Museu da Pessoa

Uma história de determinação

autoria: Museu da Pessoa personagem: Luciana Francisca Alemão

Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Luciana Francisca Alemão
Entrevistada por Márcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 16/03/2018
HTC_HV12_ Luciana Francisca Alemão
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão/Edição - Paulo Rodrigues Ferreira
MW Transcrições



P/1 – Luciana, a gente vai começar esta conversa, mas só para... (interrupção). Luciana, fale para mim, só para a gente começar a conversa, o seu nome completo, onde você nasceu e em que dia, ano, mês, tudo.

R – Então... Meu nome é Luciana Francisca Alemão, eu nasci no dia dois de julho de 1980, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, que é uma cidade que faz parte do estado de Pernambuco. Eu tenho trinta e sete anos, atualmente também resido em Jaboatão e tenho dois filhos, sou casada, e sou professora.

P/1 – Luciana, conte um pouquinho da sua infância: irmãos, brincadeiras, do que você gostava de brincar, se você tinha amigos, enfim, conte um pouco dessa parte das brincadeiras.

R – Minha mãe teve três filhas, eu sou a do meio. Da infância, eu lembro que a gente gostava muito de brincar. Mas tem uma parte também da infância, que quando o pai da gente estava chegando, a gente corria e entrava, por medo. Porque, na época, meu pai era alcoólatra e bebia todos os dias, então quando ele chegava, ele não queria ninguém na rua brincando. Então, se ele pegasse, se a gente estivesse no meio da rua brincando, a gente sabia que iria apanhar, e muito. E numa dessas vezes, inclusive, eu estava rodando um bambolê, eu lembro... Essa é uma lembrança, e ele chegou bêbado. E quando ele me puxou... A gente morava... Tinha uma calçada alta, quando ele me puxou, até quebrei o braço, com tamanha força. Mas depois os dois se separaram, aí melhorou.

P/1 – Você e suas irmãs brincavam juntas sempre?

R – Sim. Sim. A mais velha é que não gostava muito, porque a diferença de idade é de cinco anos. Mas com a mais nova, a minha irmã mais nova, a gente sempre gostava de brincar de comidinha, de panelinha, essas coisas, que a gente sempre gostava. Era mais eu e a mais nova que gostávamos de brincar.

P/1 – Qual o nome delas?

R – A mais velha se chama Michele, Michele Patrícia Francisca Alemão. E a mais nova se chamava - porque ela faleceu - se chamava Milena Cristina Francisca Alemão.

P/1 – E o nome dos seus pais?

R – Meu pai se chama Claudionor Francisco Alemão e minha mãe se chamava - porque também faleceu - Adinalva Francisca Ferreira.

P/1 – O seu pai trabalhava? Você lembra em que ele trabalhava?

R – Trabalhava. Ele trabalhava numa empresa que movimentava a economia de lá de Jaboatão. Jaboatão Centro, na Portela. Então ele era encarregado das máquinas, das máquinas que tinha. Era uma fábrica que produzia papel, papéis, era isso.

P/1 – E ele trabalhava numa das máquinas.

R – Trabalhava numa das máquinas.

P/1 – E a sua mãe?

R – Minha mãe era professora. Era professora. O engraçado é que eu dizia a ela que eu nunca iria ser professora. Porque quando eu fui ficando assim uma mocinha, dez anos de idade, onze anos de idade, minha mãe me colocava para cortar papéis, ajudá-la nas festividades. A gente faz muito isso, porque a gente não tem o apoio, então a gente não quer passar. Porque eu sou professora de escola pública e a gente quer vivenciar essas datas festivas, a gente acha importante, quer vivenciar em sala e não tem um apoio, Então eu dizia à minha mãe: “Deus me livre que eu serei professora na minha vida. Nunca. Além de ganhar pouco, ainda tirar do meu dinheiro, dinheiro que eu recebo, para fazer festividade, vou nada” – eu dizia a ela. Ela dizia: “Ah, minha filha, mas eu faço, porque eu faço com muito amor e gosto, e eles necessitam. Você sabe que tudo... A mudança só parte através da educação. É a única forma. A gente que vem de baixo, a gente só muda através da educação. E o que eu tenho para ofertar para eles é isso, é o meu melhor”. Eu dizia: “Ah, mas eu não tenho paciência, não”. Nessa eu ficava brava, ficava: “Ah, mãe, eu não vou fazer, não”. Ela: “Mas me ajuda, me ajuda”. “Está bom”. Ela insistia, eu terminava aquilo. Ao final da história, eu a ajudava a fazer. Assim... Era ornamentação das atividades, as capas das atividades, porque antigamente a gente pintava. Deixe-me ver. Fazia os saquinhos de guloseimas para eles, todas essas coisas. Os desenhos, para a gente organizar a sala de aula, o espaço do cantinho da leitura, outros espaços assim: quantos somos hoje, calendário, esses painéis. Ela tinha muita habilidade artística. Que, no final, eu terminei herdando isso dela, porque essa questão de mexer com desenhos, com materiais emborrachadinhos, dentre outros materiais, para fazer esses painéis, agora eu tenho facilidade com isso.

P/1 – Aprendeu tudo.

R – Aprendi.

P/1 – E vocês estudavam na escola em que ela trabalhava?

R – Não. Então... Eu estudava numa escola que fazia parte, que ela era... Como a gente diz o nome? Dessa empresa que meu pai trabalhou, que era chamada Portela. Eles tinham uma escola que era direcionada para filhos de funcionários da Portela, chamada Escola Santo Antônio. Foi lá que eu fiz o pré, porque antigamente era o pré, depois era a alfabetização, até a oitava série, que atualmente é o nono ano. Porém, quando meu pai se separou da minha mãe, ele optou por pedir demissão dessa empresa. Minha mãe falava que era para não pagar a pensão alimentícia, e acredito que deva ter sido isso mesmo, porque ele não contribuiu, ela que arcou com a criação de nós três, sozinha. Mas a gente conseguiu permanecer nessa escola porque ela conversou com a assistente social da época, sabia de toda a nossa história, a história de violência doméstica que a gente sofria, inclusive meu pai por diversas vezes foi chamado por ela, lá o pessoal, pela assistente social, porque a gente chegava marcada à escola, com manchas, porque a gente apanhava bastante. E o marido da minha tia, a irmã da minha mãe, também trabalhava nessa empresa, e aí conseguiu que a gente se tornasse dependente desse marido da minha tia. E foi lá que eu concluí as séries iniciais. Antigamente, a gente chamava de ensino fundamental I e ensino fundamental II. Foi toda lá a trajetória da gente, das três filhas da minha mãe.

P/1 – E você gostava dessa escola?

R – Sim. Sim. Muito. Muito. A referência... Eu tenho uma referência enorme por essa escola. Essa questão de gostar dos estudos veio de lá. Eu tive ótimos professores, eu lembro. Cecília era uma professora maravilhosa, de Língua Portuguesa. Ela dizia: “Você vai se tornar escritora”. Eu dizia: “Por quê?” Porque eu adorava escrever textos, sempre. E ela dizia: “Você tem tudo para se tornar uma escritora”. Poemas, eu lembro. Inclusive, houve um período em que ela disse à minha mãe: “Por que você não reúne os poemas de Luciana para tentar uma publicação?”

P/1 – Ela seria uma professora assim que marcou mais para você?

R – Uma das. Uma das.

P/1 – Teve outras? Fala de outros, ou outras.

R – Teve outra. Ah, essa outra eu sou suspeita. Essa veio no Travessia.

P/1 – Ela era sua professora?

R – Sim (choro).

P/1 – A gente espera.

R – Mabel o nome dela. Eu queria encontrá-la. Eu ainda não reencontrei após conseguir ingressar como educadora, após ter seguido a carreira na educação. Eu ainda não a encontrei.

P/1 – E por que ela te marcou? No quê assim? Conte a história para a gente.

