Museu da Pessoa

Uma mãe especial

autoria: Museu da Pessoa personagem: Eunice de Jesus Silva

Projeto Minha Casa, Minha Cara, Minha Vida, Cabine São Bernardo do Campo
Depoimento de Eunice de Jesus Silva
Entrevistado por Gisele Rocha e Rosana Miziara
São Bernardo do Campo, 09/03/2014
ASP_CB015_Eunice de Jesus Silva
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Cristiane Costa
MW Transcrições



P/1 – Eunice, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?

R – Meu nome é Eunice de Jesus Silva, eu nasci no estado da Bahia, na cidade de Conceição do Coité. Meio que estranho mas é Conceição do Coité, Bahia.

P/1 – Em qual data?

R – A data do meu nascimento é dois de agosto de 62.

P/1 – E seus pais são da Bahia também?

R – Sim.

P/1 – Da mesma cidade?

R – Da mesma cidade.

P/1 – Você viveu lá nessa cidade até quantos anos de idade?

R – Ah, até uns 11 anos de idade só.

P/1 – O quê que seus pais faziam lá?

R – Meu pai, ele trabalhava com gado, agropecuária, né? De carpir terra e criava vaca, criava bois.

P/1 – Mas era na propriedade de alguém ou ele tinha propriedade dele?

R – Ele tinha propriedade dele.

P/1 – E sua mãe?

R – A minha mãe também.

P/1 – Ia junto com ele, ajudava?

R – É. Minha mãe lidava mais com plantação, com a plantação da mandioca, do feijão.

P/1 – Em quantos irmãos vocês são?

R – Somos em 13.

P/1 – Moravam os 13 na mesma casa?

R – Isso.

P/1 – Como é que era essa casa?

R – Era na Bahia, era uma casa grande, né? Tipo fazenda. Era aquela casa de bastante quartos (risos), pra caber todo mundo.

P/1 – E como é que vocês se dividiam nos quartos?

R – Dividíamos nos quartos em camas pequenas, né? Cama com colchão de capim (risos), né?

P/1 – Vocês ajudavam seus pais? Vocês precisavam ajudar?

R – Sim, precisávamos ajudar a plantar feijão, plantar o milho, plantar a mandioca, pegava a semente pra colocar ali no chão pra gente plantar.

P/1 – Com quantos anos você começou a ajudar?

R – Ajudar o meu pai com oito pra nove anos.

P/1 – E sobrava tempo pra brincar?

R – Não. Eu vou me emocionar, gente. Não, não sobrava tempo pra brincar (Pausa). Nós não tínhamos tempo pra brincar para trabalhar, pra ajudar nossos pais.

P/1 – E como é que era na sua casa, quem que exercia autoridade? Seu pai ou a sua mãe?

R – Sempre a minha mãe (risos). Minha mãe era a autoridade máxima da casa, era ela (risos).

P/1 – Era brava?

R – Brava o suficiente, o necessário, não era brava demais, não, era o necessário. Ela era... Como é que eu posso te falar? Ela era precisa. A minha mãe sempre foi uma mulher precisa, muito guerreira.

P/1 – E vocês escutavam histórias? Na fazenda tinha alguém que contava história?

R – Sobre?

P/1 – Histórias da fazenda, da cidade, da família? Alguém contava história pra vocês?

R – Não, assim, como eu vivi muito pouco lá, né? Que, aí, eu vim pra São Paulo com 11 pra 12 anos.

P/1 – Você veio com quem?

R – Eu vim com a minha tia.

P/1 – Por quê que você veio?

R – Porque lá não tinha trabalho, então eu vim pra cá, bem menina ainda. Aí, fiquei mocinha, me criei e aos 17 anos pra 18 anos já trabalhava.

P/1 – Mas você veio com 11 anos pra cá?

R – Isso.

P/1 – Veio você e sua tia?

R – Eu e minha tia.

P/1 – Vocês vieram pra São Paulo. Por que vocês escolheram São Paulo?

