Museu da Pessoa

Um poeta bom de bola

autoria: Museu da Pessoa personagem: Murilo Antunes

Projeto Museu Clube da Esquina
Depoimento de Murilo Antunes de Oliveira
Entrevistado por Carla Vidal e Tatiana Alves
Belo Horizonte, 20/04/2004
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista MCE_HV007
Transcrito por Marllon Chaves
Revisado por Ana Calderaro

P1 - Bom, a gente começa... Eu falo pra todo mundo a mesma coisa, pelo princípio. Eu queria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.

R - Eu sou Murilo Antunes Fernandes de Oliveira e eu nasci em Pedra Azul, no Vale do Jequitinhonha, que é no nordeste de Minas Gerais, no dia 25 de junho de 1950.

P1 - Seus pais, o nome deles?

R - Meu pai é Joel Fernandes de Oliveira, e a minha mãe é Ester Heloisa Antunes de Oliveira.

P1 - Também naturais da mesma região?

R - Naturais de Pedra Azul.

P1 - O que seus pais faziam?

R - O meu pai foi tropeiro na juventude dele. O meu avô era fazendeiro e meu pai viajava com ele, fazendo comida para a tropa, e a minha mãe era dona de casa cuidava dos pequenos.

P1 - Pequenos, quantos?

R - Somos cinco. Três mulheres e dois homens.

P1 - Como foi a sua infância em Pedra Azul, com seus pais, seus irmãos? Como era o lugar em que você vivia?

R - Olha, lá é um presépio, Pedra Azul é muito lindo. Então era ótimo, porque lá a gente podia sair. Pequeninho podia sair sozinho, não tinha essas violências de hoje. Eu me lembro, eu mudei de lá quando eu tinha sete anos. Então esse tempo, até os sete anos, estudando no primário, tinha umas... Eu me lembro de algumas coisas assim, eram as sessões de cinema, que eu não perdia nenhuma, aos domingos, matinê... Que eu gosto de cinema e de música desde pequeno. E lembro muito também de um rádio que tinha na minha casa, que tinha na sala. Tinha um rádio antigão, daqueles de válvula com olho mágico. Então eu chegava da escola e a primeira coisa que eu fazia era... Tinha um banquinho pra mim do lado do rádio, eu sentava lá enquanto saia comida, essas coisas, e ficava escutando música. Adorava Luiz Gonzaga, que eu ouvia muito assim no rádio, né? E aí, uma vez, eu soube que o Luiz Gonzaga ia lá em pedra Azul. E ele fazia, ele foi o artista que talvez mais viajou pelo Brasil. E, assim, não tinha esse negócio de avião e essas coisas, não. Ele viajava de caminhão com a banda dele, com triângulo, zabumba, chegava na praça, abria o caminhão e mandava ver. Eu soube disso, eu devia ter uns cinco anos, coisa assim, e era noite, a gente não podia sair e essas coisas. A casa da gente era na avenida, e o quarto de costura da minha mãe dava uma janela pra rua. Aí eu fui devagarzinho lá, no dia do Luiz Gonzaga, abri a janela e fugi pra ver Luiz Gonzaga. Eu estou lá assistindo no gargalo, embaixo do caminhão, assim, e eles interrompem o show certa hora: “Atenção, quem viu um menino vestido com uma camisa assim, calça assado, calça curta e tudo, favor comunicar aqui em cima do caminhão.” Era o meu pessoal, já tinham descoberto que eu tinha saído. Tomei umas palmadas lá, mas valeu a pena.

P1 - Mais vale um gosto, né?

R - Não é?

P1 - E na sua casa, os seus pais tinham o hábito de ouvir muita música? Eles tinham alguma ligação com algum instrumento? Como era isso?

R - Não, lá em casa ninguém tocava, não. A minha mãe que cantava muito. Cantava pra gente dormir, depois a gente foi crescendo e ela sempre cantou. Tinha um repertório, sabia coisas de Assis Valente, Noel Rosa e as músicas de serenatas, serestas. Ela sempre cantou e ensinava pra gente, e ela aprendeu um violãozinho de tipo um lá menor, um dó maior, umas coisas simples, mas só pra folguedo. E a gente ia muito depois que a gente mudou pra Montes Claros. O meu pai era, começou a fazer parte do Lions Clubs, esses clubes e tal. Ele era da diretoria desse clube e eles estavam em expansão, então iam pra cidades inaugurar a sede desse clube e coisa e tal. E sempre que ele ia a gente ia junto, fazia uma caravana, porque a gente ia fazer serenata nas cidade, Grão-Mogol, Januária, Francisco Sá. Toda essa redondeza de Montes Claros ali, a gente ia passear e fazer serenata. Então, desde pequeno, a gente abria a boca no mundo no bom sentido.

P1 - E a leitura na sua casa?

R - Sempre teve, meu pai sempre gostou muito de ler. Ele escrevia também umas coisas, uns versos, tinha uma letra muito linda. Sabe aquelas coisas de caligrafia? E sempre tinha poucos livros. A gente era assim, nós tínhamos poucas, quase nada, assim aconteceram muitas coisas. Como eu disse antes, o meu avô era fazendeiro. Uma vez tinha esses negócios, eles vendiam a boiada, esperava engordar, vendia a boiada e tinha que entregar. Não tinha estrada asfaltada, não tinha, eles levavam os bois andando na tropa. Não tinha esse negócio de levar de caminhão e, principalmente, não tinha seguro, os bois não eram segurados e tal. E, numa dessas, ele vendeu boiada pra Bahia. Eles foram levar e, no meio dessa, porque demorava... Se demorava muito, coisas que a gente faz em três dias, demorava um mês, vinte dias. E no meio dessa viagem que estava levando essa venda, a venda da estação, deu uma doença, uma peste na boiada, e foi matando uma, matando outra. Sobrou mixaria. Ou seja, ele quebrou. Aí nós, depois, com isso... Meu pai... Meu avô ficou duro e quebrou meu pai, automaticamente. E nós até hoje...

P1 - Tem aquele ditado que diz: “Pai rico...” Como é que é?

P2 - “O avô ganha, o filho gasta e o neto amarga.”

R - Pois é, e a gente não tinha o que gastar, não. Tinha que se virar. E assim sempre foi. Tem uma coisa bacana que era... Eles então foram investir no estudo da gente. Quando encerrou o primário, eles mudaram pra Montes Claros. Nós mudamos todo mundo porque lá tinha o ginásio que era melhor. Como a gente foi pra Montes Claros, foi muito importante, porque eu fiquei em Montes Claros dos sete aos quinze anos. Essa fase é muito marcante pra qualquer pessoa e lá foi um barato. Montes Claros é uma cidade muito musical, a região toda é muito musical, Montes Claros especialmente. Então tinha muita riqueza de música regional, folclore, serenatas. Tinham vários grupos de seresta na cidade, como tem até hoje em menor escala. A gente tinha um contato muito direto com essas coisas, com essa música de raiz e tal. Que é uma das coisas que me influenciaram muito, influenciam na minha composição hoje essa referência ao regional. E lá é sertão, então é o que eu digo: “A gente sai do sertão, mas o sertão não sai da gente.” Não tem jeito de eu esquecer porque é muito bonito. Apesar da aridez, da falta de água, é tudo muito sofrido, a miséria é muito grande, a proporção de pessoas sem posse é muito maior, não é um lugar com muita qualidade de vida, tem dificuldades, tem muito pouco emprego. A base lá é agropecuária, então emprega muito pouca gente. Então, por aí vai. Ficam sub-empregos assim, a maioria. Mas lá, por um outro lado, foi onde eu comecei a jogar futebol, que é uma experiência genial na minha vida. Eu joguei muito tempo, e jogava num time. Eu joguei primeiro num time de Montes Claros, chamado Ateneu, isso com doze, por aí. Aí passamos, o técnico de futebol da gente brigou com os diretores do clube porque eles não queriam dar chuteiras pra gente. Brigou e saiu do time, foi pro outro. Aí foi o time inteirinho com ele, porque ele era um técnico bacana e tal. Aí nós fomos pro Casimiro de Abreu, aí que eu comecei a me interessar: “Quem é esse cara, o Casimiro de Abreu?” É um poeta que é do Rio de Janeiro, um poeta fluminense e um poeta muito bom. Com isso, a curiosidade. Eu estava estudando no Colégio Marista, no colégio dos Irmãos Maristas, junto eu pegava isso e ia nessa curiosidade de saber quem é esse cara que eu jogava. Eu era capitão do meu time, eu tenho que saber pelo menos quem é, né? E, nisso, eu fui descobrindo poemas e fui gostando daquilo. Comecei a fazer umas quadrinhas, adorava ler, a gente tinha aula de canto, aula de oratória, aula de caligrafia. O ensino, a didática era muito mais completa. A gente ficava com uma visão mais ampla do que eu sinto que é hoje. E nesse colégio era muito bacana, tinha esse ensino do português, da poesia, tinha um professor mesmo que eu tive durante uns dois anos, que ele era um irmão marista, organizador de uma antologia luso-brasileira que ficou muito famosa porque ela era muito boa. Os poemas eram muito bem escolhidos. Então foi ali que eu comecei a ver os poetas brasileiros e os portugueses. e vinha desde lá de José de Anchieta, passava por Camões e misturava com os brasileiros, os portugueses, e dava uma visão muito bacana da poética do meu país. Esse foi um ponto legal. Mas a gente agitava muito, Montes Claros tinha uma turma e a partir do colégio a gente ia expandindo essa turma. Mas eu fiz uma turma muito boa, um pessoal que adorava música, então todos nós tocávamos um pouquinho. Mas tinha alguns, um em especialmente, amigo nosso que tocava muito bem, que estudava e era tarado com a música. Então lá gente tinha muita dificuldade de conseguir discos. Na minha casa, por exemplo, não tinha radiola, eletrola... Não tinha jeito de ter ainda, só depois. Então esse meu amigo, ele fez, ele construiu uma radiola hi-fi estereofônica grandona e a gente conseguia os discos. Era, assim, de amigos que iam... Por exemplo, parentes dos meus colegas iam pro Rio de Janeiro passar férias, passear, não sei o quê... A gente fazia uma vaquinha, cada um arrumava um pouquinho de dinheiro pra ele poder comprar o disco do João Gilberto que tinha saído, as novidades...

P2 - Mas e o rádio, você tinha rádio em casa nessa época?

R - Claro, rádio eu nunca deixei de ter. Até hoje eu adoro. Tem hora que é dele. E era assim direto, a gente ia direto pra fazenda, em Montes Claros tinha muito esse hábito. O pessoal é muito fazendeiro lá. Eu sempre levava o meu radinho pra ficar andando a cavalo com radinho, ouvindo música.

P2 - Saber das novidades...

R - É, saber das notícias.

P1 - Esses amigos, vocês estudavam juntos?

R - É.

P1 - Qual era a programação além da música? O que vocês tinham? O futebol, a música... O que mais que acontecia?

R - Essa coisa da gente, essas reuniões, que eram as coisas bacanas. A gente se reunia na casa desse meu amigo que construiu a radiola pra ouvir as músicas. Era onde a gente ouvia jazz, foi onde eu ouvi pela primeira vez algumas coisas, o Coltrane, o Charles Mingus, o Miles Davis e bossa nova. Basicamente, era isso, e a MPB estava começando a esquentar as turbinas. Não existia, ainda pra se dizer assim, um mercado fonográfico, ainda não era forte. Então a referência nossa, principalmente, era a rádio mesmo, a Rádio Nacional, esses programas de calouros, Rádio Mayrink Veiga... Eram os programas que a gente juntava pra ouvir. Por exemplo a Rádio Mayrink Veiga tinha um programa chamado “Hoje é Dia de Rock”. A gente passava num sábado, quatro horas da tarde, a gente juntava e trancava a porta porque a gente ia escutar alto, rock é alto e tal. Aí ficava dançando e escutando aquilo, coleciona revistas, a revista do rádio, que tinha as letras de música...

P2 - De quem eram as músicas, que rock que vocês ouviam?

R - A gente ouvia, essa época, muito Elvis Presley, Neil Sedaka, Paul Anka... Era, como é que chama...

P1 - O Chuck?

R - O Chuck Berry... Mas eu queria dizer do “Rock around the Clock”, Bill Halley e seus cometas.

P2 - Ainda em Montes Claros, lá tem umas festas religiosas muito fortes. Que lembranças que você tem das festas?

