Museu da Pessoa

Um trabalho a cada esquina

autoria: Museu da Pessoa personagem: Norton José Pipa Silva

Projeto Vale Memória
Depoimento de Norton José Pipa Silva
Entrevistado por Marina D’Andrea e Stella Tredice
Vitória, 04 de outubro de 2001
Entrevista CVRD_HV124
Realização Museu da Pessoa
Transcrição por Jurema de Carvalho
Revisão por Teresa de Carvalho Magalhães

P/1 – Por favor, diga o seu nome.

R – Norton José Pipa Silva.

P/1 – Local e data do nascimento.

R – 04 de junho de 1926. Vitória, no Espírito Santo. Portanto, 75 anos de idade.

P/1 – Nome de seus pais.

R – Alípio da Costa Silva e Maria Amélia Pipa Silva.

P/1 – O senhor lembra do nome de seus avós?

R – Lembro. Meu avô materno José Luís Pipa Junior e Virginia de Souza Pipa. O paterno Antônio Costa Silva e Eduarda Costa Silva.

P/1 – E a origem da família sua é?

R – É toda portuguesa. A minha mãe era brasileira de nascimento, mas filha de portugueses. Meu avô era farmacêutico em Portugal, tanto que a Farmácia Pipa, que vocês vão ver nas fotos, agora eu tive em Portugal em 1992, ela era viva ainda, fui localizar a Farmácia Pipa que foi fundada pelo meu avô.

P/1 – Ainda existe?

R – Ainda existe. Um detalhe, cheguei lá e me identifiquei com o passaporte, eu Pipa. Eu queria conversar com a proprietária. A menina perguntou “Mas porque?” “Eu sou Pipa, venho do Brasil.” “Ela não vai poder atender.” Eu senti que eles tem essa ideia que a gente vai buscar herança… Nada disso, era só o lado sentimental. Meu avô, quando veio para o Brasil, ele era republicano, ele veio fugido de Portugal para o Brasil, ele era político. Ele veio para cá, ele teve farmácia no Méier, esses detalhes eu não tenho bem pensados.

P/2 – Em que época ele veio?

R – Eu vou lhe dizer, ele morreu em 1929, eu nasci em 1926. Eu tenho memória remota dele morto. Coisa de criança, eu no colo da minha mãe, em 1926. Ele deve ter vindo para cá em... a Primeira Guerra Mundial foi 1914-1918. Papai veio após a Primeira Guerra Mundial, conheceu mamãe. Ele deve ter vindo na década de 1910. Papai já estava aqui em Vitória. Papai veio para ao Brasil como imigrante português, um tio dele que tinha uma casa de comércio aqui em Vitória, Aparício Pessoa, mandou buscar papai depois mandou buscar o irmão dele, meu tio. Papai ficou morando aqui numa república junto com um amigo chamado Erminio Pipa, que era irmão de minha mãe, moravam na mesma república. Daí ele ficou sabendo da existência de uma irmã. Ele quis conhecer mamãe. Conheceram, noivaram e casaram. Aí nasceu a mim, meu irmão e minha irmã. Nessa sequência: minha irmã, eu e meu irmão. Meu irmão é falecido.



P/1 – Seu pai fazia o que?

R – Comerciante.

P/2 – Tinha uma loja?

R – Tinha uma loja “Casa Manoel Evaristo Pessoa e Cia. Ltda”.

P/2 – O que vendia lá, Seu Norton?

R – Ferragem, atacado. Naquele tempo as lojas eram generalizadas em produtos: ferragem, cereais...

P/1 – O senhor se lembra como era a cidade na época?

R – Lembro, da minha época lembro.

P/1 – Como que era?

R – Topograficamente ou espírito da cidade?

P/1 – Tudo.

R – Topograficamente tinha ruas mais antigas. Tinha bonde, já tinha iluminação pública. Bom, tinha que ter, eu tenho 75 anos. Tinha bonde, tinha ônibus, bem precário, mas tinha ônibus. Aquelas festas típicas das igrejas, festas católicas. Tinham dois blocos: a igreja do Rosário e a Igreja de São Francisco. Havia o Grupo do Rosário e o grupo de São Francisco. Tinha um determinado dia do ano que eles faziam uma procissão, se encontravam e saíam aos tapas, isso está relatado com um historiador e jornalista Guilherme Santos Neves. Grande jornalista, foi meu professor de português. O filho dele vai pelo mesmo caminho, o Luis Guilherme, bom escritor. Que mais que tinha em Vitória? Cais das barcas, não havia carga de minério. Quando veio a Segunda Guerra, o esforço de guerra financiaram aqui, nós fornecemos minério de ferro para o esforço de guerra. O minério de ferro vinha de Itabira, uma forma muito precária em pequenos vagões, atravessava a ponte em Vila Rubim e vinha de caminhão...

P/1 – Qual ponte? A ponte número 1 ou 2?

R – A ponte Florentina. São duas estruturas metálicas. Ponte Crup (?), ponte Florentina, foi o Florentina quem mandou construir. Esse trem vinha, passava por umas basculantes de caminhão, vinha até Vitória, Vitória é uma ilha, jogava no chão, esse jogado no chão era carregado em pá para dentro de umas caçambas e era colocado dentro do navio. O navio grande naquela ocasião era de 10 mil toneladas, não mais que isso. Hoje em dia o navio é de 300 mil toneladas no porto de Tubarão.

P/1 – Como que o minério vinha?

R – Vinha de trem de Itabira até Vitória, até Paú.

P/1 – Que tipo de ferro havia?

R – Ferrovia, bitola métrica, trilho de 43, era um trilho menor, locomotiva à vapor. Essas locomotivas Mikado que nós temos aí, tinha, né, porque só sobrou uma. Elas foram fornecidas pelo esforço de guerra, mandaram 40, 25 locomotivas Mikado. Elas foram montadas aqui no João Leiva, na oficina de locomotiva à vapor.

P/1 – E o traçado da ferrovia era outro?

R – Era antigo, bem antigo. Depois a

___________ foi contratada para fazer a retificação de alguns trechos, a mudança dos trilhos, passou para trilhos 57, é um trilho pesado, pequeno. A bitola continua a mesma, bitola média. Um trem de minério típico da época, em 50 – 57, e só mulltiplicar… 40 vagões… Umas 300 toneladas.

P/1 – Para onde ia esse minério?

R – Para os Eua, Inglaterra. O esforço de guerra ia transformar esse minério em aço.

P/1 – Entrou capital estrangeiro?

R – Capital estrangeiro. O esforço de guerra foi financiado.

P/2 – O senhor se lembra disso tudo?

R – Tem a parte histórica. Dr. Denerval Pimenta e Dr Schettino escreveram sobre como surgiram. Pelo que me consta a mina de Itabira, era Itabira Iron Company, uma coisa assim, era um grupo de ingleses. Na época de Getúlio, pelo que me consta, ele encampou, ficou como propriedade do Brasil.

P/2 – Sr. Norton, eu queria voltar um pouquinho para a sua infância, o senhor estava contando sobre Vitória, que o senhor perguntou da topografia ou do espírito da cidade. O senhor falou da topografia da cidade, e o espírito da cidade?

R – Uma cidade simples, uma cidade pequena que todo mundo se conhecia, todo mundo se conhecia. A gente quando era menino, a gente fumava e fumava escondido. Se passava um senhor de idade e nos visse fumando, ele contava. Era uma cidade pequena e todo mundo da religião católica fazia primeira comunhão. O Bispo era conhecido, tinha umas posições... eu fui criado na religião católica, mas depois eu nunca me preocupei muito com isso.

P/2 – Que igreja o senhor fez a primeira comunhão?

R – Na Catedral Metropolitana.

P/2 – O senhor se lembra como que foi?

R – Lembro.

P/2 – Tinha que pôr terno?

R – Tinha que por um terninho branco, calça curta, tinha uma fita. A minha irmã também, uma vela, mas era bonito.

P/2 – Qual o bairro que vocês

moravam?

R – Centro, morávamos perto do Parque Moscoso. Parque Moscoso é um parque tradicional da cidade. Morava numa rua que saía perto, na minha infância eu vivia no parque.

P/1 – Já existia a Praia do Canto?

R – Já. A Praia do Canto foi urbanizada pelo Dr. Saturnino Brito, engenheiro civil. Ele pegou isso aqui, era plano e você vai constatar que as ruas todas são muito largas. Nesse bairro chamado Praia do Canto, Praia do Suá, Praia de Santa Helena, era tudo plano e foi feito para fins de semana. O pessoal pegava o bonde em Vitória e ia passar o fim de semana. Por essa razão de ser, os lotes eram enormes, umas casas pequenas no centro. O pessoal só ia passar o fim de semana. Hoje é esse estouro.

P/1 – Não foram feito aterros para mudar a cidade?

R – Não, depois não. Essa avenida que você passa a beira mar, foi conquistada ao mar.

P/1 – Mas no porto de Tubarão não?

R – O porto de Tubarão não. Essa área aqui foi conquista ao mar, foi feita aterro.

P/1 – Qual a área pra gente saber no vídeo, a que foi conquista ao mar, aterro?

R – Daqui do prédio até os Piers, inclusive o Zé Carlos Martins,

o filho dele Fabiano, que forneceu essa fotos, era o homem, o engenheiro encarregado de todo esse controle de aterro.

P/1 – O aterro foi feito porque a área era pequena ou por alguma razão técnica?

