Museu da Pessoa

Uma promessa a Nossa Senhora de Fátima

autoria: Museu da Pessoa personagem: Cecília Alves Lopes do Carmo

Programa Todo Lugar Tem Uma História Para Contar
Depoimento de Cecília Alves Lopes do Carmo
Entrevistada por Paulo César Lucena de Souza e Márcia Treza
Xambioá, 01/09/2016
Realização Museu da Pessoa
XMB_HV005_ Cecília Alves Lopes do Carmo
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições




P/1 – Dona Cecília, nós vamos começar. A senhora fala o seu nome completo, por favor.

R – Cecília Alves Lopes do Carmo.

P/1 – Quando que a senhora nasceu?

R – Eu nasci no dia seis de abril de 1932.

P/1 – Onde que a senhora nasceu?

R – Eu nasci no sertão, não foi na cidade. No sertão numa cidade próxima a Vitória. Vitória do Piauí.

P/1 – A senhora é de Piauí?

R – Eu nasci lá em Vitória.

P/1 – No estado do Piauí?

R – No estado do Piauí.

P/1 – Que lembrança a senhora tem do seu pai?

R – Eu não conheci o meu pai. O meu pai faleceu antes de eu nascer. É pra dizer o nome dele?

P/1 – É.

R – Plínio Alves Amorim.

P/1 – E ele fazia o quê, dona Cecília? A senhora sabe o que ele fazia, com o que ele trabalhava?

R – Ele era agricultor, não tinha fazenda mas trabalhava de, como se diz? Hoje é...

P/2 – Assentamento.

R – É, em assentamento.

P/1 – Ele trabalhava na fazenda de outras pessoas.

R – De outras pessoas, é. Ele era vaqueiro.

P/1 – Vaqueiro!?

R – É.

P/1 – A senhora lembra de alguma história que contavam pra senhora dele?

R – Não.

P/1 – E da sua mãe, que lembrança a senhora tem dela?

R – A minha mãe eu lembro muito bem dela.

P/1 – Como era ela?

R – Era Maria Joana Alves Amorim.

P/1 – E quando a senhora lembra dela, que lembrança a senhora tem?

R – Eu tenho a lembrança como eu vejo o retrato dela, eu tenho a lembrança.

P/1 – Como ela era, a senhora lembra? O jeito dela...

R – Ela era baixinha, gostava de fiar algodão. E fumava cachimbo (risos).

P/1 – E com vocês, com os filhos. A senhora tem irmãos?

R – Tenho não, já faleceu.

P/1 – Mas quantos irmãos?

R – Eu tenho irmã por parte de mãe.

P/1 – Quantos eram, a senhora lembra?

R – Éramos... eu sou filha única, sou filha desse primeiro marido da minha mãe. E aí minha mãe casou de novo e teve cinco filhos do outro. Aí só tem eu, que sou filha única, e uma que mora em Goiânia, que é do segundo casamento.

P/1 – E vocês conviviam quando vocês eram crianças? A senhora convivia com esses outros irmãos?

R – Convivia.

P/1 – E a senhora lembra como ela era com vocês, com os filhos?

R – Era na, como se diz, na vida da roça trabalhava, fiava.

P/1 – E vocês trabalhavam também na roça, dona Cecília?

R – Não, eu não trabalhei na roça porque eu não fui criada com minha mãe. Uma senhora, uma madrinha minha que me pegou pra criar, né? Então eu não fui criada com minha mãe.

P/2 – Dona Cecília, a senhora quando era criança, a senhora gostava de ouvir histórias?

R – Gostava.

P/2 – E quem que contava essas histórias?

R – Era o meu padrasto que contava, a minha mãe, aí algumas vezes, né, que a gente, pessoa que vive assim, que mora no mato, não tem muita opção pelas coisas, né? (risos)

P/1 – E reunia pra contar história?

R – Algumas vezes, quando a lua estava bonita a gente sentava no terreiro e ia contar história (risos).

P/1 – A senhora lembra de alguma história que a senhora mais gostava? Ou porque tinha medo...

R – Não, não lembro, não.

P/2 – Dona Cecília, o seu pai era de onde?

R – Meu pai, pernambucano.

P/2 – E a sua mãe?

R – Minha mãe, maranhense.

P/2 – A senhora lembra da casa onde a senhora passou a sua infância? Como era essa casa?

R – Eu passei pouco tempo lá onde era meu avô, minha avó, minha mãe, minhas tias, passei pouco tempo lá.

P/1 – Era na fazenda?

R – Era. Ele era vaqueiro.

P/1 – Seu pai.

R – Tanto o meu pai como o meu avô eram vaqueiros.

P/1 – Quando a senhora ficava nessa casa assim, tinha coisa de vaqueiro? Tinha alguma coisa que eles usavam?

R – Eles usavam, como se diz, aquela perneira, né? Aquele vestido de couro.

P/1 – Sei.

R – É, aquela calça de couro.

P/1 – A senhora lembra do seu pai com aquela roupa?

R – Não.

P/1 – Eles usavam perneira.

R – Não conheci meu pai.

P/1 – Ah, é verdade! A senhora não conheceu.

R – É, meu pai faleceu antes. Minha mãe disse que meu pai faleceu eu estava com dez dias de nascida.

P/1 – Dez dias! É verdade, a senhora tinha falado, é verdade.

R – Não conheci.

P/1 – E a senhora disse que foi criada por uma madrinha.

R – Foi.

P/1 – Bem pequenininha a senhora foi?

R – Não, já com nove anos.

P/1 – Era na mesma cidade, era perto?

R – Não, aqui no Maranhão. A senhora Ursula Pereira.

P/2 – Dona Cecília, quando a senhora era criança, que morava lá no Maranhão, a senhora lembra das brincadeiras que vocês brincavam naquela época?

R – Não, não lembro. Eu lembro assim, daquelas brincadeiras de roda, né?

P/1 – A senhora brincava...

R – Fazia aquela roda, a gente cantava rodando e ficava uma no meio, né? (risos).

P/2 – E a senhora tinha muitos amigos lá onde a senhora morava nessa época?

R – Tinha não. Nós morávamos era...

P/2 – Na fazenda.

R – Era na fazenda e era muito longe. Era assim, era próximo, não era próximo não, mas era perto da Vitória, da Vitória do Maranhão. É, a Vitória do Maranhão. Eu não sou da Vitória do Piauí, sou da Vitória do Maranhão! (risos).

P/1 – Dona Cecília, a senhora foi morar com a sua madrinha.

R – Foi.

P/1 – Quando a senhora chegou lá na casa da sua madrinha, qual foi a sua sensação? O que a senhora sentiu?

R – Minha sensação foi uma coisa muito diferente da vida que eu vivia praquela vida. Uma casa muito bonita na cidade, já as coisas, comidas diferentes.

P/1 – Tinha outras crianças na casa?

R – Tinha. Lá nessa casa, nessa época nós éramos três pessoas que estavam naquela casa criada por aquela família.

P/1 – Sei. As outras também não eram filhas.

R – Não. Mas ela tinha muito filho.

P/1 – É?

R – Ela teve dez filhos, mas quando eu cheguei só tinha uns oito.

P/1 – E como a senhora se sentiu nessa casa, como era?

R – Eu me sentia pelo menos, assim, tudo diferente, né? Eu não tinha uma escova, aí passei a ter uma escova de escovar dentes (risos), que eu não tinha.

P/1 – Começou a ficar...

R – É, começou a civilização, né? (risos)

P/1 – E a senhora ficou o tempo todo, até ficar mais velha nessa casa?

R – Fiquei. Até quando casei fiquei lá.

P/1 – Nesse lugar.

R – Neste lugar, nesta mesma casa.

P/1 – E a senhora – a gente está vendo aqui para não esquecer de perguntar nada. A senhora frequentou escola?

R – Frequentei.

P/1 – Em que época?

R – Só até o terceiro ano primário.

P/1 – E foi nesse lugar que a senhora foi morar.

R – Foi. Lá em Riachão, Maranhão. Bem aqui, perto de Balsa.

P/1 – Ah, é?

R – É.

P/1 – E o que a senhora lembra da escola? Que lembranças a senhora tem da escola?

R – Me lembro muito bem de nossas brincadeiras. Quando a gente saía, eu me lembro do hino que a gente cantava. (canta): Adeus escola querida, adeus ninho de amor. Jardim florido da vida, canteiro de almas e flor.

P/1 – Que bonito!

R – Só me lembro desse (risos).

P/1 – Que ótimo! Quando saía da escola cantava essa música?

R – Era.

P/2 – Quando terminava a aula naquele dia.

R – É.

P/1 – Que bacana!

P/2 – Dona Cecília, e na sua vida durante a escola, teve algum professor que ficou na sua memória, que marcou a senhora, que a senhora gostou, que a senhora aprendeu alguma coisa com ele?