R – No quê? Deixe-me contar a história. Então... O ensino fundamental eu consegui concluir na idade regular, na idade que é estabelecida, aos quatorze anos de idade. Porém, no ano seguinte... É porque, antigamente, o ensino médio era chamado de segundo grau, lembra? E tinha essas especifi... Era específico. Assim... Tinha o Científico, tinha Contabilidade, tinha o Magistério. E minha mãe me matriculou para fazer Contabilidade. Mas eu não tinha afinidade alguma, eu não gostei da disciplina. Eu lembro que tinha uma disciplina - você tem um livro-caixa, um livro disso - eu digo: “Eu não quero isso para mim, não”. Então eu desisti, aos quinze anos de idade, fiquei esse ano sem estudar. No ano seguinte, uma prima minha... Ela morava com os meus avós, os pais de minha mãe, e aí ela casou. E como a gente teve uma vida muito difícil pelo fato de o nosso pai nos ter abandonado, não ter ajudado minha mãe financeiramente, minha mãe, sozinha, como professora, para criar três filhas, pagando aluguel, muito difícil. E meus avós nos ajudavam com as despesas. E o irmão da minha mãe, mais velho, o irmão mais velho da minha mãe, chegou à casa da minha mãe e disse: “Olha, Nalva, alguém precisa tomar conta de papai e mamãe, e aí você tem três filhas”. Então meio que minha mãe achou que assim... Ele quis dizer isso: tem a obrigação de ajudar nossos pais, porque, querendo ou não, eles ajudam você financeiramente. Minha mãe olhou assim, das três eu era mais apegada a ela, que sempre nessas atividades escolares, nessas coisas, ela: “Lu, você vai tomar conta de mamãe?” Eu disse: “Está certo”. Fui para a casa da minha avó. Porém minha avó, já muito doente, usava fraldas descartáveis, já não se locomovia, tinha problema para se locomover, a gente segurando-a, meu avô também já muito velhinho, e assim... Eu terminei que fiquei também sem estudar. Virei doméstica, porque eu tinha que lavar, tinha que dar banho na minha avó, tinha que cuidar da casa, do meu avô, tinha que fazer almoço para os meus dois tios. Porque eu tinha um tio que trabalhava na rede ferroviária, e onze e meia da manhã o almoço tinha que estar pronto, porque vinham buscar o almoço dele. E tinha outro tio meu que era comissário de uma delegacia, eu dizia até assim a ele: “Tu ainda acha pouco, ainda vem almoçar aqui também”. Porque ele era casado. Eu digo: “O senhor ainda acha pouco isso, me dando mais trabalho”. E o meu horário na escola - fui fazer o Científico - era de uma hora da tarde. Muitas vezes eu chegava atrasada. Quando eu largava, eu tinha que chegar cedo porque minha avó queria o café na mesa às seis da noite, porque ela dormia muito cedo. E eu fiquei meio que cansada nessa rotina inteira: eu cuidava da casa, lavava a roupa, por muitas vezes tinha que lavar os lençóis, que a minha avó fazia xixi. Então, foi muito difícil. Um ano e meio depois o meu avô veio a falecer, aí que minha avó se tornou mais ainda dependente, eu dormia com ela na mesma cama. E assim... Minha avó não queria nem que eu saísse de junto dela para nada. Então, com o passar dos anos, acho que aos dezoito anos de idade, dezenove, foi quando eu conheci o meu marido e a gente começou a namorar. Minha avó também até ele botava para correr. Achava engraçado que ela dizia assim... Se ele chegasse lá às sete da noite, ela dizia assim: “Você chegou muito cedo, viu? A gente ainda vai tomar café”. E quando dava oito e meia da noite, por volta, mais ou menos, ela fazia: “Vai embora, viu, porque Ciana tem que dormir” – ela me chamava de Ciana – “Porque eu já estou com sono”. E dizia a ele assim: “E ela só casa quando eu morrer, viu?” Ela era muito encrenqueira. Pouco tempo depois ela veio a falecer, realmente. A gente começou namorando, noivei com ele, engravidei, e mais um ano sem estudar.

P/1 – Vamos parar aqui um pouquinho porque eu quero perguntar algumas coisas de antes. Luciana, você tinha quantos anos quando você começou a cuidar da sua avó, mais ou menos?

R – Quinze anos.

P/1 – Quinze anos. Você disse que chegou a fazer o Científico, mas você fez a Contabilidade?

R – Comecei fazendo Contabilidade e desisti. No ano seguinte, aos dezesseis, fui fazer o Científico, mas também terminei desistindo porque o trabalho de estar na casa da minha avó cuidando, limpando, cozinhando, era eu sozinha que tomava conta de toda a casa, dela e de meu avô. E a casa era enorme, tinha três quartos, duas salas. E minha avó queria... Semanalmente eu tinha que lavar a casa todinha. Assim... Passava pano, e uma vez por mês lavava a casa. A roupa dela tinha que ser bem lavada. Às vezes, eu lembro que a minha avó... Fazia: “Mamãe, a roupa...” – que eu a chamava de mamãe e minha mãe de mainha – “Mamãe, está limpa” “Não. Não está, não, você tem que enxaguar no mínimo umas três, quatro vezes, e tem que colocar no amaciante”. Mesmo velhinha, ela era exigente. Ela era exigente.

P/1 – Você só voltou a estudar quando ela faleceu? E aí você conheceu o seu marido...
R – Eu engravidei. Quando ela faleceu, eu já estava com o meu marido, que, na época, ele era meu noivo. Namorado, aí a gente noivou. Quando eu estava com vinte e um anos, eu engravidei, e mais um ano sem estudar. Não fui estudar. Gabriel nasceu, eu estava com vinte e dois anos de idade. E ele muito novinho também, minha mãe disse: “Está vendo? Mais um ano de você sem estudar. Quem mandou? Você inventou de engravidar, agora vai ter que casar”. Eu disse: “Mas eu já era dona de casa antes”. Eu disse a ela: “Mas eu já era dona de casa antes disso”. Ela disse: “Eu não vejo chance para tu”. Meu marido começou... Ele era muito imaturo, saía, passava as noites por aí, eu com criança de colo nos braços, eu disse: “Meu Deus, o que vai ser da minha vida? Com filho, como...”. Eu pensei: “Eu vou voltar para a casa da minha mãe como? Com filho pequeno. Não posso voltar para a casa da minha mãe desse jeito”. E fui esperando, ele fez um aninho, fez um ano e meio, quando ele estava com uns dois aninhos quase, veio minha mãe, chegou para mim... Porque ela era professora, e nessa escola em Jaboatão, que é do estado, que é a Escola Estadual Rodolfo Aureliano, que fica no centro de Jaboatão, uma colega dela, chamada Fátima, que também era professora do município de Jaboatão, disse que teria o Travessia nessa escola, no Rodolfo, e que a duração dele era de um ano e seis meses. Minha mãe disse assim: “Olha, Luciana, a Fátima me disse...” – aí falou com relação ao Travessia – “Você quer voltar a estudar”? Eu disse: “Eu quero. Pelo menos eu termino o ensino médio, ‘mainha’, e pego o certificado, vou ser vendedora de loja”. Era o meu sonho: ser vendedora de loja. “Vou trabalhar numa loja dessas qualquer, e aí eu vou ter o meu dinheiro e tenho como sustentar meu filho.” Essa era a minha visão. Só que quem disse que meu esposo queria me deixar estudar? Não. E foi guerra, viu? Lembro, como se fosse hoje, da primeira noite, quando eu fui para a escola, que eu voltei, a grade de casa estava fechada, e com o meu filho nos braços, e a grade fechada. Mainha também fez minha matrícula, me ajudou na questão da matrícula, porém ela também não abria muito a mão para mim, não, porque ela também não acreditava em mim, não, ela dizia que era fogo meu. Eu lembrei também de um fato importante: a escola em que eu estudei, o Santo Antônio, fechou; tornou-se uma escola do município de Jaboatão. Por conta da escola ter fechado, eu tinha que pegar a ficha dezoito para poder realizar a minha matrícula. Também começou daí a minha penitência, porque eu tive que ir diversas vezes à Gerência Estadual, à Gerência Estadual de Ensino, lá de Pernambuco, para solicitar - e foi um trabalho danado para poder ter em mãos essa ficha dezoito. Eu dizia: “Mas, meu Deus, eu quero voltar a estudar e é tudo isso!” E minha mãe dizia, cada empecilho ela já falava assim: “Eu quero ver mesmo se tu vai estudar, porque todos os anos tu te matricula, mas nunca conclui”. E, realmente, eu entrava e saía, eu entrava e saía. Eu disse: “Mas pelo menos esse vai ser um ano e seis meses, e aí eu vou concluir. Eu preciso. Vou trabalhar de vendedora, porque eu tenho que criar Gabriel”. Fiz a matrícula e fui. Surpresa foi ao chegar à sala, porque a professora estava lá, Mabel, magrinha na época, aquele círculo, eu disse: “E esse círculo vai dar jeito?” Fui logo assim pensando: “E esse círculo vai dar jeito?” Mas, para a surpresa, eu gostei da forma como ela falava, porque ela falava com relação ao projeto, ao Travessia - o que ele tinha a ofertar - e de uma forma apaixonante. Porque eu remeto isso de uma forma apaixonante? Ontem, eu estava lendo os textos de alguns estudantes meus do Travessia e eu me vi nas entrelinhas daqueles textos. Quando Emanuel escreveu assim: “Eu quero ser alguém na vida. Eu quero ser alguém na vida, quero ter uma formação, e eu sei que tenho que ter foco”. Então o “ter foco”, eu já sei que são frases que vêm de mim. “Eu preciso buscar. É um novo recomeço.” E, diariamente, para as aulas do Travessia, eu sempre levo um texto motivacional, e eu sempre saio perguntando a eles qual a parte mais interessante. “O que vocês…?” E assim... No texto deles eu pude perceber essa questão - do jeito que eu me sentia apaixonada, eu vejo que eles também. Eu percebo isso neles, porque... Principalmente ontem, quando eu disse assim: “Olha, amanhã eu não vou poder estar com vocês”. “Ah, não, a gente não quer”. Acho engraçado o jeito que eles: “Nananina” – coloca o dedo – “Mas o que é isso? É com a senhora que a gente quer estar”. A gente termina, sabe, se envolvendo nas histórias de vida. E a questão do Travessia, eu não sou a professora, eu sou a mediadora. E a gente está ali para construir aprendizagens, eu não estou ali para repassar, a gente está construindo.