R - Olha, isso aí é uma coisa muito bacana, a Festa do Rosário lá é muito bacana. Eu conheci um senhor, tive o prazer de conhecer, que se chamava doutor Hermes de Paula, esse cara era um folclorista. Ele era médico, atendia no consultório normalmente, aproveitava todo tempo livre dele e viajava. Ele pegava o Jipe e enfiava pelo mato afora pra gravar, ele tinha um daqueles gravadores Nagra, de rolo. Botava... Então ele ia em lugares assim, onde a estrada acabava. Ele pegava o... Tinha que... Aí ele continuava esse trajeto de burro, botava o gravador no lombo do burro e seguia pela trilha. E assim ele consegui um registro muito importante de toda essa cultura do norte de Minas. A gente ficou amigo e tudo, e nessas festas ele sempre estava presente também. Eu me lembro um dia que eu saí, logo que eu mudei pra Montes Claros. A primeira Festa do Rosário que eu vi, eu estava em casa, na casa da minha avó, que era perto da Igreja do Rosário. O meu pai me pediu pra eu comprar um cigarro pra ele e eu saí. Na hora que eu estou indo pro bar, que chego no bar, estou esperando o cara me dar o cigarro, eu vejo um cara do meu lado, entra um sujeito e pede uma pinga. Um sujeito todo vestido de branco com uns espelhos na cabeça, aquelas fitas coloridas, negro, as fitas coloridas e umas latas nos pés, para fazer ritmo e tudo. Eu nunca tinha visto aquilo. Porque Pedra Azul já é uma outra história, Pedra Azul tem um outro tipo de folclore, é bem distinto. Inclusive, são trezentos e poucos quilômetros de distância. Em Pedra Azul a gente tinha era o Boi de Janeiro, a grande festa lá era em janeiro, onde tinha esse boi que ficava uma pessoa embaixo e um pessoal tocando, tocando viola, tocando tambores, alguns sanfona, tinha uma sanfoninha e tudo. E tinham vários grupos desses. Mesmo hoje, agora em 2004, existem oito grupos desses bois lá. Então é muito interessante, eles tocam aquela flauta de pífaro e é uma farra danada, fica o boi perseguindo as pessoas, assim correndo atrás, aquela fuzarca...

P1 - Isso é restrito à Pedra Azul?

R - Tem essa festa. Tem, por exemplo, no Maranhão, o Boi Bumbá. É uma festa equivalente, só que as músicas mudam completamente. A levada, os ritmos, eles vão mudando. Todo o Nordeste tem isso, mas é específico, não tem um que canta música do outro, cada um tem o seu repertório próprio. E essa de Pedra Azul é muito rica. E os caras, assim... Depois se amarra o dinheiro, o dinheirinho que você quer dar pra ele, você amarra nas fitas do boi e tudo, é super bacana.

P1 - Esse estandarte humano que você encontrou no...

R - É, em Montes Claros.

P1 - Qual era a história em relação ao Rosário? O que ele representava?

R - Então, aí que eu fui saber. Ele saiu e a gente estava indo mais ou menos pro mesmo lado. Eu corri na casa, joguei o cigarro pra alguém que estava na varanda e corri atrás dele. “Que cara é esse, pra onde é que esse cara vai?” Aí que eu cheguei, tinha aquela quantidade deles, assim uns duzentos vestidos dessa forma, então é a marujada. Que é a história da Nau Catarineta, que conta a história dos escravos que vieram da África pro Brasil e, no meio do caminho, teve uma calmaria, parou o vento, então as caravelas pararam no meio do mar com os escravos lá. Então teve uma rebelião. Eles, o pessoal, forçando muito a barra pra eles poderem remar e tudo. E eles levavam uma imagem de Nossa Senhora do Rosário no escaler, lá no porão do navio, então eles fizeram essa rebelião entre eles, foram combinando e tal, e num momento eles tomaram o navio e pegaram a rezar pra que o vento voltasse e eles poderem continuar a viagem. Mas daí eles chegaram no Brasil — eles, donos do navio —, eles comandando o navio. Então a história contada toda, ela se passa toda em alto mar. Agora, imagina que curiosidade, poxa! No meio do sertão, lá na muvuca, Montes Claros é bem no centro do norte de Minas, como é que esses caras ficam contando história de mar? Lá não tem água, é difícil água, entende? Isso aí que são as curiosidades essa passagem dessa história oral. Isso foi passando um contando pro outro, os mais velhos, e construindo essas músicas que eram muito bacanas. E isso aí é uma coisa que sempre me intrigou. Como é que isso chegou até lá e é muito forte, muito grande? Hoje não tem mais esse bloco de duzentas pessoas e tudo. Mas conheço, a gente ficou conhecendo essa tradição porque vem esses marujos vestidos dessa forma que eu descrevi. Aí tem na frente os caboclinhos, que são só crianças vestidas de índio. Então é uma mistura que você... A nossa escola de samba é essa, do sertão. E os meninos dos caboclinhos, eu fiz até uma canção agora, uma música pro Yuri Popoff. Essa semana estava trabalhando nisso, que é em cima de uma pesquisa que ele vem fazendo há muito tempo sobre essas Festas do Rosário e das Marujadas e tal. E onde eu fui me lembrando desses caboclinhos, dos marujos, das músicas... O Tavinho Moura, meu parceiro, ele tem um trabalho muito... Nós viajamos muito tempo também, fizemos várias viagens para recolher essas canções.

P2 - E aquele registro que o seu amigo recolheu, que ele fotografou? Você teve acesso?

R - Então, tive acesso assim... Ouvi muita coisa dele e ele publicou um livro, Montes Claros: sua história, sua gente, seus costumes. É um livro grossão. Ele fez, tinham várias edições, um livro muito completo. Um livro é só das pessoas, das famílias, daquelas coisas, e o outro é só das festas do lugar, das tradições, versos, conta essa história da marujada, da Nau Catarineta, tem versos, aquelas adivinhas... “O que é, o que é? Cai deitado e corre em pé.”

P2 - Cai em pé e corre deitado.

P1 - O que te subestimava era a questão dessa temática marítima no sertão? Existia uma possibilidade de exercício em relação à história, à colonização, à questão da escravidão? Como essas coisas te tocavam?

R - Olha, eu sempre me interessei por história mas eu não sabia disso. Nessa época eu estava muito novo, mas eu fui me encaminhando pra esses lados, tanto que depois, quando eu vim pra Belo Horizonte... É, eu não fiz universidade, eu terminei o segundo grau e tudo. Eu fiz porque eu debandei para música mesmo e meu interesse maior era ali. Mas eu fui fazer matéria isolada fui fazer História Social e Política do Brasil. Porque eu era, eu gostava de história, ainda mais o fervedouro que estava no Brasil e tal. Era importante ter um conhecimento. Então isso aí, essa coisa da história... Com isso o que se fazia? A gente ia pegar a história da colonização os escravos, e eu sempre fui cúmplice dos escravos, de quem sofre opressão. A gente sempre esteve com eles, nunca fui do lado de lá. Então eles é que são a minha turma. E foi através deles. Eles têm uma coisa muito bacana. Eu trabalhei uma vez num filme, um longa-metragem do Carlos Alberto Prates Correa, chamado Cabaret Mineiro, eu trabalhei na produção. Até o Tavinho Moura era assistente de direção. E umas das sequências do filme, o final do filme, a sequência final eram os marujos. A gente filmou em Contria, que é próximo a Corinto, e trouxe os marujos lá de montes Claros para cantarem lá. Eles passaram conosco dois dias, então deu pra você ver muito como é que eles conviviam entre si. É uma coisa que a gente aprende. Por exemplo, tem o capitão da marujada, que é o chefe que pilota tudo e todo mundo obedece a ele, tudo. Na hora em que eles vão almoçar, por exemplo, sentam na mesa todo mundo, eles na hora em que estão lá fora, festejando, é que são servidos de tudo e obedecidos. É o capitão... Na hora de comer, o capitão é que serve os outros. Então eles quebram essas hierarquias dos privilégios e fazem uma coisa muito solidária, acho muito bacana.

P1 - A gente vai devagar com o andor, que o santo é de barro. A gente vai chegar aí. Vamos voltar um pouquinho pra Montes Claros. Este seu grupo, com qual você compartilhava música, enfim. A gente falou, vocês tinham cinema na cidade?

R - Tinha sim, tinha cinema, tem. E fora que a curiosidade... A gente ia muito lá no Cine Fátima, Cine São Luís, Cine Coronel Ribeiro, esses três basicamente eram os que a gente ia. O Cine Coronel e o Cine São Luís era do irmão do Darcy Ribeiro, que é muito amigo da minha família e tudo. E esses filmes, por exemplo... Teve uma vez que eu era... Às vezes a gente usava, a gente pequeno, tinha filme censura de catorze anos e você tinha que dar um jeito. Às vezes eu ia, convencia minha mãe de ir no cinema porque eu tinha doze anos e tal, e estando com ela eu conseguia, consegui algumas vezes. Mas eu não me esquece por exemplo de A Um Passo da Eternidade, não esqueço desse filme. Eu louco pra ver, eu falei: “Vamos mãe, vamos.” Ela foi mas, mesmo assim, nós conseguimos passar na porta da bilheteria. Mas aí vinha o diabo de um fiscal depois com uma lanterninha verificando todo mundo e me tiraram. O filme estava começando, no letreiro, que decepção! Maior sacanagem! Mas com isso eu vi muitos filmes lá.

P1 - Que cinema? Americanos?

R - Mais filme americano. Os filmes brasileiros também eu adorava, Mazzaropi, as chanchadas da Atlântida... E não chegava... Lá não chegavam os filmes de Humberto Mauro, esses primórdios… O Limite, do Mário Peixoto, que é um filme maravilhoso e tudo. Mas deu pra despertar, você acostumar com aquela linguagem. Eu adorava, via tudo, adorava aqueles seriados que tinha, passava um capítulo num domingo outro capítulo ia no outro domingo, ia dividindo na hora.

P2 - (-)


R - Era bacana demais isso. Passava junto do longa-metragem. Sempre passava o longa, aí passava um capítulo de uns quinze minutos.

P1 - Era o tempo que a televisão tinha um fetiche...

R - Existia, não. Televisão, eu conheci televisão... Isso é bacana de dizer, eu conheci televisão eu tinha doze anos de idade. Até então, existia... Televisão veio para o Brasil em 1952, e eu conheci a televisão em 1962, porque em Pedra Azul não tinha. Em Montes Claros, quando nós mudamos, eu vi a primeira vez. Eles foram fazer teste, em 1962 isso, pra ver onde que iam colocar a antena. Quer dizer, estava chegando a televisão lá, e eu fui com meu pai. Um amigo dele era técnico de televisão e ia fazer esse teste da antena, num lugar alto, a uns trinta quilômetros de Montes Claros. Aí eu fui junto porque ele ia fazer o teste na hora de um jogo de futebol que eu adorava, que era Santos e Milan, que o Santos ganhou de dois a um, e o Pelé jogava e tal. Essa foi a primeira vez que eu vi televisão. Estava uma recepção ruim demais, chovendo, chuvisco e tal. Era muito precária ainda a transmissão pra lá. Mas eu já tinha doze anos, então a minha infância feliz foi sem televisão, e não fez falta nenhuma.

P1 - Conseguiu contato com o Pelé.

R - Eu vi Pelé a primeira vez. Pelé, Raoni...

P1 - Não deixa de ser uma bela estréia, né?

R - É claro, já vi o rei jogar, eu já tinha visto em Montes Claros, eu vi Pelé jogando ao vivo. Porque eu era pequeno, o meu tio era técnico do time do Ateneu em Montes claros e o Santos foi jogar com o Ateneu. Esses campos pequenos e tudo. E eu era o mascote do time. Eu ia com ele em todo jogo, porque entrava de graça e tudo, e eu ficava no banco de reserva com meu tio, jogando com Pelé. Então eu vi ele pertinho, foi muito bacana. Um jogo à noite eles ganharam, o Santos ganhou, como sempre ganhava.

P1 - Grande time até hoje. Todos são. Os santistas são as viúvas do Pelé, a gente fala isso, porque fica esse imaginário.

