser ali compostas, tá, então eu acho que é muito gostoso. Então a gente se apropriou também de produzir a própria comida, eu sempre fui muito apavorada com cozinhar, tá, gente, apavorada. Era um negócio... E a Clarice não é da cozinha nem é cozinheira, mas ela é muito corajosa, ela não tem esse pânico que eu tenho. Hoje eu posso dizer que eu tenho muito menos, então, de vê-la assim tão à vontade, tão experimentando, eu também fui me experimentando, e ela é uma pessoa que topa comer, vou chamar assim, qualquer coisa. “Nossa, fiz isso, deu tudo errado, mas dá pra comer”, ela topa e eu também, né. Então ela tem uma relação com a comida que é muito tranquilo, ela dá muito valor ‘pra’ isso e não é um valor tenso, é um valor tranquilo. Então foi bom nesse sentido, eu acho que eu ganhei coisas, eu ganhei tranquilidades, aproximação com essa pessoa. Ah, eu sofro porque eu vejo, eu penso, né, a juventude tá... Eu falo pra mim mesma, né, que a juventude não é só ser jovem, ir pra escola todo dia

no nosso ‘classinha média' aqui, é esse calor, essa pulsação dos corpos circulando, isso acabou...E aí eu sofro pela minha filha e por todos os outros jovens. Pra mim, isso falta menos, não é que não falta nada, mas ‘pra’ mim isto é menor, ‘pra’ mim isso é muito menor, eu estou muito mais aquietada na vida. Pra mim, estar em casa não é tão terrível, né, claro que falta um pouco da minha presença no ambiente de trabalho, o ambiente de trabalho me faz falta, a gente tava trabalhando de modo remoto, tenho muitas reuniões virtuais, tivemos que reinventar o que é Educação Infantil do modo remoto, então foram pensamentos muito interessantes ‘pra’ serem feitos, o que que a gente queria produzir, por que que a gente queria produzir, para quem a gente a gente queria produzir, e a gente pôde fazer essa discussão toda, mas claro que falta convivência, né, menos do que para os jovens, não só para os jovens universitários, para os jovens, os jovens mais jovens do que eu, tá. Eu acho que aos 61, eu ‘tô’ mais aquietada mesmo. Eu não sinto pânico, eu não tenho pânico de ter coronavírus, pegar coronavírus, eu não sou da população que tem medo, não sou da população que "Ai, eu não posso nem ver a notícia que eu fico deprimida”. Não sou, pelo contrário, eu quero ter o maior número de informação que eu puder, tanto científica sobre coronavírus, como sobre as políticas, sobre como as ondas que vão e vem nos outros países. Lamento a política que o Brasil conseguiu não implementar, lamento sempre por tudo, mas é isso, estou escolhendo não ter aqui um discurso com esse viés, mas eu pessoalmente não sou uma pessoa apavorada. Ou porque eu acho que se eu pegasse coronavírus eu quereria ser da pessoa que venceu ele na boa, penso eu, que é isso o que eu te falo: “Eu isso, eu aquilo, por que que eu fui ter câncer? Eu sou saudável, eu cuido da minha vida, do meu corpo”. Assim “Você toma remédio?” Eu não tomo nenhum, eu não tenho nenhuma doença, então eu penso assim, que eu seria uma boa candidata ‘pra’ enfrentar bem, mas também podia ser que eu morresse. É bom? Morreu, e o que que vai fazer? Eu penso isso, então eu... No meu micro mundo, não to falando sobre política, eu acho que qualquer vida é importante, não to dizendo que eu não faria falta pra ninguém, faria, mas, não sei né. Eu tenho sempre essa pergunta, talvez a gente não se livre nunca do status que o coronavírus nos trouxe. A gente vai ouvindo essas conversas, não só ele ter ondas e ondas, mas como outros vírus, de outros jeitos, até piores. Então eu fico pensando que vida que a gente quer viver... Uma vida escondida dentro de casa? Te digo que não me interessa, não me interessa mesmo, né. Então, assim, eu faço todos os protocolos necessários a serem feitos, bastante pelos outros, mas não por medo, claro que eu não quero morrer, não ‘tô’ escolhendo morrer, mas assim que seria, né. Ah, eu lamento isso, lamento que meu exercício pélvico ficou interrompido, lamento que eu penso por muitos motivos. De vez em quando eu falo “Nossa, queria estar em análise novamente”, mas eu não tenho vontade de instaurar no modo virtual. É isso, a ginecologista do Coletivo Feminino, não tenho vontade de inaugurar isso virtual, então é essa vida suspensa que é uma coisa muito chata, eu diria. Chato, eu acho chato, muita coisa eu acho chata. Mas cuidar da casa, eu tive que me voltar pra isso, cuidar da casa, da comida que eu como. Eu nunca comi tão bem, por exemplo, eu vejo propagandas “Ah, você que engordou na pandemia, você que agora está comendo mal”, eu comi muito bem, só melhorei minha alimentação. Eu fazia uma dança muito bacana que eu segui virtual, aí eu falei “Nossa , não, o mais importante dessa coisa era de fato passar calor e ouvir aquela música, que eu até punha algodãozinho na aula”, mas era bom. Aí no virtual eu ‘tô’ meio desinteressada, mas o professor segue dando aula. E aí eu mais fui me aproximando da yoga e da meditação, que eu acho que também combina comigo, e eu acho que pra esse tempo isso está sendo... E aí eu topei fazer no virtual, tá, comecei uma coisa faz um mês e meio, que eu to gostando muito. Então é isso, tem um monte de descobertas interessantes, e uma coisa que eu tenho feito muito é tentado olhar pra essa minha casa e ficar com as coisas que eu preciso e não com tudo que eu tenho demasiado. O próprio pedido de “traga fotos”: eu tenho um acervo de fotos infinito, de fotos que estão copiadas nos álbuns, e mais um milhão que não estão copiadas nos álbuns, ‘tá’ no pendrive, mais outro milhão que está no HD de 1 tera, percebe que procurar fotos num universo desse não é fácil? Então quem tem muito também não tem nada. Essa conversa vem conversando comigo, e na pandemia… Eu falo também sobre guarda-roupa, sobre as louças, todas as coisas, não ‘tô’ falando ‘ser minimalista’, mas é a ter coisas que de fato, eu posso ter dez vestidos, não‘tô’ falando que preciso ter três, eu preciso ter coisas que eu gosto, que eu uso, que são confortáveis. Assim que eu busquei a roupa hoje, uma que eu gosto, que eu uso, que é confortável, tentei fazer isso, e eu queria que a minha casa tivesse todinha assim, então a pandemia me traz isso.