P/1 – Ótimo. Então eu vou voltar um pouquinho, está bem?

R – Está.

P/1 – Eu falo ‘está’ para a Tereza, porque eu não sei se ela quer também perguntar alguma coisa. Eu queria só saber, para a gente compor essa história, Luciana: você falou que matriculava, saía, matriculava, saía, mas foram duas vezes, ou mais?

R – Mais vezes.

P/1 – É?

R – Mais vezes. Mais vezes, porque quando eu vim a retornar eu já estava com uns vinte. Gabriel nasceu, eu estava com vinte e dois anos de idade, foi uns vinte e cinco anos de idade. Eu matriculava e saía. Por vezes eu ia, matriculava para ter a carteira de estudante, porque a passagem... Essas coisas.

P/1 – E você, além disso que você tinha... Enfim, talvez fosse por isso, mas o que não dava, que você matriculava, saía, matriculava? Já entendemos que você cuidou dos seus avós, depois você engravidou, mas assim... Teve mais algum motivo que fazia você não continuar?

R – Sim. Sim. Na sala de aula mesmo eu não sentia atrativos, eu não tinha paciência. Para falar a verdade, eu não tinha. Por isso que eu me vejo muito como esses meninos. Não dá para a gente também assim... O tempo inteiro querer culpar: “Ah, eles não querem nada com a vida”. Eu acho que a gente tem que tentar entender o porquê, o motivo que leva você a não querer estar naquele espaço. O porquê. Eu lembro que tive um professor de Português - eu esqueci o nome dele - e eu respondi a ele de uma maneira grosseira, eu vejo assim. E eu já encontrei com ele, inclusive, ele disse: “Ah, você agora é professora?” Ele está aposentado, ele é de Jaboatão. Eu disse assim: “Professor, eu agi tão mal com o senhor” – mas eu disse a ele. Ele disse: “Por que você...”. E eu saía. Eu saía às aulas inteiras, agia igual aos adolescentes de antigamente, igual. E eu saía. Ele iniciava a aula, estava dando a aulinha dele no quadro, daqui a pouco: “Vou sair”. “Por que você vai sair?” “Não, vou ao banheiro. Não, eu vou...”. “Mas por que você vai sair? Diga-me, Luciana, por quê?” “Porque eu não quero assistir a sua aula, professor”. “Por que você não quer assistir a minha aula?” “Por que eu não gosto, professor, das suas aulas. Eu não estou gostando”. “Mas você tem que assistir”. Eu digo: “Não vou assistir e o senhor não tem quem me faça me prender nessa sala, e eu vou embora”. E saí. E mais um ano de desistência.

P/1 – Por que você não gostava? Eu imagino, mas... (risos).

R – Por que eu não gostava? Não sei, eu achava maçante, enfadonho demais. Por muitas vezes os professores entram na sala, nem sabem o nome da gente, escrevem, começam a colocar já a atividade lá no quadro o tempo inteiro, e aquilo... E a gente tem que ficar lá o tempo todinho observando, olhando aquele quadro parado. Às vezes, a gente não está entendendo nada e ele está lá, só tem aquele quadro, cinquenta minutos de aula, tem que dar o conteúdo dele e a gente está lá e tem que absorver aquilo e pronto, e acabou-se. “Ah, terminou? Não, vou apagar porque o outro professor vem.” E isso. E é dessa forma.

P/1 – Quando você chegou ao Travessia, o que você sentiu de diferente, além da roda, do acolhimento, mas vamos pensar na aula mesmo? Que também faz parte da aula o acolhimento, mas além do acolhimento...

R – Além do acolhimento, a questão da metodologia do Travessia. É uma metodologia que não é voltada apenas para o conteúdo, mas sim para o ser humano, porque a gente sabe que vai ter que trabalhar os conteúdos, mas antes disso a gente cria a questão da problematização. Antes disso a gente faz uma questão, a gente busca tentar ver o que você conhece sobre aquele determinado... Eu procuro lhe ouvir, o que você tem dificuldade. Eles se sentem surpresos, eles dizem assim, no depoimento deles... Meus estudantes dizem assim: “A senhora é engraçada”. Eu disse: “Por quê?” “Tudo da senhora é o ‘por que’; tudo a senhora quer saber”. Eu disse: “Mas eu quero saber de vocês. Eu não estou aqui...” “Não, mas a senhora não tem que nos ensinar?” Eu digo: “Não. Eu estou aqui para aprender tanto quanto vocês. A gente está aqui para procurar buscar uma solução. A gente está aqui para construir junto o que a gente quer saber, o que a gente está buscando”. É isso que é diferente, o estudante tem espaço, ele consegue ser ouvido.

P/1 – E você? Tente voltar para quando você era estudante. Assim... Uma situação que você lembre.

R – No Travessia?

P/1 – É. Quando você era estudante.

R – Quando eu era estudante? O desejo de me tornar professora surgiu porque justamente nas aulas do Travessia... E nesse meu grupo surgiu também outro professor. Eu tenho um amigo que também se tornou professor, ele fez Letras. Porque Mabel precisou se ausentar, eu não lembro, ela tirou alguma licença e veio uma professora. E a gente estava no módulo de Matemática, ela chegou às aulas e disse: “Olha, gente, a Matemática não é a minha praia, mas a gente vai se ajudando aqui. Cada um que souber um pouquinho, e a gente vai construindo”. Tudo bem. E nas aulas de Matemática, como eu não tinha dificuldade em assimilar os conteúdos, eu não tinha, o pessoal dizia: “Pede para a Luciana. Luciana vai lá”. Ela: “Você consegue, Luciana?” Eu digo: “Olha, o assunto assim...” “Venha para o quadro”. E a gente ia respondendo os exercícios junto. Como também esse meu amigo Júlio, ele fazia um cursinho com um professor. Tinha um professor da rede do município de Jaboatão, ofertava, aos sábados, numa escola para estudantes de escola pública, eles se dispunham e ensinavam Inglês aos estudantes. E Júlio já falava Inglês com fluência. E no módulo que teve a disciplina de Inglês, quem ministrava as aulas era Júlio, para a gente. Era Júlio e David, eram os dois. E David, inclusive, se tornou policial. E Júlio é professor também, como eu.