R - Exatamente. Mas tinha a coisa da música. Montes Claros era e assim muitas... Os cinemas, além dos filmes, era onde aconteciam os shows. Então eu ia em tudo que você pensar, os bregão, os bacana... Iam tipo Cauby Peixoto,

ngela Maria, uns menos votados, tipo Adílson Ramos, essa turma... Esses shows... Tony Campelo, Celly Campello, essa turma dessa época. Eu ia em todos esses shows, e fui... A primeira vez que eu vi Roberto Carlos, que ele cantou num ginásio lá. Ele estava tipo aquele disco que tem “O Calhambeque”.

P1 - Ele era o “Pequeno Príncipe”, não era o “Rei”.

R - Era, e aconteceu uma coisa engraçada que no show do Roberto Carlos. Eu fui, eu levei a minha irmã. Uma das irmãs, a mais nova, ela queria ver de todo jeito e tal. A gente já estava mais na bossa nova, não estava ligando muito pra Roberto Carlos, não. Mas sabia a importância dele e via as pessoas adorando ele. Aí a gente estava no ginásio lá, de repente o Roberto Carlos está cantando, “ta-ra-rá”, e acaba o som. Alguém foi lá, dessas molecagens de turma... Foram, cortaram o fio do Roberto Carlos e foi uma demora pra poder voltar aquilo. Mas depois eu fui numa festa do clube e o Roberto Carlos sentou na nossa mesa, foi bacana demais. Ele sentou porque era uma turma bacana, tinha uns oito caras, e ele sentou, ele fazia umas relações públicas.

P2 - Era a turma de adolescente lá, a turma da serenata?

P1 - E o visual dos meninos de Montes Claros, o que era?

R - Era engraçado, era pré-hippie, ainda não tinha... A gente não tinha cabelos grandes, barbas e tal. Foi logo depois, isso eu já estava em Belo Horizonte.

P1 - Também era jeans, não tinha ainda isso?

R - Era jeans e camiseta, era por aí mesmo.

P1 - E quando foi essa marcha rumo a Belo Horizonte? Quando aconteceu e por quê?

R - Então, foi em 1965 que eu mudei para Belo Horizonte. Eu vim de trem e era muito legal, porque eu só conhecia Belo Horizonte... Eu tinha vindo uma vez, que eu vim aqui representando o meu pai, era casamento do meu tio e tal. Então, vim eu e o meu irmão.

P1 - Você tinha treze anos?

R - Eu tinha doze anos na primeira vez, aí eu vim e fiquei aqui uns três dias. Achei uma maravilha, a cidade maior que eu tinha visto, o resto não tinha televisão. Então era tudo na imaginação, o que o rádio falava, como eram as cidades... Eu lembro que eu cheguei num dia de sábado, a cidade estava super vazia, tranquila e tal. Eu achei a maior maravilha e fiquei andando, fiquei rodando naquela medida, pra você não se perder, eu andava até ali.

P2 - Desceu na Praça da Estação e ficou andando pelo centro?

R - É, eu fiquei hospedado ali na casa da minha tia, na Avenida João Pinheiro, perto do Palácio da Liberdade. Aí tinha um xodó, já existia o xodó, era o maior sucesso tomar milk-shake, comer misto quente.

P2 - De Ovomaltine?

R - É, tudo isso. E aí eu ficava rodando pra ver essas coisas. Tipo pegar ônibus, por exemplo, eu nunca tinha pego ônibus, Montes Claros não tinha, não precisava ainda. Nesse tempo em que, nos ônibus, as portas de entrada dos passageiros eram todas por trás, se entrava por trás. Aí eu vou pegar o ônibus, entrei pela frente a primeira vez e tomei a maior vaia das pessoas.

P1 - Em Belo Horizonte ainda tinha bonde?

R - Já não mais. Tinha trólebus, que era muito legal também, que era o elétrico, e grandão também, esses que a gente usava muito pra escola e tal. E vinha também, usavam os trilhos que eram anteriormente dos bondes.

P1 - Então essa foi uma experiência de visitante?

R - É, exatamente. Depois eu voltei em 1965, já vim com a família toda e foi muito bacana, aconteceu um fato gozado. Por pouco eu não ia ser compositor, a coisa que eu mais amava era a música, mas acontece que eu gostava muito de futebol também, jogava bem, segundo meus parceiros e companheiros e tal. Aí foi um pessoal do Atlético — eu sou atleticano e tal — lá em Montes Claros, foram ver o nosso time. Esse time virou notícia porque a gente ficou 72 partidas invictos, esse time do Casimiro de Abreu, e isso é uma marca muito impressionante. Então foi o cara do Atlético lá ver a gente jogar, viu o jogo e escolheu dois caras: eu e o ponta esquerda, eu jogava de lateral esquerdo. Escolheu e queria levar, trazer para Belo Horizonte para gente jogar no Atlético e tal. Aí, meu pai... Foram lá em casa conversar com meus pais e tal, porque eu era de menor, e foram pedir para eu ir. Aí meu pai falou: “Eu estou acertando minha transferência para Belo Horizonte, eu vou mudar pra lá no fim do ano com a minha família então quando ele chegar lá vocês acertam.” Então foram uns quatro meses intermináveis, eu doido pra ir pro atlético e tal. Mas aí chegou aqui, tinha marcado... Eles marcaram o dia para eu ir treinar a primeira vez, só que a gente estava com muita dificuldade de grana e tudo e tinha que trabalhar. Aí meu pai arrumou um emprego com um amigo ele e, exatamente no mesmo dia, ao invés de eu ir treinar eu tive que ir trabalhar, então esse sonho esboroou.

P1 - A dificuldade salvou o Clube da Esquina. (riso)

R - Salvou minha composição, né?

P1 - Mas o seu pai veio morar em BH por questões...

R - Pra gente estudar. Ele trabalhava no Banco do Brasil, então com dificuldade ele conseguia, às vezes, transferência. Como essa que a gente conseguiu. Foi transferido pra cá e a gente veio junto, de mala e cuia.

P1 - E como foi lidar com essa frustração do futebol?

R - Não, foi relax. A juventude é um barato, a gente não tem bode, não tem neura, não, é tudo muito…. É uma coisa bacana o mundo, ao mesmo tempo eu estava descobrindo um mundo genial, que eu caí aí no colégio estadual. O colégio onde estudou o Marcinho, o Fernando Brant, o Nelson Angelo...

P1 - Toninho Horta também.

R - Toninho....

P1 - Você foi trabalhar de quê?

R - Eu fui trabalhar no comércio. Olha bem, num lugar... Esse amigo do meu pai tinha uma tapeçaria, vendia tapetes e cortinas.

P2 - Onde?

R - Na Avenida Paraná, no centrão ali. Aí eu comecei vendendo coisa pras madames. Aquele negócio me irritava profundamente, essa coisa da... Porque as madames paravam aqueles carros de bacana na porta, a mulher descia toda com aquele narizinho empinado, e poxa. Fazia a gente tira aquele trenhão de tecido e media: “Ah, não quero esse mais, não. Eu quero aquele.” Sabe aqueles negócios? Mas aí eu estava estudando, coisa e tal, rapidamente eu saí daquilo e fui pro escritório dessa loja. Eu virei chefe do escritório, contabilidade era tranquilo de fazer e tal, que era uma forma de eu sair das madames.

P2 - Então você estudava no estadual e trabalhava lá?

R - Trabalhava lá, então era o dia inteiro trabalhando e de noite ia pra aula.

P2 - Foi o primeiro científico que você foi fazer?

R - Foi o segundo, o primeiro eu fiz ainda em Montes Claros e esse aí era bacana. Depois eu saí de lá, cheguei a trabalhar dois anos nesse comércio e tal. Aí eu fiz o concurso para um banco, olha só. Precisava de ganhar algum para os meus discos e livros. Aí fiz um concurso pro Citibank, “First National City Bank”, um banco americano e tal. Aí eu passei e fui trabalhar lá, trabalhei dois anos também. Até foi nessa época que eu comecei a compor, fiz a minha primeira música. Que aí eu fui pra umas férias do banco, eu já estava compondo, não tinha nada gravado ainda. Mas aí eu fui numas férias e na hora de voltar eu falei: “Quer saber, eu vou fazer música. Porque ficar fazendo... Por que eu tenho que trabalhar em banco, né?” Aí eu não voltei pro banco nunca mais.

P1 - Só pra pagar conta.

R - É.

P1 - Disso a gente não se livra. Mas antes desse trabalho você chegou com a sua família, vocês foram morar onde?

R - Fomos morar na Avenida do Contorno, perto do Hospital Felício Rocho.

P1 - E automaticamente seus pais já matricularam vocês todos nessa escola?

R - No estadual a gente fazia concurso, tinha.

P1 - Como que você se enturmou com esses meninos todos aí?

R - Ah, agora uma pausa, água.

(pausa)

P1 - Vamos voltar a Pedra Azul.

R - Então, era só pra fazer esse registro de onde eu conheci as pessoas, uma fornada de gente boa lá também, que é o Paulinho Pedra Azul, que é um artista admirável, assim como Saulo Laranjeira. Porque mesmo eu, mudando de Pedra Azul pra Montes Claros, a gente ia, todas as férias a gente passava em Pedra Azul. Era onde tinha muitos amigos, parentes e tudo. Ia pras fazendas e era pra fazer esse registro, são pessoas que eu admiro muito e tal.

P1 - E você os conheceu na infância?

R - Conheci nas brincadeiras de infância e depois nessas férias todas, sempre. Aí o Paulinho já tocava, já compunha e o Saulo também já fazia aquelas coisas dele.

P1 - Elas são mais velhos que você?

R - Não, eles são mais novos.

P1 - Mais novos?

R - É, o Saulo é mais ou menos da minha idade e o Paulinho é mais novo.

P1 - Mas quando você diz férias, isso durou...

R - Muito tempo, até eu mudar para Belo Horizonte. E quando eu estava em Montes Claros... Um caso que eu me esqueci, havia esquecido o negócio das serenatas, que era muito bacana. A gente saía, essa turma que eu contei, que a gente se encontrava e tudo. Às vezes, por exemplo, tinha uma festa pra ir, a gente se encontrava antes da festa só pra tomar um birinaite e já ir embalado, e ouvir música. E a gente fazia muita serenata era legal demais, e numa dessas vezes a gente estava fazendo serenata. Estava perto da casa do Godofredo Guedes e da Igreja, da catedral, e isso em 1964, logo depois da revolução, da época do golpe famigerado. E aí a patrulha, a gente com um violão na mão e tudo, o violão era meu, e as pessoas ao invés de prenderem a gente, prenderam o violão. Disseram que “se quiser o violão de volta, vai lá na delegacia amanhã”. E o violão era meu, eu que tive que ir. Aí eu lembro que cheguei lá e me lembro até o nome do delegado, que era o Major Abdo. Não me esqueço, eu me lembro porque eu dei umas namoradas com a filha dele, mas ele não podia nem sonhar com isso. (Riso) Senão complicava e tal. Aí que eu entro na sala dele, está assim o violão e em cima da mesa dele um trabucão 45 em cima. E eu: “Poxa vida, o que eu estou fazendo aqui.” Aí ele vira assim: “Ó, menino, esse violão é seu?” “É sim, senhor.” Daí ele: “Quer dizer que vocês estavam fazendo bagunça na rua?” Eu: “Não, senhor, a gente estava fazendo serenata.” “Quer dizer que esse violão é seu mesmo. Pra ter de volta, vai ter que canta legal e tal.” Aí eu apavorei. “Poxa, o quê que faço agora?” Ainda pedi pra ele pra ver se eu achava um amigo meu que tocava muito bem, porque eu tocava de enganação. Mas esse meu amigo não estava em casa. Eu fiquei meio assim, mas acabei tocando uma dessas músicas pra poder ganhar a liberdade. Montes Claros, que é muito importante pra mim, foi, por exemplo, onde eu vi pela primeira vez o Beto Guedes, que viria a ser meu parceiro e eu viria ser parceiro dele. Mas foi a primeira vez que eu vi o Beto. Eu vi ele tocando pela primeira vez, ele tinha um conjunto chamado Os Brucutus. Todo mundo cortava o cabelo igual o Beatles, aquela franjinha, vestia aqueles vestidos pretos com botinha de salto e tal. Era tudo nos trinques, tirava... Era cover mesmo, tirava a música dos Beatles direitinho, aí eu vi eles tocando num clube lá e achei o maior barato. “Pô, que legal!” A gente já gostava de Beatles e tudo. O Beto tinha o quê, doze anos, eu tinha treze e tal. Ele tocava baixo, que ele toca muito bem até hoje. E eu lembro que ele era aquele cotoquinho mas já mandava bem demais. Aí conheci Beto. E essa coisa de Montes Claros também me deu convivência com o sertanejo, que é uma coisa, é fundamental na minha formação, tanto que eu tenho várias músicas que eu descrevo um pouco. Isso que eu tenho, eu me lembro. Eu tenho outros poemas também, fora música que eu trato disso. Foi onde eu pude compreender com muita rapidez o Guimarães Rosa e ficar fascinado por ele, porque ele conta esses fatos do sertão, essa realidade. Depois eu vim a entrar no Guimarães Rosa mesmo em Belo Horizonte. Porque era aquele negócio, a gente não tinha essa tradição de leitura e tudo. Era muito difícil a vida da gente, e nesses lugares você não tinha disponibilidade de dinheiro, de ficar comprando livro. Os pais da gente também vinham de outra realidade, a coisa do sertão, da viração. Não era, não tinha esse hábito da coisa literária, a gente tinha que ir se virando.