R – Teve (risos). Era uma professora. Ela chamava Permina, o mesmo nome da finada Permina aqui, pois é. E a gente levava lá da casa da minha tia Ursula, onde eu morava, a gente levava a merenda, a gente levava era um pedaço de queijo e farinha de fubá pra merendar (risos).

P/2 – E a senhora lembra como era a professora, como era o jeito dela?

R – Me lembro! Uma velha, era Porcina. O mesmo nome daquela da novela, Porcina. Ela usava aquelas saias amarrada de cordão na cintura. A saia larga, mas não era lá embaixo, não, normal, né?

P/1 – Sei. E como ela era assim com vocês?

R – Ela era meio valente (risos).

P/1 – Era valente? (risos).

R – É, aí na hora da tabuada a gente fazia a roda e perguntava: tanto e tanto. Um lá falava. Perguntava a outro, não dizia, não sabia. Passa na frente e passava. Aí pegava um bolo, batia nela, dois bolos mesmo pra valer.

P/2 – A palmatória, né?

R – A palmatória, daquele material pesado, eu não sei como é que chama. Será que é ipê?

P/2 – Deve ser.

R – Eu sei que era muito pesada na palmatória.

P/3 – E como é que a senhora ia na tabuada?

R – Eu sempre sabia mas batia nos outros. Mas teve um que me bateu, me deu dois bolos, aí nós ficamos entregados (risos). Quando foi aqui, nós morava aqui no hotel, tinha um hotel aqui, quando é um dia veio um moço, umas pessoas de Araguari hospedar aí. Quando eu dei fé aquele homem que me deu o bolo, né? Eu digo: “Nelo, tu ainda é, tu tá aqui, nego?” (risos). Aí ele disse: “Eu to, doida!” (risos). Porque eu bati nele, né? E depois ele me deu dois bolos.

P/1 – E aí quando ele chegou no hotel a senhora falou: “Eu que vou dar um bolo nele” (risos).

R – Eu tratei bem.

P/1 – Tratou bem.

R – Foi (risos).

P/2 – E ainda durante esse tempo que a senhora estudava lá no Maranhão, era lá em Riachão, né?

R – É.

P/2 – Como é que a senhora ia pra escola?

R – Normal, como as crianças aqui de hoje.

P/2 – Tinha uniforme, todo mundo ia uniformizado.

R – É, tinha uniforme, mas também tinha dia que podia ir sem uniforme. Porque eu estudei em escola pública e aí a minha madrinha nos tirou e botou em escola particular, nessa Porcina, nessa velha. Ela era muito, assim, uma pessoa muito sabida. Então quem não ficava muito tempo naquele, aí ia lá pra escola dela. Lá era pago.

P/1 – E era longe da sua casa?

R – Não.

P/1 – Ia a pé?

R – Era na mesma rua mas ficava a uns... na mesma rua mas ficava um pouco longe.

P/1 – Dava pra ir a pé.

R – É. Ia a pé.

P/1 – E a senhora disse que ficou até os nove anos, que série que a senhora falou?

P/2 – Terceira.

R – Terceiro ano.

P/1 – Até terceira. E depois, dona Cecília? Quando a senhora saiu dessa escola...

R – Eu não estudei mais, eu casei.

P/1 – Mas quando a senhora casou já fazia um tempo que a senhora tinha saído da escola?

R – Já.

P/2 – Dona Cecília, quando a senhora casou qual era a idade da senhora?

R – Dezessete anos.

P/2 – Dezessete anos. Casou em Riachão mesmo?

R – Foi. Eu casei só no civil.

P/1 – A senhora casou com 17 anos.

R – Foi.

P/1 – E a senhora falou que fez até a terceira série. Teve uma época que a senhora já era mocinha, antes de casar.

R – Teve sim.

P/1 – E vocês faziam o quê nesse período?

R – Nós fiava, fiava algodão.

P/1 – Olha! E vendia? Como que era?

R – Não, fiava era para nós mesmos, era para a família. Então tinha tear dentro de casa. Eu sei tecer, fazer tudo, fazer o cabo das redes, tudo.

P/1 – Conta um pouquinho como era essa parte de fiar.

R – Fiava no fuso, aqui, né? Fiava no fuso e fiava na roda. Da roda era bom porque a gente estava cantando e estava fiando, era tão bom, tão bonito!

P/2 – Tinha um horário para vocês fazerem esse trabalho?

R – Era assim, das oito pras nove, depois que nós arrumava mais ou menos as coisas da cozinha. Aí ia fiar.

P/2 – Eram várias pessoas fiando.

R – Eram duas ou três.

P/1 – A senhora e quem mais?

R – Era a outra que era criada lá também.

P/1 – A senhora lembra de alguma música dessa época que a senhora fiava?

R – Não, não.

P/1 – Mas ficava fiando e cantando.

R – Era. Fazia a renda da almofada.

P/2 – Renda de bilro, né?

R – É, a gente tirava o espinho do mandacaru pra fazer as rendas na almofada, a gente tirava os espinhos do mandacaru pra fazer as rendas.

P/1 – Esse espinho era pra usar pra quê?

R – Pra fazer a renda. Tinha a almofada e aí tinha a renda, a gente fazia com aqueles bicos, aqueles tocum, né? A gente fiava...

P/1 – E os espinhos servem pra quê?

R – O espinho era pra você fazer aqui o pedaço da renda, aí terminava aquele pedacinho ali, aí botava o espinho, terminou, aí você ia fazer outro. Mas na mesma almofada, a mesma renda.

P/1 -

Entendi!

P/2 – O que a senhora ia contar agora?

R – Do negócio da renda, é? Então aquela renda é pra nós mesmos, pra botar em roupa nossa, a gente botava aqui, botava renda mais em cima aqui e botava o bico aqui mais embaixo (risos).

P/1 – A senhora lembra de algum vestido que a senhora adorava, gostava?

R – Eu lembro. Era um vestido branco. Eu era filha de Maria na igreja, então nos dias especiais de festa ou de uma reunião a gente usava aquele vestido, mais arrumando o cabelo que, de linho branco. Uma coisa muito linda, eu tenho saudades desse vestido, eu tenho saudades desse tempo.

P/1 – E tinha renda nesse vestido?

R – Tinha.

P/1 – Você que tinha feito?

R – Eu não fazia, mas a gente dava a renda e o pano pra pessoa fazer, a costureira fazia.

P/1 – A renda que tinha nesse vestido, a senhora que fez?

R – Eu que fazia. A renda e o bico. Fazia tantos metros de renda, aí você ia dobrando, você ia dobrando ela aí, mas ficava em cima da almofada, de lado. Pra cá a gente estava fazendo. Quando chegava aqui embaixo, que terminava o papelão, você tirava os espinhos tudinho e começava de novo.

P/1 – Devia ser lindo!

R – É.

P/1 – Hoje em dia a senhora faz alguma coisa de renda, de tear?

R – Faço não, faço nada.

P/1 – Mas lembra bem, né?

R – Não faço nada disso, eu lembro bem.

P/1 – É bem bonito mesmo esse trabalho. Dona Cecília, e a senhora casou com 17 anos de idade.

R – Dezessete anos.

P/1 – E a senhora continuou morando no Maranhão?

R – Não. Casei e vim. Eu fiquei uma temporada no Maranhão, fiquei só dois meses lá onde eu casei, aí vim embora.

P/1 – Como foi que a senhora conheceu o seu marido?

R – Eu conheci lá, ele trabalhava de mecânico. Até que minha madrinha não queria que eu casasse com ele, eu fugi e casei. Mas depois teve que largar porque o cabra não prestava mesmo, era bêbado de cachaça (risos). Ele disse: “Se tu me largar eu te mato!”. Aí aproveitei um dia que ele saiu pra receber uma conta e eu fugi. Corri duas léguas, de lá da fazenda onde nós estávamos, que ele estava consertando um engenho de ferro, corri duas léguas mais uma mocinha que me deram. A mulher disse: “Leva, dona Cecília, leva pra senhora”. Eu digo: “Ô minha filha, eu não tenho casa, eu não tenho onde morar, eu não tenho casa, eu estou separando do marido, não quero que ele nem saiba” “Não mas eu vou deixar ela aí”. Aí deixou ela ir comigo. Aí nós corremos duas léguas lá da fazenda que nós estávamos pra Miracema, duas léguas de pé no tombador, areião! Naquele tombador de areião. Quente. Aí cheguei lá, lá tinha um irmão meu, irmão de criação porque era filho da mulher que me criou, né? Então ele era prefeito na época, seu Eurípedes Coelho, ele era prefeito na época. E eu cheguei não conhecia, não conhecia nem Miracema, cheguei na ponta da rua e procurei onde era a casa do Eurípedes, aí me ensinaram e eu fui ligeiro com medo do cara me pegar, né? Quando eu acabei de chegar, não passou duas horas, ele chegou. Chegou lá na porta. Aí o tio Eurípedes já tinha chamado umas pessoas, o sargento, o juiz, já estava tudo lá que era pra desquitar o casamento. Mas ele não assinou de jeito nenhum. Eu dentro de um quarto trancada, saí só pra assinar lá. E ele não assinou e falando toda vida que ia me matar. Aí mandou prender ele e ele chegou lá na delegacia e fez foi atirar lá na delegacia, foi uma confusão doida. Até que pegaram ele. Pegaram ele e eu fiquei lá na casa do tio Eurípedes. Aí o dono do batalhão lá, quer dizer, se autorizou assim na responsabilidade que ele não iria fazer nada comigo. Aí eu passei muitos dias lá na casa do tio Eurípedes e eles me embarcaram pra vir pra Pedro Afonso, onde morava minha mãe, que eu tinha saído da casa da minha mãe pequena e ia voltando daquele jeito. E gestante.