R – Eles já moravam aqui, eles só me trouxeram porque eu tinha vontade de trabalhar e ganhar o meu dinheiro.

P/1 – Eles moravam aonde?

R – Eles moravam na Paulicéia, na Rua Cásper Líbero.

P/1 – Aqui em São Bernardo?

R – Aqui em São Bernardo.

P/1 – E como é que foi pra você chegar em São Paulo? Você lembra quando você chegou?

R – Pra vir ou já aqui?

P/1 – Quando você chegou aqui, assim, quando você viu o que era São Paulo, o quê que você pensou, o que você achou da cidade?

R – Bom, eu vim com o intuito de trabalhar, né? Então, ali os meus tios foram me dando chance pra arrumar trabalho, pra conseguir emprego. Aí o meu primeiro emprego foi com a Dona Noêmia, que é na Paulicéia também, eu só tou esquecida do nome da rua. Mas, assim... Eu fui ser babá.

P/1 – Com 11 anos?

R – Com 11 anos. Eu fui ser babá do Pedro e da Carina, né? Fui babá e eles não me tinham como babá, eles me adotaram, eles me adotaram. Ali, na Paulicéia, na Rua MMDC... Na Rua Nossa Senhora da Aparecida, na MMDC, aqui, em São Bernardo. Eles me adotaram e eu era maior que os filhos deles pouca coisa, mas eu era babá daqueles dois meninos. E foi muito bom ali, porque eu aprendi muito com a dona Noêmia e com o seu Anésio. Ali eu fiquei até os 17 anos. Com 17 anos pra 18 anos eu já achei que eu era a dona do meu nariz. Aí, eu pedi, com muita educação, porque eu sempre os respeitei como pais, né? Que a minha mãe ficou na Bahia, meu pai... Mas ali na Rua Nossa Senhora da Aparecida, eu encontrei um outro pai, que é como se eles me adotassem pra ser babá dos filhos deles. Então, ali eu aprendi a comer, a me vestir e ser babá ao mesmo tempo. Eles me conseguiram colocar, assim, como filha, como uma pessoa que eles criaram. Então, ali eu aprendi muito. Depois, dali, aos 17 anos, eu quis trabalhar em firma, conhecer um pouco mais de São Paulo, tava pouco pra mim. Então, eles me deram a chance de trabalhar na Polimatic, aí a Cosamber, também na Paulicéia. Hoje, a Polimatic é a TRW. E, depois, eu comecei a trabalhar aos meus 17, 18. Até então eu era uma menina ainda, uma moça sonhadora. Com uns dois anos de empresa, entre Polimatic e Cosamber, eu dei vontade de voltar pra Bahia, voltei pra Bahia.

P/1 – Por que te deu vontade de voltar?

R – Porque fazia muitos anos que eu não via meus pais. Aí, eu voltei pra Bahia. Mas só que lá, quando eu cheguei na Bahia, eu fui foi arrumar um casamento. Fui arrumar um casamento, mas eu fui mulher pra isso, eu tive dois filhos, de cara, Lucas e Leidiana, que hoje um tá com 30 anos e o outro tá com 29. Eu não sabia que eu tinha problema de saúde, eu com o meu marido e, aí, fui tendo filhos deficientes, né? Filhos especiais. Ali que eu descobri que tive filhos especiais e fiquei com aquele problema ali, sem ter condições de resolver e o problema foi se agravando e, aí, o jeito foi voltar pra São Paulo.

P/1 – Você teve quantos filhos?

R – Três. Os três têm problemas, necessidades especiais.

P/1 – O quê que eles têm?

R – A Leidiana nasceu com retardo mental, né, e insuficiência cardiovascular e uma doença chamada mudança de comportamento, né? Aqui, em São Bernardo, aí foi que eu conheci a favela Jardim Silvina, né? Ali foi quando eu fiz o meu barraco e fui morar com eles lá, quando eu vim da Bahia, pra tratar eles aqui.

P/1 – Você veio pra tratar os três?