P1 - Essa experiência, essa proximidade in loco do sertão, quais as impressões que você teve? O que te mudou?

R - Pra mim, o mundo era aquele, eu não conhecia outro mundo. Podia falar que existia Nova Iorque, que existia São Paulo, Rio de janeiro, Belo Horizonte, mas eu não conhecia nada disso. Pra mim o mundo era aquele, era o mundo dos vaqueiros, eu adorava ir pras fazendas de parentes, de amigos e tal, pra ver aquelas seções de ferrar o boi, e de fazer o tratamento, vacinar gado. Uma coisa incrível é que, por exemplo, as vacas todas tinham um nome. Então pegava uma lista, era genial, cada um botava um nome: “Mimosa, não sei o quê…” Mas é uma lista, o Guimarães Rosa descreve isso muito bem. Ele sempre tem um nome diferente das vacas, mas era uma coisa que os caras tratavam quase como gente. Assim, eu vim fazer uma música depois com Tavinho Moura que chama “Boi é Gente”, que fala um pedaço dela: “Boi é gente, quem vai negar, serve a Deus pra depois morrer.” Essa era o refrão dela.

P1 - Canta um pedacinho?

R - Isso tem que ser com o Tavinho pra cantar. (riso)

P1 - Morreu da retórica...

R - É.

P1 - Mas o sertão te deu ensinamentos para prática?

R - É.

P1 - Quais eram esses ensinamentos?

R - O primeiro deles talvez eu diga quem, talvez não... Acho que o primeiro deles é a simplicidade, as pessoas se virarem com o que tem, não tem fartura, não. Você não tem esbanjamento porque não tem nada pra esbanjar, tem que conviver com o que existe ali. E essa coisa também daquelas fazendas que tinham muita auto-suficiência. Faziam tudo ali, faziam queijo, plantavam o arroz, o feijão, as frutas, o leite, a carne, o boi estava li, as criações de porco, galinha e carneiro. Essa gente comia muito isso e era auto-suficiente. Tinha serralheria, então as pessoas resolviam os currais, as pranchas de madeira, faziam tudo ali. Você não dependia de fora. Então essa coisa do tempo lento... Deixavam o tempo passar, iam fazendo as coisas na sua cadência sem sofreguidão. Isso a gente aprende, isso eu aprendi pra sempre. E essa coisa das comidas, do palavreado, do causos, das lendas. Tem uma lenda de Pedra Azul, por exemplo, que é fenomenal e que ainda quero fazer. Eu comecei a roteirizar essa história que é uma lenda que tem lá muito conhecida. Conhecida em todo Vale do Jequitinhonha, que é o Bicho da Carneira, isso aí. É história de um parente meu, que era Antunes também, e que esse camarada era muito querido. Em rápidos traços, que é uma história que tem muito detalhe: era uma pessoa muito querida, um fazendeiro, e tinha muitos agregados, e quando ele morreu, ele teve que ficar muito tempo sendo velado. O velório comprido, porque as pessoas tinham que chegar da roça, vinham a cavalo e demoravam pra chegar. Nisso, nesse esticamento desse velório, no cara começou rapidamente a crescerem as unhas, os cabelos e os pêlos, e foi virando o Bicho da Carneira que aí eles taparam o caixão, foram e enterraram. E ele tinha uma amante, por exemplo. Aí chegou lá à noite no cemitério, quando já não teria ninguém mais, que ela foi levar as flores dela, se despedir do amante dela. Chegou lá na carneira, que era o túmulo, estava revirado e não tinha ninguém lá dentro. A partir daí, todas as coisas que aconteciam são reputadas ao Bicho da Carneira. Sumia um bezerro na roça, um porco aparecia morto e tal. E as pessoas praticam, mesmo assim, em dia de lua cheia. Chegam e botam o prato de comida na porta da soleira, senão ele vai querer gente. Então você dava comida pra ele saciar a fome. E todo mundo conhece isso na cidade e no Vale do Jequitinhonha, eles chamavam antes de Bicho da Fortaleza, é um outro nome. Porque Pedra Azul se chamava Fortaleza antes de chamar Pedra Azul. O nome Pedra azul é de 1942, se não me engano.

P1 - E de onde vem esse nome?

R - Pedra Azul? Por causa da água marinha, tinha muita água marinha lá. O vale do Jequitinhonha é um vale de pedras preciosas, semi-preciosas. E dá água marinha e também outras pedras de lá. Porque lá é cercado por lajedos imensos e em determinadas tardes, determinadas horas, ficam azulados também esses lajedos. Então são essas duas coisas, mas o nome é lindo.

P1 - E quais os sabores que você tem dessa sua vivência em Pedra Azul e Montes Claros?

R - Nossa, primeiro pequi. Como é que fala? O “Viagra do sertão”, o pequi é impossível você não gostar, não ter ele. Ainda mais que é um cheiro forte, mas é uma coisa fenomenal. Durante a safra dele, que começa por novembro e vai até março, até final de fevereiro e tal, você vai a Montes Claros e a região toda é tudo pequi. A cidade fica amarelada porque é muita a quantidade. As pessoas vivem disso e é uma coisa também que se aprende porque é uma planta que é nativa, você não germina ela artificialmente. E outra coisa, pra você colher ela, você apanha ela quando ela cai no chão. Não adianta você apanhar no pé porque aí ele está verde, então ela própria resolve pra você. Não dá nem trabalho você pegar. Então é super vitaminada, tem uma substância incrível, isso é uma maravilha. E carambola, que é uma delícia. Todas essas mangas e as coisas do mato, umbu... Essa coisa de comer carneiro, por exemplo, é inesquecível. E você via. Eles pegavam o bicho, penduravam numa árvore imensa, amarravam de cabeça pra baixo e cortavam o bicho aqui. Vazava o sangue deles aí ia tirando tudo pra gente, fazendo tudo isso numa manhã, uma cerimônia depois, até cozinhar e a gente comer. Até hoje ainda se pratica isso e minha boca fica cheia d'água.

P1 - O gosto do pequi, o que tem dentro da semente do pequi, tem espinho?

R - Tem, tem o espinho e tem uma castanha. Você abre ele e parece um pouco com o abacate. Tem aquela polpa verde por fora, você abre e dentro dele tem um caroço que é o que a gente come. A gente raspa ele. Depois dessa polpa que a gente come tem os espinhos, espinhos pequenininhos. Ah, tem um caso formidável! Uma vez tinha uma menina carioca que foi a Montes Claros. Assim, adolescente e tal, e foi almoçar numa casa que eu estava também pra almoçar. E era época, era verão e tal, era época do pequi. Aí todo mundo quer arroz com pequi, que é um prato espetacular. Você faz com carne-de-sol com pequi, tudo num prato só, não tem mais nada, só aquele prato. Essa menina foi lá e ela nunca tinha visto pequi e tal e pegou aquilo. Ao invés de prestar atenção nos outros, como é que eles comiam, ela foi logo. Primeiro foi logo mordendo, se deu mal com os espinhos. O negócio é que ela olhou assim e falou: (fala com sotaque carioca) “Escuta! Pesca pequi aqui igual pesca ostra?” Eu me lembro desse negócio. (riso)

P1 - Deixando um pouco esses gostos, aromas, sabores e cores do sertão, a gente continua o nosso trem rumo a BH.

R - Então vamos de trem. Chegando em Belo Horizonte, a primeira pessoa que eu conheci de música foi o Toninho Horta. Ele frequentava muito o colégio da gente, o Colégio Estadual, a gente tinha muitos amigos em comum e tinha uma amiga nossa chamada Tiza, Beatriz Dantas, que morava perto do colégio. Então a gente, muitas vezes, quase todos os dias a gente saía do colégio tipo meio-dia, hora do almoço, que acabava a aula, e a gente ia pra casa da Tiza. Às vezes ela fazia almoço lá mesmo, a gente ia pra juntar e pra cantar. O Toninho tocava violão, aí eu vi o Toninho tocando e fiquei impressionado. A primeira vez que pegava, ele fazia um acorde, pegava um dedo aqui, cinco trastes do violão pra frente, eu nunca tinha visto aquilo, que foi impressionante. Eu tocava um violãozinho de brincadeira, aí eu falei comigo mesmo: “Nunca mais eu pego nesse instrumento.” Que ele tocava tão lindo... Falei: “Poxa, eu nunca vou conseguir tocar lindo, igual ele, então vou deixar esse trem pra lá.” Mas eu queria música, queria me envolver com ela e tinha outro caminho, que foi esse que eu achei, de fazer as letras. O Toninho foi muito bacana, nós ficamos muito amigos, ia pra casa dele... Quando saía disco dos Beatles ou disco de jazz, algumas raridades, a gente se falava e juntava na casa dele pra escutar e fazer audição desses discos novinhos em folha. E foi bacana essa coisa dos Beatles, que foi a formação da gente. A gente começando a fazer música e tal e os Beatles também fazendo seus discos naquela época. É diferente de você ouvir depois, você chegar e falar: “Vou conhecer os Beatles.” Pegar os discos hoje e escutar, é muito diferente de você estar vivendo aquele tempo, que tem uma importância muito grande na música do Clube da Esquina. Você vê que nós somos baladeiros também e dos grandes. Acho que é muito bacana ter essa influência, foi muito incrível. Tem essa época de Belo Horizonte coincidindo com esse momento brasileiro da ditadura, essas brincadeiras nossa de cantar e tudo. Existia uma militância muito grande. Toda juventude se engajava nessas passeatas cobrindo, ajudando a esconder as pessoas da polícia e panfletando. Existiu uma ação no Brasil inteiro, a ação dos estudante foi muito importante pra essas coisas acontecessem, essa reação.

P1 - E você participava de que forma?

R - Eu participava dessa forma, do diretório acadêmico do meu colégio, do Colégio Estadual, onde tinha a atual prefeito de Belo Horizonte, o Fernando Pimenta. Tinha... O presidente do diretório era o Marco Antônio Meyer, que foi trocado numa leva de presos que foram trocados pelo embaixador. Acho que era o Albright.

P1 - Americano, japonês?

R - Era o americano, e tinha o suíço também que eles sequestraram e tal. E o que a gente fazia no colégio? A gente mantinha reuniões e tal. Era muito bacana porque tinha gente. Poxa, a gente trabalhava, estudava... Chegava fim de semana, a gente ainda se reunia para poder trocar informações, indicações de livros... As pessoas que já tinham lido passavam, a gente revezava os livros. Não dava pra um só comprar todos, então cada um comprava um, depois a gente trocava e fazia as reuniões de avaliação desses livros, o resumo daquilo. E programava essas ações juntos. O Colégio Estadual fazia a ligação dos secundaristas com os universitários, então a gente é que ia panfletar nas escolas secundárias, avisando da nova passeata, quando ia ser a nova ação, quais que eram as lutas imediatas e tal. E foi muito quente esse tempo, a gente fazia coisas assim. O ônibus do colégio, quando tinha passeata, a gente tinha que panfletar, ficava, fazia aquela ala. Todo mundo na frente do ônibus e o ônibus não ia passar por cima, né? E a gente fechava atrás também — o ônibus tinha que ficar ali — entrava no ônibus pra panfletar e escrevia, passava spray no ônibus: “Igreja da Boa viagem, dezesseis horas, passeata.” E o ônibus saia depois, ia passando pela cidade e panfletando pra nós.

P1 - Isso antes do AI-5?

