Museu da Pessoa

Uma cordelista de primeira

autoria: Museu da Pessoa personagem: Iracema Mendes Régis

P/1 – Iracema, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?

R – Iracema Mendes Régis, eu nasci em Limoeiro do Norte, no Estado do Ceará, num pequeno distrito chamado Sapé, em 3 de julho de 1952.

P/1 – Seus pais são do Ceará?

R – São, são cearenses, ambos, um, aliás, ambos, eu quero dizer que são descendentes de estrangeiros, porque o meu pai descende de holandeses e a minha mãe...

P/1 – Mas quem que era, o seu avô era holandês?

R – Não, eu não sei se era o avô, talvez alguém antes um pouco, mas foram dos holandeses que foram pra Pernambuco, de Pernambuco alguns para Alagoas e de Alagoas acabaram chegando no Estado do Ceará, tanto é que a história conta que a gente descende, toda a comunidade do Sapé, de dois homens que chegaram ali e ali mesmo conheceram duas mulheres, se casaram e daí surgiu toda a comunidade. E a minha mãe descende de portugueses.

P/1 – Mas a sua mãe é de Sapé também?

R – Também, eles são primos-irmãos, não são nem primos legítimos, os pais deles, por exemplo, o pai do meu pai e da minha mãe, são irmãos, então eles são primos-irmãos entre si e as mães também são irmãs.

P/1 – Vamos falar um pouquinho da família do seu pai, como é o nome do seu pai?

R – O meu pai chama-se João Paulo Nepomuceno Régis, e o interessante é que eu só vim descobrir o porquê do Nepomuceno quando eu já estava aqui em São Paulo, que eu cheguei em 75, que a família toda traz o nome de Régis. A minha mãe, antes de casar-se com ele, era Suzana Mendes Maia, tirou o Maia, pôs o Régis do meu pai, ficou Suzana Mendes Régis. E então o porquê do Nepomuceno, é porque existe um santo na nossa religião católica que se chama São João Paulo Nepomuceno, então deram o nome do santo ao meu pai e acrescentaram só o Régis, que era da família.

P/1 – Os pais dele, o que eles faziam, você sabe a história do seu avô, dos pais dele?

R – São todos agricultores. Eu, quando conheci, assim, desde quando eu me lembro bem, bem do meu pai, já aos seis anos de idade, ele já era uma pessoa, assim, que só lia, ele é autodidata, tanto é que o meu ofício de ler e escrever veio justamente da figura dele. Porque ele é filho de uma família de 12 irmãos, mas tudo trabalhava na agricultura, todos eles, porém ele foi o diferente da família, ele gostava de ler e, como gostava de ler, ele era um tanto, assim, rejeitado, às vezes criticado pela própria mãe, mas ele não se importou com isso, né? E então logo cedo ele fez um jeito de ter a sua independência, além das terras que ele herdou já dos pais, ele também quis adquirir outras, o casamento dele já foi meio tardio, eles já tinham quase 30 anos quando se casaram, tanto ele como a minha mãe, uma diferença só de dois anos de idade. Porém ele já tinha as terras, continuou como agricultor, tanto é que quando eu tinha seis anos eu via que o meu pai já vivia, assim, só do fruto do que ele já tinha plantado, tinha agricultura, assim, de vários gêneros, que ele vendia, que ele comercializava, como, por exemplo, as frutas, que era um pomar de laranja muito grande, que vendia em Fortaleza, as coisas, as frutas mais básicas, conhecidas, tipo melancia, jerimum, como nós chamamos, era na feira de sábado, ele levava pra vender. E a minha mãe em si era mulher culta, ela não só entendia, assim, não só falava um português muito claro e clássico, como era na ocasião, como também ela tinha ideia de etiqueta. Ela ensinava pra gente como se vestir, nunca andar mal vestida dentro de casa, sempre bem penteada, estivesse aqui, chegasse gente de fora ou não chegasse, mesmo a gente morando no sertão, afastado da cidade. Mas ela dizia: “Não, vocês estejam sempre arrumadas, prontas, porque a casa”, a nossa casa era longa, o alpendre lá na frente, muito longe, depois, até chegar na cozinha, quando chegava alguém lá fora, se a pessoa realmente precisasse de trocar uma roupa, quando chegava lá já não tinha mais visita, (risos) então ela ensinava isso, muito interessante. E com o meu pai eu aprendi a ler aos seis anos.

P/1 – Só um pouquinho, a gente tava falando dos seus avós.

R – Pois é.

P/1 – Fala um pouquinho dos seus avós maternos.

R – Então, os meus avós maternos, como são filhos, foi assim, a diferença do meu pai, da minha mãe para o meu pai, em termos dessas etiquetas, é porque ela se criou no litoral, nesse local lindo que é Beberibe, onde tem a Praia de Morro Branco. Beberibe é um município próximo de Fortaleza, fica mais ou menos, acho, que uma hora, uma hora e pouco de Fortaleza, e ali era se criou, por quê? Porque o meu pai, o pai dela, que era irmão também do...

P/1 – Do seu avô.

R – Do meu avô, isso, ele saiu pra ver se tinha uma vida melhor da parte de agricultura e lá foi aonde a minha mãe se criou, já com uma segunda família, que ele já tinha tido uma mulher antes, e ela já de uma segunda família. E de forma que, morando no litoral, um pouco próximo à capital Fortaleza, ela já teve, assim, uma vivência diferente, tendo algumas coisas de cidade, alguma coisa de civilização e etiqueta que o sertão não tinha, tanto é que ela, mesmo morando no sertão... Ela morou no sertão, assim, porque quando ela chegou à idade de adolescente, então o pai dela, esse meu avô, ele começou a ter um problema de bebidas alcoólicas, e então, como chegou uma época que tava difícil eles viverem financeiramente, daí o meu avô chamou-os pra morar lá com ele, pra ter como sustentá-los. Então ela moça e o meu pai um rapazinho, foi ali que se conheceram e ali se deu o namoro e o casamento, mesmo porque, como a comunidade era pequena, não tinha como não se casarem muito entre si na família, tanto é que a nossa geração lá tem muitos problemas congênitos por causa disso, porque se casam muito parentes com parentes. Hoje não, já é muito diversificado, já vieram outras pessoas e tal, mas no começo da comunidade era muito isso, né?

P/1 – E aí o seu pai e a sua mãe casaram e foram morar...

R – No mesmo local, então chama-se...

P/1 – Mas numa casa deles?

R – Sim, o meu pai primeiro construiu a casa, era uma casa enorme, primeiro ele fez, como diz hoje, o pé de meia através da compra de terras, então ele já tinha suas terras, suas plantações, suas criações de gado, e quando casou-se já tinha casa própria. E daí nós vivemos uma vida, assim, muito boa, considerado não gente rica, mas médio agricultor e tanto é que o meu pai, ele tinha acesso aos principais jornais da capital, ele assinava o jornal O Povo, o jornal O Nordeste, assinava as revista da época, O Cruzeiro e Manchete, que eram as mais famosas, e foi através dessas revistas e desses jornais que eu comecei a despertar toda a minha curiosidade de leitura e depois da leitura a vontade de escrever, veio daí.

P/1 – Iracema, como é que, quantos irmãos vocês são?

R – Nós, na verdade a minha mãe teve 12 filhos, mas nos criamos oito, então são três irmãos e cinco, três homens e cinco mulheres.

P/1 – Quatro morreram?

R – É, antes de ficarem grandes, uns porque já nasceram, que às vezes os primeiros filhos, segundo eles contam, na ocasião, às vezes não vingava, como era o modo deles de dizerem, não vingava, então começou a criar mesmo os filhos, no caso aí, do quarto em diante, né?

P/1 – Iracema, você é qual desses oito?

R – Eu sou a mais nova de todas, então eu me sinto assim, também um pouco fora de tudo, que foi muito, assim, certinho e natural pras minhas irmãs, pra mim já não foi, que é por isso que eu não fiquei lá. Porque eu fiz o primário já meio tarde, porque é assim, as minhas irmãs é que eram as professoras do lugar, as primeiras professoras, a minha irmã mais velha, ela tinha o quinto ano primário, mas isso equivalia quase que a uma faculdade, porque ela preparava as pessoas até pra vestibular, pra fazerem faculdade fora, era ela quem preparava os alunos.? Então, mas, assim, oficialmente a gente não tinha nem o diploma primário, o diploma, a gente estudava com ela e ia tirar o diploma já em Limoeiro do Norte, através do grupo escolar, de um colégio que fosse. E depois disso eu fiquei um tanto de tempo sem estudar, só depois é que a minha mãe falou muito com o meu pai, porque eu não podia ficar sem estudar, daí uma irmã minha foi morar em Fortaleza e eu fui pra companhia dela, então eu consegui fazer o ginásio e o colégio, que era assim que se chamava na época. Terminado isso, eu vi que eu precisava fazer algo mais e o meu pai não queria: “Não, porque você tem tudo em casa”, aquela história, de que mulher não precisa trabalhar, porque tem tudo, tem comida, tem roupa, mas não era só isso que eu queria, não é?

P/1 – Vamos voltar pra sua infância.

R – Vamos.

P/1 – Como é que era dentro da sua casa, como é que era o seu pai?

R – O meu pai era uma pessoa boníssima, um homem inteligentíssimo, autodidata, tanto é que toda, aqueles meninos, os estudantes da ocasião, que faziam, estudavam com a minha irmã e depois iam pra cidade cursar o ginásio, o colegial, o que fosse, quando tinham qualquer dificuldade, assim, numa escrita ou numa pesquisa pra fazer determinado trabalho, eles iam em casa. E eles iam com muito medo, porque ele tem uma aparência muito séria, e eu puxei um pouco disso, sabe, aquela fisionomia assim, séria, meio fechada, os moleques tinham medo de ir, mas não viam outra alternativa, porque não tinha internet, não tinha bibliotecas pra pesquisa, como é que eles iam fazer? Então essa biblioteca ambulante era João Paulo Nepomuceno Régis, e os meninos chegavam, assim, todos cheios de dedos, tal, e: “Seu João Paulo, é porque a gente queria saber o que aconteceu, quem foi que fez aquela vacina pra evitar a varíola”, não sei o que e tal, em tudo, né? Então ele sabia, ele sabia de tudo, de Geografia, História, ele contava, ele falava pra nós de todo o mundo, dessas regiões aí que hoje brigam entre si, Israel, Faixa de Gaza e tudo, ele falava de tudo, mostrava no mapa. E gostava muito de contar causos, só que ele era totalmente irreverente à escrita, ele era incapaz de escrever, porque ele era um homem simplesmente, eu acho que é característica daquela época, preguiçoso, ele passava o dia todinho deitado e lendo. Ele só levantava, assim, toda hora que levantava, lavava as mãos, porque o jornal suja muito as mãos, lavava as mãos, assim, não sei quantas horas por dia, e ai se quando ele chegasse lá, aquele local que a gente tinha uma vasilha, uma bacia pra colocar a água, tinha as jarras. Porque tudo era diferente, não tinha negócio de geladeira, essas coisas, então tinha uma espécie de um balcão assim, que era de pedra, onde colocava os potes, as moringas d’água, que a gente chamava quartinho, e ali tinha a bacia pra lavar as mãos. Ai que se ele chegasse ali, a água estivesse suja (risos), então ele era muito exigente, assim, com higiene, com educação, com respeito das pessoas, com não falar alto, com não andar correndo, com o não gritar, tudo isso, então a gente aprendia. Ele era muito, assim, exigente, mas era muito amoroso, ele se preocupava com tudo, se a gente não ia tomar banho naquele dia: “Mas você não foi tomar banho por quê?”, “Não, pai, eu estou sentindo uma dor de cabeça, não sei o que”, “Ah, então está bom, minha filha, fique aí. Mas é coisa que precise de médico, precise de farmacêutico?”. E esse negócio de gesticular eu puxo muito a ele, porque ele é um homem grandalhão, braços longos, eu tenho braços longos, mas eu sou baixinha, porque a minha mãe era baixinha, mas ele só falava gesticulando e era muito amoroso, carinhoso, preocupado com a gente. Queria saber o que gente queria comer: “Mas, Suzana, eu vou pra Fortaleza, o que você quer que eu traga pra você?”, que era minha mãe, e eu quando fazia aniversário: “Iracema, o quer comer no seu aniversário?”, aí mandava o nosso irmão de bicicleta lá na cidade comprar o que a gente queria, entendeu, era assim.