R – Razão técnica, para ganhar espaço pra fazer o pátio de estocagem. Esse pátio de estocagem é um dos maiores do mundo.

P/1 – O senhor sabe como eles conseguiram esse terreno para fazer essa parte?

R – Deve ter sido concessão do Estado, não sei.

P/1 – Voltando a sua infância...

P/2 – O senhor morava no centro, como era sua casa?

R – Era uma casa com uma varanda enorme que tinha um quintal com uma mangueira de mangas espada, outra mangueira de manga carlotinha. Como as coisas acontecem, eram três casas iguais, mas não germinadas. Uma casa muito antiga, muito bonita, tipo rococó. Existe até hoje, pertence à Família Fernandes Coelho. Muito bonita, eu achava muito bonita, tanto que antes dessas casas serem demolidas, eu fui numa casa dessas, pedi licença para entrar na casa. O que aconteceu é que eu achava o quintal enorme, “Mas esse é que é o quintal?” O casal me permitiu entrar na casa, eu vi meu quarto, coisa do lado sentimental.

P/2 – Como era por dentro dessa casa?

R – Era piso de madeira, peroba. Os móveis chamavam de cristaleiras, com os cristais, meio bisontado. Cama Patente, são as melhores camas do mundo, camas de mola. As camas de Itajubá onde eu estudei, a cama de estudante lá era cama Patente. _____

P/2 – E as brincadeiras de rua?

R – Tinha épocas de soltar pipa que era agosto, mês dos ventos. Tinha época do pião, futebol de rua, bola de meia. A gente fazia bola de meia. Em São João se soltava balão, o Ibama ainda não tinha essas proibições por causa de incêndio. Todo mundo fazia o seu balão. Fumar escondido.

P/1 – E a imigração, tinha muito imigrante aqui?

R – Imigrante para a cidade ou para o Estado?

P/1 – Não, só em Vitória.

R – Portugueses, árabes, libaneses e italianos. Alemães muito pouco. Tem uma grande colônia italiana, está toda no interior do Estado. Santa Teresa, zona fria, zona de montanha. O nosso lado montanhoso é muito bonito. Muito frio, é como Campos de Jordão de vocês.

P/1 – Essa grande montanha que se vê daqui, com aquele pico, como se chama?

R – Aqui você tem o Morro do Moreno que fica em Vila Velha. Aqui no aeroporto na pista 23, tem um morro a direita que é… Como é que é o nome? Não vou me lembrar...

P/1 – Como foi a sua vida escolar?

R – Curso primário no colégio Terezinha de Jesus, era uma sala enorme com aquelas carteiras longas, do lado de cá meninos, do lado de lá meninas, primeiro, segundo, terceiro e quarto ano tudo junto, bancos do lado.

P/1 – Era particular?

R – Particular, particular. E tinha colégios públicos, muito bons por sinal. A professora tomava a lição: turma do primeiro ano pra cá, lição de leitura... tabuada... todo mundo junto.

P/2 – Misturava as idades?

R – Todo mundo junto, não me lembro de haver alguma tecnologia separando... todo mundo junto. Primeiro ano, segundo ano, terceiro ano, quarto ano masculino. Idem feminino.

P/2 – E a disciplina?

R – Dona Ormi era a dona do colégio e Dona Enê era a irmã dela. Dona Ormi era profundamente católica e Dona Enê era espírita. Tinha uma tal de Dona Adalgisa que tinha um determinado dia da semana que ia dar aula de catecismo. Quando Dona Adalgisa ia dar aula de catecismo, Dona Enê se retirava, que ela não concordava com aquilo. A gente garoto achava aquilo engraçado.

P/1 – Um sinal de protesto?

P/2 – Depois do ensino primário?

R – Depois do primário fui para o ginásio São Vicente de Paula. Grandes professores: Aristóbolo Barbosa Leão, latinista. Nós estudamos latim, francês, inglês.

P/2 – O senhor lembra alguma coisa de latim?

R – Lembro de muita coisa.

P/2 – O senhor lembra de algum verso?

R – Ah tem a frase de Esopo… O Aristóbolo Barbosa Leão cujo apelido era _____

na frente dele não o chamávamos. Ele era um vulto mesmo, toda família, Família Leão Castelo. Aristóbolo Barbosa Leão, os filhos ________ Barbosa Leão, Heródoto Barbosa Leão. Era professor de latim, foi seminarista e nos obrigava a estudar latim, mas depois a gente aprendeu com ele, convivia bem com o latim.Tinha aquelas fábulas: O lobo e o Cordeiro, tinha do Esopo: [fala em latim]. A vantagem é dupla porque nos ensina a viver e nos ensina a rir com prudente conselho. Tinha o lobo e o cordeiro, o negócio das águas. “O cordeiro dizia: como posso tomar sua água se eu estou cá embaixo?”, está entendendo? [fala em latim]

P/2 – As máximas vocês aprendiam em latim?

R – Tinha seleta latina. Você fazia a tradução do latim para o português e fazia a versão pegava um trecho e passava para o latim. Ele era firme. O professor de francês também... nós estudamos francês, talvez não atingisse bem o que ele queria, mas tinha grandes poetas franceses Paul Verlaine, “O vaso quebrado”, “Le vase brisé”. Nós tivemos um ginásio muito forte, nos preparou. As pessoas não tinham muita condição econômica de se projetar em um outro curso, ao sair do ginásio, ou sair do científico… Naquele tempo era científico. Antes do científico, você saia do ginásio e fazia o pré médico, os preparatórios. Você saia pronto pra vida cá fora. Ele conhecia inglês, conhecia latim, conhecia francês, conhecia as bases das línguas, conhecia etimologia. Conhecia a razão de ser de certas palavras. E estava pronto. Bons cursos de matemática, de física. Tivemos aí o Dr. João Cristofo Beleza (?), da Vale do Rio Doce, professor de física, fui aluno dele. Tive bons professores: matemática, ótimos professores.

P/1 – Depois o senhor termina...

R – Eu terminei o ginásio, fiz o científico, o pré e em 1944 fui para Itajubá.

P/1 – Era boa a faculdade lá?

R – Itajubá é referência.

P/1 – Em 1944 já era?

R – Já era.

P/1 – Até hoje

R – Ela é referência em engenharia.

P/1 – Agora tem medicina.

R – Agora tem medicina, tudo que se pode imaginar de engenharia. Um campus moderno. Eu vou agora dia 12 para comemorar os 50 anos de formado. Nós vamos nos reunir, dos 57 sobraram uns 35.

P/2 – Vocês vão fazer um reencontro?

R – Há cada 5 anos.

P/1 – Que bárbaro! O senhor foi para lá fazer qual curso?

R – Fui fazer o curso de engenharia elétrica e mecânica.

P/1 – Aqui não tinha?

R – Não.

P/1 – E no Rio, o senhor preferiu lá?

R – Lá era referência já. O melhor curso de engenharia elétrica e mecânica da América do Sul era numa cidadezinha chamada Itajubá no sul de Minas. A cidade de Wenceslau Braz.

P/1 – Como o senhor encontrou o curso? Devia ser uma cidade minúscula.

R – Ah, uma cidade formidável.

P/1 - Era boa?

R - A cidade devia ter uns 18 mil habitantes, a 842 metros na Serra da Mantiqueira, inverno rigoroso, muito boa. Foram os melhores anos de minha vida.

P/1 – Bem uma vida universitária, só.

R – Morávamos em república.

P/2 – Conta um pouquinho como era a juventude, a república.

R – A república, começa que era um sistema mais ou menos anárquico, não tinha comando. Anarquista no bom sentido, não havia comando. Chegar aonde cheguei em Itajubá, eu cheguei na estação de trem. Eu levei três dias de Vitória a Itajubá. Tinha um trem da Leopoldina aqui, fui até a Barão de Mauá no Rio, lá eu saltei peguei um bonde em frente e fui para Dom Pedro II, Estação Dom Pedro. Lá peguei um trem e cheguei em Cruzeiro em São Paulo. Aí saltei. Então saí da Central da Leopoldina fui para a Central do Brasil, fui para a Rede Mineira de Viação, em Cruzeiro saltei, peguei esse trenzinho e fui para Itajubá.

P/1 – Só para eu entender, nessas alturas o senhor fez a volta ao mundo para chegar em Itajubá, não tinha a Vitória - Minas?

R – A Vitória Minas tinha. A Vitória Minas é Vitória - Itabira. Não tinha ramal para lá não. Itajubá está no sul de minas, Itabira está aqui. Não tinha conexão não. Mesmo se eu quiser ir de trem a Itajubá, não tem. Inclusive na época de Juscelino foram desativados 30 e tantos mil quilômetros de ferrovia.

P/1 – Em vez de aumentar, diminuiu.

R – Agora estão tentando recuperar...

P/1 – A gente pensa em rede?

R – Rede, exatamente.

P/1 – O senhor fez a volta ao mundo para chegar.

P/2 – E sozinho?

R – Sozinho. Tinha 16 anos, com a mala, enxoval. Mamãe mandou bordar.

P/1 – Não tinha colegas que foram?

R – Não, eu fui sozinho. Depois… Não vou me chamar de pioneiro, mas quando eu voltei nas férias… “Nossa você está estudando aonde?” “Eu estou estudando em Itajubá.” Quando garoto, no ginásio, eu tinha no porão de minha casa, eu tinha uma oficina, eu queria ser eletricista, eu gostava de consertar rádio. Foi o que me levou a engenharia elétrica.