R – E, Denise, hoje quais são seus sonhos?

P1 – Eu tenho vontade de ter uma vida... Meu sonho é ter uma vida menos cheia de compromisso. Por que eu fechei o consultório? Porque eu rumava ‘pra’ um lugar, eu queria viver de renda, gente, eu queria não ter que ganhar dinheiro, muito objetivo, eu queria viver de renda, eu não tenho condição de viver de renda, tá, mas eu tenho feito gerências ‘pra’ esta direção, eu contratei um consultor financeiro pra me ajudar nas minhas pequenas coisas, como que eu podia melhorar, qual é a meta que eu tenho que ter, pra ter essa meta o que que eu preciso cumprir? Então eu acho que eu tenho chance de fazer isso, eu poderia já me aposentar por tempo de trabalho e por idade, mas a aposentadoria em valor de dinheiro é muito menor do que o que eu ganho, e não é que eu ganho uma fortuna, mas o meu valor teria diminuído 50 % do que eu recebo de dinheiro hoje, a aposentadoria me deixaria com 50 %. Pra isso eu preciso cortar 50 % dos meus gastos, isso ainda não é possível, até porque eu ainda vivo com a minha filha, por exemplo, não dou conta só de mim. Então, sonho? Eu gostaria de não estar trabalhando por dinheiro, não estar dependendo do meu trabalho para me sustentar, isso é como um sonho, e não é porque eu não gosto do meu trabalho ou porque eu não quero mais estar ocupada. Só quero ocupar a minha vida de outros jeitos, por exemplo, a minha irmã, o marido dela mora em Bertioga, eu chamo de marido mas tanto meu namorado quanto o namorado dela são nossos maridos, tá, hoje em dia, mas cada um na sua casa, ele mora em Bertioga. Então lá ficou um lugar muito familiar pra mim, e a parceria com a minha irmã é muito boa, ela começa lá naquela coisa que eu conto lá atrás, e ela só se intensificou e na nossa vida adulta a gente foi muito amiga, e na nossa vida terceira idade a gente ficou muito parceira mesmo. Nossos parceiros também são pessoas que se dão muito bem, nós quatro juntos vamos muito bem, eu digo que “Aquele casal faz bem ‘pra’ esse casal”’. Então é muito bom ‘tá’ com eles, é muito bom ir pra praia, é muito bom poder ir ‘pra’ lá qualquer hora, não ter que ter a sua vida assim de segunda à sexta de um jeito, e tudo vira no fim de semana, e tudo vira nas férias, pra mim isso tá demasiado. Não é o meu trabalho que é chato, mas esse enquadre que o trabalho está posto, e que na pandemia isso ficou um pouquinho mais frouxo, né, porque eu já fui pra Bertioga trabalhando, e fiz reunião de lá, né. Então esse enquadre, como ‘tá’ organizada nossa sociedade, ele ‘tá’ demasiado ‘pra’ mim hoje, eu não sei como é pros jovens hoje, porque também vejo muitos jovens dizendo “Não quero essa vida”, que eu estranho, que eu olho com certo arrepio, porque eu passei por isso, eu passei por isso por muitos anos, né. Eu trabalho neste trabalho que eu ‘tô’, desde 1985. Então... Filha, mudança, fiz formação no Sedes quatro anos. Na verdade eu fiz em muito mais tempo, porque você tinha que fazer dois seminários, eu só conseguia fazer um por ano, eu quase que dupliquei tudo. Ah, eu dava