P/1 – Com a Mabel?

R – Com a Mabel. Sim.

P/1 – E como os alunos no começo reagiram... Até você, reagiu a tudo isso?

R – No começo, a gente era meio que relutante a essa questão do círculo, essa questão desse conversar e desse trabalhar. A gente não dava muita importância. Mas aí a gente foi vendo que ali a gente foi construindo vínculos fortes, laços afetivos mesmo, e foi toda a diferença. Toda a diferença. O grupo... A gente acostumou a um ajudar o outro. Eu acredito... As relações se tornaram mais próximas e isso ajudou a fluir toda a aprendizagem mesmo, em si. Eu vejo... Porque, da turma em que eu fui aluna, do Travessia, vários... Eu encontro vários que obtiveram sucesso profissionalmente. Teve uma, que foi a minha vizinha mesmo, Gorete, ela se tornou enfermeira. Tem outra moça também, Jaci, que ela trabalha... Ela é administradora de alguma coisa, de uma rede de supermercados... É porque eu não a encontrei mais. Então assim... Fez a diferença.

P/1 – E, Luciana, quando... Pensando que você sempre ia lá à outra escola, regular, e ficava tudo muito maçante, mas aí quando você viu que um aluno poderia dar aula, assim... Explicar o conteúdo de Inglês, que a Mabel abria esse espaço, como você reagiu? E até os seus colegas?

R – Todo mundo reagiu de maneira positiva. Ninguém estranhava, até porque lá, para a gente a sala de aula do Travessia... A gente se sentia num espaço em que a gente era ouvido. Era um espaço onde as pessoas acreditavam em você, em que você tinha possibilidade de algo. Porque nem a minha própria mãe acreditava em mim. Ela dizia que... Ela disse, chegou a dizer a mim: “Eu não pensei que tu fosse estudar, não. Eu pensei que mais uma vez tu fosse desistir, que tu não fosse levar adiante”. Quando eu disse que iria ser professora, que eu sentia aquela vontade, Mabel chegou para mim: “Vá. Vá em frente”. Disse: “Mas será que eu consigo? Já estou muito velha”. “Como você está velha? Você ainda está nova, você consegue”. Eu disse: “Mas passou a minha chance”. “Não. Eu acredito em você”. E não só a mim ela incentivou, ela incentivou a mim, ao Júlio e a tantos outros que ali estavam. Então, esse também era o diferencial. Eu sempre digo assim: eu, como mediadora daquele processo, se eu não acreditar nele eu não estou acreditando em mim; em consequência, meus estudantes, os estudantes, eles também não irão acreditar. Porque a gente já vem de uma história de fracassos, a gente já vem de um histórico de pessoas que não acreditam mais na gente e que a gente vai ali para aquele espaço e diz assim: “Não, não vai funcionar”. Dão-nos aquela chance, mas nos olham de maneira preconceituosa. Nunca nem cheguei para contar. Eu vim abrir que eu fui do Travessia, no dia da formação. As pessoas olharam para mim de uma forma... Da rede de Recife: “Nossa!”. Porque eu sou efetiva em duas redes e ninguém acreditou que eu... O ensino médio, eu concluí através de um programa. Olharam de um jeito... Porque ninguém, a maioria... E é assim, é desse jeito mesmo. Mas eu, como mediadora desse processo, não posso desacreditar, é o mesmo que eu estivesse desistindo de mim, desistindo da Educação.

P/1 – É muita coisa. Cada coisa que você fala, a gente quer perguntar, perguntar. Como você concluiu? Primeiro, antes de concluir como aluna, eu quero saber se você, enquanto aluna, gostaria de registrar mais algum momento marcante para você. Como aluna.

R – Como aluna?

P/1 – Sabe, mas assim... Realmente uma história para contar, que aconteceu com você, seu sentimento.

R – Eu ter que levar meu filho para assistir às aulas (choro). Gente, eu andava um quilômetro e meio com ele nos braços. Eu digo que a gente se tornou quatro mosqueteiros, que foi Júlio, David, Gorete e eu. Minha mãe, na época, não tinha condições de custear minhas passagens, porque eu morava num bairro distante de onde a escola ficava. A escola ficava no centro de Jaboatão e eu morava em Santo Aleixo. Meu marido, por não querer que eu estudasse, também não me dava o dinheiro. Mesmo assim eu disse: “Eu vou em frente”. Cada dia era uma batalha rompida. Eu levava um pouquinho ele nos braços, porque ele não aguentava andar, uma criança com quatro anos de idade, três, quatro anos de idade, não aguentava andar um quilômetro e meio, e à noite, que era o horário do soninho dele (choro). Um levava a bolsa de Gabriel, eu o levava, daqui a pouco minha vizinha pegava, meus amigos também pegavam, e assim a gente ia. Chegava à sala de aula, todos se ajudavam. Por isso que eu disse que Mabel marcou, porque quando, muitas vezes, ele ia começar a chorar, ela o colocava nos braços também (choro). Quando eu ia responder alguns exercícios, ela segurava. Até o pessoal da própria escola também o tirava da sala, ficava com ele pela escola, mas ninguém me deixava desistir de estudar. Todos diziam: “Você vai concluir”. Sempre assim. A gente sempre se ajudou, uns aos outros. Eu contei essa história para a minha turma, que eu levava meu filho, e uma aluna virou para mim e disse assim: “E podia, professora? E permitia?” “Sim”. Ela disse: “Se algum dia eu trouxesse meu filho, a senhora iria permitir?” Eu disse: “Lógico que sim. Para você concluir, claro que eu permito, sim. Você precisa. Eu só não quero que você desista de você, porque eu sei que você tem capacidade para isso”. Ela ficou olhando para mim, baixou a cabeça. Isso me marcou, eu ter que andar todas as noites. Era um quilômetro e meio para ir, um quilômetro e meio para voltar. Essa ajuda, sabe? Essa ajuda que a gente tinha uns com os outros, isso é marcante. É isso que eu disse: a gente construiu laços que eu vou levar para a vida inteira e que mudaram a minha vida. Eu não me imaginava estar aqui, nem tampouco me tornar professora, inclusive de duas redes municipais. Eu não pensei. Eu não pensei mesmo. Quando eu digo que o Travessia mudou a minha vida, ele realmente mudou a minha vida.

P/1 – Luciana, e o dia da formatura?

R – Então... A formatura da gente não aconteceu, porque nesse período teve uma enchente em Jaboatão e aí ficou... Quando entrou... Foi uma enchente muito grande mesmo, que até a feira de Jaboatão ficou... E terminou que não aconteceu. Mas a gente fez uma cerimônia na escola mesmo, lá no Rodolfo, uma finalização da gente, entre o grupo. Mas a professora Mabel sentiu muito o fato de a gente não ter vivenciado este momento.

P/1 – Mas eu disse até o dia da formatura, assim, o momento da conclusão.

R – Da conclusão?

P/1 – Fechou um ciclo.

R – Ciclo.

P/1 – Não necessariamente aquela cerimônia, mas esse momento.

R – Ah, esse momento foi um momento de choro, de muitas lágrimas. Muitas lágrimas, porque assim... O tempo passou, que a gente nem percebeu. E a gente terminou o curso, que a gente tanto queria que terminasse rápido, em um ano e seis meses; quando a gente concluiu, a gente queria um tempo maior. Terminou que a gente queria que esse tempo se ampliasse.