P/2 – Antes já tinha...

R – Já tinha uma tendência para isso.

P/1 – Já tinha uma vocação.

P/2 – E sua família tinha alguma expectativa que o senhor seguisse alguma carreira?

R – Não, nós sempre fomos muito livres sobre isso. Tanto que meu pai tinha uma casa de comércio, nas nossas férias nós íamos para o armazém. Trabalhava nas férias. Quando eu me formei aqui, ele me chamou: “Você não quer ficar no comércio?” “Eu não sei, nunca tive tendência para isso.” Aqui tinha Escola Técnica de Comércio. “Você faz escola técnica e vem trabalhar comigo.” “Não papai, o senhor vai desculpar, eu não quero mexer com comércio, não tenho interesse. O senhor viu, na minha férias quando eu mexia com o armazém, eu era uma negação.” Eu queria fazer engenharia. Tinha aqui em Vitória, um senhor chamado Oswaldo Paiva Almeida, que veio a ser tio do meu genro, ele era engenheiro eletricista, mas era exportador de café. Meu pai soube e foi falar “Eu estou com um garoto que quer estudar uma tal de engenharia elétrica.” Ele falou: “Lá em Itajubá.” Ele fez uma carta para um professor que tinha tido lá, professor Vicente Sanches. Cheguei lá, entreguei a carta e eles me arranjaram uma república, república Ás de Copas, foi a primeira república que eu morei.

P/1 – O senhor entrou e pronto, não tinha exame, teste nada?

R – Para a república?

P/1 – Não, para a faculdade.

R – Eu fiquei antes me preparando para o vestibular de Itajubá.

P/2 – Era um curso específico para aquela faculdade?

R – Vestibular.

P/1 – Tinha muitos alunos?

R – Quando eu entrei para a escola tinha 160 e poucos alunos. Formava muito poucos alunos. Muito pouca gente fazia engenharia. A moda na minha época era carreira militar. Tinha que ser Agulhas Negras, Escola Naval e Aeronáutica. As meninas adoravam ver os moços de uniforme.

P/2 – Fazia sucesso com as meninas?

R – Sucesso absoluto.

P/1 – Mas já era medicina e advocacia também, né?

R – Aqui tinha advocacia, odontologia. Em Itajubá só tinha engenharia elétrica e mecânica.

P/1 – Não tinha medicina, nada?

R – Nada, nada. Tanto que no prédio antigo... Hoje tem um campus ultra moderno, equipamento de laboratório sofisticadíssimo, do mesmo nível de São José dos Campos. Grandes, tudo pós graduado, doutorado. A tal da _______ é uma indústria especializada em indústria de petróleo e equipamentos para a indústria de petróleo. Ela chamou 16 engenheirandos para selecionar para mandar para a Libéria, para a Indochina por causa do nível da escola de qualidade de Itajubá.

P/2 – E a vida na república? O que vocês faziam lá?

R – Eu morei na Ás de Copas, depois morei numa república capixaba, eram os capixabas que foram para lá depois de mim, criaram essa república capixaba. Eu tinha parado um ano. Eu fiz vestibular e passei, mas tive que trancar a matrícula para fazer o serviço militar. Eu quis fazer o serviço militar aqui, a guerra terminou em 1945. Quando eu voltei para Itajubá tinha criado uma república, As de Copas e a república capixaba. A república As de Copas não tinha mais vaga, então fui para a república capixaba, mas não me dei bem, o pessoal era muito quadrado e eu sempre fui meio indisciplinado. Então saímos e fundamos eu, o Olegário Noronha, mora em Vitória, é meu compadre, ele é de Brazópolis e José de Barros. Nós fundamos a república Senzala.

[pausa na gravação]

P/1 - Então estávamos em Itajubá.

R - Itajubá, isso. Então fui para a capixaba, mas não me dei bem nessa república, alugamos uma casa e fundamos a Senzala. Porquê Senzala? Porque nós arranjamos lá uma empregada… Lá as empregadas só trabalhavam para estudante. Estudante andava de cueca dentro de casa, na frente das empregadas, não tinha esse… E essa empregada que foi trabalhar conosco, ela levou quatro filhinhos dela, que eram escuros, então botamos o nome de Senzala, né? Existe até hoje a Senzala lá, ela foi fundada em 1947. Teve a Senzala, depois de… Tinha Ás de Copas, tinha a Copacabana, tinha uma infinidade de repúblicas. Hoje em dia, cê vai em Itajubá, está todo mundo morando em prédio, tá bem moderno, bem mais confortável. Mas a Senzala, a última moradia… A gente ficava devendo aluguel e tal e então se mudava. Nós fomos morar num cortiço. Aquelas casas iguais, na beira da rua, eu tenho até hoje a foto. Minha mãe foi me visitar lá com a minha mulher, que naquele tempo éramos namorados: “Não, mas é aqui que você mora?”, “É, é aqui.”. República é muito bom… E tinha sempre coisa de cozinhar, eu gostava de cozinhar… Tinha o Axel (Gleish?), ele era um catarinense de Brusque, fazia comidas alemãs… Foi muito bom.

P/2 - E a diversão?

R - Diversão? (risos) [toca o celular do entrevistado]

[interrupção da entrevista]

P/2 - Mas e aí, a diversão?

R - A diversão…

P/2 - Lazer dos jovens…

R - Tinha turma que jogava (truco ?), turma que jogava poker, poker de… Naquele tempo a moeda qual era? Era cruzeiro?

P/1 - Ninguém vai saber nunca (risos)

R - E se bebia muito, se bebia muito, no sábado e a gente ia para a zona, por necessidade biológica a gente ia lá…

P/2 - Cidade biológica?

R - Necessidade biológica.

P/2 - Ah, necessidade… Entendi (risos). Desculpe.

R - E, a turma jogava, muita serenata pela madrugada… Sábado e domingo era um, era uma farra só, né? E aquelas senhoras idosas da cidade, das cidades tradicionais, tinha a casa da avó, que ficava na praça… Aquelas que tem almofadinha na janela, para se debruçar, para ficar olhando. Você começava a namorar… “Vai casar ou não vai casar?”. Estudante geralmente no quinto ano, quando se forma ele se manda, não volta mais, mas alguns voltam. Eu não voltei, não namorei lá. E… que mais? A gente lia! Apesar da gente fazer ciências exatas, pelo menos em algumas repúblicas, a gente lia muito. Ó, eu li Somerset Maugham, é… Ah, eu li tudo… A presença de anita, do Mário Donato, nós lemos naquela época lá, o livro.

P/1 - Que era proibido esse livro, as mocinhas não liam.

R - Ah não, as mocinhas não.
P/2 - E seu pai que bancava sua estada lá?

R - Mandava uma mesada.

P/1 - A escola era paga?

R - Pagava uma taxa, porque lá era Fundação, Fundação Theodomiro Santiago. A Fundação Theodomiro Santiago era um advogado ali, que resolveu fazer uma escola de engenharia em Itajubá, porque tinha tido uma polêmica jornalística com aquele grande engenheiro do Rio, como é? Bom, tinha uma polêmica, um dizia que o engenheiro devia se teórico e o Theodomiro Santiago, que não era engenheiro, dizia que o engenheiro devia ser prático. Tem até uma frase dele: “Revelemo-nos mais por atos que por palavras, dignos de possuir este grande País”, está lá essa frase, no laboratório está escrita. Então ele fundou, mandou buscar na Suíça uma escola. Quando veio essa escola, veio com laboratório. O laboratório de hidráulica, não era miniatura não. Era em escala e funcionando. Existe até hoje, funciona até hoje. Mandou buscar esse laboratório, mandou montar esse laboratório e fundou em 1913 o Instituto Eletrotécnico e Mecânico de Itajubá. Depois se tornou Instituto Eletrotécnico de Itajubá, depois tornou-se Escola Federal de Engenharia de Itajubá que agora vai ser sancionado Universidade Tecnológica de Itajubá. Você tem tudo que você pode imaginar.

P/2 – Ele era da linha prática?

R – Da linha prática.

P/1 – O senhor acha que esse curso que o senhor fez, alavancou sua vida profissional?

R – Ah, sim. Eu tive um professor chamado Richard Brennan Lemann (?), lecionava

mecânica aplicada, eu fui monitor dele. No dia da formatura, teve baile, aquela coisa toda. O alemão me chamou e falava português com muito sotaque: “Pipa, vem cá, você pretende o que?” “Arranjar um emprego.” “Não pare no primeiro emprego, vai mudando até um dia você se identificar com aquilo que você gosta.” Eu devo isso ao Richard Brennan. Teve um professor de Mineralogia, ______________ era um suíço, teve um professor de corrente contínua, João Luiz, João Luiz ___, um cara baixinho, pequenininho e o professor de cálculo Antonio Rodrigues D’Oliveira, devia ser descendente de judeus portugueses, ele usava o “d” com apóstrofe, Antonio Rodrigues D’Oliveira, era uma figura. Roupa preta, colete preto, gravata preta, chapéu desabado. Passava na rua tinha medo dele, tinha apelido de Tonico. No primeiro ano, cálculo, cálculo infinitesimal. Se você conseguisse ser aprovado e passar para o segundo ano, vencia a disciplina do Tonico, você podia se considerar engenheiro, era dono. Era um grande mestre.