P/1 – E a sua mãe?

R – A minha mãe muito carinhosa, uma pessoa firme, de falar pouco, baixinha, muito firme, uma mulher muito, assim, forte, de personalidade, tanto é que ela topava ele, assim, se ele, sabe, falava uma coisa que ela não estava de acordo, ela dizia: “Não, João, isso não”, aí depois ele ficava meio assim, ele dizia: “Tá bom, Suzana”, fazia assim, deixava por conta dela, né? Eram, se davam bem, muito bem, ela viajava, gostava de viajar pra Fortaleza, ele não gostava de sair de casa, só ia quando era, assim, necessário mesmo, pra fazer as compras de final de ano, porque era interessante que até as nossas roupas, que eram tudo, comprava tecido pra fazer, era ele quem comprava. Ele ia pra Fortaleza e comprava do melhor, e acertava tudo, eu, que era mais nova, era um tecido assim, as meninas, que eram moças, era um tecido assim, a minha mãe, o melhor era pra ela, era um tecido assim, então ele fazia tudo isso, né? Mas ele não gostava de sair de casa, ele, a minha mãe queria passear: “Vá, Suzana”, ele dava o dinheiro, ela podia passar quanto tempo quisesse lá em Fortaleza, na casa de um irmão, que era até um irmão de criação, ele não se incomodava, mas ele não gostava de sair, ficava em casa.

P/1 – E essa cidade, como é que era, sertão?

R – Lá é uma comunidade, chamada Sapé, e é um distrito, na ocasião chamava-se distrito, pertencente ao município de Limoeiro do Norte, Estado do Ceará, fica a três horas de Fortaleza, o Limoeiro do Norte. Hoje é uma cidade com faculdade, com rádio, tem uma plantação enorme de projetos agrícolas.

P/1 – Mas na época?

R – Na época era pequena, era pequena, mas mesmo assim tudo, assim, que a gente necessitava, o básico tinha ali, mas as coisas, assim, diferentes o meu pai trazia de Fortaleza, como um doce diferente, um peixe, um peixe do mar, essas coisas, ia pra capital, Fortaleza, mas hoje Limoeiro é bem desenvolvido.

P/1 – Como é que era a paisagem?

R – A paisagem de Limoeiro é muito linda porque é rasa, não tem alto, não tem nada, sabe, não tem morro, é aquela cidade super plana, rasa, só que é muito quente, é bastante quente, interior, mas tem o Rio Jaguaribe, então o rio, o Limoeiro é como se fosse uma ilha, porque o Rio Jaguaribe, ele passa duas vezes, passa pela frente e passa por detrás. Tanto é que quando houve a quebra do Açude do Oros, que fica a mais ou menos uma hora e pouco, talvez, de Limoeiro do Norte, mas é em outro município do Vale do Jaguaribe, porque todas aquelas cidades, Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte, Morada Nova, Alto Santo, Jaguaribe, todas elas ficam no Vale do Jaguaribe, por causa do Rio Jaguaribe. Então Oros, que é no município de Oros, tem um açude até hoje, só que no ano de, se eu não me engano foi em 60, muita chuva, quebrou o açude, então onde nós moramos é alto, tanto é que de onde nós moramos pra BR-116, que é essa BR que traz todo mundo de lá até São Paulo, caminhões, ônibus, tudo que vem pra São Paulo é pela BR-116, passa atrás das nossas terras. A nossa terra vai até a BR-116, tem a BR, ainda passa mais um pouquinho pra lá, até hoje eu ainda tenho essas terras lá, e então o nosso local foi refúgio daquelas pessoas que moravam do outro lado do rio, que é região baixa, e vieram todo mundo, como se diz, assim, se refugiar, ou se arranchar, como se dizia. Só que o meu pai ficava muito preocupado, porque a água não parava de subir, de subir, então quando foi uma noite, ele chegou e avisou pra todo mundo em casa, falou assim: “Olha, se essa água não parar de subir da forma como está indo, vocês arrumem suas malas com o principal que tenha, porque a gente vai precisar ir pra BR, pegar um transporte e ir pra Fortaleza”, porque a água rodearia por detrás, aí uma já emendava com a outra, foi assim, um sufoco, mas aí quando foi de madrugada, começou a estabilizar, aí não precisou. Mas foi muito legal, nessa aí eu tinha seis anos de idade, porque eu sou de 52, e a minha vivência nessa cheia, que a gente chama cheia, porque ficou tudo emendado, porque é o rio, é o córrego, é o sangradouro, tudo é baixo, e a nossa casa no alto. Então com todo aquele pessoal de fora, pra nós era uma maravilha, assim, pra criança ver toda aquela gente, se comunicar, e a gente era menina de recado, não tinha esse negócio de, a comunicação era boca a boca mesmo: “Ah, vá levar um café não sei pra quem, vá ali, diga pra fulano que venha”, aquela coisa toda, , então eu era a menina do meio, nossa, eu adorava aquilo. E aí, como o meu pai era figura de destaque, tudo o que foi pra ser distribuído ao povo, desde alimentação até roupas que iam de uma organização que existe até hoje, da igreja católica, chamada Caritas, ia através mantimentos e roupas e calçados, ia tudo lá pra casa pra gente distribuir, porque tinha que ser uma pessoa de confiança, né? Então o pessoal ficava na fila, era bem organizado,

conforme tantos filhos tinha a pessoa era o tanto que recebia em alimentação. Então a minha infância foi ótima, nossa, muito boa.

P/1 – Quais eram suas brincadeiras de infância?

R – Eu aprendi a nadar com seis anos de idade, porque a água está ali, então aprender a andar de bicicleta, aprender a nadar, essas coisas é tudo natural, então de repente você está tomando banho, você: “Ah, estou sabendo nadar, aprendi a nadar, é assim. Então a gente brincava até de pescar, brincava de pescar, tomava muito banho, pulando das árvores dentro do rio, época de cheia então, era maravilhoso, porque a gente ficava na minha cidade, onde tem muita, o nosso local tem muita carnaúba, aquela palmeira grande, que dá a cera, que faz disco, vela e tudo, e a gente ficava nadando de uma carnaubeira pra outra. Mas em casa era as bonecas, era fazer a casa, brincava muito as crianças entre sim, dia de domingo se reunia todo mundo, ia pra casa de uma tia velha que não casou, que aí ela gostava, todo mundo ia pra lá brincar junto na casa dela, enfim, foi ótimo. Mas eu tinha essa história do ler, da curiosidade, que era dia de sábado que o meu pai trazia da feira, na época ele andava a cavalo, um cavalo alazão, bonito, e daí eu ficava no alpendre, ficava no alpendre esperando, esperando. Aí a minha casa ficava assim e tinha uma vista toda grande pra lá, do caminho que vinha lá da cidade pra cá, aí eu ficava olhando, quando eu via, lá vinha ele no cavalo, nossa, isso pra mim era demais: “Lá vem papai”, aí chegava cheio de bolsa, sabe, as coisas, as compras penduradas lá nas aselhas, o negócio lá que punha a cela e tudo, tinha uns negócios de pendurar e tal. Aí ele chegava, ele tinha todo um ritual, era todo lento, eu puxei muita coisa a ele, eu sou toda lenta, não gosto de nada depressa, então ele chegava, alguém amarrava lá, tirava as bolsas, amarrava o cavalo ou levava pra tomar água, aquela coisa, ele sentava no banco de madeira, a gente aí ia ouvir. Ele chegava, sentava, aí ia contar tudo da feira, como é que tava a carestia, que ele sempre falava esse termo, não era inflação, mas falavam carestia, que as coisas estavam muito caras, como não e tal, e eu de olho na bolsa, de olho na bolsa, né? Aí quando ele entrava, ele tudo bem, ia pra lá, se trocava, gostava de umas camisetonas abertas, aí ficava com aquela camiseta e ficava no quarto, no quarto descansando já e tal, e eu num pé e no outro, num pé e no outro, esperando que a minha irmã chamasse. Aí minha irmã dizia: “Iracema, vá chamar papai pra almoçar, o almoço está pronto”, era uma mesa só pra ele, sentava ali, nossa, eu adorava ver aquilo, aí quando ele levantava, lavava as mãos, sentava, aí era a minha vez, eu entrava no quarto, fechava a porta e ia olhar, pegava dentro da bolsa dele as revistas, aí bem rápido eu já, sabe? E o que eu gostava mais de ler, que eu ia direto lá, era a última página da revista O Cruzeiro, não sei se você lembra, mas tinha uma crônica da Raquel de Queiroz e a coluna se chamava A Última Página. Raquel de Queiroz pertenceu à Academia Brasileira de Letras, é uma escritora muito famosa, cearense, o primeiro livro que ela escreveu foi O Quinze e ela tinha na época 17 anos, e O Quinze fala justamente, assim, da seca, das dificuldades da seca lá no nordeste e tal. Então todo o meu começo foi esse, foi maravilhoso.

P/1 – E festas na sua casa, se comemoravam?

R – Sim, a minha mãe, sempre quando alguém aniversava, fazia aniversário, ela fazia um bolo, era assim, e o meu pai queria saber o que a gente gostava de comer, o que preferia, daí ele mandava comprar, era isso, a festa era essa, mas não passava em branco, não, tinha um bolo.

P/1 – Natal, essas coisas se comemoravam?

R – Nossa, Natal, passagem de ano, e nós tínhamos uma casa na cidade, quer dizer, os herdeiros todos tinham uma casa, então geralmente a minha mãe fazia tudo, era uma palavra que ela usava bastante, ela falava assim: “Nós vamos fazer tudo de antevéspera”, porque fazia na ante e na véspera a gente ia. A princípio era interessante, porque nós íamos, era animal, o transporte era animal, o meu pai tinha o cavalo, mas deixava em casa. Então era tudo assim, ia a minha, eu ia no meio da carga, aí o animal ia carregando tudo, tinha aquelas, colocava, como é que fala, meu Deus? Me fugiu agora o nome, eu sei que era cangalha, punha a cangalha em cima, depois iam dos lados, que a gente chamava caçuá, ia aquele caçuá, ia cheio com todos aqueles mantimentos, aquelas coisas que ela fazia e o que precisava pra usar lá na festa, tanto de bolo, como comida, como algumas roupas da gente, tal. E os meus irmãos tinham bicicleta, aí depois os meus irmãos iam de bicicleta, um levava o meu pai e nós mesmos íamos ali, ia a pé, eu lembro que a minha mãe ia acompanhando, e mais as meninas e tal, ia a pé, e era assim. Aí com o tempo, o que aconteceu? Íamos de carroça, depois da carroça, aí foi tudo ficando moderno, a gente ia de carro, o meu pai pagava um carro de aluguel, então foi tudo assim, além das coisas irem modificando, creio que também foi ficando melhor economicamente e tudo foi mudando. Aí, mas sempre nós íamos, comemorar o Natal, passava só a noite, quando era no outro dia a gente voltava pra casa, que aí chamava o dia de nascimento, dia de nascimento a gente já passava em casa, já vinha de manhã cedo e o almoço era em casa. E quando era no ano novo também, a mesma coisa, a noite se passava lá, porque tinha a missa à meia-noite, sempre na igreja, e no outro dia de manhãzinha todo mundo retornava e o almoço daquele dia também já era em casa, o primeiro do ano. Então tinha todas essas coisas e as diversões, tinha muito, assim, cantoria, que até hoje tem, que por esse ponto, talvez venha daí, porque eu escrevo cordel, a minha literatura de cordel. Inclusive fiz uma palestra agora na Feira Literária de Paranapiacaba, que terminou no outro domingo passado, eu fui fazer uma palestra sobre literatura de cordel, eu tenho até premiação disso, né? Então eu já ouvia, sempre ouvia os cantadores, sempre gostei, os repentistas de viola, porque foi daí...