P/1 – E por quê?
R – Por conta da nossa relação, das relações que foram construídas ali naquele espaço. Ali eu aprendi que o processo de aprendizagem não é repassado, ele é construído diariamente por todos os envolvidos, e que o estudante também precisa ter voz. O que a gente pensa que eles não sabem, mas eles sabem sim, eles têm uma vivência de uma maneira... Eles têm uma vivência de mundo, mas de uma maneira como a gente também tem. E aquele espaço, esse espaço, tem que ser de troca. Ele é um espaço de construção de conhecimentos. Eu não estou ali para repassar, eu estou ali para construir junto com eles.

P/1 – E como você depois, concluindo o ensino médio, como foi? O que aconteceu? Para a gente chegar ao momento em que você virou professora do Travessia.

R – Agora do Travessia.

P/1 – Mas, primeiro, não sei se foi junto, mas você também virou professora de duas redes municipais.

R – Sim.

P/1 – Conte um pouco assim dessa trajetória.

R – Quando concluí o Travessia, sempre dizendo que queria ser professora, eu me matriculei no Normal Médio, no primeiro ano do Normal Médio. Como minha mãe era professora do município, ela conseguiu... Antes de ela conseguir o meu estágio, a Mabel me orientou a prestar vestibular e eu prestei vestibular numa instituição, numa universidade particular que ofertava o curso de Pedagogia aos sábados. Passei. Eu lembro que eu recebia sessenta e cinco reais do Bolsa Família do meu filho, e foram sessenta reais. Passei. Aí veio a hora da matrícula, não tinha dinheiro, meu marido dizia: “Você não vai passar”. Feliz da vida quando eu passei: “Mãe, eu passei. E agora a matrícula?” Minha mãe fez: “Olha, eu te dou a metade”. Eu fui. Ele me dava o dinheiro. Meu marido me dava, na época, cinquenta para fazer a feira e eu não gastava os cinquenta reais, eu gastava trinta e cinco e guardava quinze. Terminei... Não sei como, juntei, efetuei a matrícula. Mas aí, passei seis meses sem pagar o primeiro período, foi quando a minha mãe arranjou um estágio para mim, pela Prefeitura de Jaboatão. Eu tinha que continuar no Normal Médio. O que eu fazia?

P/1 – Tinha que fazer o Normal?

R – Porque o estágio era pelo Normal Médio. Porque, no primeiro período, a gente não consegue estágio, a gente só consegue do terceiro em diante, no ensino superior; na graduação, no caso. E eu estagiava; à noite, estava no Normal Médio, que eu terminei não concluindo, viu, para deixar detalhe, porque era essa mesma forminha. E, aos sábados, eu passava o dia inteiro na graduação. Depois eu arranjei um estágio pela Prefeitura do Recife, aí comecei a estagiar nos dois horários - manhã e tarde; e, à noite, o Normal Médio. E fui levando. No terceiro ano do Normal Médio eu já estava... Deixe-me ver... Acredito que no quarto período, e aí eu já não quis mais o Normal Médio, fiquei só na graduação mesmo.

P/1 – E continuou fazendo estágio?

R – E continuei no estágio. Concluí a graduação. Ao concluir a graduação, consegui contratos... Ser contratada... Esses que eles fazem a seleção, simplificada, pela Prefeitura de Jaboatão; e trabalhava, também, em escolas particulares. E nessa minha vivência... Porque quando eu iniciei como estagiária, eu não ficava como auxiliar, sempre assumi salas de aula. Trabalhei numa escola também, de um vereador de Jaboatão. Então, aí, fui adquirindo experiência e fui trabalhar também em escolas particulares. Concluí a graduação e, nesse meio tempo, eu estava fazendo Psicopedagogia, especialização. Porque essa questão da aprendizagem sempre me chamou a atenção e eu me perguntava: “Por que aquele estudante não consegue aprender?” Eu queria entender essa questão da concepção do pensamento dele e como a gente lida com estudantes em sala de aula especiais, então eu fui fazer Psicopedagogia. Concluí. Fui para escolas particulares, atuei como supervisora pedagógica, e aí também fiz a especialização em Gestão e Supervisão Escolar, porque eu queria também ter conhecimento da área na qual eu estava atuando naquele momento: como era essa questão da supervisão, desse gerenciamento, das relações, juntamente com os professores. Entender essa questão curricular também, que a gente não vê de forma tão minuciosa na graduação como eu vi na especialização. E aí minha mãe adoece, foi quando ela estava com... Ela teve um AVC, ]do AVC um aneurisma, e ela estava há vinte dias dias internada num hospital e o meu esposo chegou com o boleto do concurso da Prefeitura do Recife. Eu disse: “Paga não. Para que tu vai pagar? Eu não estudei nada, eu não vou passar”. Na época, eu estava concluindo ainda a primeira especialização, porque eu demorei a ser chamada na Prefeitura do Recife. Eu disse: “Eu não vou passar, eu ainda estou terminando a especialização”. Minha mãe disse: “Pague, vai que é a sua chance”. Eu disse: “Mas, mainha, eu ainda não tenho título. Eu ainda não tenho o título”. A titulação... Porque professor passa por duas avaliações: pela prova objetiva e pela avaliação de títulos. Eu fiz e ela faleceu. Oito dias após a morte dela foi a prova. Eu, barriguda da minha mais nova - eu estava com sete meses - meu esposo pergunta: “Você vai fazer essa prova?” Eu disse: “Não. Não vou, não”. “Então, vou à casa da minha mãe”. “Vá”. Mas depois eu disse: “Eu vou”. E eu saí. Sem celular, sem nada. Quando eu voltei da prova todo mundo estava lá me olhando, pensando que eu iria fazer alguma coisa, cometer alguma coisa, até um suicídio - minha tia falou - porque eu chorava muito, sentindo falta da minha mãe. Mas, para minha surpresa, passei; mas fiquei muito distante. Mas, três anos - eu acredito - após três anos fui chamada para ingressar na rede de Recife. E Jaboatão, logo após, quando houve um concurso para a Prefeitura de Jaboatão, eu fiz. Aí passei, dentro do quadro de vagas, e fui chamada. Fiz também concurso em outras Prefeituras, no interior, antes de ter também... Tinha sido aprovada, como em Cortês, que eu fiz, passei em terceiro lugar. Mas foi isso. Aquela pessoa desacreditada, que ninguém... Que veio de um programa onde aquelas pessoas também não acreditavam, cá estou querendo multiplicar, querendo que mais Lucianas venham também.

P/1 – E sua mãe depois, Luciana, pelo que você está dizendo, ela lhe incentivava a fazer os



concursos.

R – Sim.

P/1 – Passou a acreditar?

R – Passou.

P/1 – Estou perguntando.

R – Passou, passou. Ela passou. O que me marca mais é o dia da colação de grau. Quando eu colei grau, ela disse a mim... Foi quando justamente ela disse que não acreditava em mim, que era fogo. Foi no dia da colação de grau: “Eu pensei que tu não fosse à frente, que fosse só fogo de facho” – que é assim que se chama. É assim que os pernambucanos falam. “Eu pensei que era fogo de facho, mas você me surpreendeu. Você não sabe o quanto de orgulho você está me dando.”

P/2 – Luciana, e o que você trouxe da aluna Luciana, do Travessia, para a professora Luciana, no Travessia?