P/1 – O senhor seguiu os conselhos dele de ir mudando de emprego? Qual foi o seu primeiro emprego?

R – G.E.

P/1 – Conte sobre ele.

R – Chegou um engenheiro chamado Alberto Sinay Neves, da General Electrics, foi para Itajubá para convocar quem quisesse fazer um curso na fábrica da G.E. Então eu me inscrevi, eu e outros tantos, depois eu fiz esse curso na G.E., depois da G.E. eu saí e fui para a direção do porto de Vitória. Eu vim para Vitória. Eu saí da G.E., tinha terminado o curso, estou na esquina do Hotel Serrador no Rio, passa um colega meu, veterano já. Eu tinha sido o bicho dele. Os calouros eram chamados de bicho, e eu tinha sido o bicho deles, o Rebouças: “Oh Pipa, que você está fazendo aqui?” “Eu saí da G.E. ontem, estou pesando o que eu vou fazer.” “Vamos para Vitória que o Gilberto de Barros, que é o superintendente do porto está precisando de um engenheiro mecânico, você não quer ir não?” “Vamos.” Eu morava na casa de minha irmã no Rio, na Urca, ele estava com o carro, fui pegar minha mala e fui embora pra Vitória. Aqui fiquei na administração do porto, operação dos guindastes.

P/1 – Como era o porto nessa época?

R – Era o cais comercial do lado de cá de Vitória, mas já tínhamos quatro armazéns.

P/2 – Isso era em que ano Sr. Norton?

R – Eu sou da turma de 1951, 1952, 1953, 1954. Trabalhei no porto, do porto, a companhia Central Brasileira de Força Elétrica que era do grupo Electric Bond and Share, um grupo americano, tinha 18 propriedades em todo o Brasil, era muito deficiente em geração de energia, a cidade era pequena e eles não puderam acompanhar, então montou-se uma usina térmica quatro unidades de diesel, ali na Rua Sete, dentro da cidade, um inferno de barulho, para poder atender o déficit de energia, Central Brasileira. Da Central Brasileira eu fui para… Eu saí da Central, tinha terminado minha parte, estava descendo a Rua Sete de Setembro, em Vitória, do outro lado da calçada estava um cidadão formado em Itajubá, Manuel Dias Pinto. “Ei Pipa, como vai?” “Estou indo para o Rio.” “Fazer o que?” “Vou caçar a vida.” “Dr. Everton Guimarães, que era o chefe da divisão de Mecânica na Vale do Rio Doce, está precisando de um engenheiro mecânico, mas é na roça, em João Neiva. Você não quer ir lá não?” Ele ligou para o Dr. Everton: “Tenho um colega de Itajubá, o Pipa...” Ele: “Manda ele aqui.” Fui lá, o Dr. Everton me preencheu um passe, eu peguei um trem e fui para João Neiva, no interior, há setenta e poucos quilômetros de Vitória. Muito incipiente, saltei num lugarejo chamado Arican (?), veio um auto de linha me apanhar, cheguei em João Neiva, era uma oficina de locomotiva à vapor. Aí eu me apaixonei. Eram 300 e poucos operários.

P/1 – Já era Vitória - Minas?

R – Estrada de ferro Vitória - Minas, da Vale do Rio Doce. Ela tinha o Departamento da Minas em Itabira e o Departamento de Estrada de Ferro aqui em Vitória. Fiquei em João Neiva.

P/1 – Qual era o seu trabalho lá?

R – Eu era chefe da oficina de locomotivas, manutenção e reparos de locomotivas à vapor. É onde eu vou adaptar aquela locomotiva para queimar óleo que está na fotografia. A locomotiva era à lenha, carvão e lenha.

P/1 – O senhor que fez a adaptação?

R – Fiz a adaptação.

P/1 – Essa adaptação resultou?

R – Essa adaptação pelo seguinte: as locomotivas diesel-elétricas estavam chegando, chegou uma partida das quatro primeiras.

P/2 – De onde que vinham?

R – Dos EUA, da General Motors, a melhor locomotiva que tem em manuseio e desempenho. Como precisava puxar o trem de passageiro, para não usar uma locomotiva a diesel para puxar o trem de passageiro, para não usar uma locomotiva a diesel puxando o trem de passageiro,

no Rio Grande do Sul tinha uma locomotiva queimando óleo, óleo pesado, esse óleo bruto. “Qual a possibilidade de fazer queimar…?” “A possibilidade é bem possível”. Então nós adaptamos a locomotiva 174 que era uma Mikato, para queimar óleo. Quando ficou pronta, na Sorocabana, em São Paulo, tinha explodido duas locomotivas, o acidente podia acontecer com qualquer uma. Tinha vindo para superintendente nosso um engenheiro excelente, o Dr. Mendonça, ele ficou aqui só dois anos, então ele foi visitar nossa oficina lá. “Então, você que é o engenheiro aqui da… Eu vou lhe dar uma ordem: suspende

a …”, nós já estávamos fazendo experiência com ela, um sucesso. Nós já tínhamos adaptados 25 locomotivas para queimar óleo. “Suspende as demais, vamos ficar só com essa porque tem sempre um risco muito grande de explosão.” De fato, tinha que adaptar todo o pessoal para novo desempenho. Aí parou-se, pegou a 174 que era óleo e voltou para queimar lenha e carvão.

P/1 – E porque não podia transportar passageiro na locomotiva à diesel?

R – Por causa do custo, você investir uma locomotiva sofisticada para puxar um trem de 400 toneladas. Então pegava uma locomotiva à vapor porque essas locomotivas Mikado, nós tínhamos 25 locomotivas Mikado e 4 locomotivas francesas, tinha 25 Mikado, duas

___ e duas Berkshire, fabricadas na França, projeto para ___ (Chapelon ?), que era a maior autoridade em locomotiva à vapor da Europa. Foi se encostando. A proporção que foi “deezerizando” a estrada, hoje em dia não. Hoje tem 200 e tantas locomotivas diesel-elétricas de alto desempenho.

P/2 – A diesel-elétrica ficou só para minério?

R – Naquela época ficou só para minério. Aí passou a fazer trens gigantes, trem de 60 vagões, mudou-se os vagões, vagão que era MG, passou a ser MI, 70 toneladas. O trem foi crescendo, hoje em dia faz tração dupla, três locomotivas puxando quase 220 vagões.

P/2 – Quantos vagões puxava a locomotiva à vapor e à diesel naquela época?

R – A vapor eram 18 vagões, eram vagões pequenos.

P/2 – E a diesel?

R – A diesel já puxava trem grande de 60 toneladas, 60 vagões, já estava usando a MI. A MG era para vagão menor de 50 toneladas e tinha a MI que era para 70 toneladas, que era uma locomotiva mais sofisticada. O mancal era plano depois passou a usar rolamento. O trilho passou a ser o 57, um trilho mais pesado, um trilho maior. Hoje todo o laço de linha, hoje é todo mecanizado.

P/1 – Hoje?

R – Hoje que eu digo é de 20 anos pra cá, tudo automatizado. Aquela brita que você vê na estrada é toda separada por máquina, ele é vibrado. Antigamente era chamado turma da soca, um trabalho bem violento.

P/2 – Sr. Norton, o senhor pode contar só um pouquinho da época que o senhor estava no porto de Vitória? Eu queria saber se o porto de Vitória tinha alguma relação com a Vale.

R – Nenhuma. Eu fui engenheiro do porto, saí do porto fui para a VRD. Na VRD essa fase que vai até 1957 eu tive uma discordância com um chefe, tanto que eu ia botar no meu currículo: exoneração espontânea. Eu pedi as contas. Em 1957 eu pedi as contas e fui trabalhar na Esso Brasileira de Petróleo, na época era Esso Stanley do Brasil.

P/1 – O senhor pode falar o que foi que o senhor não concordou para pedir as contas?

R – Não. Nessa ocasião minha mãe falece com câncer, eu vinha toda sexta-feira de João Neiva para passar o fim de semana com ela. Aí estavam chegando as locomotivas diesel, chegando mais locomotivas. Eu cheguei para um determinado chefe e disse: “Está na hora de eu descer para Vitória, trabalhar aqui nas diesel porque nós estamos desativando as locomotivas a vapor lá em cima, e não tem mais o que fazer aqui em cima. Vocês estão pensando em transformar aquela oficina.” “Você não pode, só se você arranjar quem o substitua.” Consegui um colega que estava em Barra Mansa, ele veio, se apresentou, foi entrevistado. Ao fim da entrevista ele saiu da sala, esse chefe me chamou: “Pippa, eu não gostei da entrevista dele não.” “Como não gostou?” “Não gostei.” Eu falei “Olha, primeiro você é engenheiro civil, ele é engenheiro mecânico-eletricista, segundo você não tem experiência nenhuma em mecânica e eletricidade, da mesma forma que nós não temos experiência nenhuma em engenharia civil, como você em 20 minutos você entrevista um cidadão que vem trabalhando numa siderúrgica lá em Barra Mansa e diz que o cara não serve?” Saí, cheguei em casa preparei uma carta de demissão e entreguei para meu chefe imediato. “Que é isso Pipa?” “Vou embora.” “Você vai levar a carta no superior.” Ele olhou, olhou e rasgou a carta. “Você está brincando, você está rasgando uma carta assinada por mim.” Desci, fiz uma outra carta com o mesmo teor. Agora fui entregar a carta ao senhor. Fui no Departamento Pessoal no dia seguinte, “Me libera em 24 horas” e fui embora.