R – Um hum.

P/1 – O segundo tinha o quê?

R – Ele tinha uma dificuldade, que até hoje eu não sei explicar a dificuldade do Lucas. Ele tem uma dificuldade, que ele não conseguiu aprender a ler e nem a escrever. Ele tem uma dificuldade até na vida, pra se desenvolver.

P/1 – E o terceiro?

R – O terceiro, ele nasceu normal, que quando eu vim da Bahia eu com ele, grávida.

P/1 – Então, dois que são especiais?

R – Isso.

P/1 – Aí, você mudou pra São Paulo pra tratar. Por que aqui no Jardim Silvina?

R – Porque era mais perto de alguns parentes que moravam aqui ainda. Aí, eu convivi com eles ali, e não deu pra ficar muito tempo com eles porque meus filhos tinham problemas. E foi onde eu construí o meu barraco aqui, no Silvina. Porque meus filhos tinham uma certa dificuldade, eu não podia viver muito na casa dos outros, porque eles tinham problemas mentais. Então, não dava pra ficar muito tempo.

P/1 – Seu marido veio com você da Bahia?

R – Não. O meu marido, quando ele descobriu que meus filhos tinham problema, ele não conseguiu entender. Ele virou um alcoólatra. Um alcoólatra! E eu fui internado aqui, internando lá, mas não teve jeito, aí eu tive que assumir os filhos sozinha.

P/1 – E como é que era no Jardim Silvina? Morar lá?

R – Morar no Jardim Silvina?

P/1 – Lá na favela.

R – Era muito difícil. Muito difícil, porque o lugarzinho que eu encontrei pra fazer um barraco era em cima do córrego. Era em cima do esgoto, próximo do esgoto, entendeu? E, ali, eu fiz o barraco, e aí cada vez que chovia, enchia. Cada vez que chovia enchia e destruía tudo, destruía o alimento, destruía a roupa, acabava com tudo, porque a enchente levava tudo. Aí, eu tinha que ficar colocando as crianças em cima dos fogão, dos armários, dos beliche cada vez que chovia.

P/1 – E a convivência com os outros moradores? Como é que era lá no local?

R – Olha, eu, Graças a Deus, sempre me dei com as pessoas, por mais difíceis que elas fossem. Eu procurava sempre se dar bem, né? Porque ali, na favela, você tinha que conviver com tudo! Você tinha que conviver com ladrão, com usuário, você tinha que saber conviver com traficante, você tinha que saber respeitar cada um no seu quadrado ali. A gente tinha que saber respeitar eles pra eles poder saber também respeitar a gente.

P/1 – E como é que você fazia com os filhos pra trabalhar? Como é que você sustentava eles?

R – Aí vem a parte difícil! Eu tinha que sair pra catar papelão, né, porque trabalho fixo eu não podia conseguir. Eu não podia pegar uma casa fixa, tipo assim, “eu vou trabalhar numa casa de família e ser fixo”, porque eu não podia. Porque eu tinha que fazer tratamento deles: psicólogo, psiquiatra, neuro, cardiologista. Tinha uma série de médicos que tinha que ser constante, então eu não podia me empregar, eu não tinha o direito de me empregar, porque pra empregar eu tinha que faltar. Era muito difícil. Encontrar patroas boas eu encontrei várias patroas boas, mas o conviver com esse problema era muito difícil, eu tinha que me desdobrar. Eu tinha neurologista do Lucas, psiquiatra da Leidiana, né, cardiologista da Leidiana, porque ela tem insuficiência cardiovascular, que é um problema muito grave, é um coração grande, que não tem cura, que você tá sempre dando uma crise, tá sempre dando uma parada cardíaca, você tá sempre... Então, eu não tinha direito a emprego. Eu tinha que arrumar um trabalho que eu podia cuidar deles e, ao mesmo tempo, trabalhar. Então, eu virei uma catadora de papelão, entendeu (choro), uma catadora de papelão. Por muitos anos, por seis anos a sete anos eu fui catadora de papelão, com muita honra.