R - Antes do AI-5, isso 1967, 1968. Mas durante o ano tal, teve uma vez, por exemplo, as formas da gente contribuir e tudo... Teve uma vez que minha família viajou de férias. Meu pai tinha férias, aquelas férias regulares de bancário e tal, e eu trabalhava, não podia ir com eles. Então foi todo mundo com ele e eu fiquei sozinho na casa com uma secretária pra fazer comida e tal. Então, nessa época, ficou a minha casa vazia e tinha uma pessoa que estava sendo procurada, entre elas uma, que era irmão de um amigo meu, o Tião Nunes. O irmão delegado, o Etelvino Nunes, estava sendo perseguido pelo DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Eles estavam procurando e eles são de Bocaiúva, próximo a Montes Claros. Então o DOPS estava indo pra Bocaiúva atrás deles e nós armamos esse resgate dele. Então foi uma turma pra Bocaiúva bem rapidamente, que eles descobriram que o DOPS ia sair daí a tantas horas pra Bocaiúvas. Foram na frente, chegaram na fazenda dele e conseguiram avisar a eles que o DOPS ia chegar. Ele fugiu pro mato, aí essa turma pegou ele no mato, trouxe de volta pra Belo Horizonte e cruzaram com o DOPS. Como é que eles iam adivinhar que estava ali dentro quem eles procuravam? Trouxeram para Belo horizonte e trouxeram pra minha casa, ele ficou um mês lá, não podia botar, nem abrir a janela.

P1 - Seus pais apoiando?

R - Nem sabiam de nada.

P1 - Nem viram.

R - Não, mas eles me apoiariam. Eles ficavam morrendo de medo quando tinha passeata, que sabiam que a gente ia mesmo.

P2 - Ele ficou um mês na sua casa, seus pais não viram?

R - Não, eles estavam de férias, estavam em Salvador.

P1 - Estavam em férias.

R - É, então, esse mês. Por isso que foi ideal, porque era no Gutierrez, no bairro Gutierrez. Foi assim porque era a maior tensão, porque eu saía oito horas, seis e meia pra ir trabalhar e tal. Saía e ficava olhando todas as esquinas, qualquer pessoa suspeita. Telefone você não podia falar, nem ele lá em casa podia atender telefone. Não podia abrir a janela, ficava... Era uma tensão, mas que era necessário fazer. Então ótimo, porque ele chegou, estava escondido no mato, então quando ele chegou que apresentei pra ele arroz, feijão, bife, ovo e tal, que ele comeu, fez uma montanha. Ele já estava o dia inteiro sem comer e foi muito assim. Aí ele ficava lá, ficava lendo o dia inteiro, esperando alguma comunicação. Até que nos preparamos pra sair, eu não tenho notícias deles hoje. Eu sei que ele foi, conseguimos embarcar numa operação lá de casa num carro, aí no centro nós trocamos de carro, depois lá na BR nós trocamos de carro novamente, pra depois então ele sair. Foi primeiro, até pra ele poder ir pro Chile. E chegou até o Chile. Daí eles pegaram ele por aí.

P2 - E você nunca mais teve notícia?

R - Não.

P2 - Suas composições, nessa época, elas eram combativas também? Refletiam essa tensão as suas poesias?

R - A primeira música que eu fiz foi em 1968, então estava o pau quebrando. A primeira música que eu fiz se chama “Super Herói”. Tem naquele, um disquinho... Pois é! E a outra, “Viva Zapátria”, Que eu fiz com o Sirlan. O Sirlan não compôs mais, nunca mais apresentou nenhuma música e tal, mas na época ele compunha muito bem, cantava muito bem também. E ele fez esse. Ele cismou porque a gente tinha uma brincadeira entre nós, que era a seguinte: chamava turma da Pavuna. A gente se encontrava e eu saía do trabalho, tipo seis horas da tarde. E a gente se encontrava atrás da igreja de São José, aqui em Belo Horizonte. Na porta de um prédio de um amigo nosso que morava ali, no terceiro andar. Então, a gente se encontrava religiosamente todo dia ali. A gente ficava conversando, contava as novidades, e depois a gente ia pra um boteco perto pra tomar cerveja e tal. Mas é onde se encontrava ali. Encontrava... O Toninho ia muito, o Beto ia lá e tinha esse amigo nosso que morava lá, o Belfort, e tinha violão. Então às vezes a gente subia para a casa dele, alguém mostrava uma música nova... E o Sirlan era também da turma da Pavuna. E o Sirlan cismou: “Não, cabra, mas você é muito musical.” E eu sabia muitas músicas, como até hoje, eu sabia muitas melodias de cabeça. E saía serenata também em Belo Horizonte, então estava assim, aí o Sirlan cismou: “Não, cara, você é muito musical, eu vou te dar uma música para você fazer.” Ele também, da mesma forma, estava começando a fazer. E aí ele chegou e me deu uma fita cassete, eu fiquei lá quebrando a cabeça pra acertar a métricas, aquelas coisa. Esse costume que a gente tem... A maioria das músicas são feitas em cima das melodias, o que é muito bacana, porque a gente exerce a musicalidade. Você fica com mais ritmo, mais tempo de música e tal. Aí ele cismou comigo e eu acabei fazendo, parece que eu certo, que ele gostou muito dessa primeira. Aí a gente fazia essas reuniões, uma coisa super saudável. A gente juntava fim de semana, não sei o quê. A gente juntava na casa de um, ia revezando pra tocar violão. Então juntava a turma do colégio com o Toninho Horta, com o Sirlan, tinha piano com o Túlio Mourão, uma pessoa também muito importante. Porque cada um tinha uma formação diferente. E eu lembro que a gente apresentou a primeira vez... “Esse aqui está virando letrista.” Ele cantou a música e o pessoal gostou muito. O que fez dar o maior incentivo pra gente continuar a fazer. Aí que eu comecei a pegar outras músicas dele e tal. Aí acontece esse fato dessa música, “Viva Zapátria”. No caso do “Viva Zapátria”, nesses anos 1969, eu já conheço o Beto de Montes Claros e tal. Mas a gente tinha uma convivência ainda longe. Acontece que o meu pai, o meu avô Joviniano, ele era baiano, o Godofredo era baiano, e os dois eram muito amigos de antes. Depois é que eu vim saber dos causos e tal, eu acho que a esses causos vale a pena a gente voltar um pouquinho no tempo, nisso você vê a ligação. O Beto, a gente é muito amigo, adoro ele e tal. Mas aconteceu um fato inusitado em 1930 e pouco, 1933, por aí, em Pedra azul. O meu avô adorava carnaval e tudo, mas lá existiam dois clubes sociais assim, um era do PSD [Partido Social Democrático] e o outro da UDN [União Democrática Nacional], os partidos políticos da época. E o meu avô não gostava daquela coisa da política em si. Ele era mais apartidário e tudo. Então ele resolveu organizar o Carnaval de rua e mandou chamar em Montes Claros os músicos para poder... Ele tinha um fordinho, esse fordinho de bigode e tal. Mandou o chofer ir buscar os... Aí vieram o Godofredo Guedes mais um outro, meu tio Pimenta e o Godofredo Guedes, no clarinete dele. E enquanto ele chegou pra fazer o corso nas ruas... Quando ele chegou lá, no primeiro dia de Carnaval, chega um telegrama. Ele já estava lá alguns dias, que demorava três dias de viagem entre Pedra Azul e Montes Claros. Aí chega um telegrama na casa do meu avô. Ele abriu, falando que o pai do Godofredo tinha morrido. Ele pensou com ele mesmo. E o enterro ia ser naquele dia, no dia seguinte. Com que ele... Acho que meu avô raciocinando... “O Godofredo não vai chegar a tempo no enterro, vai chegar muito depois e se ele for não tem Carnaval.” Aí ele pegou o telegrama e botou no bolso, guardou e tal. E o pau quebrou nas ruas, o Carnaval, aquelas marchinhas e tal. E acabou o carnaval, o meu avô chamou o Godofredo. “Ó, Godofredo, eu fiz uma coisa que... Você não acha ruim comigo. Mas eu pensei nisso... Chegou aqui, seu pai morreu e tudo, mas você não ia chegar a tempo. Então tomei essa liberdade aqui, mas está aqui o meu chofer, ele vai te levar em Montes Claros.” E assim aconteceu. Muitos anos depois, aí eu já era parceiro do Beto, amigo do Beto, não sei o quê e parará... O Godofredo Guedes morre, ele morreu. Uma coisa incrível, saindo de um lugar, de uma avenida lá em Montes Claros, no passeio... Saindo de um passeio para atravessar uma rua, vem uma moto e pega ele, foi atropelado com seus setenta e poucos anos. E o Godofredo, a gente conhecia bastante e tal, uma pessoa incrível, ele tem tudo a ver com a música que a gente faz hoje, ele tem uma influência nisso também. Aí o Godofredo morreu e a Silvana Guedes, mulher do Beto, me liga lá em casa apavorada: “Ó, aconteceu isso assim, assado, o Godofredo morreu, o Beto está ali tomando um café, eu estou sem coragem de falar com ele, me ajuda e tal.” Aí eu fui lá na casa dele, a gente mora próximo até hoje também, e cheguei. Fui eu que dei a notícia que o Godofredo tinha morrido ao Beto. O meu avô deu a notícia do Godofredo de que o pai dele tinha morrido e eu dei a notícia ao Beto. Foi só uma coincidência transcendental, mas nossa amizade é muito profunda, contém essas ligações aí. Então era isso.

P1 – Que lindo! E os Borges? Como você fica no meio desses caras?

R – Esses caras, eu vou te contar... Eu fico, assim, uma coisa... Primeiro, eu me espantava muito quando eu conheci primeiro o Marcinho. Aí conheci o Lô também, eu conheci o Lô num festival de música, em 1969.

P1 – E o Lô é contemporâneo a você?

R – É, o Lô e o Beto. O Lô, nesse Festival Estudantil da Canção, em 1969, que aconteceu aqui na... Era Secretaria da Saúde o prédio. E ali que eu fiquei conhecendo a maioria das pessoas.

P1 – Esse é o Festival da Fome?

P2 – O Festival da Fome é do Rio.

R – Não, o Festival Estudantil era transmitido pela TV Bandeirantes. Foi um... Tinha... Nelson Motta era jurado, por exemplo, e tal. E foi aí que eu fiquei conhecendo... Já conhecia o Beto, mas veio ele e o Lô apresentando “Equatorial”, que a letra é do Marcinho, adorei aquela música. Aí que eu conheci a maioria dessas pessoas, o Sirlan, tudo nesse festival. Aí eu fiquei conhecendo o Lô. E a gente se encontrava na turma da Pavuna, nos botequins ali, e eles tocando aquelas baladas. Já era uma maior aproximação na rua, a gente não frequentava ainda um a casa do outro e tal. Mas era meio inevitável que a gente se encontrasse e eu estava. Então tem o Lô, depois o Marcinho, tudo antes de acontecer o Clube da Esquina 1, a gente só ouvia falar que eles eram bacanas. Eu estava vendo umas baladas super legais. A gente se encontrava de vez em quando, mas eu estava começando a fazer, e eles já tinham começado, já tinham músicas prontas e tal. E eu não conhecia ainda muito eles. A gente... Eu adorava aquelas músicas, falei: “Poxa, essa que é a minha turma.”

P1 – Já se falava em Clube da Esquina?

R – Não.

P1 – Na expressão, ainda não.

P2 – Você não concorreu então no Festival.

R – Não, ainda não. Eu comecei a fazer música ali, a partir desse... Nessa época desse festival e tal, mas ainda não tinha ainda umas coisas legais pra concorrer, ainda estava aprendendo.

R1 – Quando você falou: “Poxa, essa é a minha turma.” Como foi?