P/1 – Quem era o seu chefe a quem o senhor entregou?

R – Dr. Everton Guimarães Pereira da Silva, um grande engenheiro civil, muito bom, muito competente.

P/2 – Só uma dúvida, entre o porto de Vitória e João Neiva teve uma passagem pela Companhia Central Brasileira de Eletricidade, como foi essa passagem?

R – Eu estava na área de eletricidade e mecânica também. Lá eu tive um chefe espetacular, Dr. Vicente Burian (?), era um engenheiro tcheco, mas identificado com o Brasil. Casado com brasileira, filhos brasileiros. Adorava o Brasil. Aprendi muito com ele. Todos esses lugares que passei, aprendi muito, bastante.

P/2 – E a montagem da usina térmica?

R – Eram quatro unidades diesel que chegaram dos EUA na rua Sete de Setembro. Na rua Sete de Setembro montou-se quatro máquinas violentamente ruidosas. Havia reclamação da comunidade, mas não podia fazer nada.

P/2 – Aí o senhor se encaminha para João Neiva para trabalhar na estrada de ferro, na sequência...

P/1 – O senhor foi para a navegação?

R – VRD, da Central Brasileira eu fui para João Neiva.

P/1 – Em 1961 foi Cignisa?

R – Cignisa - Companhia Internacional de Ignição. Era uma fábrica de velas de motores, velas de ignição, de tecnologia inglesa. Montou-se uma fábrica em Olaria, no Rio de Janeiro, eu fui montar essa fábrica. Fiquei lá um ano, dois anos. Depois saí e fui para onde? Fui para a Costeira!

P/1 – Aí em 1958-1960, fica lá.

R – Companhia Nacional de Navegação Costeira, onde adorei.

P/2 – Como foi essa passagem na companhia?

R – Ah, foi ótimo. Começa que eu saí de locomotiva e fui para navio, fui morar na Ilha do Viana, já casado. Estaleiro do Henrique Lage. Fiquei conhecendo o pessoal, ele já era morto, uma personalidade brasileira chamada Henrique Lage. Não tem o Parque Lage no Rio? Ele era o dono do Parque Lage. Ele criou um estaleiro completo, indústria vertical. Tudo era feito lá na Ilha, até o sabão. Construiu um navio… Já devem ter ouvido falar nos Itas que o…

P/1 - O Jorge Amado, não… O Caymmi.

R - ...o Caymmi cantava “peguei um Ita no norte…”, é de onde vem isso. Os Itas eram da costeira, os Zaras eram do Lloyd Brasileiro na Ilha de Mocanguê e fiquei na ilha, adorei aquilo. A Daisy sempre me acompanhou, foi uma criatura muito singular na minha vida, minha mulher. Por se tratar de uma ilha, quando os navios chegavam para uma obra, eles atracavam e tinham que fazer a limpeza no navio, desratizar o navio. Ratazana, eles incineravam aquilo. Um dia cheguei e encontrei Daisy: “Norton, tinha uma ratazana querendo pular no berço da Ana Amélia… quer dizer, da Carmem Lúcia .” “Tem razão, vamos embora. Já estava preparado para sair, voltei para o Rio, eu fiquei na Ilha. Vinha todo dia, atravessava a Baía. Aí mais uma vez aquele negócio de esquina: vou passando numa esquina e: “Pipa, você não quer voltar pra Vale, aquele caso já está resolvido, você não vai ter contato com ele mais não. Só que você vai ter que ir para Itabira, Departamento das Minas.” “Itabira?” Vou em casa, para a alegria de Daisy, vamos embora. Sabe o que é tirar a mudança de uma ilha? Botar numa barcaça, atravessar para a Praça XV, botar num caminhão, saí para Vitória com um piano. Ela era professora de canto orfeônico e piano. Ela foi aluna do Villa Lobos. Bota aquele trambolho todo e fomos para Itabira. Naquele tempo era telex. “Engenheiro Pippa, seguir para Vitória.” “Daisy, não vamos mais para Itabira, vamos para Vitória.” Pego minha mulher e minhas filhas, boto num ônibus para Vitória e eu vim no caminhão junto com a mudança. E voltei para Vitória em 1961.

P/2 – O senhor veio atuar em que área da Vale?

R – Na área de mecânica e eletricidade.

P/2 – Da estrada de ferro?

R – Da estrada de ferro.

P/2 – E tinha mudado muita coisa desde que o senhor tinha saído?

R – Tinha equipamentos mais modernos. Eu fiquei com a locomotiva a diesel... Eu fiquei como chefe do Divisão de mecânica. Tínhamos Divisão de Transportes, de Mecânica, Divisão do tráfego. Eu fiquei na divisão de Mecânica. Quando eu fui para João Neiva era AJL – Ajudante de Chefia de Divisão. Quando eu voltei passei a ser CHM – Chefe de Divisão. Aí eu fui destacado para a obra do porto do Tubarão. Isso aqui era um acampamento, nós chegamos aqui de jeep, para construir, para participar da obra.

P/1 – O senhor participou dessa obra do porto de Tubarão?

P/2 – Quais tecnologias foram usadas?

R – O que havia de mais moderno em fundações de concreto, em correias transportadoras, o virador de vagões, um tal de car dumper, que vira os vagões, parece que tem quatro ou cinco. O trem chega, não desengata o trem, os vagões são tombados, vai por um túnel até o navio. Classificação dos tipos de minério.

P/1 – Mas quem vai pelo túnel é só o minério?

R – Só o minério, as correias saem na boca do navio.

P/1 – Aí despeja dentro?

R – Aí os navios começaram a crescer, fez-se o Píer I – José Martins que era o homem do Píer I depois fez-se o Píer II, aqui tinha uma área que era o pátio de carvão e lá no fundo do pátio de carvão tinha uma residência chamada Casa de Hóspedes, era um negócio lindo. Os interesses econômicos, valia mais o carvão, demoliram a casa.

P/1 – Mas era de quem essa casa?

R – Era da Companhia, a Casa de Hóspedes, mas precisou estender a área, não fez falta, a Companhia hoje hospedam seus hóspedes nos hotéis.

P/1 – O senhor lembra quando foi demolida essa casa?

R – Tubarão foi inaugurado em 1966, deve ter sido demolida na década de 1960.

P/2 – O que o porto significou para a Vale? Qual foi o significado do Porto de Tubarão para a Vale do Rio Doce?

R – A maior potência exportadora de minério do mundo, com tecnologia de alto nível, tecnologia de ponta, em classificação de minério, tipo de minério. Isso você deve ouvir de quem trabalhou no Departamento das Minas de Itabira. Existia o Pico do Cauê que foi cortado.

P/1 – Hoje é o buraco do Cauê.

P/2 – Como que era essa relação ferrovia-porto?

R – A melhor possível. Ferrovia-porto-mina. Tinha mina, ferrovia e porto.

P/2 – Ia e voltava?

R – Ia e voltava.

P/2 – Eu ia perguntar se foram contratada muitas empresas?

R – Muitas. Aqui teve muitas empresas de alto nível na parte de construção civil, na parte de aterros hidráulicos, construção de Piers. A __________ canadense com correias transportadoras, a General Eletric, a Pohlig Heckel, tudo tecnologia alemã. Hoje em dia nós dominamos tudo isso, mas na ocasião importou-se tudo isso.

P/2 – Teve um aumento muito grande da produção de minério? Como a Companhia fez para atender essa demanda?

R – Teve que se adaptar, teve que se equipar para atender o mercado internacional de minério. O mercado japonês, o principal; o mercado da Espanha. Todo mundo compra minério da VRD, inclusive os EUA. A França compra nosso minério, a Suécia compra nosso minério, eles tem minério lá. Mas só que o minério da VRD é de alto teor de ferro, hoje deve estar em 60% de teor de minério. O minério lá de fora é em torno de 40%. Foi esse baixo teor de ferro dos minérios lá na Europa que levou o professor Lurgue a desenvolver o sistema de pelotização. O minério fino que era gerado ao britar, formava montanhas. Então ele desenvolveu essa tecnologia em que pega esse fino, mistura com bentonita, umidifica, enrola e faz aquelas bolotinhas, vai para o forno, já vai pré reduzida, já vende a pelota.

P/1 – Ou seja, já vai com peso reduzido?

R – Com peso reduzido e com o teor de ferro. Aquele minério que era jogado fora, o scrap era jogado fora, era empilhado, passou a ser um produto nobre, além de… No meu tempo nós tínhamos o _________________. Tínhamos quatro ou cinco tipos de minério em pedras e o fino que era gerado. Ao quebrar os blocos de minério, gera o fino. Esse fino era o rejeito. Tinha o pátio de rejeito. Hoje em dia até em Carajás tem uma Usina de Pelotização.

P/1 – Quer dizer que com esse rejeito que é feita a pelotização e vendido.

R – Vendido e vendido muito caro, não é barato. É um grande mercado o mercado de pelotas.

P/2 – Antes o lugar onde ficava o rejeito era o Pátio de Rejeito?

R – O Pátio de Rejeito, ocupando um espaço nobre. Eram montanhas.

P/1 – O que foi feito com as montanhas?

R – A montanha que era de minério fino foi transformado em pelotas.

P/1 – Ficou aí juntando até o dia que...

R – Até que resolveram usar o minério fino, então a montanha acabou.

P/1 – Aqui?