P/1 – Que festas que eram?

R – Não, é assim, a gente contratava, por exemplo, o dono da casa contratava essas pessoas pra virem, fazerem uma cantoria, então as pessoas vinham, pagavam uma entrada e quem quisesse também na hora podia contribuir com alguma coisa, eles punham aquele chapéu ali como se fosse, ou então uma vasilha, eles colocavam dinheiro, tal. E foi daí que veio já o meu gosto pelo cordel também, então eu ouvia muito, porque os livrinhos de cordel, o livreto, ele foi impresso depois, mas ele se expandiu lá no Nordeste, a princípio, na oralidade, os cantadores cantando, que é fenômeno que se chama repentismo, por quê? Porque o verso é feito na hora, de repente, então é o repentismo, e esses cantadores, eles iam, por exemplo, em Pernambuco, Recife, que lá deu, assim, os maiores cordelistas depois, eles iam de engenho em engenho e cantando, falando também das notícias, se tinha uma seca, se tinha acontecido uma doença, uma peste, ou as coisas de Lampião ou sobre Padre Cícero, é do Ceará, enfim, os fenômenos religiosos, tem muita coisa. E no caso nosso não, seria de fazenda em fazenda, porque o engenho é do Recife, nós não, a gente tem mais era fazenda, esses locais onde fazem a farinha até hoje, porque o meu pai tinha, chama-se casa de farinha.

P/1 – Casa de farinha?

R – Tinha, tinha tudo isso. E aí o cordel nasceu disso, depois foi se expandindo e acabou que um deles, no Recife mesmo, ele começou a escrever e daí começou a publicar também e foi evoluindo e ficou com cordel impresso.

P/1 – Tinha casa de farinha lá aonde você morava?

R – Tinha, do meu pai.

P/1 – Quem que ficava na casa de farinha?

R – Olha, era assim, era um batalhão de pessoas, eu fui criada assim, no meio de muito trabalhador, tanto é que eu achava, achava não, eu trago isso até hoje, que eu não tenho preconceito contra as pessoas simples do trabalho, nem as pessoas negras, porque os negros lá, como foram em muitos cantos aqui do Brasil, geralmente os mais pobres, não é? E então eram os trabalhadores, chama-se trabalhadores de jornal, que é aquela pessoa que ganha por dia, então quando era época de fazer farinha, é assim, um processo maravilhoso, que envolve muita gente. Então começa assim, as pessoas que vão arrancar a mandioca lá na roça, aquele que transporta mandioca numa carroça, vem, traz para, que chama-se, a casa de farinha também tem o nome de aviamento, traz para o aviamento, quando chega no aviamento, tem as mulheres que são contratadas para raspar mandioca. A minha função era lavar, então o que é mais fácil, então tinha aquelas tinas grandes, aqueles alguidares, que essa palavra certamente eu descobri depois já, que é uma palavra africana, porque na África, principalmente muitos que vieram pra cá e retornaram pra lá, é de um local chamado Alguidar. Agora, como que nós temos alguidares? Só pode, que é uma vasilha, chamada alguidar, uma vasilha de porcelana grande, porcelana não, a gente chamava de porcelana, mas é barro, a porcelana já que vem do barro mesmo, não é a fina, trabalhada, só feita de barro. Então aqueles alguidares cheio de água, a gente punha um tamborete de madeira, sentava e lavava, era a minha função, era lavar, a da minha irmã, a princípio a gente não tinha motor pra poder, eles chamam de ceivar mandioca, ou seja, cortar a mandioca pra fazer a massa. Então eram dois homens fortes, negros, com muita força, e era uma roda, então eles, um de um lado, outro de outro, rodavam, rodavam, aí quando eles soltavam a roda, que era o mais rápido que ela estava, aí a minha irmã precisava saber, colocava a mandioca, aí ela saía em massa, saía a massa embaixo. Aquela massa tem que colocar num local, aí tem o prensador, prensava toda a massa, quando prensa a massa, aí enxuta, vai pra uma gamela de madeira, onde será quebrada e passada na peneira. Aquela água todinha, ela fica ali, depois tem uma pessoa só pra cuidar daquilo, era uma outra irmã que cuidava, porque quando aquela, aquela água, inclusive, ela não pode ser colocada, depois jogada em local que os animais usem, porque ela mata, chama-se manipueira. Então aí assenta a goma embaixo, que é o que se chama hoje polvilho, aqui na cidade, que é o polvilho com que se faz a tapioca, se faz uma série de coisas, biscoito de polvilho e tal, mas nós chamamos de goma, então assenta aquilo branco embaixo, que é a goma. Só que aquela goma, então a gente tira aquela água pra um lado, aquela goma você tem que lavar, peneirar, pra tirar todas as impurezas, depois seca ao sol e quebra, que aí ela fica fininha e aquela massa chega dói de tão alva aos olhos da gente, então era uma irmã que cuidava disso. Aí aquela massa que foi quebrada e passada na peneira vai para o forno, que aí tem uma pessoa pra torrar a massa, aí depois de torrada é que ensacada, costurada, e aí está pronta pra vender, mas é um processo.

P/1 – E você ficava lá no meio?

R – Todo, além de eu lavar mandioca, eu tinha que levar o café pros trabalhadores, então era eu que levava, porque elas ficavam lá, de manhã passava em casa, tomava só aquele café. É porque o meu pai, ele era super generoso, é a parte que mais me emociona (emocionada), porque ele ficava muito preocupado em as pessoas se alimentarem bem, porque lá era conhecido nas redondezas de patrões, eles comiam de uma forma, mas o pessoal, sabe, era muito mal alimentados os trabalhadores, então era uma exploração e ele nunca gostou disso. Então era assim, as mulheres e os trabalhadores, todos eles passavam de manhã em casa pra saber como seriam as tarefas, a explicação, ele dava explicação de tudo, e tinha um café pra todo mundo, mas era um café simples, um café preto. Se era ocasião que os padeiros passavam, que vendiam na porta, então ele já comprava um cento de bolacha doce, um cento de bolacha, era tudo de cem, de bolacha d’água, como chamava, que era salgada, aí tudo bem servia aquela bolacha pra todo mundo, tal, mas se não tivesse, era o café preto, porque todo mundo já vinha da sua casa, então se subentende que comeu alguma coisa antes de vir, né? Mas quando era às nove horas então eu tinha que levar, aí a gente chamava quebra jejum, então geralmente era fruta, ou era banana ou era, levava farinha, porque farinha não podia faltar, rapadura também não, porque rapadura é forte, o café acompanhado de uma batata doce ou de uma abóbora, que é o jerimum que a gente fala. Então eu tinha que levar pras raspadeiras, eu voltava em casa naquele horário, aí eu vinha trazendo tudo, trazia uma sacola, às vezes com café com as xícaras e tal. Aí era uma animação, aí todo mundo parava, parava, além de ter o café, respirava do trabalho, então todo mundo comia e tal, pra poder esperar a hora do almoço, né? Aí tudo bem, quando era a hora do almoço, ia todo mundo em casa, meu pai ou matava ou um boi ou matava porco, porque ele criava, ou comprava, ele só não criava nem ovelha nem cabra, essas coisas, que isso aí era criação menor. Então pra nós ou era porco ou era o gado mesmo, aí ele matava uma rês, como se chama, né? Então aquela carne era toda cuidada em casa, no primeiro dia se comia os miúdos, no segundo dia se comia a buchada, no terceiro dia já era a carne, a carne fresca, depois era a carne salgada, e eu tinha uma irmã que era ela quem preparava tudo aquilo, essa minha irmã mora em Fortaleza. Gente, ô mulher trabalhadora e forte, era ela quem abria tudo aquilo, que a carne tem que saber, cuidar, a parte que tem osso, a parte que não tem, abrir tudo, salgar aquelas mantas, depois as pesadas, aí os homens levavam, colocavam no sol, pra poder curtir, tal. Então comida não faltava, o almoço era sempre assim, era feijão, tinha a farinha, tinha rapadura e tinha algo pra acompanhar, que era alguma coisa, carne, de carne, não tinha o arroz, no almoço não tinha, era essas coisas, era, mas tinha batata doce, mas tinha o jerimum cozido, tinha tudo isso, então eles almoçavam à vontade. Quando era o jantar, aí se fazia carne cozida, aquela carne cozida, às vezes cozida com jerimum dentro ou com maxixe, aí fazia pirão, porque a farinha era sempre o mais utilizado, aí fazia pirão. Eram 20 pessoas, eram 30, tinha 30 pratos, fazia aquilo tudo, aí depois era servido, aí tinha arroz, aí acompanhava a carne cozida, acompanhava arroz, acompanhava feijão cozido, que ficou da manhã, aqueles pratos assim na mesa, quem quisesse ir colocando o feijão junto, colocava sem o caldo, e tudo, os acompanhamentos. Eu sei que era assim, então a turma, e no meio da tarde também tinha um café, a gente levava só o café, mas tinha, porque já tinha almoçado bem, e iam jantar bem, mas tinha aquele café às três horas, que eu levava pras raspadeiras, era assim.

P/1 – Elas trabalhavam conversando, como é que era, tinha, cantavam, como é que era?

R – Super animadas, não cantavam, não, porque a cantiga é mais é coisa de colheita, ali mesmo é mais a conversa, é bate papo, agora, quando era pra colher, aí tudo bem, tem até muitos lugares, assim, bem do Nordeste, que tem as cantigas, até que foi, isso foi trazido de Portugal pelo colonizador, que são as cantigas de trabalho, então tem muitas cantigas. Mas ali era a conversa mesmo e quando era de tardezinha, quando todo mundo largava, era interessante que todo mundo tomava seu banho, aí ia para o sítio tomar banho, porque na época o meu pai ainda não tinha motor pra puxar a água dos tanques, porque é feito um cacimbão grande, onde tem a água ali, e era tirado pelo cata-vento. O cata-vento é essa energia eólica que tem muito no Nordeste, não sei se você já ouviu falar, na beira, principalmente no litoral, ali em Fortaleza, eles têm os pés assim, o nosso era diferente, porque é uma roda grande, e eles só como se fosse uma hélice. Mas o nosso tinha os cata-ventos para puxar a água, puxava pra dentro do tanque, então a gente ia lá e tomava banho à vontade, só as mulheres, primeiro as mulheres, e era uma coisa muito interessante o respeito dos homens, porque podia ter homem trabalhando ali. A gente chegava pra tomar banho, a gente dizia, chamava pelo nome, às vezes João ou Antônio, conforme o que tivesse trabalhando no momento, a gente dizia: “Fulano, não olhe pra cá, não, que nós vamos tomar banho”, porque era todo mundo. Só que a gente era, nós tínhamos a preservação, assim, de calcinha, tomava banho de calcinha, mas pra cá não tinha nada: “Fulano, não olhe pra cá, não, que nós vamos tomar banho”, ninguém olhava, não, respeitava. Era uma coisa muito interessante, a mesma coisa, ou rio também, às vezes eles estavam plantando, porque você sabe que o rio é um local também de plantação, principalmente quando o rio vaza, vaza assim, eu digo, vai secando, ficam só aqueles poços, então ao redor dos poços de água, ali a gente planta desde a melancia, o jerimum, o milho, o feijão, é muito interessante, batata doce, né? Então eles estavam trabalhando ali, ou plantando ou colhendo, aí a gente chegava, nas nossas terras, que a gente sabia qual era o trabalhador que estava e dizia: “Fulano, olhe pra lá, que nós vamos tomar banho”, era assim, quer dizer, era uma coisa muito bonita de se ver, na parte das pessoas.