R – Então, eu cismei. Poxa, essa que é minha turma musical porque, poxa, tinha Toninho Horta, aquela maravilha, o Lô, o Beto... Então eu quero são esses caras! O Fernando Brant, meu amigão... Aí que eu fui descobrindo. Nesses encontros o pessoal começava a tocar essas músicas, eu: “Uai! Nossa Senhora, é isso que eu quero fazer.” E aí eu fui, fui chegando perto deles, fui buscando essa amizade. Porque a gente e todos eles, acho que vocês estão percebendo por esses depoimentos, todo mundo entre nós sempre disse: primeiro a amizade, depois a música. A música é consequência da amizade, então nós somos amigos entre nós, não somos só parceiros profissionais, não, e isso é muito bacana. Eu cismei também com Nivaldo Ornelas. Pô, que magnífico, o cara toca um saxofone moderno, tocava flauta e formava esses grupos. Tinha essa turma que a gente se encontrava, volta e meia tinha os bailes. Que aí a turma do Nivaldo, o Célio Balona, o Rubinho, o Paulo Braga, o Marilton... Onde eu conheci o Marilton, que era muito bacana... Eu adorava ir nesses bailes onde eles tocavam, que a música era espetacular. Eles tocavam os repertórios dos boleros, mas tocavam também as bossas novas, que já estava começando o tempo quente e tudo, sambas e tal. O repertório deles sempre foi muito bom e tocam muito bem. Aí foi assim, eu fui atrás daquela turma porque eu, jacuzão do norte de Minas, não sei o quê... Porque eu tinha que caçar a minha turma, eu queria fazer música mesmo, já estava começando. Aí o Sirlan tinha uma ligação com eles também, o que me ajudou a encontrá-los e tal. Até que pintou esse... Tinha uma coisa em Belo Horizonte muito legal, quando eu fiquei conhecendo também o Flávio Venturini, que é o meu parceiro com quem eu tenho mais músicas. E o Flávio, a mãe dele, tinha uma pensão de mulheres, pensão de moças que vinham do interior para estudar em Belo Horizonte e tal. E o Flávio tinha... Nessa pensão tinha uma garagem, a gente fala rock de garagem e tal. A gente entende muito bem porque a gente praticava isso. A gente ia pra essa garagem fazer umas coisas proibidas e tal, mas especialmente tocar. O pessoal ia tocar e a gente ia treinando. Foi onde eu pude conhecer melhor o Márcio Borges, o Marcinho, o Flávio, o Vermelho, do 14 Bis. Então a gente ia pra essa garagem, ficava uns negócios, uns entulhos nessa garagem e tal, mas é onde tinha o mug, tinha o teclado dos meninos onde tinha o violão, o baixo, o bandolim, e onde se juntava pra tocar de tarde e tal. Aí que começou, que eu comecei mesmo, a fazer música. Muitas músicas saíram dali, inclusive, “Nascente”, que é talvez a minha composição mais conhecida.

P1 – Como foi?

R – Eu fiz essa música, a gente tinha uns shows que se fazia, todo ano a gente se juntava, aí já ia, pegava as músicas inéditas, tudo, e eram apresentadas ali. Mas tudo pessoal ensaiava um dia antes e olhe lá, ou então no próprio dia. O negócio fazia sempre no dia de Natal, no final de ano e tal, porque aí quem estava fora vinha pra Belo Horizonte. A gente estava aqui, organizava a produção. Eu, Marcinho e o pessoal íamos nos apresentar lá no Teatro Marília, os primeiros. Depois teve no Chico Nunes também, mas os primeiros foram no Teatro Marília e se chamava Fio de Navalha, que era o nome de uma das músicas do Lô Borges. Aí, nessa época, o Flávio me apresentou, nessa garagem ele me apresentou o “Nascente”, a melodia, eu achei muito lindo e tal. Aí eu fiz uma letra pra ela, uma letra pavorosa, meu Deus do céu! Mas, assim, aprendizado é isso mesmo. Eu sei que mesmo assim ele resolveu apresentar essa música inédita durante o “Fio da Navalha”. E ele começava assim: “Areia do mar...” E só vinha coisa devagar depois disso. Mas, na verdade, eu estava pescando ali era mas a sonoridade dela, mas eu não tinha percebido ainda. Aí eu vi o Flávio tocando, corri lá no camarim, depois teve o intervalo do show: “Ó, Flávio, nunca mais você toque essa música com essa letra, pelo amor de Deus, ela é pavorosa.” Porque eu percebi ali na hora, era muito ruim, a música muito linda, eu estava errado, batendo na trave demais ali. Aí que eu peguei novamente e fiquei com ela um tempão, alguns anos depois o Beto Guedes veio gravar o primeiro disco A Página do Relâmpago Elétrico. Aí o Flávio Venturini me liga e fala: “Murilo é o seguinte, o Beto adorou essa música.” O Flávio tocou na página, eles fizeram… Ele, o Vermelho, o Zé Eduardo... Eles que fizeram as bases juntos com o Beto. E ele ligou pra mim: “O Beto adorou essa música, só que o seguinte: precisamos da letra, ele vai botar voz amanhã.” (risos) Foi assim mesmo. Eu falei: “Uai, eu vou tentar aqui, né?” Isso ele me falou num dia de noite, aí eu fiquei aquela noite e eu falei: “Não, eu vou dormir cedo ao invés de ficar batucando, batendo a cabeça aqui.” Aí, no outro dia, eu acordei cedo. Quando foi mais ou menos pelas onze horas da manhã, eu estava lá rabiscando, aí eu fiz, saiu assim meio naturalmente com uma luz divina qualquer. Aí eu morava na Serra... Eu moro na Serra, mas morava em outro lugar, muito próximo, a dois quarteirões do Tavinho Moura. Eu queria uma referência, se aquilo estava legal, se eu podia passar pro Flávio, entendeu? Não queria dar vexame, ninguém quer, aí eu vi na casa do Tavinho: “Olha aqui, eu tenho que passar essa letra pro Rio agora, vê o que você acha.” Ele vê a fitinha, nós escutamos juntos, falou: “Não, está bacana, tal.” Ele endossou. Eu fiquei mais tranquilo, aí eu telefonei e passei a letra pra dentro do estúdio pro Beto. O Beto gostou lá e gravou naquele mesmo dia, então foi rápido essa música.

P1 – Foram quantos anos?

R – Eu demorei uns três anos, que eu não peguei nela.

P2 – Ela começava com “areia do mar”, você já conhecia o mar?

R – “Areia do mar virou, clareia a manhã...”

P2 – Você já conhecia o mar?

R – Conhecia, eu conhecia o mar também com meus doze anos. E 1962 foi um ano muito fenomenal pra mim, eu conheci o mar e a televisão, foi bem diferente.

P1 – E o Clube da Esquina?

R – Então, sai o Clube em 1972. E chega... Antes do disco sair nas lojas, eu fui chamado. Eu estava junto com os meninos, junto com o Marcinho, e falo: “Nós vamos escutar, fazer uma audição do disco novo, agora que o pessoal acabou de fazer, acabou de mixar e tal, e vamos lá pra você ouvir.” Aí fui, cheguei lá, tinha um outro amigo nosso que era o Luís Márcio Vianna, estava o Lô e os Borges, e a gente escutou numa casinha que tem atrás da casa do Seu Salomão e Maricota. Aí nós sentamos todo mundo no chão e tal. Estava a Belau, estava o Ronaldo Bastos... A gente fez essa audição e eu fiquei enlouquecido, eu... Puxa vida, foi nessa que eu disse: “É essa turma que eu quero.” Que a gente já tinha... Eu já ia na casa deles e tudo, mas a gente não tinha ainda trocado essas coisas. Não tinha saído o Clube 1 ainda, mas eu já tinha todos os outros discos do Bituca. Eu já sabia as músicas de cor, adorava, a gente cantava, o Toninho tirava elas e tal. Aí foi essa audição, que é inesquecível até hoje, eu lembro da nossa emoção assim e do “volta, volta, vamos ouvir novamente”! Acabava: “Volta, vamos ouvir de novo.” Ninguém arredava, todo mundo sentado no chão. Foi muito linda essa audição. Foi o que o Marcinho cita muito, ele se lembra também desse dia. Isso, de alguma forma, uniu muito a gente, nós ficamos muito felizes, choramos juntos. O Fernando Brant estava também, então estava o time completo.

P1 – O que você acha que causou essa volta e esse elo?

R - Esse tremor?

P1 – Esse tremor, ótima palavra. Nada como ter um poeta. Em relação a música, a melodia... O que era Minas Gerais estava ali representado?

R – Não, acho que não. Nem muito essa coisa de Minas, não, era o sentido nacional, a revolução que aquela música causava. Primeiro que ela continha elementos dos Beatles, que todos nós adorávamos, e continha, ao mesmo tempo, aqueles elementos da espinha dorsal do Brasil. Da nossa música anterior, dos nossos grandes talentos, do Ari Barroso, da forma de fazer, da poética. Era um passo adiante da música que estava se fazendo no Brasil que estava por aí, estava engatinhando a bossa nova. A bossa nova que estava instalada mas vinha ali do samba canção, dos boleros, do Ari Barroso, Noel Rosa... E toda essa coisa desaguava na bossa nova. Essa música que eu estava vendo ali, extasiado. A gente percebia que estava toda a um passo adiante da música que estava sendo feita no Brasil. Já tinha guitarras, os tempos das músicas eram muito perspicazes, muito diferentes, a poética era toda uma coisa de que você não tinha referencial anterior, era aquela coisa assim: água limpa. A sensação que eu tenho é que eu estava ouvindo uma coisa... Pela primeira vez no mundo a gente está vendo este tipo de música, que não se parece com nada. Você vê, ali que estavam sendo instalados os pilares de uma nova música brasileira. Acho que a revolução da MPB veio aí, começou aí. Claro que a gente teve outros movimentos como o tropicalismo, como a própria bossa nova... O tropicalismo eu não considero como um movimento propriamente musical. Ele é mais uma revolução de costumes, de acentuar aquelas coisas do Brasil que as pessoas costumavam desprezar, a música considerada brega ou fora de mercado, ou que não era da elite. A gente nunca teve essa coisa com a elite e o tropicalismo fez assim, de acentuar isso, pegar uma música do Teixeirinha, “Um Coração Materno”. “Disse um campônio à minha amada...” Acentuar isso, o Vicente Celestino, enquanto se criava também coisas legais, no caso do Capinam e do Torquato Neto, que são poetas espetaculares. As experimentações do Tom Zé, sem dizer do Caetano, Gil... Nara Leão, que se acoplou a esse movimento. Era muito bacana, mas eu volto a dizer: não tinha a riqueza musical dessa criação que estava começando ali, e em que eu embarquei. Eu mergulhei nessa turma, que são meus irmãos.

P1 – Nessa “Nascente”.

P2 – E o Milton, como você conheceu o Milton?

R – Aí, nessas...

P2 – Nesse momento?

R – Não nessa audição. Eu já o tinha conhecido. Uma coisa, uma admiração que eu tinha muito grande a ele, mas a gente não tinha a oportunidade ainda de ficar próximo. Aí que a gente começou a ficar próximos. Algumas viagens nós fizemos para Três Pontas, teve aquele Festival de...

P2 – Cataguases?

R – Não, de Três Pontas. Que foi genial, foi o Chico Buarque, a Clementina de Jesus... E foram três dias de farra absoluta que acabou a comida da cidade porque a coisa explodiu na mídia.

P1 – Em que ano que foi isso?