R – Não, lá em Minas, em Itabira. Não era aqui não. Depois até o minério fino começou a ter mercado. Aqui no pátio tínhamos quatro ou cinco tipos de minério e tinha o minério fino e além do minério fino tinha a pelota. Hoje em dia, se eu estou bem informado, temos a pelota, temos o minério fino, o lamp, o _________, ___________,o

___________ deve ter uns seis ou sete. Essas misturas de minério que faz o blending

que mistura um com o outro, gera um outro tipo de minério que mexe com o preço, no valor.

P/1 – Vai variando o valor de cada um?

R – É.

P/2 – Sr. Norton, essa grande exportação de minério demandou uma modificação nos navios também?

R – Exatamente. Os primeiro navios grandes que nós atendemos aqui eram dois navios alemães: Ana Elisa e o Wing. Eram considerados navios gigantes de 55 mil. Mas o mundo inteiro foi aumentando. Aí surgiram os petroleiros, aí surgiu um tipo de navio OBO - Ore-bulk-oil: minério, granel e óleo. São os grandes petroleiros, gigantes. De 55 mil passaram para 110 mil toneladas. Hoje em dia tem navio de 300 mil toneladas. Aqui já se atendeu navio de 270 mil toneladas. Um navio desse tem o comprimento de dois campos de futebol, largura de 60 e tantos metros.

P/1 – Esses navios são de que nacionalidade?

R – Japoneses, italianos.

P/1 – É um tipo que os países têm?

R – A tecnologia adaptando os navios.

P/1 – Como o senhor viu antes e depois da privatização?

R – Como eu sou despojado, eu não me preocupei muito com isso não. Eu, politicamente sou uma negação.

P/2 – Eu queria voltar para ficar na história do navio, a história da Docenave?

R – Bom, aí fundam a Docenave, Comandante João Marcos Dias. Como eu tinha trabalhado num estaleiro, sempre tive muito contato com a linguagem de marinharia, o João Marcos Dias falou: “Pipa, o senhor não quer dar uma mãozinha?” Então ele pede a VRD, a VRD me cede por algum tempo para a Docenave. Foi criada a Docenave.

P/2 – O senhor lembra da época da criação da Docenave?

R – Em 1971 já era a Docenave, eu fui para a Europa ver uns rebocadores, uns navios. Em 65 deve ter fundado a Docenave. Porque eu fui para Nova Orleans para receber esses rebocadores para Itabira, que tinha sido construído lá. Foi o primeiro rebocador que a Docenave recebeu em Itabira, em 1963 eu tive em Nova Orleans. Veio pra cá em 1964, ficou pronto em 1963, foi o ano que morreu Kennedy. Eu estava em Nova Orleans, fiquei conhecendo Nova Orleans, por sinal eu nunca fui a Miami, nunca fui a Cancun. Se um dia tiver que voltar a América, vou voltar à Nova Orleans, foi em 1963 e já havia a Docenave. Deve ter sido criada em 61 – 62.

P/2 – O senhor vai fazer o que na Docenave?

R – Vou trabalhar na parte de navegação, especificação de rebocador, organização do fluxo de marinharia. Sempre gostei muito disso. Em 1971 fui para a Europa, Marcos me mandou para lá pra ver uns tipos de propulsão dos rebocadores novos que estavam sendo lançados. Eu fui com... ele pediu pra que eu levasse um prático. Os práticos são os pilotos que operam esses navios gigantes. Foi comigo o Aloísio Pereira dos Santos que morreu agora, tem uns seis anos. Foi o melhor prático que teve aqui. Até os colegas consideram o Aloísio. Eu e Aloísio fomos para a Europa. E lá estivemos na Noruega, Suécia, Dinamarca, Inglaterra, Portugal, só não estive na Espanha, na França. Depois da Inglaterra fomos para a Irlanda, sul da Irlanda ____________. O que me marcou muito no sul da Irlanda é linda. Me marcou muito quando eu estava visitando um terminal em _________, fomos primeiro para o País de Gales depois fomos para a Irlanda. O engenheiro que nos acompanhou, nos estava apresentando o projeto dele lá, nos levou a um terminal gigante que tinha lá. Eu olhei e falei “Engraçado, eu tenho a impressão de que eu estou tendo um deja vù”, aí ele começou a rir. “Você assistiu a Filha de Ryan?” “Assisti.” “Pois é, aqui foi a locação”. ____________ , irlandês não fala nem inglês, fala o gaélico, né? Se eu fosse voltar eu voltaria para conhecer...

P/2 – O senhor viajou com sua esposa?

R – Não.

P/1 – O que resultou essa viagem de trabalho? O senhor foi fazer uma viagem de…

R - E, a Vale do Rio Doce e a Docenave adquiriram nova propulsão, equipamento para propelir o rebocador, e o relatório que eu trouxe de lá, do que eu vi por lá, eu não sei até onde eles aproveitaram isso.

P/1 - Logo em seguida o senhor saiu?

R - Logo em seguida eu me aposento, não é?

P/1 - Então, se aposenta.

R - Ainda vinha para aqui, para Tubarão, para trabalhar nessa oficina de locomotiva. Nessa ocasião, passei a ser assessor da superintendência. O superintendente que era o Marreco, João Carlos Marreco, vocês devem ter entrevistado, eu tinha sido subordinado dele, e ele foi ser superintendente, foi isso. Ele me chamou “Você se incomoda de ser meu assessor?” “Não, eu não quero ficar sem fazer nada.” “Então você escolhe o que você quer fazer.” “Me bota como seu assessor junto à oficina de locomotiva.” Vim ficar nessa oficina de Tubarão, essa grande oficina, tem 200 e tantas locomotivas. Passei os últimos dois anos ótimos. Conheci profissionais de alto nível, dei cursos para eles de motores de combustão interna. O curso que eu dava na Escola de Engenharia, eu preparei esse curso para um nível mais baixo.

P/2 – O senhor voltou para suas locomotivas, então?

R – Voltei, só que eram diesel, não eram mais à vapor.

P/2 – O senhor acompanhou a duplicação e sinalização da ferrovia?

R – Eu pessoalmente não, eu acompanhei a turma que participou. Que aí para esse negócio da sinalização, teve que vir um tipo de engenheiro mais sofisticado, turma de comunicação, turma de sinalização, turma de eletrônica. Foram buscá-los em São José dos Campos. Turma do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). E freio, quando mudou daquele trem pequeno para aquele trem gigante, teve que mexer numa coisa que se chama tecnologia do freio. Essa tecnologia do freio foi implantada aqui, mandou-se buscar em São Paulo, cinco técnicos da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, de alto nível. A implantação desse freio novo foi feito com esse pessoal.

P/1 – Foi depois da privatização?

R – Não, muito antes. A privatização é outro assunto, quebra quebra...

P/1 – Como que é?

R – Privatização é um assunto discutível.

P/1 – Eu estou falando como marco. Foi antes das privatizações. Estou falando como marco e não como explicações de causa e efeito. Mas sim de um marco histórico.

R – Foi antes da privatização. Veio a turma de São Paulo, o apelido deles era de Os Paulistas, o pessoal do freio eram Os Paulistas. Durante a construção do porto de Tubarão, várias firmas vieram trabalhar aqui. Teve a _______, teve a Sadi (?) uma companhia de origem italiana, mas com escritórios em São Paulo. Trouxe uma equipe de técnicos, depois eles ficaram na Vale, eu sou obrigado a citá-los: Antonio Aranda, Constantino della Varga, Paulino, gente de alto nível. Não eram engenheiros não. Eram técnicos, de escola européia. Trabalhou comigo um técnico chamado Gastone Brezolla, só não era engenheiro porque não deram diploma a ele lá na Europa. Ele era italiano. Aprendi um bocado com ele.

P/2 – O que o senhor aprendeu em termos de inovação, que o senhor não tinha conhecimento?

R –

Tecnologia. Comandar uma oficina, que tinham vários setores: setor de fundição, setor de mecânica fina, setor de motores elétricos, fundição de ligas. O Gastone veio da Europa depois da Segunda Guerra Mundial, ele participou da guerra. Lá eles tem um curso chamado Perito Industrial, que é de alto nível. É igual as Escolas Técnicas daqui, pelo menos as Escolas Técnicas daqui graduavam. O Senai, tem o Senai para os meninos e o Senai de alto nível, prepara técnicos excelentes. O que aconteceu no Rio, hoje em dia há exemplos em outras profissões como a medicina, advocacia. Gradua-se muita gente, mas alguns são engenheiros do “why?”, como dizem os americanos, os engenheiros do “porque?”. A indústria precisa do “how?” do como, da engenharia do como fazer. Isso para o operário, o operário precisa ficar do lado de um engenheiro que saiba fazer. Se eu vou dar uma ordem, eu tenho que saber fazer pelo menos 50% do que eu estou mandando. Com isso você consegue dominar a turma muito bem. Esse cara aí, não era brincadeira não, era um bom profissional. A gente tem que aprender com eles. Você chega num estaleiro, sacar um eixo de navio, o eixo do navio é um monstro. “Como vai ser?” “O senhor passa lá três dias para ver como se tira um eixo do navio.” Ele fazia aquilo com uma facilidade, mas quantos anos de experiência, a gente aprende com eles, muito bom.

P/2 – Sr. Norton, o senhor sabe se a ferrovia foi adaptada para o transporte de novos produtos?

R – Adaptadas para cereais.