R – Eu sempre penso em tudo o que a gente vivenciou naquele momento, no Travessia, e quero proporcionar essas vivências junto aos estudantes, essa construção, a forma de a gente aprender, de transformar um espaço, um espaço de diálogo, não um espaço só de imposição de conteúdos, mas de transformar esse espaço em nosso, construído por nós. Porque eu tenho noção de que na sala de aula do Travessia, ali era um espaço que era nosso, não era do professor. Porque, às vezes, a gente como professor, a gente peca, eu tento me policiar muito quanto a isso. Eu trabalho em outra rede, com outro público, e muita gente me pergunta assim: “Ah, Luciana, o que você tem que os meninos gostam de você? Ah, Luciana, você se dá trabalho porque você inventa coisas”. Mas eu acredito que a sala de aula tem que ser um espaço de descobertas. Ela não tem que ser um espaço onde o estudante tem que estar ali, tem que estar balançando a cabeça e concordando com tudo. E as aulas também não podem ser aquela coisa enfadonha porque eu, como professora, eu me policio muito quanto a isso, nesse sentido, porque eu não quero que eles vivenciem o que eu vivenciei lá atrás, entende? Eu tenho muito esse cuidado e tem gente que diz assim: “E o que você faz?” Ontem, inclusive, a professora me perguntou... Porque quando a gente foi embora para casa... Tem uma professora com que eu trabalho, que ela é da mesma escola em que eu leciono, lá no Travessia, e ela disse: “Tinha estudante lá na porta da sua sala”. Eu disse: “Ah, eles estavam lá na janela”. “E o que você estava fazendo?” “Eu estava fazendo uma atividade lá, eu estava fazendo”. “Ah, eles ficam num entra e sai, ficam querendo olhar as suas aulas”. Eu apenas fico sorrindo. Eu apenas fico sorrindo, sabe, porque às vezes a gente não é muito bem visto. Porque eu escuto: você se dá trabalho, você inventa muita coisa. Não. Eu apenas transformo aquele espaço num espaço de aprendizagem. Eu não iria aguentar passar o tempo inteiro, ficar o tempo inteiro só no quadro: e vamos, isso! Eu não gosto disso. Eu me vejo no lugar deles, então eu não quero fazer isso.

P/1 – Luciana, eu queria lembrar com você: a primeira vez que você entrou na sala de aula, você só tinha sido aluna, certo? Como foi? A primeira vez, ou uma situação assim de começo.

R – Ah, eu lembro. A primeira vez...

P/1 – E só fale que turma era também, para a gente saber a idade, mais ou menos.

R – A primeira vez que eu entrei na sala de aula foi numa turma de alfabetização, no primeiro ano.

P/1 – De crianças?

R – Sim. De crianças. E eu perguntei: “Ai, meu Deus, será que eu vou dar conta?” Eu fiquei meio que temerosa. Antes de ir, eu perguntei à minha mãe: “Mainha, como é isso aí?” “Olhe, você vai para a sala de aula, eu lhe conheço, você vai se dar bem. Eu sei como você é, você gosta de buscar as suas coisas”. Ela disse a mim: “Você gosta de buscar as suas coisas. Eu tenho algumas atividades ali, você quer?” Eu disse: “Quero”. “Vou lhe dar alguns conselhos: estabeleça um limite” – ela dizendo – “um limite. Diga o que pode e o que não pode fazer”. Eu já olhei para ela, falei: “Meu Deus do céu, eu já vou entrar numa sala de aula desse jeito: o que pode e o que não pode fazer? Que autoritarismo é esse meu? De minha parte?”. Mas eu a deixei falando. É porque era a forma que ela... De antigamente. Mas eu fiquei temerosa. Entretanto, ali eu fui descobrindo que não consigo fazer outra coisa da minha vida. E eu dizia que não queria ser professora, viu?

P/1 – (risos) Muito bom. Antes você levava o seu filho para o Travessia porque você era aluna. E depois, quando você entrou na faculdade?

R – Para o Travessia. Ele continuou indo comigo também estudar. Graças a Deus que nesse meu percurso as pessoas entendiam a minha necessidade, porque eu não tinha com quem deixar. Minha mãe não ficava com ele porque minhas irmãs mais novas, elas também tinham sido mães, e minha mãe é que tomava conta deles. Eu me casei, tudo o mais, morava na minha casa, mas as minhas duas irmãs não. Elas se casaram, mas não deu certo, voltaram para dentro da casa da minha mãe. Por isso eu também tinha essa busca, essa minha necessidade de independência, porque eu tinha medo que acontecesse o mesmo. Minha mãe foi abandonada pelo meu pai, eu vivi uma infância violenta, meu pai era alcoólatra, nos batia. Minha mãe criou nós três, sozinha. Minhas irmãs engravidaram, moraram, se casaram, mas não deu certo o relacionamento, voltaram para dentro da casa da minha mãe, com filhos. E eu não queria voltar também para dentro da casa da minha mãe, com filhos. Sem poder ter como... Porque eu pensava que meu casamento não fosse dar certo também. Olha que nosso relacionamento de namoro, noivado e casamento vai fazer dezoito anos. Mas eu queria a minha independência. E eu tinha que levar Gabriel comigo, porque meu marido, no começo, não via com bons olhos. Hoje em dia já não, hoje em dia já me apoia em tudo. Mas o que ele pudesse fazer para dificultar tudo isso, ele fazia. E Gabriel, aos seis anos, quase sete anos de idade, ele ficava... Ele ia para a escola pela manhã, porque pela manhã eu estagiava em Jaboatão, e era uma escola... Que, inclusive, é a escola em que eu estou atualmente, como efetiva. Eu estagiava, porque é perto de onde eu resido. Então eu o deixava nessa escola particular... Eu já morava próximo à escola em que eu fazia o Normal Médio e ele estudava numa escola particular, nessa escola de bairro. Então eu o deixava na escola. Quando ele largava, ele ia sozinho para casa. Eu morava de aluguel nessa época, aí a dona dessa casa pegava, o olhava para mim. Ele ficava em casa, deixava o almoço dele, ele esquentava no micro-ondas, almoçava e passava a tarde. Algumas vezes a dona da casa o pegava para brincar com as filhas dela. Depois ele descia, no final da tarde, para tomar o banho dele. E por isso que hoje em dia ele é bem independente, meu filho. Muito independente para as coisas. E quando o pai chegava cedo, ficava com ele; quando não, ele ia comigo também estudar. Eu lembro que ele dizia assim aos sábados - porque eu fazia a graduação de sábado - ele dizia: “Mamãe, eu sou uma criança, eu tenho os meus direitos, eu quero dormir mais”. Mas eu dizia: “Mas filho, a mamãe precisa estudar, tu tens que entender. Vamos comigo”. Eu sei que... Imagine para uma criança como foi. Eu dou graças a Deus de ele ser o que é atualmente. Mas ele continuou sempre assim, estudando comigo.

P/2 – Quantos anos ele tem atualmente, Luciana?

R – Dezesseis. Dezesseis.

P/1 – E ele conhece bem o que é bom e o que não é bom de escola.

R – Conhece. Conhece. Conhece. Ele atualmente cursa o sétimo período de Química no IFPE, no Instituto Federal de Pernambuco. Conhece. Conhece. Ele é muito crítico com relação às coisas. Ele diz, inclusive, que por vezes os professores perguntavam a ele, quando ele estava no fundamental II: “Ler é conhecimento de mundo”. “Quem lhe disse isso, Gabriel?” “A minha mãe. A minha mãe”. Ele sabe muito bem essa questão da escola boa e da escola ruim. Ele sabe. E eu meio que o trago também, como minha mãe fez comigo. “Gabriel, eu estou com uma ideia de fazer uma determinada coisa.” “É. Faça. Faça. Faça. Vai dar certo. Vai dar certo.” Eu estava dizendo a ele: “Gabriel, eu vou levar essa atividade para a minha turma do Travessia, será que eles vão gostar?” “Vão, mainha. Vão. Quer minha opinião? Vão”. Então eu também acabo que meio que o envolvendo, porque querendo ou não, ele tem quase a mesma idade. Eles têm quase a mesma idade. Então assim... Uma voz diferente da sala de aula, que eu gosto de ter aquela visão, daquele olhar diferenciado, que aí eu sempre busco muito o meu filho. Eu sempre o busco muito para me dizer: “Mas eu não entendo. Eu não compreendo essa questão”. Aí ele já me dá uma opinião com relação a alguma coisa.

P/1 – E você tem uma menina?

R – Tenho uma menina.

P/1 – Lu, você estava dizendo que imagina a sua mãe... Começa daí, vendo agora, enfim.