P/1 – Nossa! Dona Cecília, a menina que veio com a senhora ficou lá? Que vinha uma moça.

R – Foi, vinha uma moça. Aí eu peguei e dei essa moça pra mulher do meu tio, do Eurípedes, chamava Barnabete. Eu tinha pena, mas eu não tinha nada, mamãe não tinha nada lá em Pedro Afonso, eu ia pra lá e só Deus sabia como a gente ia viver, porque minha mãe vivia de lavar roupa, eu fui lavar roupa mais minha mãe.

P/1 – Quando a senhora encontrou, fazia tempo que a senhora não via sua mãe?

R – Fazia.

P/1 – Desde criança?

R – Desde que eu saí com nove anos. Aí fui criada lá, fiquei moça, estudei bem pouquinho e casei, fugi e casei. A minha madrinha não queria e eu casei.

P/1 – Dona Cecília, quando a senhora conheceu o seu marido, a senhora não sabia que ele era assim.

R – Não, não sabia.

P/1 – E como foi esse encontro?

R – Eu conheci, ele tinha uns parentes que moravam lá, moravam até lá perto da fazenda da tia Ursula. Ele tinha uns parentes que morava lá, mas esses parentes mesmo também não conheci ele, né? Aí ficou, uma prima dele que queria casar com ele (risos), aí ele pegou e casou comigo. Ela ficou até um pouco diferente, mas não teve nada não.

P/1 – Ele apaixonou foi com a senhora mesmo.

R – Ele disse que queria casar comigo, pronto.

P/1 – E voltando pra depois que a senhora veio encontrar sua mãe. Como foi o encontro, dona Cecília?

R – Foi muito bom porque você sabe que encontrar a família, pode ser qualquer hora de qualquer situação que você esteja é muito bom, né? Aí fui lavar roupa mais ela.

P/1 – Lavava onde a roupa?

R – No rio. No rio em Pedro Afonso, lá no rio do Sono. Rio do Sono. O rio do Sono é o mesmo do que aquele negócio ali, o rio do Sono aqui, o Tocantins aqui, então aqui ele se embocava.

P/1 – E aí a senhora lavava roupa, como que era? Conta um pouquinho.

R – É, lavar roupa no rio, lá no rio do Sono.

P/1 – Lavava roupa pras pessoas ali, que moravam por ali?

R – É.

P/1 – E era puxado, era difícil?

R – Não, não era difícil, não. Era difícil porque eu e minha mãe, a minha mãe tinha os outros filhos, viúva, quando eu cheguei o segundo marido dela já tinha morrido, então ela viúva e com esses filhos. E mais eu, que cheguei. Aí tinha um que ajuntava aquelas moedas, tem moeda de prata, né? Que ele trabalhava de ourives. E muito pedaço de ouro, aquelas coisas.

P/1 – Quem trabalhava, o seu padrasto?

R – Meu marido, ele trabalhava também de ourives, então ele veio montando essas pecinhas e eu fui vendendo. Fui vendendo, o que eu pensei? Se eu pensasse como hoje ele tinha guardado pelo menos uma, duas de lembrança, né? Mas a necessidade não deixou (risos).

P/1 – E como a senhora veio pra cá?

R – Eu vim pra cá já depois que eu morava lá em Pedro Afonso com a minha mãe, eu vim pra cá por causa de uns negócios do garimpo, né?

P/1 – Então antes da senhora vir o Paulo vai perguntar outra coisa pra senhora.

P/2 – Dona Cecília, quanto tempo passou pra senhora reencontrar sua mãe lá em Pedro Afonso?

R – Passou muito tempo. Eu saí com nove anos e estava voltando já com mais de 17, né?

P/2 – Se passaram aí quase dez anos, né?

R – Porque meu marido, eu só estive com ele só oito mês.

P/1 – E a senhora falou que estava gestante.

R – Foi.

P/1 – Teve filho?

R – Tive filho lá na casa da minha mãe.

P/1 – Foi o quê, menino ou uma menina?

R – Menina!

P/1 – Menina?

R – Menina!

P/1 – E o nome dela?

R – Berenice. Que é a filha do meu marido legítimo, aquela lá que está bem de frente, aquela da blusa.

P/1 – E como é que foi depois? A senhora teve a Berenice lá.

R – Foi.

P/1 – E foi criada com a senhora?

R – Foi criada comigo e depois ela foi criada com uma madrinha dela também.

P/1 – Lá.

R – Foi. Não, foi pra Novo Acordo.

P/1 – Então, como que a senhora saiu desse lugar que a sua mãe morava, Pedro Afonso?

R – Eu saí, eu e a comadre Sinhá e o Duzentinha. Foram nós três que saímos de lá e viemos pra cá de motor, um motor grande. A coisa mais bonita. Esse rio tinha muita água. Você acredita que ele vem aqui adiante desse poste ali? Pois é, na época da enchente. Acabou-se isso, está só secando. Dá uma tristeza você passar na beira desse rio. Eu olhando ali, a gente passando ali e a água lá, eu olhando ali, a tristeza que está esse rio. Pouca água, as pedras quase tudo de fora.



P/1 – E quando a senhora veio pra cá, conta a viagem pra gente.

R – A viagem. Nós viemos de cavalo, eu com mais Sinhá e o Duzentinha. Aí ficamos no porto ali do... como é que chama aquela cidadezinha que fica de frente pro ceição?

P/2 – Couto Magalhães.

R – Couto Magalhães.

P/2 – Então ela saiu de Pedro Afonso, diga aí.

R – Pedro Afonso, Magalhães e embarcamos num motor. Tu ainda conheceu o motor grande do... ele era um motorzão grande que apitava, uma buzina bonita. Era muito bonito. Quando ele vinha muito lá em cima, muito aqui embaixo a gente ouvia a buzina dele.

P/1 – Dona Cecília, a senhora, o seu Duzentinha e a dona Sinhá vieram os três juntos.

R – Foi, viemos os três juntos.

P/1 – Saíram de Pedro Afonso a cavalo e foram até... conte aí.

R – Saímos de Pedro Afonso a cavalo e ficamos de, como é que chama?

P/2 – Couto Magalhães.

R – Couto Magalhães esperando o motor, então o motor já estava do lado de Conceição lá, aí só veio apanhar nós e apanhou nós e descemos. Aí cheguei aqui no dia 11 de outubro de 1954.

P/1 – Dona Cecília, a senhora vai contar depois toda essa viagem depois que a senhora chegar aqui, mas o que fez vocês três saírem de lá? Por que vocês resolveram vir embora?

R – Sair de lá de Pedro Afonso? Como se diz, a notícia do garimpo. Que aqui a pessoa podia, se fizesse um biju, vendia, se fizesse um cuscuz vendia. Então a gente veio. Quando cheguei fiquei um dia lá mais a comadre Sinhá fechando já naquela casa, que hoje mora a Luísa, aquilo ali era da comadre Sinhá. Então de frente tinha uma farmácia que era um compadre meu, quer dizer, foi compadre depois, porque a gente batizou a menina ali na capela de São Judas Tadeu, foi a comadre Sinhá e o Mondico, era outro nome, mas a gente chamava ele de Mondico.

P/1 – Conta pra gente essa viagem antes da gente chegar aqui, essa viagem com o barco.

R – Foi muito bom, a gente cantava, a gente comia aquela maria isabel com carne seca. Quer dizer, cozinhava a carne, botava o arroz dentro e fazia maria isabel. Aquilo ali era muito bom.

P/1 – Quanto tempo levou a viagem?

R – Eu não me recordo mais.

P/1 – Quantos dias?

R – Eu tenho pra mim que foi um dia e pouco. Ou foi mais? Eu não me lembro. Sabe por quê? Naquele tempo o rio tinha muita água. E andava o dia e um pedaço da noite, agora quando chegava, ficava mais tarde ele parava e todo mundo dormia. Todo mundo tinha sua redinha, atava, que o motor era grande e quem não podia atar rede, como eu mesma não podia e a comadre Sinhá, tinha aqueles bancos, a gente forrava e dormia ali.