P/1 – Onde você catava?

R – Eu catava em toda São Bernardo (emoção), chamavam de Rudge Ramos.

P/1 – Você tinha um carrinho?

R – Era. Depois eu comprei um cavalo, comprei uma carroça e, aí, eu ia com eles pra catar papel. A criança que tinha problema mais difícil, que não queria ficar sozinha em casa eu colocava atrás pra poder catar meu papelão. Aí, eu juntava um mês de papelão num lugar, assim.

P/1 – Onde você guardava o papel?

R – Eu guardava num local, assim, num terreno vazio, próximo do meu barraco, né, porque se botasse muito longe o povo podia pegar. Então, eu juntava aquele papelão. Quando chegava um mês, aí eu pegava, ligava pro ferro velho, aí do ferro velho vinha um caminhão buscar e levava pra lá, pra pesar e vender, aí eu pegava o meu dinheiro.

P/1 – E era com esse dinheiro que você se sustentava?

R – Sustentava. Aí, foi onde eu conheci a Rose, do Sedesc. Aí, a Rose por um tempo me ajudava em cesta básica, conseguiu um açougue pra eu pegar sobras de carne pros meus filhos. Passei muitos anos assim até conseguir uma estabilidade, conseguir um tratamento onde eu pudesse resolver o problema dos meus filhos, pra que eu pudesse trabalhar. Aí, depois, eu consegui em casa de família. Aí, trabalhei por muito tempo lá e conheci uma família que me aceitou com os meus problemas, me aceitou no dia que meu filho tivesse mal, não passasse bem, eu levasse.

P/1 – Mas eles ficavam com quem quando você trabalhava fora, na casa de família?

R – Eu colocava eles na Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência), que, aí, eu conhecia assistente social, eles foram me dando o endereço, né?

P/1 – O quê que é Vap?

R – Avape é um local onde teu filho especial fica o dia inteiro fazendo uma oficina, aprendendo a conviver com as pessoas normais, né? A Avape ali do Riacho Grande.

P/1 – Aí ficavam os dois.

R – Ficava só a Leidiana, só tinha vaga pra Leidiana, né? O Lucas, o problema dele era mais básico, não era tão complicado como o da Leidiana. O Lucas a gente levava ele pra catar papelão, o Lucas e o Elias bem pequenininho.

P/1 – Aí, nessa casa de família...

R – Na casa de família ela aceitava que eu levava o pequenininho e o outro ia pra escola e a outra ficava na Avape, na Avape que fica na Balneária.

P/1 – E onde que era essa casa de família?

R – No bairro do Assunção, ali perto do 3º DP. Aí, conhecendo eles, eu fui conhecendo mais pessoas e fui tendo mais oportunidade de um trabalho melhor, mas em casa de família. Aí, depois, mais pra frente, eu conheci um advogado, um advogado cego, e eu comecei a ajudar ele. Auxiliava ele lendo uns processos, acompanhando ele pras audiências. Aí, eu fui me desenvolvendo, já era um trabalho que me ajudava mais, porque trabalhava pouco com o doutor Edivaldo, era só pra ler processo, ir até o fórum, ler o processo pra ele, né, e protocolar. E ele também ia me ensinando a ajudar e, assim, eu fui me desenvolvendo e ele hoje diz que eu me tornei uma auxiliar de advocacia.

P/1 – Você trabalha com ele ainda?

R – Ainda faço alguns casos ainda. Quando tem um caso, assim, que precisa viajar, que ele é cego, aí eu viajo pra Itirapina, Campinas. Onde tem penitenciária, que ele não pode ir sozinho, eu acompanho ele. Quando tem que ir no fórum ler um processo, quando a filha dele não pode, eu vou com ele. E, aí, eu ganho alguns.

P/1 – Esse é seu trabalho hoje?