conta, e eu gostava. Minha vida sempre foi muito ocupada, eu não achava ruim. E não é que eu ‘tô’... Eu quero só ter outro enquadre na minha vida. Então eu tenho este sonho. E o consultório era a coisa que eu podia primeiro,‘tava’ só na minha mão, eu levei um tempo, levei um ano ‘pra’ encaminhar todo mundo, pra fechar processos de algumas pessoas, e o consultório é aquela coisa: é você e o seu corpo, não tem tirar férias, agora não quero, ou fiquei de licença médica, sabe, não tem isso. Então, eu achei que era o lugar, queria encerrar com muita tranquilidade, que eu podia fazer isso, e é uma demanda, né, é uma demanda grande, intensa, porque no consultório não é só ir lá, atender e voltar, você precisa ‘tá’ na supervisão, você precisa ‘tá’ dentro de uma instituição que circula esse pensamento, que pra mim era o Sedes, né. Então eu fiquei com a USP, que de fato é meu salário certo. Mas eu tinha muita... Eu diminuí a carga horária, eu encerrei o consultório e diminuí minha carga horária de 40 ‘pra’ 30 horas, então eu trabalho 30 horas semanais, que são seis horas diárias. Isso já foi um monte, então eu tenho mais tempo para acordar, tomar café mais tranquila, voltar e ainda são três horas da tarde. Por isso que eu pude fazer ginástica, dança, isso não tinha na minha vida antes não, tem desses últimos três anos pra cá, três, quatro anos pra cá que eu de fato botei essa meta e o meu sonho é isso, que eu queria ter esta vida mais desocupada, menos parametrada por muito relógio e pelo dinheiro. Queria isso.

R – Denise, deixa eu te fazer uma pergunta, você gostaria de acrescentar alguma coisa que eu não tenha te instigado, o que você acha que sente de falar?

P1 – Eu gostaria. Eu gostaria de acrescentar uma coisa. Há muitas, mas eu queria dizer uma, que é assim: eu gostei muito de fazer 60 anos e de ingressar na categoria terceira idade, ou como ‘bilhete especial’. Também é uma das fotos que eu selecionei, no dia do meu aniversário que era um dia de semana, não me lembro que dia que era, mas era um dia de semana, e eu fiz isso: eu não fui trabalhar, tinha combinado que era meu abono, acho que já representa um dos meus sonhos. Acordei, tomei o café da manhã bem ‘tranquilinho’, acho que também é um prazer tomar café gostosamente, e fui caminhando até a estação Marechal Deodoro que tem lá na estação de pegar bilhete único, e pedi meu bilhete único no dia do meu aniversário. Não tinha ninguém no guichê, a mulher me deu os parabéns e eu voltei pra casa, e eu quis muito reverenciar esse ingresso. Então pra mim, fazer 60 anos foi uma coisa muito boa, muito bonita, muito linda, muito prazerosa. Gosto de ser idosa, gosto muito, acho que é com muito orgulho que eu sou idosa. Eu não tenho nenhum medo da palavra ‘velha’ nem ‘idosa’, tenho cartãozinho de estacionamento, bilhete único. Acho bacana que alguém me ‘dá’ o lugar no ônibus, não me sinto ofendida, fico satisfeita. Então, acho que os 60 anos também são um marco pra mim, que foi uma outra foto que eu selecionei, que era eu com o meu bilhete. Acho que é só.