P/1 – E a paisagem, a senhora lembra da paisagem?

R – Lembro.

P/1 – Como era?

R – Quando estava de dia era muito bonito, muito bonita a paisagem. E a água, que tinha muita água nesse rio. Hoje ele está quase seco. Era muito bonito. Aí na viagem, muitas vezes a gente parava: “Vamos parar ali pra comer alguma coisa melhor”, que tinha um negócio nas paradas. “Vamos parar ali pra ver”. Aí chegava lá, tinha só um arroz, um maria isabel de fava (risos). Mas estava tão gostoso (risos). Aí o Duzentinha já tinha comido um bocado porque tinha passado primeiro, né? Já tinha comigo, aí nós chegamos por último e fomos comer. Aí a mulher foi botar: “Bota aqui um pouquinho pra mim, dona”. Aí ela meteu a mão dentro da panela, tirou com aquele pegado (risos), botou, eu comi, achei foi bom (risos). Não sei nem que dia ela tinha lavado aquela mão (risos). Coisa boa, muito bom.

P/2 – Dona Cecília, aí a viagem aconteceu. Como foi a sua chegada, como foi a chegada de vocês aqui, aqui em Xambioá? Foi em 1954, né?

R – 1954.

P/2 – Como foi a chegada de vocês aqui? Quando a senhora chegou qual foi o primeiro impacto que a senhora percebeu?

R – A comadre Sinhá já tinha essa casa reservada pra ela e era tudo de palha, não tinha aqueles batentes, não tinha nada. Porque o meu compadre, quer dizer, foi compadre depois, ele já tinha reservado a casa pra ela. Aí eu fiquei uns dez dias na casa dela enquanto achava casa pra alugar. E a primeira casa que eu achei foi aquela casa do Manuel Matos ali, eu morei naquela casa.

P/1 – Sozinha?

R – Sozinha. Sozinha e Deus.

P/2 – E quando a senhora foi morar naquela casa, qual foi a atividade de trabalho, o que a senhora começou a fazer aqui em Xambioá?

R – Eu comecei a costurar mais a comadre Sinhá. Ela costurava calção pra vender pro povo, esse povo de garimpo, ela costurava. E eu também ajudava ela. Ela que tinha máquina e eu não tinha, então eu ajudava ela.

P/1 – E foi assim que vocês conseguiram começar a ganhar um dinheiro?

R – Foi.

P/2 – Depois que a senhora morou naquela casa da rua Grande, ali onde era o seu Manuel Matos, aquela casa ali da rua Grande, né?

R – É. Ai onde morava o Manuel.

P/2 – Aí quando a senhora mudou de lá, a senhora continuou costurando?

R – Não, não continuei costurando porque eu não tinha máquina, eu sempre ajudava a comadre Sinhá, eu ia lá ajudar ela.

P/2 – E qual foi a outra atividade que a senhora começou a desenvolver de trabalho?

R – Eu vim praqui, né? Que foi tempo que eu conheci o doutor Gonçalves. Quer dizer, eu chegando de lá e ele chegando de Belém, ele e doutor Antônio Coelho. O doutor Antônio Coelho era de... essa cidade ali em cima, cidade antiga.

P/2 – Conceição do Araguaia.

R – Conceição do Araguaia. Então eles vieram para aqui também procurar um jeito de trabalhar, de ganhar dinheiro, porque ele era médico e o Gonçalves que era o meu, era formado em Odontologia. Então o doutor Antônio arrumou uma senhora também que era separada do marido e o Gonçalves arrumou eu, então fiquei os dois, né?

P/1 – Como foi esse encontro? Conta pra gente.

R – Esse encontro, tinha um barzinho que chamava, não era, Paulo ainda ouviu falar nesse?

P/2 – Onde era o bar?

R – Aí na rua Grande, bem naquela esquina onde hoje é o Paraíba? Bem ali era o bar.

P/2 – Era o do seu Durval?

R – Não. Eu não me recordo de quem era o bar.

P/2 – Não é do seu Leo, não?

R – É o Leo, finado Leo. Eu indo lá pro bar, eu ia comprar um negócio lá, não sei se era, era coisa gelada que eu ia comprar. E aí, quando eu estou lá, chegaram aqueles homens bonitos, aí falou comigo tudo, eu falei com eles. “Você mora aqui?” “Não, eu sou chegante também daqui”. Aí começou o nosso conhecimento, eu e o outro doutor Antônio, nessa hora a de Jesus não tava, estava lá na casa dela. Então começou, aconteceu o conhecimento e daí a gente se ajuntou. Porque eu não era casada com ele, era casada só com o outro, primeiro marido.

P/1 – Aí começaram a viver juntos.

R – Foi, que foi aquele lá, formado em Odontologia. Aí tive as filhas. Tive Consuelo, Dênia, Franci e a Berenice era a filha do primeiro marido, ela até é formada em Letras, a Berenice. A Franci é veterinária, essa que mora em Brasília, é casada com um veterinário também. Eu fico aqui e elas querendo me tirar daqui e eu não vou.

P/1 – E as outras duas?

R – As outras duas moram em Palmas.

P/2 – Dona Cecília. Bom, aí a senhora conheceu o doutor Antônio.

R – Antônio Gonçalves.

P/2 – Doutor Antônio Gonçalves. Agora como surgiu na sua vida a questão do hotel? Conta como é que foi esse processo, como a senhora começou a trabalhar com o hotel? Primeiro começou uma pensão vendendo comida e depois montou uma hospedaria, como é que foi?

R – Eu adoeci, eu fiquei doente, aí fui fazer um tratamento em Goiânia. Foi até o seu Zé Noleto que me ajudou nas passagens, fazer um tratamento em Goiânia. Lá eu fiz uma operação da apêndice e quando fiquei boa vim embora. Aí eu tinha feito, eu fiz uma promessa pra Nossa Senhora de Fátima, quando eu estava doente o padre foi me visitar lá no hospital porque ele fazia visita lá no hospital. Ele confessava as pessoas que estavam doentes, que estavam ali internadas e levava a comunhão também. E eu fiquei ali, estava ali e com medo também do cara aparecer, porque ele fez, você vê o tanto da audácia dele, ele fez uma carta pro comandante do batalhão de lá que ia me buscar lá, ia me matar lá, que ele fez essa carta. Então o moço lá do batalhão sempre mandava fazer ronda lá na minha casa mais a casa da minha mãe. Mas graças a Deus não aconteceu nada, não. Então eu fiz uma promessa quando eu estava doente lá em Goiânia, que quando chegasse eu ia por uma pensão com o nome de Nossa Senhora de Fátima. Aí quando cheguei pus essa pensão até que aconteceu que eu não tinha meio pra começar. Aí eu falei com o seu Zé Noleto: “Seu Noleto, me empresta um dinheiro, me empresta 200 reais para eu comprar uma coisas para eu começar a pensão”. Interessante, ele era muito amigo do Gonçalves, muito amigo meu e o piloto dele ficava aí na minha pensão, os pilotos dos aviões dele, que ele tinha cinco aviões, eles ficavam ali. Ele virou pra mim e falou assim: “Cecília, quem está em primeiro lugar de te ajudar é o Gonçalves”. Passei essa vergonha. Calei, chorei, mas não falei nada. E vamos, vamos, vamos que vamos, ele também muitas vezes pegava refeição aí na minha pensão.

P/1 – Como é o nome dele?

R – Era José Noleto, ele já faleceu. José Noleto de Souza. O cunhado do Pedro careca. Tu conheceu o Pedro, né?

P/1 – Dona Cecília, quando a senhora ficou doente, que foi pra Goiânia se tratar, a senhora já morava aqui?

R – Morava.

P/1 – A senhora já era casada?

R – Era separada.

P/1 – Não tinha casado ainda com o outro.

R – Não, não. Eu morava aqui, na casinha de palha. Era outra pegada a essa, que daqui pro hotel ainda tinha outra casa. A outra casa minha, onde eu morava, Paulo, é nesse terreno bem aí, nessa calçada bem aí. É que era a minha casa.

P/2 – Me diga uma coisa, quando a senhora adoeceu a senhora não tinha ainda a pensão.

R – Tinha não.

P/1 – Fez a promessa de abrir a pensão.

R – Pois é, aí que eu fui pra Goiânia. Porque quando eu fiz o tratamento lá, até que fez que era apêndice, era febre e a dor na perna, tanto que eu fiz o tratamento lá aí vim pra cá. Lá eu imaginando o que eu vou fazer quando chegar lá. Aí me veio na mente que eu podia botar uma pensão, né? Aí eu comecei com uma pensão, o nome na placazinha: “Pensão Nossa Senhora de Fátima”. E depois quando eu melhorei, que eu construí aquele pedaço lá onde tem aqueles apartamentos, aquilo ali foi tudo eu que construí.