R – Hoje eu não trabalho quase mais. Hoje eu trabalho um dia só, dois dias e faço algumas partes no computador em casa, com o doutor Edivaldo. E também hoje, graças a Deus, eu consegui auxílio em LOAS, né, pras crianças que têm problema de deficiência. Aí, eu fui até a Justiça Federal, advogados me levaram lá e eu consegui dois auxílios pra mim cuidar mais deles porque eles não têm condição de ficar só, muito tempo só não pode. Daí, eu consegui dois auxílios LOAS e hoje, Graças a Deus, me dão esse auxílio pra Leidiana...

P/1 – Tem algumas histórias, assim, alguns fatos marcantes desse período que você morou na favela?

R – Como assim, o que você chama de marcante? Que eu tenho uma que talvez não possa ser falado, né?

P/1 – É?

R – É.

P/1 – Qual que é?

R – Na época que eu trabalhava catando papelão, que eu tinha que deixar Leidiana sozinha. A Leidiana foi vítima de estupro e hoje, eu tinha dois filhos especiais, hoje eu tenho dois filhos e uma neta especial, porque desse estupro, ela ficou grávida. E hoje eu tenho mais um especial...

P/1 – O neto é especial?

R – Uma neta especial (emoção), com problemas mais graves do que o da mãe, porque ela se mutila, tem atraso. Só que, assim, eles são bem tratados porque hoje eu tenho onde tratar. Hoje eu tenho onde tratar, no CAPS. Que quando eu catava papelão e que ela tinha que ficar sozinha, ela era vulnerável às pessoas e ela foi levada por umas pessoas e sumiram com ela uns três dias e quando eu encontrei minha filha, com ajuda da polícia e eu sozinha, investigando, ela já tava estuprada e grávida. E eu não tive coragem de tirar o bebê por causa do coração dela, porque ela além de ser deficiente mental, ela tem um problema no coração. Então, eu fiquei com medo de assinar o aborto e hoje eu tenho três (emoção). Me desculpa, moça (choro). Hoje são três deficientes, porque a minha neta tem 11 anos e ela é deficiente mental e tem mutilação, porque eu tinha que catar papelão na época que eu não tinha o benefício.

P/1 – Você tem alguém que te ajuda, algum parente, algum amigo?

R – Hoje eu tenho, assim, um amigo. Não tem muito pessoa pra me ajudar, tem que ser Deus e eu.

P/1 – Você tem alguma religião?

R – Evangélica. Então, assim, quando mexe com esse meu passado, quando eu tinha que catar papelão, eu tinha que deixar a minha filha sozinha, às vezes dava pra levar, às vezes não dava. E, aí, alguém, alguma amiguinha levou ela pra longe, aí sumiu três dias, eu fui atrás, boletim de ocorrência só depois de 24 horas, né? Não é assim? Aí, quando eu encontrei a minha filha, três dias depois, ela tava estuprada e grávida.

P/1 – Nunca acharam as pessoas?

R – A gente sabe quem é, mas eu prefiro não saber. Assim, eu prefiro desconhecer, porque a pessoa que faz isso pra mim não é gente. Foram vários, não foi um. Foram vários. Como é que eu vou identificar? Foram vários. E, também, na época, algum que eu descobri, algum deles, eu fui e tomei, fui ameaçada. Então, eu preferi ficar com a minha dor, criar a minha neta e a minha filha, porque hoje eu venci, hoje eu venci. Quando foi mais pra frente, porque os problemas ficaram mais difícil, eu consegui auxílio LOAS, aí eu fiquei trabalhando um dia na semana, levando a minha filha. Eu falei “eu vou trabalhar esse um dia na semana, levando a minha filha, os outros vai pra escola e esse dinheiro pra mim me habilitar e comprar meu carro pra poder ficar mais fácil pra mim”, pra quando elas tiverem uma crise eu não estar precisando esperar e nem estar precisando pedir. Essas pessoas que fizeram isso com a minha filha, eu, assim, peço a Deus que tenha misericórdia deles, porque tem deles que também não tá mais nem vivo, pra ser sincera. Tem deles que nem tá mais vivo, né, que já morreram por aí. E eu hoje crio a minha neta, Giovana, tá com 11 anos agora, ela é linda, eu não tenho de que reclamar. Eu só trato e sou feliz pela ajuda que eu recebo do Governo Federal e sou feliz porque ela tá tratada e ela controlada, os remédios controlam elas, tudo direitinho. Então, eu venci. Então eu não quero saber quem é o pai de Giovana, né?