P/2 – Como foi essa adaptação?

R – Eu acho que foi rápida. Primeiro teve que se mudar o tipo de vagão. O vagão era completamente diferente. Criou-se o cais de Capuaba que era o cais de cereais, terminal de cereais. Vagões para transportar cereais e descarregar cereais. Vocês não tiveram entrevistas com esse pessoal de transporte de mercadorias?

P/2 – É possível que tenha sido feita com o pessoal da outra equipe.

R – Você tinha minério de ferro, você tinha carvão, carvão no sentido de importação. Exportação era minério. Se aproveitava o trem de volta levando carvão para Usiminas e para Monlevade, se bem que Monlevade usava muito carvão vegetal. Tinha a carga geral, aquilo que você despacha num engradado, depois cargas especiais: petróleo, enxofre, cargas agressivas – tem vagões especiais para isso. Eu não conheço a tecnologia desses vagões. O vagão é um negócio muito sério. A tecnologia do vagão, tivemos aqui, deve estar aposentado o ______________, ele é polonês, mas naturalizado brasileiro. Altamente competente em vagão, principalmente em roda de vagão.

P/2 – Ele foi trazido só para trabalhar nesse sistema?

R – Não, ele veio garoto para cá. Ao que me consta o velho __________ era uma criatura encantadora, ele era construtor, construía igrejas. Parece que a igreja no interior do estado, de Porto, Porto Alegre, não… antes de alegre… foi construída por ele. Esse ________ o engenheiro civil, formado na escola daqui, ele era expert, além da tecnologia grossa de vagão, sabe o que ele é? É autoridade mundial em Orquídeas.

P/1 - Que coisa mais… Nada a ver né?

R - Nada a ver... Ele era uma dama.

P/2

– Ele trabalhava pra Vale?

R – Ele era engenheiro da Vale, era empregado da Vale, igual a mim. Ele era da oficina de vagões. Outro engenheiro que tivemos aí, está aposentado, teve um problema, ficou hemiplégico no braço direito, Mansus Perdigão de Cavalcanti. Ouviram falar nesse nome?

P/2 – Ainda não. Ele fazia o que, esse engenheiro, que área?

R – Engenheiro civil, um QI altíssimo, uma grande formação matemática, jogava em todas as posições, muito bom.

P/2 – Como era a relação entre vocês?

R – Ótima, entre nós engenheiros, ótima. Nunca me constou que houvesse ciumeira. Por exemplo, no sábado, ninguém trabalha no sábado. Nós vínhamos trabalhar no sábado, meio dia a gente saia da oficina e ia se encontrar num bar. Teve um colega nosso, o Hélio Ferraz, que dá nome a esse prédio, ele foi chefe do departamento de Transporte. Ele reunia a turma, ele aglutinava a turma em torno dele.

P/2 – Fala um pouquinho do Seu Hélio Ferraz.

R – Hélio foi amigo meu, particular, engenheiro civil formado na Bahia, ele veio para cá com um outro grande engenheiro, José Carvalho Fernandes de Oliveira, hoje mora em Guarapari, é o bom humor em pessoa, inteligente. O Hélio baiano, brincalhão, morreu em um acidente. O Zé Carvalho, para você ter uma idéia do humor dele, tem um edifício aqui, um edifício ali. Eu tenho um apartamentozinho nesse edifício. O Zé Carvalho mora neste edifício, mas essa parede aqui é lisa. “Oh Zé, não tenho visto você aí, você mora aí?” “Eu não sou lagartixa para estar subindo em parede lisa.” Ele tem um humor fora de série. Ele conta as história do tempo de garoto lá no Rio Grande do Norte, que ele é potiguá, a gente morria de rir. Fora isso, um grande engenheiro.

P/2 – Essa turminha, então!

P/1- O senhor estava contado que no sábado vocês vinham trabalhar e depois se reuniam. Aí o senhor ia contar um negócio do Hélio Ferraz.

R – No sábado ele chefiava essa turma, ele aglutinava essa turma em torno dele.

P/1 – Ia todo mundo beber?

R – Uns iam beber, outros para um churrasco. Nunca vi uma cidade que se come mais churrasco que em Vitória. Se como mais churrasco aqui do que em Porto Alegre. Qualquer coisa churrasco, aniversário de criança, churrasco. Aquele churrasco que corta em pedacinhos, impressionante. Mas o Hélio morreu num acidente, foi atropelado. O Mançus eu acho que merecia uma entrevista de vocês, mas tinha que ser na casa dele. Ele vive num quarto mexe com computador, eletrônica, engenheiro civil.

P/1 – O senhor tem mais histórias assim, pitorescas, da sua vida aqui na Vale? Lembra de alguma para contar.

R – Tem muitas. Tem histórias que não pode contar aqui. Esse compadre meu Olegário Noronha, engenheiro, mora aqui em Vitória. Ele tem um vozeirão. Nós moramos numa república, no mesmo quarto durante cinco anos. A gente mudava, era eu e Olegário. O Edson Gomes Ribeiro noutro, o Wladimir _______ era tcheco tinha quase dois metros de altura. Ria, tinha um bom humor. Morreu de câncer. Esse era o ______, o apelido dele era meninão. O Axel Gleich, que era o catarinense, era muito cabeludo, tinha um colete de pelos pretos, apesar de alemão, era preto igual lusíadas. Um dia chegou o Zé de Barros, e o apelido do Axel era Picolé, aí o Zé falou “Picolé, vou resolver seu caso aí.” “Como?” ele foi na farmácia e comprou um produto chamado Racè (?), jogou e começou a sair fumaça, e o Picolé a gritar. Outro era o Zé Maria Gomes, que é já falecido morava na Castelo Sinistro. A empregada estava lá. O Zé Maria estava aprendendo a voar de teco-teco lá em Itajubá. Ele usava um casquete de couro, parecia um piloto. O Zé Maria chega, pegou uma carga disso que se chama Chato, uma espécie de piolho. “Eu estou cheio de chato.” “Tira a roupa.” Ele tirou a roupa, eu peguei uma bomba de Neocid, e comecei. Neocid mata. Em vez de usar o neocid pó. Estava o Zé Maria de costas e eu bombeando, aquilo começou a arder, ele sai correndo, vai para o banheiro, a empregada estava lavando o chão, o banheiro estava cheio d’ água com soda cáustica. O Zé Maria pula para refrescar. Vai para a farmácia todo soltando pele. (risos)

P/2– Nossa! Isso na república? (risos)

R - Sim, isso tudo lá na república.

P/1 – Tem algumas lendas dentro da Vale? Alguma coisa interessante, que faz parte da cultura da Vale? Coisas leves, assim?

R – Teve um engenheiro, o Dr. Quintino, aquele era uma enciclopédia dos lados engraçados da Vale. Ele era poeta inclusive. Vou contar… É o meu negócio era mais do pessoal de trem, histórias de maquinistas. Toda maquinista tinha uma mulher em cada depósito. Eu aprendi a puxar trem a vapor com Alfredo Gomes Falcão, ele dirigia locomotiva a vapor e me ensinou a puxar locomotiva a vapor. Foi bom. No mais...

P/1 – Na estrada de ferro em si, aconteciam coisas...

R – O que acontecia ao longo da linha ficava mais, no pessoal do movimento. O pessoal da estação, convivia com os agentes de estação. Eu era mais na parte de oficina...

P/2 – E Carajás, o senhor participou, conta um pouco pra gente.

R – Quando foi criado o Projeto Carajás a gente pegava o avião, ia para Belém, estava no escritório... De Carajás eu fui para Amazonian S.A. O Paulo ________ que me levou para lá, para trabalhar com a gente. Eu fiquei no grupo de logística, de vez em quando tinha que ir lá para a Serra. Mas na Serra não tinha nada. De Marabá pegava o helicóptero ou avião e ia lá para a Serra, na Serra tinha um acampamento. Depois que eu terminei minha parte, que era a parte de logística, nunca mais voltei lá. Dizem que tem uma cidade lá em cima.

P/1 – Como foi sua parte de logística? Como que é isso na prática?

R – Na prática é suporte para uma obra, um pátio de uma obra que não tem nada, os jeeps que foram lá para cima foram de avião, eram uns aviões DC3 adaptados para levar material, víveres. Os candangos ficavam lá em cima, morando em barraca. Hoje em dia é que tem conforto e…

P/2 – Não tinha nada lá?

R – Não tinha nada lá.

P/2 – Vocês dormiam onde, como que era?

R – Em barracas. Depois fizeram casas de moradia de madeira.

P/1 – E aconteceu alguma coisa assim nesse período que ficavam em barraca?

R – Eu não cheguei a ficar em barraca. Quando eu fui para Carajás já tinha uma construção de madeira muito confortável, com tela e tudo. Eu fiquei lá três noites.

P/2 – E tinha bichos essas coisas?

R – Tinha. Nunca aconteceu. Tanto que as cidadezinhas que tem por lá são cercadas. A fauna e a flora são protegidas. Dizem, eu não fui, que a onça vem, rodeia o acampamento, o local.

P/1 – A cidade é cercada?

R – É cercada, mas dizem que tem todo o conforto, assistência médica, alimentação, instrução.

P/1 – Mas quando o senhor foi, como que era o aspecto, fora a casinha, mata fechada?

R – Mata fechada. Limparam para o avião descer.

P/2 – Em termos de desenvolvimento, é parte das locomotivas, é isso que chama, que o senhor foi atuar?