P/2 – Só uma perguntinha, dona Cecília. A senhora veio de Goiânia e montou a pensão. Mas a senhora nesse tempo, a senhora só fornecia alimentação ou hospedava já alguém?

R – Eu fornecia alimentação.

P/2 – Só alimentação. Então a senhora começou o seu trabalho fornecendo.

R – É, não tinha hospedagem.

P/1 – Dona Cecília, a senhora ainda era solteira, né?

R – É.

P/1 – Aliás, a senhora não tinha ainda casado com o seu Antônio.

R – Não.

P/1 – Conta então pra gente como foi, a gente nem vai perguntar, conta pra gente. A senhora chegou aqui, aí começou, pediu o dinheiro emprestado, teve essa resposta.

R – Foi.

P/1 – Conta pra gente como a senhora foi fazendo tudo isso até chegar no hotel.

R – Eu comprei umas panelinhas, comprei uns pratos, que foi quando eu pedi o dinheiro emprestado pro seu Zé Noleto. Eu digo, pra mim comprar umas coisas pra começar minha pensão. E ele virou pra mim assim: “Cecília, quem está em primeiro lugar de te ajudar é o Gonçalvez”. Eu: “Tá bem”. Eu passei essa vergonha.

P/1 – Mas aí como a senhora conseguiu comprar as coisas?

R – Eu comprei fiado. Comprei fiado e paguei tudinho. Tudinho, direitinho. Comprei fiado e foi começando e paguei tudinho. Eu fornecia refeição.

P/1 – Já era nessa casa.

R – Até que na época da guerrilha, é, aconteceu o que aconteceu com o seu Zé Noleto porque ele tinha fazenda lá, aqui no Pará. Então eles queriam saber tudo como ele adquiriu aquela fazenda, não sei o quê, não sei o quê, foi uma coisa tremenda que fizeram com ele. Então, o Pedro Careca, que era cunhado dele, que o seu Zé Noleto era casado com a irmã do Pedro Careca, ele falou que ele podia ajudar, mas assim, se por acaso eu pagasse tudo direitinho. Então eu fui indo, vendendo minhas refeições. Era aí mesmo. E quando foi na época da guerrilha, que foi tudo logo anexo, então foi preso ele, o Pedro, botaram ele ali nessa estrada aqui que vai pra balsa, como se diz, é quase uma caatinga, aí botaram ele amarrado num pé de pau lá, então. Então esse pé de pau tinha muito formigueira, formiga de fogo. Então essa formiga atacou ele. E ele sem poder se mexer e a formiga atacou ele. Aí vieram me contar, disse que era para eu mandar a comida pra ele. Eu mandei a comida, aí levaram ele lá pra cadeia, levaram ele pra cadeia, ele e o Pedro Careca, foram presos porque apresentou uma senhora lá, uma pessoa lá muito da vagabunda, mulher à toa e tinha uma terra lá apegada ao seu Noleto e botaram, não sei como aconteceu, que botaram fogo na casa dela, uma casa de palha lá, no mato. E ela falou que tinha sido o seu Zé Noleto que tinha mandado botar fogo. E aquela confusão e por isso prenderam ele. Aí foi no tempo da guerrilha, foi 1972, no dia, eu não me recordo a data do mês, mas eu sabia tudinho.

P/1 – Não importa, mas foi em 1972.

R – Foi, 1972.

P/1 – E o que aconteceu com ele na prisão?

R – Foi preso e aí eu que tinha que mandar comida pra ele. Eu mandei a comida pra ele mais o Pedro, chamei o general lá no meu quarto e digo: “General, por favor, entra aqui”. Ele entrou lá no meu quarto, mandei ele sentar na minha cama, eu sentei, ele sentou. Aí ele disse assim: “Do jeito que eu estou vendo parece que a senhora vai me pedir minha carteira de identidade”. Eu digo: “Não, não vou lhe pedir, não. Mas eu só vou lhe explicar uma coisa. Porque seu Noleto não deve isso, não. Esse problema dessa mulher é porque ela tem a terra lá e queimaram a casa dela, mas não foi seu Noleto que mandou botar fogo, não. Nem seu Noleto, nem o Pedro, porque eles não são homens disso”. Aí pedi, digo: “Eu quero o Pedro hoje solto”, tava tudo aí nessa cadeia velha. “Eu quero o Pedro solto e o seu Zé Noleto”. Aí eu mandei a comida pra eles lá. Então nesse dia mesmo, na mesma hora ele soltou o Pedro. Soltou o Pedro, aí as coisas melhoraram. Aí seu Noleto ele ficou com ele preso toda vida. Levaram lá pra Carolina, que era pra ir pra Brasília. Não sei como foi o desenrolar lá, eu sei até aí. Aí quando foi levar ele não sei pra onde.

P/1 – Ele voltou?

R – Aí o Pedro, ele mandou o Pedro vir aí em casa ver se eu tinha um dinheiro pra mandar porque na hora ele não tinha, ele não tinha como se mexer porque não podia nem ir no banco, ele tinha dinheiro no banco, não podia nem ir no banco porque ele e o Pedro estava tudo debaixo de ordem. Aí o Pedro veio aí, eu emprestei naquele tempo dois mil reais pra ele. Aí a conclusão que eu quero chegar é você vê o que é a vida da gente: eu queria comprar uns pratos e umas panelinhas pra começar a minha pensão, pedi a ele pra me emprestar, ele não emprestou. E na hora do sofrimento quem emprestou o dinheiro fui eu. Você vê o que é a vida, né? E ele rico, com as fazendas ali, aí ele queria por tudo saber como ele tinha arrumado esse dinheiro pra comprar aquela fazenda, ali o tira caatinga, e foi aquela coisa, aquele sofrimento. Mas Deus ajudou que ficou tudo bem.

P/1 – Muito bom, que história, né? Agora, o Paulo perguntou, por que a senhora começou essa pensão, começou oferecendo comida. Isso foi mais ou menos em 1960? Foi bem antes de começar a guerrilha?

P/2 – Foi.

R – Isso aí já foi depois da guerrilha.

P/2 - Não. Vamos tentar situar as coisas aqui. A senhora chegou aqui em 1952, só pra lembrar.

R – 1954.

P/2 – 1954. Aí a senhora começou a trabalhar com a dona Sinhá costurando calção para os garimpeiros e aí a senhora foi morar lá na casa do Zé Matos depois, na rua Grande.

R – Foi.

P/2 – Aí depois a senhora pediu dinheiro pro Noleto emprestado pra... adoeceu, foi pra Goiânia.

R – Foi.

P/2 – E lá a senhora fez uma promessa junto com Nossa Senhora de Fátima de quando voltasse pra Xambioá ia montar uma pensão aqui, né?

R – É, com o nome de Nossa Senhora de Fátima.

P/2 – Isso. Então, dona Cecília, a senhora chegou e montou a pensão. A senhora passou quanto tempo servindo comida?

R – Eu não me lembro. Eu sei que eu demorei, mas eu fui ajuntando dinheirinho, dava pro Pedro, o Pedro cunhado de seu Noleto, que ele é quem fazia as viagens de avião e eles ficavam em casa. Aí eu dei um dinheiro pra ele pôr na Caixa Econômica.

P/2 – Em Araguaína.

R – Em Araguaína. O dinheirinho que eu arrumava mandava botar lá. Aí foi que eu construí isso aí.

P/2 – Aí é onde nós queremos chegar. Como começou a construção do hotel?

R – Pois é, foi aí.

P/2 – Em que ano foi, a senhora lembra quando a senhora começou o hotel?

R – Eu não me lembro.

P/1 – Como foi que a senhora começou a construir? Conta um pouquinho dessa época.

R – Eu comecei a construir com, Deus sabe, só Deus sabe. Era pouco, mas com Deus eu comecei ali e terminei.

P/1 – Aos pouquinhos foi construindo.

R – Foi construindo, aos pouquinhos.

P/1 – Mas antes de ter o hotel as pessoas já ficavam na sua casa.

R – Já. Já ficavam. Porque tinha quatro quartos ali embaixo.

P/1 – Quem ficava lá?

R – Era hóspede, pessoa mais ou menos, aquelas pessoas mais pobres, né? Que aqueles ricos não ficavam porque queriam ficar num lugar que tivesse banheiro, né? Eu cansei até de tirar água de noite e botar na lata d’água pra botar no banheiro pro sujeito banhar, eu cansei de fazer isso. Desse jeito.

P/1 – Os hóspedes a senhora carregava água pra eles tomarem banho.

R – É, tirava a água no poço, que já tinha um poço da casa que morava, aí tirava água lá. Aí lá na casa, nessa casa aí que é aqui da esquina, já tinha um poço também, mas não prestava, estava cheio de tábua velha, todo ruim. Aí mandei limpar tudo, tudo.