R – Eu imagino assim... Minha mãe, eu gostaria muito que ela estivesse aqui para vivenciar tudo isso, tudo que eu estou vivenciando. Porque eu me perguntei, gente, eu fui aluna do Travessia e hoje eu retorno como professora.

P/1 – E você disse que quando você estava no estágio, que ela levava...

R – Eu era estagiária ainda e ela sempre foi muito guerreira, eu acho que é daí que vem a minha força. Então, quando eu era estagiária, quando tinha as assembleias lá do sindicato... Porque ela sempre ia para lá para lutar, porque todo professor tem isso, a gente busca melhorias. A gente não quer apenas a melhoria salarial, mas a gente busca melhorias na infraestrutura, nessa questão da valorização mesmo com relação à gente como profissionais da educação. Porque a gente sabe que a mudança do nosso país só vai partir através de nós, não adianta investir em segurança pública, em saúde. É em educação. Porque o povo, quando passa a ter conhecimento, passa a querer buscar mais, passa a querer melhorias, e isso vai se refletir na construção da nossa sociedade. E se a nossa sociedade vai ser construída de uma maneira melhor, isso reflete no nosso país, e o nosso país vai ser melhor. Então eu acho...

P/1 – Sua mãe levava você?

R – Levava-me para as reuniões do sindicato. E ela dizia assim: “Quando você se tornar professora - porque você está em formação - preste atenção, viu? Preste bastante atenção. Seja lutadora, não seja aquela professora que se esconde atrás do muro, não, e nem fique em cima do muro. Você tem que ir para a linha de frente, você tem que saber, tem que agir, tem que lutar, porque a nossa batalha é grande. A minha está terminando, porque eu estou saindo, mas você vai começar, você vai dar continuidade”. Eu me lembro das palavras dela. Eu lembro, também, que ela sempre dizia essa questão de eu sempre buscar, de inovar, ela sempre tinha muito disso também. Ela não tinha esse conhecimento por conta da formação que ela teve, que não tinha essa ampliação que a gente tem, que a gente tem esses meios tecnológicos e tudo mais, mas ela sempre procurava fazer alguma coisa diferenciada, porque ela sempre queria fazer o melhor. Eu nunca vi minha mãe dizer que estava com preguiça de algo, e nem de ser uma professora que não tinha compromisso. Nunca. Porque minha mãe dizia que a gente, como professor, o que a gente tem de mais valioso é o nome da gente. Ela nunca queria ser apontada na rua como a professora que não fazia nada, que não fazia nada. Eu sempre me pego nessas falas, nessas lembranças. Sempre me atenho, me detenho nessas lembranças.

P/1 -

E você tem uma filha.

R – Cinco anos de idade. Maria Alice. Eu não imaginava ser mãe novamente. A Maria veio para iluminar. Mais uma fala da minha mãe. Quando minha mãe faleceu, eu estava com sete meses de gravidez, ela não conheceu Maria Alice, ela sabia que era uma menina. Quando eu descobri que estava grávida, eu chorei horrores: “Meu Deus, mainha, como vai ser?”. Bateu um desespero, porque eu pensei que fosse vivenciar tudo o que eu vivenciei com o Gabriel. O Gabriel já ficava sozinho em casa. Ele já ficava só, já se virava. E assim, eu disse: “Meu Deus”. Minha mãe: “Mas por que essa agonia inteira?” Eu já tinha terminado a graduação, já estava na especialização. Eu disse: “Mainha, com quem vai ficar essa menina? Eu ainda não sou efetiva, eu trabalho em escola particular, eu vivo de contrato, a senhora sabe”. E eu chorando, chorando, chorando. Isso era 2011. Era. Era. 2011, 2012. O concurso de Recife foi em 2012, porque fazia oito dias só que ela tinha falecido, da minha prova. 2012. Eu chorando, minha mãe virou para mim e disse assim: “Filha, agradeça a Deus, sabe por quê? Porque ele está te dando uma vida, ele não está te tirando uma. Ele está te dando uma vida, e não é uma doença”. Isso eu estava com três meses de gravidez. Quatro meses depois ela teve um aneurisma. Ele teve um AVC, do AVC um aneurisma, e a gente descobriu que ela também estava com um tumor no cérebro, e aí ela faleceu. Não do tumor, mas já tinha tomado grande parte, os médicos já não davam nenhuma esperança à gente com a cirurgia. Ela teve uma parada cardíaca. E após a minha filha nascer, eu descubro que a minha irmã mais nova está com câncer no colo do útero, e também já não tinha mais jeito. Veja só como a minha mãe falou com sabedoria naquele período. E aí veio mais uma luta (choro). Um ano e quatro meses cuidando da minha irmã mais nova. E Maria era o sol de toda aquela tempestade. Até minha irmã mais nova também, ela deitadinha, mas ela pedia para botar a minha filha do lado, aí ficava acalentando a minha filha. Ela era a luz que veio para iluminar a casa. Para lidar com essas perdas, foi necessário Maria Alice ter vindo mesmo. Mas foi difícil, viu? Foi muito difícil. O tempo foi muito pequeno entre elas duas.

P/1 – Da sua mãe e da sua irmã?

R – Da minha mãe e da minha irmã.

P/1 – E hoje a Maria Alice...

R – Está com cinco anos.

P/1 – Está indo para a escola?

R – Está indo para a escola. Já. Ela está no primeiro ano, alfabetização. Primeiro ano do ensino fundamental corresponde ao ciclo alfabetizatório.

P/2 – Luciana, eu tenho duas perguntinhas para você, professora do Travessia. Qual o seu próximo sonho? Com uma palavra só, como você se definiria? Você e a sua caminhada no Travessia?

P/1 – São duas perguntas.

P/2 – Duas perguntas, eu disse a ela.

R – Duas perguntas. Acredita que, assim... Eu não tenho mais tantos sonhos? Eu já sou tão grata a Deus pelo que ele tem me dado, pelo que eu tenho vivenciado em minha vida. Eu quero seguir fazendo o meu trabalho da melhor maneira possível. Agora, sonho sim que a gente tenha uma educação de qualidade para todos. Esse é um dos meus sonhos. Porque eles precisam disso para poder mudar de vida. Eu sempre pedi a Deus, eu trabalhei em escolas particulares, mas eu dizia que não era o meu perfil. Eu necessitava ir para a escola pública, porque ali era o meu lugar, porque ali estavam aqueles que necessitavam de mim, porque eu sei que eles... Ali estão aquelas pessoas que necessitam de uma educação de qualidade.

P/1 – E agora, quando a Tereza perguntou como foi o seu percurso, eu vou juntar outra pergunta. A gente quer falar agora, com um pouco mais de detalhes, de você professora no Travessia, entendeu? Eu vou perguntar, mas depois você pode dar continuidade. O que você, assim... Desse processo, que é uma metodologia, você disse que já falou que acha tão importante, essencial, mas se você pudesse descrever uma aula inteira, mas com um acontecimento, uma coisa que aconteceu naquela aula, que foi marcante, ou um projeto, ou um passeio, algo assim. Sabe, de juntar, como se você voltasse no tempo e fosse contar o que aconteceu naquele dia.