P/1 – Iracema, com quantos anos você entrou na escola?

R – Pois é, eu entrei na escola com seis anos e foi a minha irmã que me alfabetizou, então fui alfabetizada, porque assim, não tinha aquela história de dizer: “Eu vou fazer o pré”, né, não, a gente fazia o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto ano, então ali você já aprendia ler, escrever, tabuada, Geografia, História, todos os preliminares. Dali a gente ia à cidade só prestar exame no grupo escolar pra poder tirar o diploma de quinto ano primário.

P/1 – Mas a escola era aonde?

R – Era, ah, o meu pai que doou o terreno pra prefeitura, a prefeitura fez um grupo escolar, então era na terra do meu pai, na frente da minha casa, e as minhas irmãs eram as professoras. Essa minha irmã que se formou no quinto ano primário, que ela estudou lá interna, numa escola que chamava-se Escola Normal, era só para mulheres, ela fez o primário lá e com esse primário, diplomada, ela veio pra ser professora. E as minhas irmãs, que aprenderam com ela também, que já eram moças, então elas dava aula à tarde, um dia uma dava à tarde, tal, e já dava só pra primeiro, segundo, terceiro ano, e assim, e de manhã ela dava para os que, quarto ano, que já precisava mais. Eu me formei assim, aí depois fiz o quinto ano da Escola Normal, isso eu já estava com, parece que uns 13 anos ou 14, por aí, aí depois é que eu, porque eu passei esse tempo parada, como eu te falei, que não tinha mais como estudar, porque eu não tinha condições de ir estudar na cidade, porque o meu pai não queria me colocar em casa de família, nem queria, nessa época não tinha mais internato. Aí foi quando a minha irmã foi trabalhar em Fortaleza, uma delas, já casada, é que eu fui morar com ela e comecei a estudar, já adolescente, na segunda adolescência, comecei a fazer o ginásio. Eu sei que quando eu vim pra São Paulo, eu terminei tudo acho que com uns 18 anos, e vim pra São Paulo eu tinha 21 anos, aí já tava com o colegial pronto e tinha curso de datilografia.

P/1 – Como é que era ser adolescente lá, a juventude como é que foi?

R – Olha, pra mim não foi muito bom, não, não foi bom, porque eu sempre fui uma pessoa meio diferente, eu tinha, não sei se por causa da educação, eu gostava sempre das coisas sérias, uma que eu nunca fui, assim, de gostar de, como é que eu posso dizer? Eu sempre gostava, assim, da coisa mais individual, eu nunca gostei muito do coletivo, então as meninas lá iam jogar voleibol, eu tentava ir, mas eu não gostava daquilo. Eu gostava de ler, eu gostava de brincar com uma amiga minha, essa coisa eu puxei ao meu pai, eu gostava muito de casa, eu queria sempre ter alguma companhia, mas não uma companhia no meio de todo mundo, nunca gostei de multidão, festa onde tem um mundo de gente lá não é o meu caso, eu não gosto, entendeu? Eu gosto de uma coisa mais restrita, mais individual, por exemplo, um bate papo entre duas, três pessoas, tal, nossa, isso aí eu adoro, sabe, como a gente se encontra, assim, nos grupos de escritores, que é um grupo mais reduzido, que se fala a mesma língua, se trata de outros assuntos. Então a adolescência pra mim foi meio difícil, foi meio difícil porque eu gostava mais era de estudar, então só depois que eu vim aqui pra São Paulo, talvez, eu me soltei mais um pouco, mas lá eu preferia um livro, me isolar um pouco e ficar lendo, porque eu não via muita graça naquilo. Aquelas meninas que conversavam muita besteira e que só viviam rindo, qui qui qui nos cantos, assim, sabe, aquela risadinha, eu não gostava, eu não conseguia me enturmar, então eu sempre fui um pouco reservada e com isso ficava um pouco de lado. Aí também foi um motivo pra eu ler, eu pegava um livro, ficava no canto lendo, eu preferia, e aí, quando comecei, conheci um grupo, já em Fortaleza que chamava-se até CEL, o grupo era Centro de Estudos Literários, que era justamente pra a gente escrever, ler e escrever, aí eu gostei. Me enturmei também no grupo de teatro do SESI, um grupo de teatro amador, cheguei a fazer umas peças, me enturmei também uma época no coral do SESI, então eu gostava dessas coisas de cultura especificamente, não era dessa coisa, assim, que mais a molecada gosta, de auê, eu nunca gostei disso, foi assim (risos).

P/1 – Você tinha alguma coisa, assim, na infância pra adolescência: “Quando eu crescer eu quero ser tal coisa”?

R – Não, o que me fez vir foi justamente isso, porque eu não sabia, de fato eu não me conhecia, porque eu também nem tinha oportunidade de me testar como pessoa, então eu ficava ali, o meu pai me dando as coisas, uma vida restrita, entendeu? Então eu pensei: “Não, se for longe de casa, eu acho que aí eu vou conseguir me descobrir em alguma coisa”. Quando eu cheguei em São Paulo, que eu comecei a conhecer pessoas e fui trabalhar.

P/1 – Por que você escolheu São Paulo?

R – Porque tinha a irmã que morava aqui.

P/1 – Você já tinha vindo antes?

R – Não, e outra coisa, São Paulo, pelo o que se sabia lá, as informações que a gente tinha é que era um local onde era mais fácil de achar trabalho, porque lá eu não sabia nem como começar, primeiro porque o meu pai achava que eu não devia trabalhar, segundo que eu não sabia nem como começar a procurar um emprego, entendeu? Eu tava assim, fechada, não sabia como viver. Então o meu cunhado tinha vindo primeiro pra cá, pra poder arrumar trabalho, depois chamou a minha irmã, que já tinha um filho pequenininho, ela veio pra morar junto e então eu falei: “É a minha oportunidade”. A minha irmã me convidou pra vir conhecer São Paulo, mas aí eu já vim com a atitude de trabalhar e finalmente conseguir crescer como pessoa.

P/1 – Como é que foi a viagem, você veio como pra cá?

R – Eu vim de ônibus, eu vim de ônibus, foi uma viagem muito sofrida, porque eu nunca tinha saído de casa, eu vim na companhia de um rapaz, não era nem uma moça, que é um rapaz que era conhecido do meu cunhado, pessoas de confiança, que já morava em São Paulo, ele foi pra lá e eu fui e eu vim na companhia dele, né? Aí quando eu cheguei, eu pensei assim: “Nossa”, também fiquei chocada, porque eles tinham começado a vida aqui, na verdade eles moravam num cômodo, e eu fiquei assim, o meu cunhado trabalhando num local já meio longe, era lá pro lado da Vila Mariana, que a gente não sabia nem onde era, a minha irmã com um filho pequeno. Tanto é que quando o primeiro, que ele começou a ganhar e tudo, o primeiro pagamento, aí eu que tive que ir pra Vila Mariana receber o dinheiro dele lá do escritório, porque ele tava fora já, eu não sei se era no interior de São Paulo, onde era, só sei que o escritório da firma era na Vila Mariana, e aí me ensinaram como chegar lá. A minha irmã não podia ir, porque...

P/1 – Mas você chegou, você foi morar aonde?

R – Eu fui morar no Parque São Rafael.

P/1 – Que fica?

R – É um bairro de São Paulo que fica fazendo divisa já com o ABC, é divisa com Sônia Maria, que Sônia Maria é Mauá, que foi por aí que eu cheguei a Mauá, que eu nem sabia de nada.

P/1 – Qual foi a sua impressão, a primeira impressão quando você chegou em São Paulo, o que você viu, qual foi o primeiro lugar que você chegou?

R – Olha, eu não gostei, não, eu não cheguei, primeiro porque a rodoviária era ali no Glicério, na Baixada do Glicério, aquilo era terrível, muita gente, muito feio, eu acostumada com praias, com paisagens bonitas e tal, eu não gostei de nada. Achei muito chocante, quando eu cheguei à casa da minha irmã, achei mais chocante ainda, porque era um bairro terrível, eles não moravam em local, que tinha, era avenida, que é a avenida, essa que vai direto pra São Mateus, chama-se Oratório, é a Avenida Oratório, que vai o trólebus pra São Mateus. Agora é tudo muito evoluído, mas quando eu cheguei não era, entendeu, então era só aquela avenida passando ali, a gente descia ali, aí tinha que caminhar até chegar na casa, morro, eu não sabia como é que era subir um morro, descer um morro, meu Deus do céu, eu tinha a maior dificuldade. E quando chovia? Teve vezes que eu tive que voltar pra casa, trocar roupa, porque eu não conseguia me equilibrar naquilo, entendeu, foi terrível, foi terrível. Muito frio, eu não esperava que fosse tão frio, eu nunca tinha usado uma calça comprida, um sapato fechado, até hoje eu gosto muito de saia por causa disso, porque a gente só usava vestido, saia, sandália. Então foi uma mudança muito grande, foi muito difícil o começo, mas quando eu comecei a trabalhar, a minha família sempre me ensinou, a minha mãe, o meu pai eu achava, por ele ser um autodidata, nesse ponto eu achava ele mais desligado, a minha mãe sempre foi muito ferrenha em dizer: “Não fique sem estudar, não fique sem estudar, vá pra onde for, tem que estudar”. Que é por isso que ela fez toda essa coisa pra minha irmã ir morar em Fortaleza e trabalhar, pra poder eu ir pra lá e estudar. E aí em São Paulo, como eu já tinha isso na cabeça, de estudar, a primeira coisa que eu fiz quando eu comecei a ganhar o meu dinheiro, primeiro eu me matriculei num cursinho, que eu queria fazer vestibular, e o vestibular eu queria mesmo Jornalismo, na área de comunicação. Nisso aí eu não tava errada, não estava, não, eu escolhi a faculdade certa, embora dentro do Jornalismo, depois quando eu comecei na prática, eu não quis ser, duas coisas eu não quis, eu não quis ser repórter, sair na rua sendo repórter e também não quis, que eu tive a oportunidade de trabalhar, como eu trabalhei numa assessoria de imprensa. Porque o meu primeiro emprego foi na Prefeitura de Mauá e tanto é que quando eu tava estagiando, quando eu tava fazendo Jornalismo, começou o estágio, então o rapaz que era assessor de imprensa de Mauá, que até morava em São Paulo e ia trabalhar lá, aí quando ele soube que tinha uma estagiária de Jornalismo, ele me chamou. Ele falou: “Olha, fique aqui comigo, você vai aprender e eu não preciso vir tantos dias, eu venho só” quando era pra aprovar as matérias, eu fazia a entrevista, eu redigia a matéria, então ele vinha e aprovava e tal, pra poder sair no jornal. Mas aí misturou, essa história, aí foi que eu conheci o lado político, né?