P/1 – Quem eram os hóspedes, essas pessoas que ficavam nesses quartos da sua casa? O que eles faziam, eles vinham aqui pra fazer o quê?

R – Eles vinham aqui pra vender alguma coisa. Eles vinham de Araguaína, quer dizer, os viajantes, né? Eles vinham de Araguaína pra vender alguma coisa aqui em Xambioá. Ai eles vendiam e não dava de voltar porque naquele tempo a estrada era muito ruim e não dava de voltar, eles pernoitavam e ficavam naqueles quartinhos ali.

P/1 – A senhora lembra de alguma história que a senhora até hoje fala: “Nossa, naquela época aconteceu isso”.

R – Não.

P/1 – Com esses hóspedes.

R – Não, não lembro, não.

P/1 – Eles vinham e voltavam.

R – Vinham e voltavam, agora quando não dava de voltar eles pernoitavam, que ficava nesses quartos que não tinham banheiro.

P/1 – Como era esse lugar na época do garimpo?

R – Na época do garimpo tinha bastante gente. E as pessoas andavam tudo armadas, com aquelas cartucheiras amarelas de bala aqui ó, e o revólver do lado. Era desse jeito.

P/1 – Como a senhora se sentia no meio?

R – Eu não tinha medo, não. De jeito nenhum. Aí na época da guerrilha, que estão vistoriando as casas, tudo, procurando tudo, fazendo coisa até que não devia fazer.

P/1 – Como assim?

R – Pois é, muitas vezes querer obrigar a pessoa a falar coisa que não precisava falar e não devia falar, então muitas vezes eles obrigavam a pessoa a falar, né?

P/1 – Entraram na sua casa?

R – Eles entraram.

P/1 – Quem que entrava?

R – Esse povo do exército.

P/1 – Como foi quando entraram na sua casa?

R – Aí a gente já estava mais ou menos informada, já sabia que estava acontecendo nas outras casas, a gente corria e escondia as coisas, né? Eles pegaram uma faca minha desse tamanho dentro do meu guarda-roupa, pra que é que eu queria aquela faca. Eu digo: “Pra eu me defender de alguma coisa”. Eu não tinha medo de falar, não, de jeito nenhum. E foi um problema, teve muita gente que sofreu mas, graças a Deus, eu não sofri nada. Eles me trataram muito bem. Eles remexiam tudo, acharam uma bala ainda da beretta e do Gonçalves, do segundo marido meu que a gente já era separado. Eles acharam a bala. “E de quem é essa bala aqui?”. Eu digo: “Isso aqui era do meu marido, nós somos largados” “E onde é que ele está?” “Não, ele já morreu, já morreu”. Ele estava bem em Cristalândia (risos). “Ele já morreu”.

P/2 – Conte pra nós agora. A senhora chegou a hospedar algum desses comunistas que vieram pra cá?

R – Eu hospedei.

P/2 – Quem a senhora hospedou?

R – Mas ninguém sabia, ninguém sabia quem era.

P/2 – Quem eram eles, né?

R – Quem era eles. Não.

P/1 – A senhora sabia?

R – Não, não sabia. A gente ficava assim, porque a pessoa entrava praquele quarto ali e não saía pra nada, não conversava com ninguém. Você tinha que dar o almoço no prato, levar lá na porta do quarto, lá ele comia e depois a gente ia pegar o prato, as pessoas assim. Foram esses assim, aí foi que a Dina, né? A Dina eu enxerguei só ela ali, porque ela ficava, a Dina e outros. E o Oswaldão, ficava bem aqui na pensão da Rosa.

P/1 – E o que falavam pra senhora dessas pessoas? Falavam alguma coisa? O que os moradores comentavam?

R – Os moradores comentavam que muitos deles ficavam com muito medo. Eu soube logo o que eles estavam fazendo porque a gente lá do aeroporto me avisou e eu peguei minhas coisas, peguei um revólver, tinha um 38 tudo cheio de bala. Aí: “Onde é que eu vou botar isso daqui?”, porque no esgoto não podia botar. Aí tinha uma montoeira de carvão, que eu cozinhava com lenha e com carvão. Tinha uma montoeira de carvão acolá, lá no lugar onde hoje é os apartamentos. Aí eu meti o 38, enrolei nuns panos, nuns papel velhos e soquei lá dentro. Eles ainda começaram a mexer lá no carvão e eu digo: “Mas Deus, estou frita, eles vão achar”. Mas o carvão é coisa preta que empretece logo e ninguém quer continuar com a procura (risos).

P/2 – Dona Cecília, eu queria que a senhora contasse pra nós quem foi dessas pessoas que estavam no movimento da Guerrilha do Araguaia, quem foram as pessoas que você conheceu? Deles, dos guerrilheiros comunistas, a senhora disse que hospedou alguns.

R – Eu hospedei o Paulo.

P/2 – Paulo Rodrigues.

R – Pois é. Sem saber quem é que ele era, não sabia.

P/2 – A senhora lembra em que época foi?

R – Foi 72, 1972.

P/1 – Quem era o Paulo Rodrigues?

R – Paulo era desse dos comunistas.

P/1 – Mas quando falavam deles, eles falavam como dessas pessoas?

R – Não, a gente não sabia naquela época que eles estavam, a gente não sabia quem eram eles.

P/1 – Mas depois quando o exército veio, eles diziam que eram o que essas pessoas? Que eles estavam procurando quem?

R – Eles diziam que esse Paulo era dos que estavam lá na mata, era povo da guerrilha. Então da guerrilha sim, porque eles estavam lá e o povo do exército que ia procurar eles. Então a gente fala assim, que é da guerrilha porque eles é quem ia procurar eles lá. O Paulo era um desses, ele já estava chegando, ele chegou de avião, almoçou, dormiu, saiu no outro dia pra mata. Ninguém sabia o que estava se passando lá na mata, quer dizer, ele passou que disse que tinha um povo lá, como era que ele falou que... tinha um povo lá procurando minério, né? Então a gente pensava que ele era um desses. Ele foi pra lá, foi pra lá.

P/2 – Dona Cecília, bom, conte pra nós também como foi a chegada dos militares aqui em Xambioá. Como foi esse impacto, o que eles transpareceram pra comunidade?

R – Os primeiros que chegaram foi dia 11, parece que 11 de outubro.

P/2 – De 1971?

R – De 1972. É quase 1971 ainda, é. Aí já vieram pra casa.

P/2 – Só pra situar a senhora bem, a guerrilha de fato começa em abril de 1972.

R – De 1972.

P/2 – Minha pergunta é, a guerrilha começou em 1972 mas no ano anterior a senhora já começou a hospedar umas pessoas que vieram pra cá.

R – Os primeiros que chegaram foram dez pessoas.

P/2 – E hospedou no hotel.

R – E hospedou no hotel.

P/1 – Como foi? Eles chegaram... conta um pouquinho desses momentos, que vocês não sabiam quem eles eram, mas como foi?

R – Eu já sabia, que eu já tinha sido avisada que eles chegavam.

P/1 – Eles quem?

R – Esses.

P/2 – Eram investigadores, né, como se fossem investigadores.

P/1 – Ah, esses dez não eram os guerrilheiros.

R – Não, Paulo, eram os guerrilheiros, foram os primeiros que chegaram. Foi esses dez.

P/1 – Mas eles não eram do exército?

R – Eram do exército.

P/1 – Ah... porque o exército veio procurar os que estavam na mata.

R – Foi.

P/1 – Esses dez não eram aqueles da mata.

R – Não.

P/1 – Pra vocês que moravam aqui, vocês conseguiam saber quem que eram os que estavam na mata, que eram os guerrilheiros, e quem era exército? Vocês conseguiam saber quem era quem?

R – Não, a gente conseguiu saber por causa da roupa (pausa, carro de som passando).

P/1 – Eu perguntei se vocês moradores conseguiam saber quem que era guerrilheiro, que vocês falam que ficavam na mata, e quem era do exército, conseguiam saber?

R – Os de lá, os guerrilheiros como se diz, a gente não sabia, veio saber depois que o povo do exército estava procurando.

P/1 – E os do exército, como que vocês sabiam que eram do exército?

R – Por causa da roupa.

P/1 – E esses dez que chegaram eram de que lado?

R – Eram do exército, que estavam procurando eles. Então eles procuravam pra mim, procuravam pra gente, né? Bom, a gente hospedou o Paulo e muitas outras pessoas, mas nós não sabia quem era eles, o que é que eles estavam fazendo. Então esse Paulo falou pra mim assim. Eu digo: “E você vai pra mata fazer o quê?” “Não, é porque nós temos um moço aí”, que era o Osvaldão, né, “um moço aí que está mexendo com garimpo. Nós vamos mexer com garimpo”.