R – Então eu tenho mais duas perguntas pra gente encerrar. Primeiro eu queria saber o que você acha da proposta de mulheres serem convidadas a contar sua história de vida e falarem sobre a saúde da mulher num projeto de memória.

P1 – Então, eu acho que entra dentro dessa marca que eu falo que, de fato, as mulheres precisam poder falar ‘pra’ se ouvir, pra outras pessoas ouvirem, de alguma maneira, nem que nunca ninguém mais acesse essa entrevista, você tá ouvindo, tem outras duas pessoas que eu sei que tão aqui ouvindo, tem outra pessoa, a Lila, que tá ouvindo, pode nem prestar atenção em tudo mas eu acho que todo esse movimento causa algo, marca qualquer coisa. Então a gente vê que as mulheres, né, essa luta toda feminina vai ocupando lugares, tem sempre essa ideia que as vezes parece um exagero em algumas coisas, mas pra coisas muito oprimidas você precisa gritar com muita força, às vezes é ruim, depois você pode entrar em outra vibração, mas é assim que é, não tem jeito, hoje em dia não tem nada que você assista na TV, mesmo na TV fechada, que a mulher não é um super-herói, protagonista, você tá vendo isso, né, a delegada é a mulher, a super-heroína. O feminismo ‘tá’ posto o tempo inteiro em qualquer novelinha, em qualquer seriado. Acho que faz parte, acho importante. Esse aqui é mais um movimento, eu acho que faz parte. ‘Pra’ mim, né, eu falando, claro que eu escuto coisas de mim mesma e me percebo emocionada em algum lugar e faz diferença pra mim. Acho importante, acho muito importante. Acho que isso precisava ter muito mais, porque também a gente você tá falando aqui de um lugar muito circunscrito, eu to falando de São Paulo, capital, classe média, que tem um universo a seu dispor, tá. Então eu to falando de coisas e de consciências, de possibilidades que eu sei que a grande e maior parte das mulheres não têm, né. Então acho importante qualquer movimento dessa natureza. Qual a segunda pergunta?

R – E última. O que você achou de ter participado dessa entrevista, de ter contado sua história?

P1 – Olha, eu me sinto assim, me sinto... Hoje, me sinto um pouco honrada, eu acho que até falei pra Luiza: “Por que que alguém quer ouvir a minha história, gente, sou um ‘zé

ninguém’ ”, né. “Que que tem a ver falar a minha história pra alguém”, fiquei preocupada com o que que eu teria pra dizer que interessa ao outro. É... Medo de ser... Ah, de ser boba... Foi uma certa ‘tensãozinha’ pra mim ‘tá’ aqui. Fotos... Aí fui pensando “Nossa não me lembro de tantas partes da minha vida”. Gente, a minha memória é péssima, então dá uma tensão, não é uma coisa que eu vou lá de qualquer jeito. É... E pensar que eu tenho uma grande história pra contar na saúde da mulher, meu Deus, será? Me senti honrada e acho que toda essa vivência, quero dizer, falei ali pro Renato, né, eu me sinto presenteada, essa sensação que eu tenho, ser presenteada e ter meu arquivo no Museu da Pessoa [risos]. É assim, me senti assim: honrada e presenteada. E nervosa.

R - Que delícia, Denise! Eu não sei nem como te agradecer, foi um presente ‘pra’ mim poder escutar. Ver a potência de vida, sabe, eu acho que nesse período de pandemia ter vida, ter corpo vivo é muito importante. Então foi um presente pra mim. Te agradeço muito, em nome do Museu da Pessoa também, em nome da Lila, mas te agradeço muito, de verdade, por ter topado. Sua história é muito linda e cheia de exemplos e... Gostei muito. Obrigada!

P1 – Que bom!
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FIM DA ENTREVISTA

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