P/1 – Deixa eu só voltar um pouco, qual foi o seu primeiro trabalho aqui em São Paulo?

R – Foi na Prefeitura de Mauá como auxiliar de escritório, que na ocasião era assim.

P/1 – Como é que você arrumou?

R – Pois é, pois foi via essa morada, quando eu fui morar, quando eu cheguei, que a nossa morada era no Parque São Rafael, o que acontece? A minha irmã chegou um dia e falou assim: “Olha, é preciso você ir a uma imobiliária e levar o nosso contrato, que tava aqui pra gente assinar e esse contrato, a imobiliária fica na Sônia Maria”, eu falei: “Como que faz pra ir lá?”, “Não diz que tem um ônibus que passa aqui, que você vai tomar lá, você vai direto", porque tinha uma padaria, eu ia direto na avenida e esse ônibus passava ali na esquina da padaria e que eu ia até o fim do Sônia Maria pra levar lá. Muito bem, eu tinha já, como eu te falei, o curso de datilografia, que eu fiz lá, e já tinha o colegial completo, muito bem, e sempre, pelo menos foi o que achou o rapaz da imobiliária, quando eu cheguei lá, que eu fui levar o contrato, expliquei o que era, e então era um senhor negro, já meio de idade, assim, talvez um homem de uns 60 anos, parece, 50 ou 60, não sei. E então quando eu expliquei tudo, aí ele pegou o contrato: “Ah, tá tudo certo” e tal, ele teve curiosidade, ele falou assim: “Mas você de onde você é?”, eu falei: “Eu sou cearense”, ele falou: “E você chegou aqui agora?”, eu falei: “É, tá fazendo pouco tempo, uns dias só”, “Nossa, mas como você fala o português bem. Já tá empregada?”, eu falei: “Não, porque faz pouco tempo”, “Mas pretende ficar aqui em São Paulo e trabalhar?”, eu falei: “Pretendo, eu vou começar a procurar trabalho”. Aí e ele perguntou qual era o meu grau de instrução e eu falei, daí ele disse assim: “Vamos fazer o seguinte, você não gostaria de conhecer Mauá? Que Mauá fica bem pertinho daqui”, porque o Sônia Maria pertence à cidade de Mauá: “Mauá é aqui pertinho, você não gostaria de conhecer Mauá? Passe aqui qualquer dia, você me telefona”, ele deu o telefone, né: “Que eu vou mostrar Mauá pra você, porque eu sou vereador de lá”, Ah, é?” “É”. Tudo bem, daí eu cheguei em casa, eu comentei com a minha irmã, falei: “Mas será possível?”, eu fiquei preocupada que fosse uma pessoa, assim, porque na verdade, quando a gente é nova, a gente é, logicamente você é sempre mais bonita, nova, bonita e tal, eu fiquei com medo, eu falei: “Eu não sei o que é que o homem quer de mim”, não é? Aí eu fiquei pensando, pensando, quando foi um dia, eu tomei a atitude, eu falei: “Judite”, que é a minha irmã: “Eu sou maior, se esse homem bancar o besta comigo, eu acho que eu sei me defender”, aí fui, passei lá, não, primeiro liguei, perguntei, tal, aí ele falou: “Não, venha, que nós vamos”. Aí ele tinha até um desses carros antigos, que eu nem sei o que era, grandão assim, fomos, chegamos lá, ele me mostrou, ele falou: “Olha”, aí mostrou a Câmara dos Vereadores, falou: “Agora eu vou te apresentar o prefeito”, que esse prefeito chama-se Amaury Fioravante, ele estava no primeiro mandato, nós fomos. Aí chegamos lá, subiu, me apresentou, falou: “Olha, Professor Amaury”, isso lá no gabinete dele: “Essa moça aqui é recém chegada lá de Fortaleza, mas essa moça tem um português tão bom, tão limpo, e ela tem o colegial completo, ele tem curso de datilografia, uma moça tão bem preparada”, ele falou: “É?”, “É”, muito bem. Aí ficaram ali, de repente ele me deu, um papel na minha mão e falou assim: “Olha, desce ali no primeiro andar onde você viu, procura a seção pessoal, que eu vou conversar mais um pouco aqui com o prefeito”, eu falei: “Tá bom”, aí eu desci, procurei, né, o setor pessoal: “Procura lá a menina que chama Lucinha, a Lúcia”, “Tá bom”. Aí eu fui, me dirigi, eu falei: “Quem é Lúcia?”, ela falou: “Sou eu”, eu falei: “Olha, o prefeito pediu pra você, pegar esse papel, que eu entregasse esse papel a você”, “Ah”, ela olhou, falou assim: “Pois é, quando for daqui a uma semana você me traz RG, traz duas fotos, traz não sei o que, não sei o que, e você vai começar a trabalhar”. Depois é que eu fiquei sabendo que o homem negro (risos) era o Presidente da Câmara, era vereador e Presidente da Câmara, então foi assim, o meu primeiro emprego veio de bandeja. Nossa, mas eu fiquei com um medo, um medo, porque nunca tinha trabalhado, mas tudo bem, compareci no dia, aí tratei de tirar, o RG bonitinho, tal, as fotografias, levei documentação e comecei, naquele mesmo dia que eu cheguei lá comecei. Aí me puseram pra trabalhar com uma pessoa que também caiu do céu, era um senhor, meu Deus do céu, um espanhol super elétrico, datilografava, assim, a mil por hora, que eu tinha até vergonha de dizer que tinha o curso de datilografia, mas uma pessoa boníssima de alma. E me puseram pra trabalhar com esse rapaz certamente por causa disso, porque era uma pessoa inexperiente, eu nunca tinha trabalhado, nunca tinha sabido o que era uma repartição e tal, aí fui trabalhar com ele, quer dizer, como secretária dele, mas na verdade ele não precisava nem do meu trabalho. Eles, deixou eu numa mesa com telefone: “É, se telefonar alguém aí, você atende, você anota um recado e tal”, não sei o que, que quando era pra datilografar ele mesmo ia pra máquina, sabe, tu tu tu. Aí quando foi com mais ou menos um mês, porque tem uma experiência, aí ele viu, acho, nesse tempo, nesse meio tempo ele foi pensando em como fazer comigo, foi isso que eu entendi, funcionava tudo num local só, todas as, era o gabinete, era o gabinete não, não, era tudo, seção pessoal, era o gabinete, era todas as secretarias, que na ocasião nem era chamado de secretaria, era setor, tinha o almoxarifado, tal. E nesse almoxarifado só tinha homem e o chefe também era um rapaz boníssimo, um senhor, assim, gordão, fumava muito, bonachão, aí ele falou assim: “Iracema, eu vou colocar você pra trabalhar com o Belmiro, Belmiro é muito boa gente, mas ele precisa lá alguém que ajude”, “Tá bom”. Aí quando cheguei lá, só tinha eu de mulher, já comecei a ser paparicada, porque tinha os homens, mais velhos e tal, foi uma festa, e aí ele começou a me ensinar muita coisa, quando, eu era boa de português, ele me mandava redigir o memorando, eu redigia, datilografava: “Tá bom?”, “Tá”. E tinha um senhor que era muito engraçado, porque ele fazia só o transporte assim, ele vinha pegar a merenda escolar e levar pra o setor lá da merenda dos alunos, então ele vinha com o documento lá do setor da merenda e vinha pedir pra o almoxarifado, por exemplo, tantos pacotes disso, daquilo e tal. E aí eu só tinha que atender, né, recebia, dava como recebido, depois passava pros meninos, tal, mas ele só chegava assim: “Iracema”, ele gostava de mim, aí dizia: “Você pode fazer um comemorando pra mim”, um comemorando era um memorando (risos), nossa, eu me divertia bastante, aí eu dizia: “Faço”, era Jorge o nome dele: “Faço, Seu Jorge, tudo bem”. E aí era, foi muito bom, quando foi no final da experiência, pediram, a opinião do Belmiro e o Belmiro falou: “Não, ela fica, porque ela tem o português muito bom” e aí fiquei, fiquei, depois, quando fizeram o novo prédio da prefeitura, daí eu não podia mais ficar lá embaixo, que era só eu, né? Aí me colocaram e eu fui de novo pra trabalhar com esse mesmo espanhol, mas aí eu já tinha evoluído e eu já estava fazendo cursinho, estudando pra poder prestar vestibular. Aí, como ele viu que eu tava estudando: “O que você está estudando, Iracema?”, o espanhol, lá, eu falei: “É, eu to prestando, eu fazendo cursinho, que eu vou prestar vestibular pra Jornalismo na Metodista”, ele falou: “Ah, então está muito bom, então não se preocupe, fique aí e estude”, ou seja, eu passava o dia todinho estudando. Também não queria serviço de ninguém, era só lá, só assim, pra anotar um recado, um telefone, uma coisa: “Leva um processo no local tal”, eu levava, e tinha uma outra menina também que ele gostava, que trabalhava com ele, e assim, e foi uma experiência boa. Até que veio essa oportunidade e aí eu já estava estagiando pra estagiar na assessoria de imprensa, mas aí veio aquela história de você não poder fazer a tua parte liberta, porque tava condicionado a política do gabinete. Uma vez eu fiz uma matéria tão interessante, que o secretário de serviços urbanos, um senhor, assim, muito enérgico também, trabalhador, ele fez lá pros funcionários dele que trabalhavam na rua, naquele frio todo e tal, então ele estabeleceu que tinha um café de graça pra eles de manhã, café acompanhado de pãozinho com manteiga e tal. E a iniciativa eu achei tão interessante e daí eu fui lá, fui lá às sete horas da manhã, cedinho, pra cobrir, né, pra ouvir também a opinião dos funcionários, se estavam gostando ou não, daí eu fiz a matéria, o prefeito não gostou.

P/1 – O que você fez na matéria?

R – Não, porque eu fiz uma matéria, veja só, era secretário dele, mas ele achou que o secretário tava chamando mais atenção do que ele, e foi, me chamou do gabinete e falou: “Não, porque você não podia fazer essa matéria”, não sei o que, não sei o que. Depois colocou um tal de um fotógrafo, que aonde eu ia fazer as perguntas, a matéria, o fotógrafo ia junto, um cara tão nojento, esse camarada, ele que queria fazer as perguntas, ele levava a máquina pra fotografar, mas ele queria, sabe, se meter no meio da entrevista e tudo. Aí foi uma coisa tão chata, eu falei: “Não, eu não gosto de trabalhar dessa forma, então eu vou utilizar o jornalismo sim, mas pra mim como escritora”. Porque aprendi muita coisa, principalmente quando se trata de narrar um fato, de contar uma história, eu escrevo contos também e quando eu vou fazer uma resenha literária, eu faço sobre os livros, de obras de outros escritores e tal. Então, quer dizer, jornalismo sempre me ajuda, mas eu não quis, assim, se fosse pra eu trabalhar dessa forma influenciada e não ter liberdade pra fazer o meu texto, então eu fiquei com o jornalismo pra mim nessa parte.

P/1 – Mas e lá, você ficou nesse emprego quanto tempo?

R – Não, então, aí eu fiquei só até o ano de 85, porque depois...

P/1 – Que ano que você entrou?

R – Eu entrei em 75.

P/1 – Você ficou dez anos lá?

R – É, eu fiquei, porém...

P/1 – Você começou como auxiliar de escritório e virou jornalista.