P/1 – O que você ia perguntar?

P/2 – A Márcia me contou uma história de que você é socorrista.

R – Ah, sim, tem a parte do socorrista. É assim, aí já é bem mais pra trás, na favela ainda, as pessoas me procuravam pra ajudar, eu socorri muita gente, muitos nenês nasceram comigo ali, do lado, uns quatro nenês ou mais, não sei...

P/2 – Você fez o parto?

R – É, eu auxiliava aquelas mães pra levar pra hospitais. Às vezes eu tinha até que ficar com a mãe lá, a noite toda, até o nenê nascer. E quando o povo ouvia aquele estrondo nas redes elétricas, eu dei um socorro, aquele ali eu não tive sucesso, o rapaz morreu nos meus braços, né? Tem, sim, essa parte da socorrista, mas como é que você quer que eu defina ela?

P/1 – Como que você começou? Por quê que você virou socorrista?

R – As pessoas me procuravam. Acho que eu era... Como é que eu vou falar? Sempre fui uma pessoa que gostou de conversar, respeitei sempre cada pessoa, independente do que ela fosse ou não, sempre respeitei todo mundo. Então, as pessoas tinham aquele carinho, aquele afeto e falavam “olha, vai na casa, telefona pra dona Nice, chama ela, ela é assim, ela é humilde, ela vai com a gente, ela ajuda”. E a gente ajuda, né? A gente precisa ajudar uns aos outros.

P/1 – E como é que foi sair da favela? Como é que você conseguiu sair da favela e vir pro prédio? Como que foi esse processo?

R – É, primeiro eu saí da favela, derrubou o barraco e eu fui pro alojamento. Eu tive sorte, fiquei pouco tempo no alojamento, fiquei uns dois anos no alojamento. Aí, depois, eu fui chamada pro apartamento. Eu fui pro apartamento, sete anos que eu fui pro meu primeiro apartamento. Só que aí eu tive que sair de lá, porque o apartamento que eu morava, no térreo, ele deu bastante mofo, né? E como a Leidiana usa muito medicamento, eu não sabia que o mofo fazia mal pra ela. Então a gente teve que sair daquele apartamento pra um outro apartamento, mas sempre eles ali, eu ia lá e eles faziam a troca de apartamento. Aí, no último apartamento que eu tive que vir pra cá, pra Doutor José Fornari, foi porque ela subia as escadas e o coração dela era muito grande e ela não podia subir as escadas, ela não podia morar no segundo andar. Aí, foi “onde” eu fui de novo lá e pedi pra que eles me trocassem pra outro térreo, mas que não tivesse mofo, que fosse mais arejado. Aí eu consegui a troca pra esse que eu na Doutor José Fornari. Mas eu fiquei dois anos no alojamento, e depois do alojamento eu fui pra apartamento.

P/1 – Quando você mudou, o quê que mudou na sua vida?

R – Ah, muita coisa. Muita coisa mudou, a gente não pode ser ingrato, a gente tem que ser grato a tudo aquilo que acontece com você, né? O apartamento, tá certo que é só dois quartos, mas água encanada, piso, chuveiro, uma vida diferente, uma vida melhor, limpa, mais limpa, mais digna. Mais digna que eu quero dizer porque tá lá a torneira, tem o lugar certinho, limpo, de você escovar o seu dente, você tem o quarto onde o seu filho vai poder dormir, não vai encher de água, não vai passar um rato, né, não vai ter sujeira. Assim, eu achei uma mudança pra melhor, pra melhor a mudança pro apartamento.

P/1 – Gi?