R – Eu, como professora do Travessia, não estou há muito tempo. Eu iniciei neste ano como professora. Então assim... A turma da gente iniciou em fevereiro, estamos juntos desde fevereiro, mas a gente não teve ainda assim vivências de aula, passeio. As vivências que me marcam, a vivência que me marcou é essa questão da leitura do texto deles quando eles escreveram sobre o sonho deles. Em alguns trechos deles eu vi a minha fala e eu vi o quanto é importante, o quanto o professor, enquanto mediador, é importante estar ali naquele espaço. Eu fiquei até emocionada quando eu li... Quando o aluno coloca que tem que persistir, que tem que recomeçar, que tem que ter foco. São essas as palavras que estão no texto, que eu quero algo, que eu quero alguém, ou então que eu precisava, como Robert faz, às vezes eu estou lá na sala dos professores, cinco para as sete, eles batem: “Minha professorinha está aí?” Eu falo: “Estou aqui”. “Já estou lhe esperando, viu?” “Está certo”. Quando eu saio com as bolsas: “Hoje a gente vai fazer alguma coisa de Artes?” Eu digo: “A gente vai fazer alguma coisa”. “Vou levar para a senhora”. E quando ele colocou lá naquele texto dele lá: “Eu precisava de alguém que acreditasse em mim”. E eu perguntei a ele depois, eu disse: “Por qual motivo você escreveu isso?”. Disse: “A senhora sabe que em casa nossos pais, por vezes, não têm essa questão de escutar, como a senhora aqui. A senhora sempre está aqui, pronta para a gente". Eu achei tão importante isso. E tem momentos em que eles se policiam: “Minha gente, vamos dar continuidade à atividade?” “É. Parou! Ninguém agora conversa. A gente agora vai fazer atividade. Venha! Vamos!” Isso me chama a atenção, essa questão. Mas a gente ainda tem muito o que vivenciar ao longo deste ano.

P/1 – É. É verdade. Nessa hora que eu perguntei me fugiu, você está na fase da integração.

P/2 – É. Exatamente.

R – Estou na fase da integração.

P/1 – Então acho que você poderia falar um pouquinho da formação. O que você acha, Teresa?

P/2 – Eu queria mais saber dela, ver o que o Travessia hoje representa para você.

P/1 – Como professora?

P/2 – Como professora.

R – O Travessia atualmente tem sido um desafio. Um desafio. Porque eu penso muito como será daqui para a frente. Tem sido também... Eu tenho muitas expectativas, porque eu quero que eles sigam adiante. E tem sido apaixonante. Eu tenho vivenciado várias histórias, várias descobertas. Mais uma vez o Travessia tem sido para mim... Aliás, tem me proporcionado descobertas mesmo, vivências novas. Mudou a minha vida e agora eu posso acompanhar a transformação de outras vidas através dele. Eu espero, espero muito, que eles realmente mudem. Eu vejo isso. Eu vejo desta forma.

P/2 – Por mim está bom.

P/1 – Você está começando. O que você pensa que seria, neste momento, um desafio maior? Com a metodologia? Ou não tem?

R – Não. Tem sim, porque todos os dias é um dia de descoberta e é desafiador mesmo. É desafiador, a gente sempre tem que buscar novas formas de como a gente vai desenvolver a metodologia no Travessia. Porque a gente tem que buscar. A gente tem a questão da integração, vem a questão da problematização, vem a questão de a gente sentar para debater, fazer a leitura de imagem, de como a gente vai vivenciar. Vem a questão também de, ao final, a gente realizar aquela síntese, que a gente vai ter que amarrar tudo aquilo que foi construído. Vem a questão de a gente avaliar o que foi bom, o que não foi, o que a gente pode melhorar. E vem a questão também de a gente registrar tudo que a gente tem feito. Então assim... Tudo isso que eu acabei de falar são desafios a serem vivenciados diariamente. São desafios que, para a gente rompê-los, a gente tem que buscar mesmo.

P/1 – E isso não te assusta?

R – No primeiro dia de aula me assustou. No primeiro dia de aula com essa minha turma do Travessia, eu disse: “Meu Deus do céu, eu vou dar conta?” Juro como eu disse isso para mim, baixinho: “Vamos lá”. E eles sentados lá. Se a gente pode fazer um... Apresentei-me, disse: “A gente pode fazer um círculo?” “Não sei para que isso”. (risos). Do mesmo jeito que eu falei há dez, onze anos atrás. Do mesmo jeitinho: “Não sei para que isso”. Então eu disse: “Meu Deus, eu vou dar conta?” Todos os dias têm sido desafiadores, porque todos os dias eu tenho levado para eles algo novo, algo diferencial, e eu me pergunto: “Será que eu vou dar conta?”.

P/1 – E como você sente isso?

R – Instigante. Isso é instigante. Motivador também. As pessoas falam: “Tu tens muita energia”. Então eu aprecio coisas novas, coisas diferenciais, para mim tem sido motivador essa forma, esse jeito, sabe? Essa metodologia. E prazerosa também. E envolvente, porque a gente termina se envolvendo com eles, com a história deles. A gente termina construindo um laço, um vínculo muito forte, muito forte mesmo, que eles... Eu não sei como definir isso, eu não tenho como definir, mas a gente passa a vivenciar tudo o que eles estão vivenciando ali.

P/2 – Você trabalha também na outra rede?

R – Sim. Sim.

P/2 – Como é a Luciana na outra rede, sem ser no Travessia?

R – Ah, eu levo muita coisa. Eu levo muita coisa dessas vivências. Essa questão de debater, problematizar, de escutar, de integrar o estudante. E assim... Eu percebo que tenho tido um retorno melhor com relação à aprendizagem. Muito melhor. Muito melhor mesmo.

P/1 – Está bom. Primeiro, você quer falar alguma coisa, registrar da sua história que a gente não perguntou?

R – Acredito que eu deva ter falado tudo.

P/1 – Pelo menos por enquanto.

R – Por enquanto. É.

P/1 – E o que você achou de contar a sua história aqui?

R – Eu nunca havia contado minha história para ninguém. Acredita que eu pensei assim: “Meu Deus, por que eu abri minha boca? Meu Deus, por que eu abri a minha boca? Será que eu vou dar conta?” Porque eu fiquei... Diante disso tudo, fiquei, não sei, um misto de emoções eu senti, entre surpresa, entre medo. É um turbilhão de emoções e também meio que um desabafo, porque eu nunca havia contado a ninguém a minha história. Eu não pensei que houvesse interesse, que fosse interessante.

P/2 – E quando você recebeu a ligação, o convite para você vir contar a sua história aqui no Rio?

R – Eu não respondi de imediato, não, pedi um tempo a dona Vilma.

P/2 – (risos).

R – Eu disse: “Eu posso pensar?”. Ela disse: “Você só tem até amanhã pela manhã para me dar a resposta”. E eu fiquei pensando: “Meu Deus. Meu Deus”.

P/1 – Agora aqui. Aqui nós aqui...

P/2 – Por que você ficou assim receosa?

R – É porque eu sou assim, Teresa, eu sou muito na minha, quietinha. Eu não sou muito de expor. Eu gosto da sala de aula, daquele espaço, de estar lá. Acredita que, com todos os problemas que eu vivenciei em toda a minha vida, mas as pessoas que estavam ao meu redor sempre diziam assim: “A gente nunca te vê chorando, se lamentando”. Chorei agora. “Mas a gente quando te vê dentro da sala de aula, tu parece que se transforma.” Eu disse: “Mas ali é o espaço em que eu tenho prazer de estar. Ali é algo em que eu gosto de estar mesmo. Eu não me vejo fazendo outra coisa, a não ser estar ali”.

P/1 – Na época em que você era aluna?

R – Na época em que eu era aluna. E agora também, como professora. Também como professora. Porque eu passei por todas essas dificuldades, questões de perdas, tudo, mas todo mundo sempre disse isso: “A gente nunca te viu...”. Eu gosto de estar na sala de aula.

P/2 – Mais alguma coisa?

P/1 – Eu preciso avaliar este momento, para nós é importante, como vocês fazem. Como você se sentiu aqui nesse momento? Porque você estava receosa, tudo.

R – O receio era medo mesmo, assim, a insegurança. A insegurança. Mas agora eu me sinto muito bem. Eu me sinto muito bem por ter partilhado. Eu não pensei que a minha história fosse ser interessante. Agora eu me sinto muito bem. Muito bem mesmo.

P/1 – Nós também, viu? Parabéns pela sua história.

P/2 – Parabéns.

P/1 – Obrigada pela sua história.

R – Obrigada também por ter me ouvido por tanto tempo.

P/1 – A gente ouviria mais, é que tem limite de tempo, não é, Vitor?

P/2 – É. Claro.

P/1 – Obrigada, viu, querida?

P/2 – Obrigada, Luciana.

FINAL DA ENTREVISTA