R – Não, não virei, assim, eu trabalhei como estagiária, mas quando eu saí eu já não estava mais lá, porque eu não quis continuar naquele setor, né? E depois foi assim, eu entrei com esse prefeito, que era Amaury Fioravante em seguida, o outro mandato era um senhor até de Minas Gerais, que morava, em Mauá e que foi eleito, que era o Dorival Resende da Cruz, não, da Cruz não, da Silva, Dorival Resende da Silva, e aconteceu um imprevisto, acabaram matando o rapaz. E daí é que veio, virou pra outro, como se diz? Outra política, né, quer dizer, era de outro partido o prefeito que entrou, que assumiu, que era o Leonel Damo, essa gente que entrou com ele, então eles faziam assim, eles perseguiam a pessoa, mudando de setor pra setor, até que ela ficasse sem ambiente e pedisse a conta. Então pedindo a conta, eles pagavam os direitos direitinho, que era pela CLT, e então foi assim que aconteceu comigo, ficaram me trocando de setor pra setor, eu já não aguentava mais, fiquei sem ambiente de ação, então pedi pra ser mandada embora, porque eles queriam as vagas de todos os funcionários pro pessoal dele. Era assim que funcionava e talvez ainda funcione até hoje dessa forma, quer dizer, o prefeito que entra quer levar os seus, que trabalharam na política pra ele se eleger. Então eu saí, quando eu saí, eu tinha uma pessoa amiga minha que é de um escritório de contabilidade em Mauá, então ele já tinha me orientado: “Se você sair da prefeitura, você não fique sem recolher INSS, vá a uma livraria, você compre um carnê e você vai ficar recolhendo”. Então, como eu peguei o dinheiro do fundo de garantia, que eram dez anos, então eu tive como colocar, era época de inflação, então o dinheiro na poupança, só com o dinheiro da poupança eu conseguia pagar aluguel e me manter até que surgisse alguma coisa. Daí ele falou assim: “E presta concurso em outros lugares”, daí apareceu concurso na Prefeitura de São Paulo e eu não pensei duas vezes, eu me inscrevi, me inscrevi, eu passei no concurso, então da Prefeitura de Mauá, o tempo que eu fiquei fora dela, sem, antes de entrar na Prefeitura de São Paulo, eu recolhi esse tempo com carnê. Entrei na Prefeitura de São Paulo, aí foi por lá que eu consegui, eu entrei como auxiliar administrativo, só que lá eu galguei dois cargos, cargo de confiança, porque eu já estava bem experiente no trabalho de funcionário público e já tinha faculdade. Então eu também me empenhei em trabalhar muito bem, mostrar meu serviço, de forma que eu passei a ser chefe de seção, em sendo chefe de seção, eu comandava os dois grupos de coros no Teatro Municipal de São Paulo, que foi lá que eu me aposentei.

P/1 – Você foi trabalhar na Secretaria de Cultura?

R – Fui, fui na secretaria, a princípio eu entrei lá.

P/1 – Que ano que é isso?

R – Isso foi, a princípio eu entrei em 89 como auxiliar administrativa, trabalhando em setor pessoal.

P/1 – Aí você entrou em 89, mas esse concurso era pra que, pra Secretaria de Cultura?

R – Não, a princípio era pra auxiliar administrativo e a gente tinha que escolher vaga, e a vaga, como eu morava em Mauá, eu tinha que escolher uma vaga onde fosse pelo menos central e central só tinha ali numa travessa da Consolação, chama-se Rua Pedro Taques, que onde funcionava o departamento pessoal da prefeitura, era ali, então eu escolhi uma vaga ali. Quando eu estava lá trabalhando, surgiu um concurso pro mesmo cargo na Secretaria de Saúde, porém ganhando mais, eu fiz o concurso, passei, e daí tive oportunidade de escolher uma vaga num local que se chama Vila Carioca, que a gente descia no trem, na estação de trem Tamanduateí. Ou seja, eu morando em Mauá, que eu comprei casa em Mauá, ficava metade do caminho e eu só precisava cumprir um expediente, porque a saúde, ela funciona em expedientes, então eu entrava às 11 da manhã e saía às 19 horas, às sete da noite, fui trabalhar lá. Porém eis que surge aquele tal de Plano PAS, que é do Maluf, e nesse PAS as pessoas, pra ficar trabalhando lá nesse local eu tinha que abrir mão do concurso que eu fiz, eu não era então mais concursada e assinava um documento com eles, como eu ia trabalhar nos moldes do PAS, que tinha lá as suas leis que regiam e tal, que era uma espécie quase de uma cooperativa. Eu não quis, então quem não quis simplesmente teve sua exoneração de lá publicada no Diário Oficial, e que fosse procurar uma vaga em alguma secretaria da prefeitura aonde quisesse, ninguém encaixava ninguém, entendeu, então foi assim que eu saí, como se diz, posta pra fora dessa forma. Comecei a pesquisar pelo Diário Oficial e vi que tinha duas vagas no Teatro Municipal, uma pra trabalhar no setor administrativo e um pra trabalhar no setor de imprensa. Eu falei: “Poxa, se eu tenho já o curso de Jornalismo, já trabalhei uma vez, talvez eu queira ficar com essa vaga” e fui, mas quando eu cheguei lá, essa do setor de imprensa já tinha sido preenchida, então eu fiquei na vaga do administrativo. Estava se formando a coordenadoria dos corpos estáveis, porque lá os corpos estáveis, você deve conhecer, que é a Orquestra Municipal, o Coral Lírico Municipal, que é formado do Coral Lírico e do paulistano, o Balé da Cidade e o Arquivo Municipal, então são os corpos estáveis. E eu fui trabalhar justamente na coordenadoria, essa, você pode ter conhecido, não sei, a coordenadora, a Miriam Mazzei, ela começou como coordenadora, depois foi diretora do departamento, tal. E então tinha pouca gente e precisava, e tinha as quatro chefias, tinha a chefia da Orquestra, dos coros, e do Coral Lírico e Paulistano a moça ia se aposentar, então foi aí que eu já tinha mostrado serviço e coordenadora, a Miriam Mazzei, me chamou pra fazer a chefia dos coros. Então eu já entrei pra chefia já no ano de, é, foi assim que eu cheguei lá, um ano depois, se eu não me engano, em 88 já, fiquei lá, a gente passava cinco anos pra poder incorporar o cargo, incorporei, me deram o segundo cargo, que eu incorporei também, e eu saí de lá aposentada como chefe lá, né, desse, do Coral Lírico e Paulistano. Então passei a trabalhar com artistas, estava na minha área, ali sim foi ótimo, inclusive lá eu fiz dois cordéis, um quando o Coral Paulistano completou 70 anos, em homenagem a eles, e já tinha feito um anterior contando a história do grupo, desde quando foi fundado. Porque o coral foi fundado pelo Mário de Andrade, que a função do Coral Paulistano era justamente cantar as obras de compositores brasileiros, porque o lírico até então canta, mas é trecho de ópera, então compositores de fora, não são os nossos compositores brasileiros, com alguma exceção, mas o Coral Paulistano foi fundado assim. E daí eu conto a história, falando de todos os maestros que passaram até aquela data, enquanto eu estive lá, né, que eu escrevi, eu tinha acesso à história e tal, e também já tinha escrito os meus primeiros livros e me dei muito bem, nesse setor da cultura, foi muito bem.

P/1 – Tem algumas histórias marcantes, assim, alguns causos pra contar?

R – Olha, o que eu tenho, assim, de mais marcante, é justamente que eu consegui participar, não como chefe administrativa deles, mas eu como artista, porque então eu me apresentei com o Coral Paulistano, eu falando os meus poemas, intercalada com eles cantando músicas, foi um evento lá na Biblioteca Mário de Andrade, de onde eu tenho uma foto muito bonita, que eu trouxe pra ficar agora no arquivo. E também quando foi os 70 anos, o Coral Paulistano fez um concerto, apresentou um concerto todo especial e, como eu fiz esse cordel em homenagem, eu me apresentei no Teatro Municipal, num dos intervalos de uma música e outra que o Coral Paulistano ia executar, e eu falei de cor as 28 estrofes do folheto, sem errar nada, para o teatro lotadinho, num dia de sábado à tarde, um concerto. Então essas duas experiências forma ótimas, e todas as amizades que eu fiz, que eu tenho até hoje, como, por exemplo, tem um dos cantores, que ele faz projetos que inclui também a literatura popular, porque na verdade o cordel se chama literatura popular em versos. E esse ano eu já estou participando de um projeto que eles vão apresentar, a Secretaria de Cultura do estado, sobre o compositor, que é um musicista, Valdemar Henrique, que é do Pará, e eles vão, querem uma abertura feita em cordel, e eu já fiz a abertura, já passei pra eles, eles vão juntar depois na parte que eles vão desenvolver, que é musical. E então restou tudo isso de muito bom, amizade, oportunidade de trabalho, foi muito bom trabalhar lá no Teatro Municipal.

P/1 – Algum episódio marcante, assim, de cotidiano de trabalho, causos?

R – Olha, não, porque, assim, eu tinha, eu sou uma pessoa muito responsável com a minha parte, apesar de eu ter a minha participação artística, porém eu sempre fui aquela, de chegar no horário, de cumprir tudo direitinho o meu trabalho. Eu só tive, assim, dificuldades com funcionário administrativo, que teve uma menina que me largou na mão com uma série de trabalhos, depois eu ainda tive que responder lá no departamento judicial, processo, porque ela abandonava o serviço, se ela devia ser exonerada da vaga que ela tinha como funcionária. Enfim, esses percalçosqu e tem na administração mesmo e só, mas de resto foi tudo muito, assim, positivo.

P/1 – Iracema, quando que você começou a escrever?