R – Esse festival, foi em 1970... Depois do Clube 1, antes do Minas. Tenho que localizar esse ano direito, mas você lembrou Cataguases, legal... Esse festival foi muito importante, foi a primeira música que eu fiz. A gente dá uma rebobinada no tempo aí. Esse festival foi em 1969 e chamava-se Festival Audiovisual, ou seja, era festival de performances, então os cantores representavam, tinha muitos atores em cima do palco e tal, eles davam preferência a essas performances. E eu fui, a primeira música que eu fiz na vida, “Super-Herói”, que a gente inscreveu, nós fomos selecionados e fomos. Coincidiu com as minhas férias do banco que eu trabalhava, aí eu peguei aquele meu salarinho a mais das férias. Nós todos duros, porque tinha que ir, a gente levava a banda. E eles não pagavam transporte, não, eles arrumavam só a hospedagem lá, então a passagem era por nossa conta. E olha que banda magistral: era o Sirlan na bateria e cantava; era o Túlio Mourão no teclado; Beto Guedes no contrabaixo; e Toninho Horta na guitarra. Estava legal demais pra primeira música, não tava? Então eu peguei o meu salarinho de férias e comprei as passagens de todo mundo. Era o Lô, fazendo a outra guitarra, então nós fomos. Comprei as passagens pra eles e entramos dentro do ônibus. Mas na saída o Lô desesperou, ele estava meio apavorado naquele dia e ele desistiu no meio do caminho. A gente estava quase saindo, pegando a BR, aí apertou negócio do ônibus lá e desceu: “Não, eu não vou não, eu não estou passando bem e tal.” E foi embora. Tudo bem. Aí fomos com essa banda e tal. Chegamos lá em Cataguases. Foi super bacana que a gente desceu na rodoviária, tinha uma... A gente ia de charrete, tinha umas charretes. Acho que até hoje ainda tem lá pra você poder ir aonde a gente ia ficar hospedado, que não era também negócio de hotel, não. A gente ficava hospedado, os organizadores dividiam um tanto na casa de um, na casa de outro e tal. Mas o festival em si, o pau quebrando... Dois dias, sexta e sábado, e Domingo a finalíssima. E tinha o jurado, o júri do festival era a turma d’O Pasquim. Então tinha, estava lá o Henfil, estava lá o Ziraldo, estava o Jaguar, o Fausto Wolff e a Clementina de Jesus. Eram esses os jurados. Eu sei que aí começou a quebrar o pau, as músicas, todas sentando a sua. Mas eram todas músicas de representação e tal. Então existiu uma performance lá da Equipe Mercado, tem uma menina que ficou, ela chegou a gravar disco e tal, Lúcia Turnbull, ela ficou conhecida no Brasil assim. Ela fazia parte dessa equipe de mercado, eram mais ou menos umas treze pessoas. Então eles entravam no palco enquanto tinha um baixo, uma guitarra e uma cantora, que era a Lúcia, e o resto eram performático. Eles entravam no palco levando sacos de lixo, vestidos de mendigos com as roupas todas imundas, sujas de propósito e tal. Iam entrando assim, começavam a jogar aquele lixo, aquelas folhas secas, papel velho e tudo, jogavam em cima dos jurados, desciam pra platéia e começavam a espalhar aquilo pela plateia enquanto a música estava tocando. Essa música durava uns quinze minutos e tal. Mas era genial o desacato deles e tal. E acabou a apresentação deles. Todos eles, todos os jurados deram nota só pra eles, só que acabou a apresentação e a polícia estava na porta com um camburão pra levar. “Ou vocês vão embora agora ou vocês entram aqui no camburão.” Então eles não puderam se apresentar na final. Eles foram selecionados com a melhor nota de todo mundo. Aí esse festival de músicas performáticas, a nossa, não. A nossa era uma música normal: música, letra e a banda tocando. Tinha um outro também, que era o Sá e o Guarabyra, que tocavam, já era um embrião d’O Terço. Tinha O Terço, tinha o Vinícius Cantuária, que tocava bateria... E eles tocavam uma música, “E Jesus ressurgirá em pleno México”. Tudo assim. A minha música que eu vim fazer depois era o “Viva Zapátria”. A gente tinha uma ligação latina muito legal. E a música que ganhou esse festival... As nossas, a gente ficou em quinto lugar, sexto lugar e tal. Todas as outras as primeiras eram performáticas, que era o propósito do festival. Aí a música que ganhou foi uma música do Capinam e Marcos Vinícius, a música se chamava… Eu sei que o refrão dela, era uma música mais falada, e a pessoa ia declamando e tal: “E o mar batendo nas pedras…” Aí não sei o quê “se feriam, se ferem os homens”, não sei o quê “e o mar batendo nas pedras”. E essa música ganhou o primeiro lugar. Foram entregar o prêmio para o Capinam, ele era o letrista, coisa que correspondia talvez a uns dez mil reais hoje. Deram o primeiro prêmio pra ele, ele recebeu o prêmio e no microfone falou: “Quero comunicar a vocês que esse prêmio de tantos mil cruzeiros está sendo doado para o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8.” Aí a massa “Ahhhh”, e ele deu o prêmio dele todo. Durante toda essa estada nossa em Cataguases era aquela coisa tensa, a qualquer momento alguém podia ser preso, nós tivemos que juntar todo mundo. Tinha o filho do prefeito que concorria também, a gente junto. O Carlos Imperial concorria... Nós tivemos que juntar pra a equipe de mercado não ir presa, a gente falava: “Se eles forem presos, ninguém se apresenta.” Nós tiramos as nossas músicas todas, não ia parar o festival no meio, né?

P1 – Era estratégia, inclusive, de realização?

R – Exatamente. Pra poder, então, a barganha possível foi essa, deles irem embora. Então puseram um carro a disposição deles, encheu de quinze pessoas ali dentro.

P1 – Você já falou da sua relação com o Beto Guedes, com o Flávio Venturini e com o Lô Borges. Como que é a sua…?

R – Então, o Lô, a gente ficou muito amigo, mas nós viemos a compor bem depois. A gente se encontrava, bebia junta, coisa e tal, porque o Lô já estava desenvolvendo esse trabalho com o Marcinho e com o Ronaldo. Eu comecei a chegar de verdade nessas pessoas depois do Clube 1. Só tem música minha no Clube 2, que é o “Nascente”. Foi a primeira música gravada por eles e a partir d’A Página do Relâmpago Elétrico, que foi anterior ao Clube 2, onde foi gravado “Nascente” pela primeira vez. Ali eu já estava dividido, fazendo as letras pro Flávio bastante, começando a fazer coisas do Beto, mas na Página só tem o “Nascente”, minha com o Flávio. Eu já tinha começado fazer música com o Beto, e aí que eu comecei a fazer com o Lô, nós viemos a fazer uma música que se chama “Nenhum mistério”, que tem a letra minha e do Ronaldo Bastos. Essa música foi um pedido do Bituca, olha que legal isso, foi o Bituca. Estava produzindo o disco do Tadeu Franco, então estava fazendo repertório ainda. Ele já estava gravando algumas coisas e um dia a gente estava começando no Quilombo, que vocês já ouviram falar bastante, que era onde a gente muito se juntava, e eu sou o redator de propaganda também. Eu fazia muitos trabalhos lá junto com o Fernando Brant e o Márcio Ferreira, que era o outro dono do Quilombo, e lá no Quilombo estava o Bituca, o Marcinho e eu. E estava o Lô e o Bituca: “Poxa vida, a gente precisava, está precisando de mais música lá no disco do Tadeu, está precisando de uma balada nossa e tal.” Estava o Lô assim, e o Bituca que falou: “Por que vocês não fazem um pra entrar no disco.” “Uai, Bituca! O Bituca fala, a gente obedece.” Tem essa coisa, aí ele deu essa sugestão bacana demais. Aí o Lô foi cuidar dessa melodia, escolheu entre as coisas que ele achava que podia, pegou uma música que tinha uma parte já pronta e compôs o resto dela. E o Ronaldo estava chegando em Belo Horizonte, isso uns dois dias depois desse papo do Bituca. Aí eu peguei o Ronaldo no Aeroporto e levei pra casa do Lô. Aí o Lô sentou no piano e mandou essa. “O mistério... Nenhum um mistério era saltar na fonte desse nosso desejo…” Aí nós… Estávamos eu e Ronaldo lá, o Ronaldo veio pra fazer uma outra coisa, falei: “Ô, Ronaldo, temos uma emergência, temos que acabar essa música aqui hoje” Aí ele sentou do lado do Lô, eu sentei do outro, que é uma coisa muito bacana essa, esse exercício nosso, esse nosso fazer nosso dos letristas do Clube, o Ronaldo, o Marcinho, o Fernando, tal. Mas, especialmente, o Marcinho, o Ronaldo e eu, a gente sempre ajudou o outro. A gente se encontrava pra ver, as vezes tinha urgência de fazer as músicas. Os discos do Beto, por exemplo, porque o Beto gosta muito de compor durante, quando está na hora de fazer o disco. Ele não é desses que compõem e daí a três anos vão gravar, não. Ele deixa meio pra compor na época, pra ficar mais quente. Aí a gente junta. Aí também já está, não pode atrasar o estúdio que está esperando. Então nós fizemos uma instituição fictícia que a gente chama de “Socorro Costa”, que tem nos discos. Você pega os discos do Beto Guedes e vai olhar lá: “Agradecimentos a Socorro Costa.” Aí vem fulano, fulano, o nome de outras pessoas, outros agradecimentos... Socorro Costa é isso: o Marcinho, o Ronaldo e eu. Porque o Ronaldo estava fazendo uma letra, aí empacava ali, a gente chegava e fazia, desempacava pra ele, dava um verso, fazia um verso ou ajudava solucionar, dava um título... A gente ia trocando esse nosso fazer. Isso foi muito bacana e gerou também algumas letras feitas juntos, feita por dois letristas. Eu tenho letra com o Márcio Borges, letras a quatro mãos, de duas cabeças. Então, como eu tenho com o Ronaldo essas coisas... Que é uma coisa que mostra muito a generosidade desse fazer. Ninguém tem essa coisa dessa vaidade que muitos compositores tem, de ficar protegendo a sua própria criação, não deixar ninguém botar o dedo. Nós, pelo contrário, a gente adorava quando um metia o bedelho na letra do outro, era tudo pra melhorar. Eram palpites. Porque às vezes acontece, você está fazendo, dá uma empacada ali num verso e um outro. A gente, nós já éramos afinados entre nós, então a gente fazia uma lista: “Ó, essa letra não pode ter tal palavra porque já tinha muito nas outras.” Então a gente ficava vigiando as coisas para que elas saíssem com qualidade e saíssem rápidas, com rapidez também.

P1 – Quase uma corporação de ofício?

R – É verdade, era o Socorro Costa, é uma instituição bem bacana que a gente até hoje a gente exercita, nós podemos encontrar se tivermos uma dificuldade. Às vezes a pessoa não está na cidade, você liga e fala: “O que você acha disso aqui.” Nós temos essa cumplicidade que é muito fértil.

(pausa)

P1 - O Socorro Costa, quais foram as músicos que passaram por ele?

R - Uai! Nossa... São várias! Pegar os discos do Beto, Sol de Primavera, Contos da Lua Vaga, tem várias músicas ali que eu não sei te precisar agora qual verso, qual pedaço que a gente ajudou um ao outro a fazer e tal. Mas foram várias canções, inclusive essa do Sol de Primavera, Contos da Lua Vaga, Amor de Índio, tudo isso tem o Socorro Costa lá. E que a gente... Eu estava conversando com o Marcinho ali, ele me lembrou de quando eu o conheci. Eu já comentei aqui da turma da Pavuna. Então o Marcinho não era um frequentador da turma da Pavuna, mas de vez em quando ele ia lá. Porque ele era amigo de várias dessas pessoas, desses nossos amigos. A gente já tinha amigos em comum, então lá, por uma amiga nossa, a Lucinha, que estudava no Estadual também, me apresentou a ele. Aí a gente ficou amigo para sempre. E essa coisa a gente desenvolveu muito, essa coisa da amizade é muito importante, porque enquanto isso, enquanto a gente estava começando a desenvolver essas músicas, a gente ia aprofundando a amizade. Como viagens e tal, a gente fazia, as vezes vinha o Ronaldo Bastos pra cá, a gente ia pra Ouro Preto junto e o Ronaldo sempre com um gravadorzinho escutando uma música nova pra fazer. E teve uma vez de um, que o Bituca foi gravar, um especial pra Rede Bandeirantes e dessa vez a gente estava muito próximo. Ele tinha gravação em Belo Horizonte, tinha gravação em Ouro Preto e tinha gravação em Diamantina. A gente acabou essa gravação de Ouro Preto viemos pra Belo Horizonte. A minha mãe cozinhava muito bem e sempre gostava de que tivesse convidados e tudo. Aí nós viemos e o Bituca foi experimentar o frango ao molho pardo da minha mãe. O Bituca e o Novelli. O Novelli estava fazendo, gravando com o Bituca esse especial e tal. Eu lembro que, nessa época, o Bituca tinha gravado um compacto que ele cantava “Primeiro de Maio”, que é uma música pouco conhecida, que é ele com o Chico Buarque. E o Bituca acabou o almoço, serviu a sobremesa, e o Bituca, pra agradecer, pegou o violão e cantou o “Primeiro de Maio”. Foi uma coisa linda, que eram uns tons muito agudos, e a minha mãe ficou impressionada, porque conhecia ele da televisão e tudo. E lá em casa, essa coisa, esses almoços lá na casa da minha mãe eram muito legais, assim como foi o Chico Buarque, foi o Caetano Veloso, que a gente fez amizade através disso. A gente ia, por exemplo, jogar futebol com o Chico, MPB4, depois ela vazia um vatapá, um frango ao molho pardo, uma comidinha mineira, e foi um ponto de reunião muito bacana. Dessa gravação desse especial, nós estávamos gravando em Belo Horizonte, tinha um bar em que a gente se encontrava muito, frequentava muito lá, que era o Bar do Chuchu lá na Savassi. O Chuchu já está no céu e tal, ele era uma figura muito típica, boa de fazer caricatura, ele era gordinho, a barba muito grande e tal. E esse bar dele era onde a gente se encontrava muito com o Veveco, ele era amigão do Veveco também e teve uma gravação desse especial lá nesse Bar do Chuchu, que era o Bituca com o 14 Bis. Eles estavam cantando, se não me engano, “Canção da América” e gravaram assim: montaram um palcozinho lá nesse bar e nós éramos os frequentadores do bar, simulando o bar em movimento. Foi muito bacana essa gravação, aí acabou e eram umas onze horas da noite, era uma gravação noturna, quando, a gente conversando, eu tinha um carrinho, um Chevette. E no dia seguinte era pra ir pra Diamantina para gravar, aí eu propus conversando numa roda, estava o Bituca o Ronaldo, o Lô: “Pô, gente, ao invés de esperar amanhã pra sair correndo pra ir de ônibus no especial que ia levar a equipe toda, vamos hoje porque a gente espera eles lá.” Eles toparam e foi uma viagem linda. Pra você ver que quantidade de músicas boas que gerou isso aí, estava eu dirigindo, o Bituca, o Ronaldo, o Lô e o Marcinho nesse carro. Esse carro, não podia acontecer nada com ele. (riso) Senão a gente estava na água. Foi muito bacana, a gente foi pra Diamantina, o Bituca fez um showzão, gravado e tal, assim como esse especial que gravou em Três Pontas também. E teve uma coisa inesquecível, que era em frente à casa do Bituca, na pracinha, na Praça Travessia. Era o Bituca e Toninho Horta, o Toninho acompanhando o Bituca e ele cantou tarde, que é do Bituca e do Marcinho, uma gravação linda que eu não esqueço até hoje. Mas vão. Onde vocês querem, daí pra onde?