R – Em Carajás, o terminal de minério, o terminal que recebe o minério de Carajás para exportar para o exterior era no Maranhão, Ponta da Madeira, onde tem um grande terminal de minério. Tão grande ou maior que esse aqui. Chegam navios gigantes também.

P/1 – Maior, mas esse não é o maior porto de...?

R – É o Grupo VRD. A VRD tem Vale Norte e Vale Sul. Aqui é a Vale Sul.

P/1 – Ah, aqui e o maior do Vale Sul. Pensei que esse fosse maior inclusive do lá do Norte.

R – Não… Lá inclusive o trem de lá tem bitola de 1,60 metros, aqui a bitola é de um metro. São vagões maiores.

P/1 – Lá o senhor não foi...

R – Não, lá eu só fui fazer umas medições, não participei.

P/1 - Ali a coisa toda é o minério de Carajás para o Porto de...

R - Criaram hoje já tem uma penetração através dos trens, tem um trem de passageiro que circula naquela área.

P/2 – Depois o senhor se aposentou, depois dessa experiência? O senhor parou de atuar na Vale?

P/1 – O senhor dá aulas hoje em dia?

R – Eu dei aulas na Escola de Engenharia durante 18 anos.

P/1 – E hoje em dia, o que o senhor faz no seu dia-a-dia?

R – Eu tento aprender xadrez que eu gosto muito, jogo mal. Tenho um livro bom sobre xadrez. Ouvir música, gosto muito de música, minha mulher me incentivou, sempre gostei. Leio todo dia, toda noite tomo uma taça de vinho tinto seco, recomendação médica, mas gosto muito de vinho… Bebo cerveja mas não… E cozinhar.

P/2 – O que o senhor mais gosta de cozinhar?

R – Eu chamo de pratos bárbaros, nada sofisticado. Uma rabada, uma língua, um molho de macarronada. Me reservo o direito de falar que faço muito bem. O que mais? Arroz. Que é teste para cozinheiro saber fazer um bom arroz. Tem um cozinheiro espanhol chamado Carlos Agnano, naquele EuroChannel na TV a cabo, tenho tudo dele gravado. Ele trabalha numa cozinha com uma faca só, faz pratos excelentes. Foi a cozinha bárbara dele também.

P/1 – O senhor faz pratos capixabas?

R – Moqueca eu faço, o caranguejo, o siri.

P/1 – O senhor mora sozinho ou mora com alguém?

R – Agora minha neta está morando comigo desde fevereiro, mas morei sozinho até fevereiro. A Daisy faleceu em fevereiro de 1996, faz fazer agora seis anos, no ano que vem.

P/2 – O que fazem seus filhos e netos?

R – Uma filha é psicóloga, essa que me telefonou

e a outra é arquiteta, que mora no interior. Os netos tenho dois gêmeos de placentas diferentes, um é loiro o outro é moreno

e tem mais um rapaz. E a Ana Amélia tem um casal, a Maria Elisa que mora comigo agora e o João Marcelo.

P/2 - Eles estão estudando?

R - Estão estudando.

P/2 – Eu queria retomar um ponto que ficou lá para trás, que é sua experiência como professor, como docente. Era na Universidade Federal?

R – Excelente. Era na Universidade Federal do Espírito Santo, curso de engenheiros mecânicos.

P/2 – Qual disciplina?

R – Motores de combustão interna. Máquinas térmicas.

P/2 – Tinha outros professores da Vale?

R – Tinha. Marreco era um, o Pipi, que era engenheiro civil, tinha o Alziro Barbosa Viana, outro grande colega, me lembro bem desse rapaz da Bahia, de Caravelas, era professor de Máquinas de elevação e transporte, engenheiro mecânico. Tinha muita gente boa.

P/2 – E os alunos da Faculdade era aproveitados, chegaram a Vale?

R – Alguns estão trabalhando na Vale, não sei se havia algum compromisso da Vale em aproveitá-los. Mas tem muitos aqui, muitos trabalhando na Siderúrgica de Tubarão. O problema é o seguinte: para você dar aulas você fica em cima de uma plataforma e os alunos lá em baixo, 30 alunos, 20 alunos. Todos eles te conhecem, você conhece alguns que se destacam. “Ei professor, como vai o senhor?” “De que ano você é? Qual é seu sobrenome?” eu guardo muito sobrenome. “Meu sobrenome é Venturini.” Aí eu começo dar tratos à bola e lembrar. Mas tive grandes alunos. Um tal de Benedito Emilio Pinto que é fora de série. Tem uma indústria de informática, fornece equipamentos para a VRD… Ih, mas tem muita gente boa.

P/2 – Qual a sua relação com a Costenav?

R – A Costenav, quando eu mexia com navio, eu tinha um tempo morto à noite, peguei um ex aluno meu Cláudio Cordeiro Luz, engenheiro da Vale do Rio Doce aposentado. “Vamos formar uma firma?” Formamos a Costenav, que eu fazia isoladamente, uu fazia inspeção de segurança de navio, testar índices de explosividade de porão de petroleiros, avaria de máquinas, em uma firma do Rio. Aí criamos a Costenav: Consultoria de Serviços Técnicos e Navais Ltda, mas era muito insipiente. Tinha que trabalhar de noite, de dia nós tínhamos nossa ocupação aqui na Vale, mas fiz bastante esse negócio.

P/2 – Essa empresa chegou a prestar serviços para a Vale?

R – Para a Vale não, até por questões de ética não. Hoje em dia peguei minha parte e entreguei para o Leonardo, que é filho do Cláudio. O Cláudio foi aluno meu em engenharia mecânica, agora o filho dele está trabalhando conosco. Esse mês tive muito assoberbado, tive quatro casamentos. Eu sou avesso, mas tive que colocar terno e gravata. O Leonardo casou-se agora. Ficou com Leonardo, cedi minha parte para ele, ficou ele e o pai.

P/2 – Aí o senhor, então passou a sua parte para ele, tá certo. A gente está encaminhando para o final, temos só umas perguntinhas finais que fazemos para todos os entrevistados. Se o senhor tivesse que mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, o que o senhor mudaria?

R – Continuaria sendo engenheiro eletricista e mecânico, casaria com a mesma mulher, a Daisy, me dei muito bem com ela, 38 anos.

P/1 – Não mudaria nada, enfim?

R – Não mudaria nada.

P/1 – O senhor ainda tem algum sonho?

R - A gente nunca deixa de sonhar. Eu sonho que os netos se realizem, que minhas filhas continuem bem, que os relacionamentos com os maridos sejam sólidos, se bem que a instituição do casamento hoje em dia é uma instituição muito frágil. Eu acredito, pelo que eu tenho observado que elas estão se dando muito bem. Sonho? Eu não morri de câncer, e se eu tiver que ter câncer que tenha o que a minha mulher teve, a Daisy não teve dor. Foi de medula. O médico perguntava “Daisy, você tem dor?” “Não.” Ela sentiu cansaço.

P/2 – Você gostaria de complementar?

R – A minha aposentadoria me basta, financeiramente me basta. Tenho um apartamento meu, pago. Após a morte de minha mulher, sentei com minhas duas filhas à mesa, escolham o que querem, um apartamento pra um, um apartamento para outra. Fiquei só com o meu. A minha aposentadoria elas não têm direito, morre comigo.

P/1 – O que o senhor achou de ter dado essa entrevista?

R – Bom. Eu preferi nessa entrevista falar dos outros, não só de mim.

P/1 – Porque S. Norton?

R – Porque eu sou um cara meio esquisito. As minhas filhas falam “Meu pai, você tem um problema seu. O senhor quer que as pessoas… Como é? Como você gostaria que as pessoas fossem? E não como elas são.” Eu costumo aceitar muito as pessoas. Eu não discuto… Fiquei impaciente, muito impaciente e tenho a paranoia da espera. Hoje vocês me fizeram paranoia. Tava marcado para as quatro, depois passou para quatro e meia, depois para quatro e quarenta e cinco.

P/2 - Ficou ansioso.

P/1 - O senhor levou muito bem essa espera.

P/2 - Seu Norton, só para concluir, o que o senhor acha do projeto, de um projeto de memória da Vale do Rio Doce?

R - Eu, francamente, não tinha conhecimento disso, foi muito pouco divulgado entre nós ex-empregados. Eu fiquei sabendo… Alguém me telefonou de São Paulo: “O senhor é Norton?” Eu: “Sim”, “Aqui é do Museu da Pessoa…” Ainda perguntei, ninguém me respondeu: “Quem foi que indicou o meu nome?” Eu não sei até hoje. Eu sei os que eu estou indicando agora, que vocês deviam ouvir. Mas quem foi que me indicou, você sabe?

P/2 - Nós vamos perguntar para a produtora.

P/1 - Nós vamos descobrir, descobriremos.

R - Alguém deve ter dito né “Ouve o tal do Pipa”...

P/2 - Sem dúvida.

P/1 - Isso aí deve ser o pessoal da comunicação ou o pessoal da empresa que indica, colegas seus, essa é a norma, como o senhor indicou outros, né?

P/2 - Mas então, nós queríamos agradecer muitíssimo a sua bela entrevista.

P/1 - Muito obrigada.

R - Fiquei satisfeito também em conhecer vocês.

P/2 - Agora vamos fumar um cigarrinho, né?

R - Isso, fumar um cigarrinho (risos)

Fim da entrevista