R – Ah, quando eu cheguei em São Paulo, em 75, eu já trazia alguma coisa escrita em termos de poema, e eu trazia muitas leituras, e nesse ano de 75 foi o ano que eu fui admitida na Prefeitura de Mauá e, quando eu entrei para trabalhar, estava, ia haver no final do ano um concurso de contos, Primeiro Concurso de Contos de Mauá. Então eu resolvi escrever uma história, ainda bem romântica, da época de adolescente, eu me considerava totalmente adolescente, quase ainda, aos 21 anos, porque eu não tinha tido muita vivência, como eu te falei, por causa que era muito, assim, gostava muito de ficar mais reservada, não convivia muito com as pessoas da minha idade e tal. Então eu participei desse concurso e eu fui classificada entre os dez melhores e já fui publicada numa antologia do grupo, que se chama Antologia de Contos, chama-se Antologia de Contos, é só isso, e foi feito pela Secretaria de Cultura de Mauá. Quando foi, isso em 75, quando foi no ano de 77, estava havendo já concurso de poesia, que eles já tinham feito uns anteriores e estávamos agora acho que, me parece que era no quarto concurso de poesia, que eles chamavam EPOM, Encontro de Poesia de Mauá, e então eu me inscrevi com um poema. Era época da ditadura e eu observava assim, aquilo me chamava atenção, que nas cidades, em qualquer lugar onde você fosse, tinha muito slogan escrito assim: “Este é um país que vai pra frente”. Como eu observava também mais coisas ao redor, eu via que tinha muita miséria, eu falei: “Mas como que é um país que vai pra frente e se eu vejo que não é bem isso, né?”, só que era época da ditadura, era slogan que a ditadura usava pra poder dizer que o país estava muito bem. Mas eu não era muito ligada politicamente, tanto é que essa ditadura passou pra mim, não fosse esse slogan, acho que teria passado pra mim até meio despercebido. Porém eu me escrevo com esse poema, então usei o slogan, entre aspas: “Este é um país que vai pra frente”, ele foi classificado para a final desse concurso e então eu mesma fui defender. Naquela época os concursos, eu achava super interessante por causa disso, porque era o próprio autor ou então uma pessoa indicada que subia ao palco pra defender o poema, então, quer dizer, o jurado tava ali, era muito bom. E então eu sempre gostei de falar as minhas coisas, nesse ponto eu não sou tímida e gosto de plateia, é nessa ocasião, quando eu estou no palco, que eu vou falar os meus trabalhos, pode ter um, dois mil, cinco mil, entendeu, pra mim se tiver um, muito bem, se tiver dois, cinco mil, eu me sinto da mesma forma, eu gosto, então eu gosto do palco, me sinto bem? E então subi pra declamar esse poema, eu começo assim: “Este é um país que vai pra frente, expressão quente, está na cuca da gente, o slogan não mente? Em tanta grandeza, cadê a beleza?”, enfim, eu vou fazendo assim, um contraponto e vou até o fim. Nisso, quando eu termino de falar o poema, nossa, mas eu fui aplaudida de pé e principalmente de uma rapaziada, sabe, eu fiquei assim, quando eu desci, aí esses moços já vieram conversar comigo, saber quem eu era e tal. E eles já tinham formado um grupo de escritores em Mauá, que se chamou Colégio Brasileiro de Poetas, foi aí onde nasceu tudo, no momento eram só rapazes e quando foi, daí eles me convidaram pra participar das reuniões. Em 77, eu entrei para o grupo e esse grupo, ele teve uma vida longa, que foi até a primeira, foi até mais ou menos 85, então, nossa, se eu estava em 77, e foi até 85, então durou bastante esse grupo, e já tinham uma vivência vindo de traz, desde o começo dos anos 70. Então foi através desse grupo que eu publiquei os meus primeiros poemas, esse grupo deixou quatro antologias, a primeira era mimeografada, que ainda não se fazia as coisas, assim, impressa, pelo menos o grupo ainda não tinha essa condição de fazer, então chama-se assim: Antologia Mimeografada do Colégio Brasileiro de Poetas. Quando foi depois, no ano seguinte, então fez-se uma que se chama Dez Poetas em Busca de Um Leitor, veio em seguida Revoada de Pássaros Negros e depois O Útero da América, ou seja, temos quatro antologias nesse grupo. Então foi a partir daí que eu também já fiz o meu primeiro livro individual de poemas, que se chama Poesia, hoje, de poesia eu tenho esse primeiro livro, se chama simplesmente Poesia, depois eu lancei Retalhos Poéticos. Depois veio Argamassa, que é um livro que eu acho interessante, porque ele foi feito assim, a partir de uma oficina, onde nós participávamos, no Teatro Municipal de Mauá, e que eram dados temas sobre a Cidade de Mauá, em cima desse tema a gente fazia o poema. Inclusive desse livro Argamassa eu tenho um poema premiado no Mapa Cultural Paulista, se eu não me engano, de 2001, que foi na primeira fase, na fase municipal, de Mauá, que o poema se chama Guernica Revisitada. Eu trago até hoje uma fotografia também do banner, que tem um trecho do poema, quando eu fui receber a homenagem, e tem, assim, um desenho de um trecho, digamos assim, um pequeno pedaço do quadro Guernica, do Picasso. Porque foi um poema que eu fiz em cima de uns painéis de pintura numa capela de Mauá, que fica dentro da Santa Casa, e esse painel é pintado por um pintor que se chama Emeric Marcier, e quando eu olhei aqueles painéis, eu falei: “Poxa, mas eu não estou achando isso, assim, não consegui me identificar com o evangelho que ele quis colocar ali”, eu só lembrei do Guernica, do Picasso, então eu dei o título do poema Guernica Revisitada. Bom, depois do Argamassa, o mais recente que eu tenho em poesia é este aqui, que se chama Palavra Exata, essa Palavra Exata, eu dei esse título vindo do seguinte, que nós escritores escrevamos ou poesia ou literatura de cordel ou outros gêneros, como é o meu caso, que eu escrevo conto, eu escrevo biografia, ensaios, resenhas literárias, então a gente está sempre atrás da palavra certa, daquela palavra exata pra aquele local. Porque a escrita é isso, o ato de escrever não é só você sentar e redigir, está pronto, não, logicamente que uma primeira ideia, ela vem, no meu caso eu ponho no papel a mão, porque eu não sei, quando eu usava máquina de datilografia, eu não ia direto à máquina, eu escrevia a mão, e agora que tem o computador eu não crio digitando, a minha criação é toda a mão. Eu já estou com 23 livros publicados, mas é tudo à mão, depois da mão é que eu vou digitar e no digitar é que a gente já vai retrabalhando o texto, procurando as palavras, depois eu tiro uma cópia daquele texto, vou ler, vou ver onde precisa arrumar e assim é que o texto vai crescendo, até você encontrar essa palavra que, pelo menos pra você, seja ela a palavra exata, então é por isso o título desse livro aqui. Eu também trouxe mais uns dois livros pra mostrar, esse aqui é sobre, são contos, Conversa de Botequim, e eu tenho, assim, o privilégio, eu digo, de ter sido a primeira mulher no ABC a publicar um livro de contos, porque até então a gente só tinha homens contistas. Mas agora tem a mim, tem a uma senhora de São Caetano, que se chama, no momento eu não estou lembrando o nome dela, mas depois eu lembro, então, na verdade tão aparecendo contistas, mas na ocasião só tinha eu. Esse livro aqui é de 2008 e ele também foi contemplado pelo FAC da Prefeitura de Mauá, esse FAC chama-se Fundo de Assistência à Cultura de Mauá, que sempre está contemplando projetos, tanto na área da literatura como de outras artes, artes plásticas, cinema e teatro, e esse livro aqui foi um dos contemplados. Na verdade eu tenho cinco livros contemplados, esse é um deles, hoje eu só trouxe três porque a gente vai colocar como documento e tem as fotos, então pra não ultrapassar a parte que me cabe, então eu trouxe só três de amostra. Este aqui é o mais recente, Essa Valsa é Nossa, tanto este como esses dois que já mostrei, eles têm capa de uma capista muito interessante aqui de Santo André também, que chama Neli Maria Vieira, é uma artista plástica. E este aqui, eu fiz uma reunião de prefácios, posfácios e orelhas já feitos pra obras pra obras de outros artistas, de outros escritores, já publicados nos livros deles, então eu fiz a reunião, que está nesse livro aqui. De modo que eu tenho, eu estou escrevendo em vários gêneros, eu tenho a literatura de cordel, eu tenho o poema, simplesmente, tenho alguns livros infanto-juvenil, no caso a resenha, o ensaio, a biografia. Que é uma biografia que eu fiz sobre o escritor Aristides Teodoro, que inclusive vai dar o seu depoimento agora, às 14 horas, que é um dos escritores mais profícuos e também antigos e importantes da região do ABC, e a literatura de cordel, que eu já falei, né?

P/1 – Iracema, essa atividade, depois que você se aposentou, como que é o seu cotidiano?

R – Não, essa atividade eu desde o início, no ano de 1975, quando eu fui publicada e continuo de lá até aqui, mesmo trabalhando, eu nunca deixei de escrever e também eu tenho participação em várias antologias. Por exemplo, eu tenho concurso, eu tenho conto premiado em concurso da terceira idade, que foi um concurso de São Caetano, que eu tenho a antologia em casa. Também tenho conto, chama-se Contos Afro-brasileiros, que foi de um grupo de São Paulo que se chama Quilombo Hoje, onde eles publicavam os Cadernos Negros, se eu não me engano foi o número 22, temos contos inseridos lá, tudo através de concurso, entendeu? Ganhei já alguns prêmios em poesia, eu tenho prêmio em poesia, tenho prêmio de melhor intérprete, tenho prêmio também de literatura de cordel, que foi o primeiro concurso de literatura de cordel aberto em São Paulo, foi patrocinado pelo metrô e pela CPTM, em 2002. E eu fiquei entre os 20 melhores cordelistas do país, na ocasião eles fizeram uma tiragem de dez mil exemplares de todos os cordéis premiados, e distribuíram na rede estadual de ensino. Então eu não posso me queixar, porque em todo gênero...

P/1 – O cordel você começou lá na sua origem?

R – É, não a escrever.

P/1 – Mas a entrar em contato.

R – É, contato, desde criança que eu leio e escuto.

P/1 – Tem algum daquela época que tenha te marcado, algum cordelista?

R – Olha, cordelista não, porque eu, assim, eu ainda não conhecia a história do cordel, porém são famosos todos aqueles em que têm um tema, por exemplo, os temas são chamativos, eles são grandes, como, por exemplo, dizia assim, as características são românticas, vindas da idade média. Porque o cordel, ele veio através do nosso colonizador, no bojo das caravelas, veio para o Nordeste, ainda não em verso, esses livretinhos que chegaram, eles ainda chegavam em prosa. Porém, como no Nordeste eles começaram a cantar esses temas da idade média através desse cordel que chegou de Portugal, eles cantando esses temas que tem muito de religioso, tem muito de romântico, tem muito de castelo, tem muito de princesa, tem os 12 pares França, tem aquelas histórias de Roldão, que foi um par de França também. E então tinha aqueles títulos assim: “Josefa e Marieta nos laços da escravidão”, tinha o “Pavão misterioso”, enfim, esses nomes claro que, “Lampião entrando no inferno”, “A peleja de não sei quem com Lampião no inferno”, esses nomes assim, bastante estranhos. Quem usou muito disso na literatura nossa, brasileira, vários escritores utilizaram e muito, principalmente Jorge Amado, o próprio Ariano Suassuna nas suas peças de teatro, como é causo do Auto da Compadecida, onde esses personagens, João Grilo e Chicó, eles são muito parecidos com os personagens de Pedro Malasartes, que é um que contava história popular. Então essa literatura popular em verso, ela acabou influenciando muito os nossos escritores, o próprio Graciliano Ramos, o Carlos Drummond de Andrade, que eu não sabia, mas descobri agora, me aprofundando nas raízes do cordel, ele fez um cordel, em verso, esse cordel, um livreto de cordel, que foi musicado depois. E então eu desconhecia isso, eu só conhecia então a poesia que a gente chama de normal, não conhecia a literatura popular em verso, mas ela hoje é muito estudada, não só aqui no Brasil, como é estudada lá fora. No Ceará, ou talvez em todo nordeste, o maior representante dessa literatura é Patativa do Assaré, que tem na Sorbonne uma cadeira que estuda literatura popular em versos. Inclusive o Ariano Suassuna, ele esteve em Santo André em 2013 e eu tenho fotos com ele, porque na ocasião o grupo Quatro Dedos de Prosa, de Santo André, do qual nós fazemos parte também, eu e o Aristides, nós recepcionamos o Ariano Suassuna no Hotel Ibis. E depois foi um bate papo entre todos nós, escritores, e com ele, e foi onde a oportunidade de falar pra ele da minha trajetória de literatura de cordel e ele escutou, assim, de uma forma muito bonita, muito embevecido, ele gosta do tema. Então qual foi a sua pergunta? Pra eu não me perder agora.

P/1 – Que você começou a entrar em contato com o cordel lá na sua terra.