P/2 – Fiquei pensando, quando você começou a contar a história e contou da casa grande da fazenda, como se fosse uma casa de fazenda, na sua primeira casa, lá na Bahia ainda...

R – É.

P/2 – As sensações das casas, né? Como que essa lembrança dessa casona e das várias casas que você passou, eu fiquei imaginando o que você foi sentindo ao longo das suas mudanças, que foram muitas, né?

R – Muitas, muitas! É uma diferença muito grande daquelas fazendas, daquele onde você tem livre arbítrio, né? Aí, depois pro apartamento, que é limpo, que é uma mudança muito boa, mas e o convívio, né? É difícil o convívio, pra gente conviver a gente precisa driblar muito, ainda mais você que tem dois, três filhos com necessidades especiais. Eles têm dificuldade de amizade, como é que eu vou te falar a palavra certa? Eles têm dificuldade de se adaptar às outras pessoas e as outras pessoas às vezes não entendem o problema deles. E, aí, torna tudo difícil, né? Tem que ter um certo psicológico pra poder conviver com outras pessoas diferentes, pessoas de estilo diferente, de maneira de vida diferente. Também não é fácil, não é fácil. Pode perguntar, eu acho que eu cortei a tua pergunta.

P/2 – Não, foi respondendo, era um pensamento. E você tem sonhos?

R – Aí você mexe comigo (riso e choro)! Tenho, sim, eu tenho um sonho! Não que eu não seja realizada em vários, né? Mas eu tenho um sonho, o meu sonho é de ter uma casa. Não que o apartamento não seja uma, eu quero ter aquela casa aonde meu filho tenha o quarto dele, onde a Leidiana possa ter o quarto dela, cada um tenha o seu quarto, porque não é fácil pra mim ter Leidiana especial, com 29 anos... Com 30 anos, quer dizer, desculpa. Aí, Leidiana com necessidades especiais, ela tem problemas de mudança de comportamento, conviver com a filha que as duas têm um problema, é muito difícil. Aí, vem o Elias, de 17 anos, ele é uma criança normal pra conviver ali. E eu tenho o Anderson, né, de 10. Giovana tem 11, o Anderson tem 10, tem o Elias de 17 anos e a Leidiana de 30. Quer dizer, um tem problema, o outro não tem, então, é muito difícil, não é fácil pra mim dividir aquele espaço, não é fácil. Então, o meu sonho, a minha meta é ter uma casinha com mais de quartos, que fosse. Esse é o meu sonho.

P/1 – O quê que você achou de contar um pedaço da sua história aqui, pra gente do Museu do Pessoa?

R – Como é o seu nome?

P/1 – Rosana.

R – Rosana, é uma oportunidade única, alguém tá me ouvindo (emoção), porque ninguém até então nunca tinha me ouvido. Você teve esse carinho de sair da sua casa e estar ouvindo tudo isso e muito mais detalhes que não tem como a gente falar, não tem nem como a gente lembrar mais. Pra mim é uma oportunidade única e, assim, uma coisa muito boa, é sinal de que a gente ainda tem importância, né? A gente tem importância ainda e que a gente não tá totalmente só (emoção). Quantas vezes eu precisei de alguém assim? Pra falar de quanto a sua filha sofreu, o que você passou... Nunca ninguém me ouviu. Você imagina pra mim ter uma filha – deficiente não, que eu não gosto de usar a palavra – especial grávida, estuprada por vários? Ninguém nunca ouviu a minha história. Dá pra você entender isso (emoção)? Ninguém nunca ouviu. Vocês são as primeiras pessoas a ouvir a minha história. No hospital a gente não podia falar, o vizinho também não dá pra falar, eu não te explicar o quê que eu sinto hoje. Eu só tô me sentindo honrada por vocês estarem aqui.

P/1 – Pra gente é um privilégio poder te escutar.

P/2 – Obrigada por ter...

P/1 – Obrigada.

R – Obrigada eu.

FINAL DA ENTREVISTA