P/1 – E esse pessoal, essa turma do Osvaldão que ficava na mata, eles vinham pra cidade? Além de hospedar eles faziam alguma coisa aqui na cidade?

R – Não, eles vinham, ficavam ali na Rosa. Eu conheci porque enxerguei de costa, mas não conversei com ele, não, o Osvaldo.

P/1 – Mas eles tinham relação com os moradores?

R – Tinham. Eu sei que ele veio naquele jipão grande trazer um bocado de coisa. Aí onde tinha uma caixa grande assim, uma caixa de madeira, dentro desse jipão, que era pesado demais. Era quatro pessoas pra pegar. Aí o Pedrinho, que

era o dono da pensão ali, da casa onde eles iam ficar, perguntou pra ele: “Mas o que é isso tão pesado aqui?” “Não, isso daí é picareta que nós estamos mexendo com garimpo”. Mas era só arma.

P/1 – Chegou a ter alguma luta que vocês ficaram sabendo?

R – Não, chegou a ter aí na mata porque tinha os guerrilheiros lá. Então que eu falei: “Com esse povo que era da Dilma naquele tempo” (risos). Mas a gente não sabia o que eles faziam, não. Então eles que passavam falavam que ia mexer com garimpo. Mas não era garimpo. Ele ia se ajuntar com os outros, né?

P/1 – E quando o exército chegou, com os moradores aqui, além de entrar nas casas procurando coisa, perguntando, teve alguma situação que a senhora viu, do exército com os moradores?

R – Não. Eles não atacavam ninguém, só que eles entravam nas casas, podia ser de quem quisesse, eles entravam nas casas pra procurar as armas.

P/1 – E essa situação que a senhora falou, que punha todo mundo em roda assim e tinha um buraco no meio. A senhora viu isso?

R – Isso aí eu não vi, não, disse que lá pra mata, eles que faziam isso, né? O povo do exército com os outros lá na mata. Então eles mandavam cavar o buraco e eles ficavam em roda assim e eles empurravam dentro, jogavam dentro e jogavam areia em cima.

P/1 – Contavam isso pra vocês.

R – É, contaram. E nesse coiso aí fala.

P/2 – Bom, dona Cecília, nós estamos quase chegando ao final da entrevista. Eu queria

que a senhora falasse um pouquinho pra nós como é que a senhora nos dias de hoje, a senhora ficou muito tempo mexendo com hotel e como é a vida da senhora hoje?

R – Minha vida hoje é, como se diz, eu estou vivendo que, graças a Deus, Deus está me concedendo a vida, né? Mas eu não tenho nenhum ramo de vida, alguma coisa que me ajude, estou vivendo do salariozinho.

P/1 – Da aposentadoria.

R – Da aposentadoria e das coisas que eu vendi. Eu tinha duas chácaras, eu tinha gado, vendi, acabei tudo. Não vendi não, dei, acabei tudo porque vivia doente, aí não pude tocar mais o hotel, fui pra chácara, mas também não foi adiante porque eu queria morar lá, mas eu não podia. Depois o povo me avisava que eu não podia morar lá porque era muito sujeito, que em Araguaína estava acontecendo isso e isso, matavam o povo de chácara e tudo. A dona Ziza que me falou, que eu ficava lá na dona Ziza. Ela disse: “Nunca pense de morar em chácara! Porque aconteceu isso, isso, isso e isso”.

P/1 – E do hotel, a gente acabou falando mais dos hóspedes, né? Como era pra senhora ter aquele hotel? Como que funciona? Conta um pouquinho só dessa época.

R – Era bom, eu gostava porque eu sempre gostei de me movimentar, né? De fazer as coisas, de trabalhar. Então o meu serviço eu achava bom. Aí não dava mais refeição, só hospedava, que foi depois que eu construí aquele lá.

P/1 – E a cidade? A senhora viu mudanças na cidade? A senhora chegou aqui bem no comecinho até hoje. Que mudanças importantes a senhora foi vendo?

R – Não teve mudança nenhuma. A mudança porque aquelas pessoas, os próprios moradores que andavam com as cartucheiras, com o revólver, aí mudou tudo. Foi chegar mais a civilização, né, aí ninguém andava mais armado, ninguém via mais uma cartucheira cheia de bala, então foi melhorando, graças a Deus. Apesar de nesse tempo eu não sofri nada disso, nada disso. Eu não tinha medo, eu não tinha medo de enfrentar eles. É como eu fiz com o general: “Entra aqui, senta aqui pra conversar comigo” (risos). “Do jeito que eu estou vendo parece que a senhora vai pedir a minha carteira de identidade” (risos).

P/1 – E teve algum hóspede, alguma situação do hotel que a senhora lembra sempre?

R – Não, não teve, não.

P/1 – Era muito movimento?

R – Era não, era pouco, mas tinha um movimentinho.

P/1 – Sempre tinha.

R – Mas era muito pouco porque não tinha firma, não tinha firma nenhuma, era muito pouco. Vivia das pessoas, daqueles viajantes que vinham de Araguaína pra vender alguma coisa aqui, era assim que a gente vivia. Pouca gente, pouca gente. E hoje eu fico pensando assim: “Meu Deus, na minha época não tinha firma, não tinha nada”. Hoje eu vejo o hotel cheio de gente, de firma. Aí que me vem assim no pensamento: “Meu Deus, eu me apressei, eu vendi antes do tempo”. Mas não era, eu não podia trabalhar, vivia doente.

P/1 – A senhora foi uma mulher valente.

R – Graças a Deus.

P/1 – A senhora acha isso?

R – Eu acho.

P/2 – Corajosa, destemida, né? Sempre sozinha.

R – Eu tinha meu 38, não tinha medo, não. Tinha gente

que tinha: “Ai meu Deus, eu tenho medo, não posso nem ver essa arma” “Mas menino, no tempo do Gonçalves eu dormia como os rifles cheio de balas embaixo da cama” (risos).

P/1 – Que época que a senhora dormia com rifle?

R – Era na época do Gonçalves, esse aí, porque teve uns problemas também. E política, né? Então, dessa outra parte ficavam jurando ele. Aí chegou um bocado, era tenente, era não sei o quê, não sei o quê, diz que pra prender esse doutor Gonçalves. Hum, prender o quê? Não fizeram nadinha com ele. Aí a polícia chegou lá procurando ele, chegou lá naquela sinuca lá onde tem aquele comércio hoje, naquela esquina. Aí ele tinha o negócio de sinuca lá. E ele estava lá jogando sinuca, o Gonçalves. Aí a polícia chegou. A polícia chegou, rodeou ele assim de um lado pro outro: “Você que é o doutor Gonçalves?”. Ele disse: “Sim, sou eu” “E essa arma?”. Ele disse: “Me acompanha dia e noite”. Quem foi besta que falou pra tirar a arma dele? De jeito nenhum. “Dia e noite vocês não me acham sem isso daqui não”. Aí ficaram caladinhos (risos).

P/1 – Aí a senhora se separou dele por que, dona Cecília?

R – Eu separei assim, porque houve umas conversas, porque você sabe que em todo lugar tem as pessoas que desejam mal a gente, que toca na vida da gente, né? Aí disseram: “Doutor Gonçalves não vai morar com essa mulher porque ele tem que casar é com uma senhora que foi paraninfa dele lá da formatura em Belém”, que ele é cearense, mas estudou em Belém. “Ele tinha que casar é com essa moça”, que foi paraninfa dele na formatura dele, né? Aí eu com aquilo eu me senti um pouco humilhada, que aquela pedra não era pra mim, né? Aí fui, nós já tinha os filhos.

P/1 – Já tinha os filhos.

R – Já tinha os filhos. Aí eu mandei ele embora, mandei ele sair de casa. Depois desse...

P/1 – Mas ele gostava de ficar com a senhora.