R – Sim, pois é, mas só comecei a escrever no ano de 88, se eu não me engano, e incentivada por um senhor chamado Zacarias José, porém ele usou sempre o pseudônimo de Severino José, porque ele achava que Zacarias José era nome de coronel. Ele é um sergipano, que infelizmente ele já foi, não está mais no nosso plano aqui, mas ele editava todos os cordelistas que vinham do nordeste, que moravam aqui em São Paulo, então ele editava e começou a me incentivar me trazendo material de cordel pra eu ler e escrever artigos. Eu comecei aqui em São Paulo escrevendo artigos, publicando no Jornal da Manhã, assim, a título de colaboração, o Jornal da Manhã em São Paulo, porque na ocasião eu já trabalhava em São Paulo, mas ainda não no teatro. Tava ajudando um amigo meu que tinha um sebo na Praça da República, é o Aristides Teodoro, e ele passava todo dia na banca, e ele era simplesmente apaixonado, uma pessoa aficionada, me trazia matérias, eu lia. Também tenho publicados através do jornal A Voz de Mauá, cujo o diretor, que é o Fausto Piedade, que sempre nos deu a mão, deu espaço pra gente publicar, comecei assim. E quando apareceu o Plano Cruzado, com aquela história do Sarney, e que faltava mercadoria e não sei o que e tal, eu resolvi escrever e escrevi o meu primeiro cordelzinho, e ele editou. Quando foi o segundo, daí ele trouxe pra mim...

P/1 – Você lembra dele?

R – Eu não lembro, porque foi o único cordel que extraviou, então eu não tenho ele aqui, nem, assim, pra eu dizer um dos versos. E em seguida eu ganhei de um cordelista também, que se chama Franklin Machado, que ele assina assim: F. Maxado, com X, ele é da Bahia, mas morou muito tempo aqui em São Paulo, inclusive expunha seus trabalhos na Praça da República, e uma vez, ele passando lá na nossa banca, ele me deu dois livros, um livro que fala sobre cordel e outro sobre xilogravura e cordel. Então eu li os dois livros e ao invés de fazer uma resenha literária, como eu faço hoje ainda pra o jornal, eu publico na Voz de Mauá, eu também já publiquei no Jornal da Manhã e em outros locais, ao invés de fazer a resenha, eu fiz o livreto, que é em homenagem a ele. Daí pra cá eu não parei mais, eu fiz esses dois sobre o Coral Paulistano, eu tenho um também que eu fiz sobre um restaurante no centro de São Paulo, que chama-se Eiffel, é um restaurante vegetariano, e o rapaz que é dono do restaurante, ele pediu que eu fizesse como propaganda, então ele patrocinou também o folheto. E é bom porque isso mostra que o nosso folheto não é mais, quer dizer, ele pegou as nossas características, ele serve a mil e um propósito, não é mais como no passado, que era pra cantar só esses amores impossíveis, esses castelos, esses temas da idade média, não é mais só isso, nunca. O próprio Severino José, que tem vários cordéis, vários livretos, ele ganhou prêmio fazendo um livreto sobre a questão do acidente na construção civil, porque as pessoas não usam capacete, às vezes esquece uma luva, uma bota, então ele fez como propaganda, fez cartazes, fez o cordel, e recebeu até um prêmio por isso. Então hoje pode ser utilizado diversas as formas e outra coisa que é muito importante, não é mais aquela linguagem tão simples do pessoal do sertão, a linguagem pode ser simples e é simples, porém já há preocupação em se fazer um cordel correto ortograficamente, de forma correta. Quer dizer, são pessoas que já dominam a língua, a nossa ortografia, que escrevem e também com aquela preocupação de ter as rimas corretas, a contagem da rima métrica. Porque muita gente, assim, faz de uma forma, não se preocupa muito, mas quando a gente vai ler, a gente percebe aquela quebra, que é por isso que no Nordeste chama-se muito verso de pé quebrado. Porque eles chamam a linha de verso, quando não é, o verso é a reunião das seis linhas, que se chamam estrofe, os seis versos é que formam a estrofe, cada linha é um verso, mas eles, quando eles encontram um assim, de pé quebrado, eles acabam que a estrofe está verso de pé quebrado, mas não é verso, é uma estrofe. Então há muita preocupação agora de uma linguagem melhor, mais bonita, e a ilustração, a ilustração, que é feita com a xilogravura, porque na época, como não se tinha isso aqui ou não tinha meios ainda de fazer, porque a xilogravura, ela veio direto da China pra nós também, creio que nessa mesma época. Mas tinha dificuldade dos instrumentos pra fazer, hoje não, hoje já se descobriu que tem uma madeira mais fácil de esculpir, já tem objetos que não seja só o canivete pra fazer. Que a xilogravura é assim, você pega a madeira, esculpe, ao contrário, depois você coloca numa folha de papel e põe a tinta, e dali, quando você tira, está marcado certinha a xilogravura, que é o que é a capa própria pra enfeitar o cordel. E a xilogravura também, ela já tomou muitas proporções, nós temos xilógrafos famosos aqui no Brasil, que é o caso do Gerônimo e do Marcelo, que são pernambucanos também, têm álbuns só de xilogravura, independente do cordel, tem álbuns lá fora. Enfim, essa literatura popular em verso, incluindo a xilogravura, ela diversificou e ela evoluiu bastante.

P/1 – Iracema, você tem alguma editora?

R – Olha, é o seguinte, no começo, quando era no grupo, no Colégio Brasileiro de Poetas, nós cunhamos uma marca que chama Edições Mariposa, e que a gente fazia as publicações em termos de cooperativa e, quando a gente continuou fazendo, mesmo individual, a gente usou a marca de Edições Mariposa. Porém, de lá pra cá, eu só não tenho feito por conta própria quando são esses cordéis, que ambos, o do paulistano como esse que eu citei o exemplo, do restaurante vegetariano, eles são patrocinados, e quando tenho esses livros que eu consegui o patrocínio do FAC, do Fundo de Assistência à Cultura de Mauá, porque eu montei o projeto e foram contemplados. Fora disso, eu ainda não fiz através de nenhuma editora, no momento há muitas que você pode procurar, porém é o seguinte, muitas vezes não há, assim, uma vantagem muito grande, dependendo da editora. Talvez seja de início uma vantagem, assim, de umas que arcam a princípio com toda a parte, mas depois o fator da distribuição também acontece sendo meio difícil, porque eles também vão querer que isso seja feito através de lançamentos, e aí você tem que ter sua plateia, tem que ter família, tem que ter amigo, tem que convidar, tem que ir atrás. E tem certas editoras que a gente não quer nem de graça, que tem nome, mas que faz um livro mal feito, não faz a distribuição, muitas vezes pega o seu dinheiro e o seu original, não faz na hora, demora, às vezes no próximo ano ele quer reajustar aquele contrato. Enfim, o mercado editorial pra gente ainda é um pouco meio difícil.

P/1 – Iracema, a gente está caminhando pras perguntas finais. Quais são seus maiores sonhos hoje?

R – Olha, eu acho que o meu sonho e único objetivo é esse, eu nunca fui uma pessoa, eu não quero dizer que sou acomodada, mas hoje, talvez vem chegando a maturidade, eu sou uma pessoa muito tranquila nesse aspecto, sabe por quê? Porque eu tenho consciência daquilo que eu faço, eu procuro fazer o melhor, quando eu vou escrever, da melhor forma possível, publicar o que for de melhor, quando eu vou a uma apresentação, eu procuro, eu, sabe, transmitir também da melhor forma possível. Então eu tenho sempre muito boa acolhida quando eu vou falar os meus próprios poemas, meu próprio trabalho, e eu quero continuar assim, trabalhando sempre, procurando fazer o de melhor. Não tenho essa gana de dinheiro, de ficar rica, nunca tive, eu acho que o mais importante pra mim é viver feliz, dentro daquilo que eu considero que é felicidade para mim, não o que os outros achem, entendeu? Sou uma pessoa que eu me considero, assim, uma pessoa correta, que gosto de cumprir com os meus compromissos, ou que seja de horário ou financeiro, de palavra, gosto muito das pessoas.

P/1 – Mas e sonhos?

R – Sonhos? Eu acho que sonho é trabalho, por exemplo, eu estou com três livros, esse ano eu montei três livros, um já está na gráfica, está no prelo pra sair ainda talvez esse mês, os dois, um eu estou procurando editora, então nesse daí eu vou persistir no caminho da editora. O terceiro eu inscrevi no projeto agora para o FAC de Mauá, mas não ganhou, não ganhou porque, certamente, ou tiveram trabalhos melhores, enfim, a gente não vai cogitar, então não passou no FAC e vou continuar tentando. Também se precisar ser da minha própria, do meu próprio bolso, eu vou fazer o livro, eu vou até o fim, vou continuar a minha vida, eu acho, o meu maior empenho é a minha maior felicidade, é continuar vivendo e trabalhando e principalmente liberdade. Eu acho que liberdade é o sonho maior e mais real que a gente realiza toda hora, sabe, embora que a minha, quando eu falo de liberdade, não é ser porra louca, não é isso, é realmente ter a liberdade de poder errar, de saber que errou, que assumiu, de seguir em frente. Por que eu errei? Porque eu sou humano, nem sou melhor nem sou pior do que ninguém, entendeu? Então eu quero ser eu, então eu tenho a liberdade e o gosto de ser eu, isso pra mim é o maior sonho, é o sonho maior de qualquer pessoa, de qualquer cidadão, de qualquer humanidade.

P/1 – Iracema, o que você achou de contar o seu depoimento aqui no Museu da Pessoa, o seu depoimento de história de vida?

R – Eu acho super importante, porque a vida das pessoas, a vida de qualquer um é importante, então, como outro dia a gente fez uma visita aqui e viu o depoimento de outras pessoas, então nunca é igual, nunca um é mais importante do que o outro, nunca o outro é menos importante. O que é importante é a diversidade, é você ver, poxa, nessa pessoa é isso, naquela é isso, ressaltou aquilo, nesse ressaltou isso, entendeu, isso é que é importante, é o todo, é essa junção, é essa massa, né?

P/1 – E a sua experiência, o que você achou da sua experiência de contar?

R – De vir aqui?

P/1 – É.

R – Eu estou achando maravilhosa, eu gosto de falar, gosto muito de falar da minha vida, da minha trajetória e eu sou uma pessoa que nem tenho só isso pra contar, acho que ficaria o dia inteirinho. Mas eu achei muito interessante a questão das perguntas, porque quando a gente vai dar um depoimento, se é só da gente, às vezes você deixa de falar uma coisa importante em detrimento de outra, e quando é assim, direcionado, você fazendo as perguntas, eu tenho impressão que fica tudo melhor e mais claro. E, aproveitando o gancho, eu vou falar que o Arnaldo Jabor, ele esteve nesse último programa da Cultura, Roda Viva, e então ele falou muito, assim, dessa coisa boa, do que é o repórter, tal. E que alguém uma vez ficou muito chateado com o repórter porque perguntava isso, porque perguntava aquilo, aí depois falou, a pessoa que estava sendo entrevistada, não, o repórter falou assim: “Ora, mas pelo o que eu saiba o jornalista, o repórter é apenas um ser que pergunta, se o repórter não perguntar, o que que ele vai fazer em determinado local?”. Então cada um na sua, eu acho que é muito importante você, que está do lado de lá, você pergunta aquilo que é de interesse da sua instituição saber, porque aí sim eu vou dar aquilo que você precisa, não é? Então a pessoa que fica com cara feia, achar ruim porque um repórter pergunta, pelo amor de Deus, o que é que o repórter faz? É um ser que pergunta (risos).

P/1 – Iracema, eu queria agradecer a sua presença aqui no estúdio e deixar o convite, se você quiser voltar pra complementar a sua história, estamos de braços abertos. Obrigada.

R – Então, talvez numa próxima oportunidade, havendo, a gente possa fazer assim, de uma forma diferente, diferente não, mas que eu possa complementar falando mais de todos os livros, da história de cada livro, não é?

P/1 – A gente marca.

R – Então tá ótimo.

FINAL DA ENTREVISTA