R – Gostava. O próprio doutor Antônio, que estudou lá junto com ele, até então eles não se conheciam, eles vieram a se conhecer aqui. Quer dizer, já tinham visto lá, onde eles estudaram, formaram. Aí ele disse: “Rapaz, eu tenho impressão que eu já te vi”. Ele dizia: “Eu também. Onde é que tu estudou? De onde é que tu é?” “Sou de Fortaleza, mas estudei em Belém” “Em qual faculdade”. Aí coincidiu deles dois da mesma faculdade formaram, aí eles ficaram amigos. Quando foi um tempo aí eu soube que ele tinha falado que o Gonçalves tinha que casar com a moça, com essa que foi paraninfa da turma dele, que era pessoa formada e tal. Então chegou a mim, né? Chegou a mim, eu me senti um pouco humilhada. Aí fomos, eu não falei nada pra ele, ele só ficou sabendo depois que eu mandei ele embora, depois que eu conversei com ele. Eu falei por que eu tinha feito aquilo. Ai doutor Antônio mandou que ele procurasse uma pessoa pra se casar, que ele não podia viver comigo daquele jeito. E ele também vivia com a outra mulher também. Hoje ele mora em Palmas, é o Betico, doutor Antônio já faleceu, que é o pai dele, o Gonçalves já faleceu. Todo mundo faleceu. Esses. Aí eu fiquei pensando, quando o doutor Antônio casou, largou a de Jesus que era amiga minha também, largou de Jesus pra casar com uma moça. É. Então o que aconteceu é que tiveram ainda parece que dois filhos, depois ele morreu. Ele adoeceu e morreu. Eu vi doutor Antônio, eu, lá em Conceição, no... como é que chama lá? No lugar dele, que fica lá. No hospital. Aí eu já estava melhor, eu fiquei lá que eu não descia nem da cama, passando mal mesmo, muito mal. E aí quando eu melhorei, aí ele chegou ao ponto de dizer pra mim, mais o Gonçalves, ele chamou o Gonçalves e falou: “Gonçalves, eu não sei que remédio eu vou dar mais pra Cecília porque eu já fiz o que eu podia fazer, só Deus agora vai me dizer o que eu posso fazer”. E eu lá desse jeito. Que o Gonçalves foi me visitar lá no hospital. Quando eu melhorei, desci da cama, comecei a caminhar agarrada nas coisas, aí tinha umas cadeiras assim que a gente sentava pra pegar um solzinho da manhã. Eu me sentei ali naquela cadeira ali. Aí o doutor Antônio passou e disse: “Cecília, eu estou morando aqui no fundo do hospital, tu vê minha situação. Antes de ir pro quarto tu vem aqui ver onde é que eu moro”. Aí eu fui lá. E o doutor Antônio, essa mulher só queria ser, essa mulher dele. Aí comendo uma carne assada com arroz branco, até muito gostoso, né? Comendo uma carne assada com arroz branco. Quando fazia assim, o bicho estava caindo da carne. Essa mulher não limpou essa carne pra assar, nem nada. Eu olhei aquilo, eu vi aquilo e pensei: “Meu Deus, a gente não é nada”. O doutor Antônio largou a Jesus pra casar com essa moça e essa moça não limpou nem a carne pra assar pra ele. Ele puxava assim, ó, caía o bicho. Eu vi isso, vi. Aí voltei lá pro meu quarto, sentei e fiquei pensando, imaginando, o que era a vida da gente, a pessoa muitas vezes esquece muita coisa, não queria viver com a de Jesus, nem casar com a de Jesus porque a de Jesus era uma mulher junta com ele, né? E naquele tempo tinha muito essas coisas, ainda hoje, ainda hoje tem. E não acaba, não.

P/1 – E a senhora, o seu marido era o Gonçalves.

R – Era.

P/1 – Gostava e a senhora pegou e falou: “Não quero mais, pode ir embora”.

R – Aí eu falei: “Pode ir embora”.

P/1 – Ele gostava da senhora e a senhora falou: “Pode ir embora”.

R – Pois é. Aí doutor Antônio falou pra mim: “Não, Cecília, você não pode viver com Gonçalo, não. Você já tem suas filhas, quantos filhos você já tem? Então vai só aumentando. E você não pode casar com ele”. E o Gonçalves escutando caladinho, não falou nadinha. Aí depois que terminou aquilo, que nós fomos conversar e tudo, eu digo: “E agora Gonçalves? Nós não somos casados, nós vamos criar nossos filhos, então você pode ir embora, pode sair da minha casa”. Era essa casinha bem aqui, que tinha apegada a essa. Eu vi quando ele saiu, quando ele virou as costas, que saiu da porta do quarto. Isso foi dentro do quarto. Ele saiu na porta do quarto. Eu senti, mas também não dei demonstração, de jeito nenhum. E agora o problema de noite, a filha chamando o pai. “Eu quero meu pai! Não é tu, não”. Ela chorava e eu ia acalentar ela, embalar na rede. E ela diz: “Não, não é tu, não, eu quero é meu pai. Não é tu, não”. Desse jeito. Imagina o quanto que dói na pessoa. É isso.

P/1 – Mas a senhora superou.

R – Superei. Depois ele foi, doutor Antônio conseguiu tirar ele daqui, saíram todos os dois, foram pra Conceição do Araguaia, aí depois pra Cristalândia, lá onde ele ficou, ele trabalhava com odontologia, ficou trabalhando lá em Cristalândia. Depois quando surgiu Palmas ele foi pra Palmas. Foi o primeiro presidente do Tribunal de Contas, foi ele. Morreu de um câncer. Já faleceu todos dois, doutor Antônio e o Gonçalves, todos os dois. Graças a Deus estou eu aqui contando a história. E a de Jesus já faleceu também.

P/2 – Agora diga pra nós, como a senhora se sentiu contando a sua própria história? Como a senhora está se sentindo agora?

R – Eu estou me sentindo bem, não estou melhor porque não lembrava direito das coisas, tintim por tintim do jeito que era na época. Quantas vezes a gente falha. Mas eu estou bem, estou bem, graças a Deus.

P/1 – A senhora lembrou de muita coisa!

R – Pois é!

P/1 – A gente conversou aqui quase duas horas. A senhora lembrou de coisas muito importantes. Eu mesma fiquei perguntando muita coisa porque eu vi que a senhora tinha muita coisa pra dizer.

R – Pois é. Eu tenho muita fé em Deus e confio muito em Nossa Senhora de Fátima, que é a minha medianeira de todas as graças. Quando eu estava doente lá no hospital, em Conceição, lá em Porto Nacional, o padre Luso, tu já ouviu falar nele? Padre Luso, o povo dizia que ele já era um santo, ele andava corcundo, corcundo assim. Ele tinha problema de coluna. Ele que ia lá no hospital confessar a gente, confessar as pessoas que estavam internadas, que eu era uma delas. E na hora que ele foi me confessar eu estava com muita febre, muita dor de cabeça, desse problema dessa colite, muita dor de cabeça. E febre. Então eu falei umas coisas, outras não porque eu não lembrava, estava muito perturbada. E ainda também com a separação das filhas, né? E aí eu disse: “Padre, o quê que eu posso fazer pra eu ficar boa, pra sair desse hospital?”. Ele disse: “Minha filha, faz uma promessa pra Nossa Senhora”, mas a Nossa Senhora dele era outra, eu não recordo bem o nome da Nossa Senhora dele. “Com Nossa Senhora Fulana”, que era a...

P/2 – A padroeira de Porto?

R – A padroeira de lá! Mas eu cá comigo eu pensei: “Eu já tenho a minha Nossa Senhora de Fátima, eu não vou mudar”, pensei comigo mesmo. E aí, quando eu melhorei pra vir embora, foi aí que eu pensei, o que eu ia fazer agora? Que estava recuperando ainda da separação e daquela doença que o povo diz que aquela doença foi mais causada por causa da separação. Então ele disse assim pra mim, que eu fizesse uma promessa pra Nossa Senhora. A Nossa Senhora que ele deu foi outra Nossa Senhora.

P/1 – E aí a senhora fez a promessa?

R – Mas a promessa que eu fiz foi com a minha Nossa Senhora de Fátima. Quando eu chegasse eu ia botar o nome do hotel, foi o tempo que eu já tinha feito aqueles, foi depois que eu fiz, que quando eu estava lá só tinha ajuda de Deus. E do Gonçalves, mesmo separado ele me ajudava, né? Aí eu vim, quando eu chegar lá o que eu vou fazer? Eu vou botar uma pensão pra Nossa Senhora de Fatima o nome. Foi assim que eu fiz.

P/1 – E olha que a senhora construiu tudo isso.

R – Aí botei uma placazinha ali, um pauzinho enfiado na placazinha. “Pensão Nossa Senhora de Fátima”. Quando eu melhorei que construí lá, melhorei tudo, graças a Deus, aí eu botei: “Grande Hotel Nossa Senhora de Fátima”. Era o nome dele.

P/1 – Parabéns, viu, dona Cecília, que bela história a sua!

R – Isso tudo pensado de mim, eu não pedia opinião a ninguém, ninguém. Porque eu sempre, eu não gostava de ficar pedindo opinião dos outros, né? E aí me lembrei dessa do seu Zé Noleto, que eu precisei, pedi, não fui atendida, né? Então trabalhei e na hora da grande necessidade de seu Zé Noleto fui eu que ele recorreu, aquela pobrezinha que tinha falado dinheiro emprestado pra ele. Isso é a minha grande história, que eu cheguei até aqui, viu? Ai eu tinha duas chácaras, tinha um gadinho, tinha tudo. E por causa dessa doença, dessa colite que eu tenho, que eu estou me recuperando esses três dias, que eu estava era aí deitada.

P/1 – Mas a senhora tem essa bela história, que agora vai ficar registrada pra sempre. Tá bom?

R – Tá bom.

FINAL DA ENTREVISTA