P1 - Só pra registro, eu queria que você falasse um pouco mais dessa história do Quilombo. Era uma produtora? Como era? Quando surgiu? Como quê?

R - Quilombo era o seguinte: era pra ser uma agência de propaganda, um estúdio de propaganda, onde tinha o Márcio Ferreira, o Fernando Brant. Eram o fundadores do Quilombo. Então ali a gente fazia, e eu fazia freelance pra eles, que eu já trabalhava com propaganda. E a gente, onde se fazia, tinha um cliente onde eles faziam, a gente fazia folhetos audiovisuais, peças gráficas, tudo concernente à propaganda, e era também um ponto de encontro da gente que era muito bacana. Depois, com o passar do tempo, o Márcio Ferreira veio a ser empresário do Milton e nessa época a gente estava muito junto, isso aí gerou o Quilombo, gerou várias coisas. Depois, já nessa época, a gente já fazia ali algumas coisas pro Bituca, alguns folhetos para ele traduzidos pro inglês, pro espanhol, não sei o quê, pra ele poder... Já estava começando a carreira internacional dele. Mas era, sobretudo, um ponto de encontro de resistência política, porque a gente precisava de organizações assim. Tinha, por exemplo, o encontro dos trabalhadores em Genebra, era um encontro que se dava de sindicalistas e tal. Todo ano eles se encontravam em alguma cidade da Europa e a gente tinha que comunicar o que estava acontecendo no Brasil. Só que não podia. A alfândega, eles fuxicavam todas as bagagens, e a gente não conseguia passar nenhuma informação. Você imprimir alguma coisa, passar essas notícias pra fora pra poder ter uma cumplicidade internacional, para ajudar nessa, fortalecer essa defesa dentro do Brasil pra gente lutar onde estava. A luta pelas (Eleições) Diretas estava muito embrionária ainda. E lá no Quilombo, por exemplo, a gente fez uma saída. Foi, por exemplo, pegar fotos, as fotos de... Tinha tido uma passeata de operários aqui na Avenida Olegário Maciel e eles tinham matado, tinham assassinado um operário durante essa repressão da passeata, e essa coisa não conseguia, essa notícia não saía pra fora, não tinha como, a censura brecava tudo. Então, o que a gente fez? Nós fizemos microfilmagens desse movimento operário que estava acontecendo em Minas, Vale do Aço. Existia uma chacina também lá anterior, em Ipatinga, e de todas essas notícias do movimento operário brasileiro foram microfilmadas as fotos com pequenas notícias. Nós reduzimos, ficou aquela coisa mínima, que aí ele pegaria isso e, como eram filmes em negativo e microfilmes, era uma coisa fácil de você malocar e levou pra lá. Chegando lá, eles conseguiram laboratório, ampliaram e apresentaram lá na coisa. Quem foi emissário disso foi o Virgílio Guimarães, que ele é deputado federal do PT [Partido dos Trabalhadores], e o João Paulo, que era sindicalista e foi deputado também. E essa ligação com a esquerda precisava dessas ações, então o Quilombo funcionava muito bem. Tanto que na época do Tancredo, isso já em 1982, foi o Quilombo que organizou, fomos nós que organizamos esse grande comício do Tancredo que teve. Foi a primeira eleição direta pra governadores e nós fizemos um show pro Tancredo na Praça do Papa, onde tinham 250 mil pessoas, pra aquela coisa veio todo mundo de fora e ali que a gente fazia. Nós fizemos essa produção, essa execução toda dos artistas, convidamos os artistas, organizamos o som, organizamos notícias, e foi um trabalho muito bacana esse.

P1 - O Quilombo, ele aconteceu no final da década de 1970 até meados dos anos 1980?

R - No final, não. Na década de 1970, desde o começo, desde o começo.

P2 - Esse comício foi na Praça da Estação?

R - Praça do Papa, esse foi do Tancredo. Antes, o da Praça da Estação... Foi na Praça da Rodoviária que teve o comício das Diretas, aí também a gente estava ajudando a organizar isso. E deste, a coisa do Quilombo, depois gerou uma... Aí o Márcio Ferreira passou a ser o empresário do Milton através do Fernando Brant, que ele ficou conhecendo, e o Fernando era sócio dele no Quilombo. Depois, com o tempo, ele passou a ser e empresário do Milton e o Quilombo direcionou mais pra esses lado, pra fazer as produções do Milton. E nós montamos uma agência de propaganda que se chamava Livre Propaganda Brasileira, que durou de 1982 a 1988, na qual era sócio do Márcio Ferreira. Essa agência também, a gente funcionou bastante nessa parte dos candidatos, da parte política dos candidatos de esquerda, era um núcleo muito bom de ação política, além da propaganda mesmo de produto e tal. Mas foi uma agência muito grande, ela chegou a ter 65 funcionários e tal. Durante esses anos era onde a gente fazia as capas de discos também, cartazes pros artistas, pros amigos e promovia shows, era um núcleo muito legal. O Quilombo tem uma importância muito grande nessa história, foi onde eu contei essa história do “Nenhum Mistério” com o Milton e tal, então essa reunião foi no Quilombo. O Quilombo chegou a fazer um estúdio de som, de áudio, que era um projeto do Milton e do Marcinho, programas radiofônicos, programas de duração tipo de uma hora, programas com músicos brasileiros. Essas fitas eram distribuídas para todo o Estado de Minas, para todas as rádios. Normalmente, fechava o contrato com uma rádio de cada cidade e eram enviados esses programas. Era super legal porque você só ouvia tocar no interior sertanejos, coisa e tal. Com isso eles começaram a tocar mais as coisas nossas, Tom Jobim e Bossa Nova, músicas de qualidade. Foi através desse programa. Até o Demerval trabalhou lá no nosso...

P2 - Onde era o Quilombo, onde era a sede?

R - Era ali no Funcionários... Gente, como chama aquela rua? Deu branco... É Rua Piauí, ficava quase de esquina ali. É Rua Timbiras, quase esquina da Rua Piauí, uma casa antiga.

P2 - Ainda nos anos 1970, a coisa meio que se concentrou no Rio de Janeiro. O pessoal, Márcio foi pra lá, os meninos, o Lô passou um tempo lá, o Beto Guedes... Você chegou a morar fora de Belo Horizonte?

R - Não, sempre morei aqui. A gente quando tinha... Por exemplo, quando estava fazendo um disco, a gente ia, ficava lá, resolvia as letras, acompanhava as gravações, ia aos lançamentos dos discos para entrevistas e essas coisas. Mas eu sempre morei aqui, igual o Fernando. Por exemplo, ele teve uma época que ele ficou no Rio e voltou correndo. (riso) Porque o dia-a-dia era muito... Por causa do músico, era mais direto, eles tinham mais função. Mas nós, o nosso ofício, o nosso trabalho podia se desenvolver aqui tranquilamente, passava as letras por telefone ou ia lá levar, então era mais... Podia se fazer aqui e a qualidade de vida era melhor.

P1 - E o Clube da Esquina 2, como é que foi essa gravação?

R - Pois então, o Milton conheceu a música através do disco do Beto, A Página do Relâmpago Elétrico, apaixonou com ela, botou debaixo do braço: “Eu vou cantar e pronto.” Aí eu lembro que o Beto chegou um dia aqui, nos encontramos em um botequim — nós adoramos botequins —, entramos no botequim e ele que me contou: “Ó, véio, o Bituca está gravando lá, você está sabendo? Eu: “Não.” (riso) O Beto que me deu a notícia.

P1 - Você chegou a ir na gravação?

R - Não, eu já vi pronto.

P1 - Porque muita gente transitou, era um entra e sai.

R - Era muita gente, mas dessa eu não fui, não.

P1 - E qual foi o impacto quando você viu o disco todo?

R - Foi muito emocionante, porque já tinha sido com a primeira gravação dela pelo Beto. Teve uma curiosidade musical: os papéis dos músicos estavam todos invertidos nessa gravação do Beto. Ou seja, Novelli que é baixista, tocou piano; o Beto Guedes, que é basicamente guitarrista e baixista, tocou bateria nessa gravação. E quem mais? O Toninho Horta tocou baixo, então era uma experimentação. Experimentação nada. Só trocaram de papéis ali naquela canção, assim como eles faziam de vez em quando. Isso, no Clube 1. No Clube 2 as pessoas trocaram de instrumentos, que eles são muito hábeis, muito musicais, então dava um novo calor na música na hora que eles trocavam. E o bacana é a coisa do Clube 2, que era essa ampliação de coisas, várias pessoas que foram acopladas. O caso da Joyce, do Maurício Maestro e várias outras pessoas que foram juntando, foram aumentando maravilhosamente os associados deste clube. A partir daí também que a gente começou a compor muito mais junto, era motivo de encontros e tal. Basicamente, os meus parceiros são daí, que são o Flávio Venturini, o Tavinho Moura, o Beto Guedes, o Lô Borges, o pessoal do 14 Bis, o Nivaldo Ornelas, com quem eu tenho algumas músicas interessantes inéditas. Porque essa coisa, a gente tem esse baú de músicas inéditas que é muito grande. A dificuldade hoje muito é, por exemplo, compor pra nós é um prazer e tudo. Mas e ai? Como é que faz pra colocar essas músicas? Nós não temos... Infelizmente, as editoras não cumprem o papel que seria original pra elas, que é de colocar as músicas, porque elas estão ganhando a porcentagem delas pra editar a nossa música, pra recolher das gravadoras o dinheiro e repassar pra nós e tudo. Eles deveriam atuar pegando as nossas músicas e oferecendo aos intérpretes. Eles que estão sabendo quem é que está gravando, onde fazer esses contatos, acaba que isso fica muito restrito às relações pessoais dos compositores, dos autores. O que é pouco. A gente não consegue estar presente em todos os lugares, uai! Então essa coisa é uma falha nesse sistema brasileiro, essa colocação das músicas, com isso a gente tem N músicas feitas e inéditas que estão ainda por ser gravadas. Eu digo assim aos novos intérpretes, a moçada que quer gravar disco: todos nós temos músicas inéditas, pode vir que tem. Porque eu acho bacana essa renovação que a gente consegue com esses novos músicos e tal, sempre que eles nos procuram a gente tem uma troca muito boa e é bom que continue assim.

P1 - Ou fica guardado pro Clube 3.

R - Então, mas tem muita música, dá pra fazer uns 5 Clubes assim.

P1 - De gerações futuras.

R - É.

P1 - Das composições que você esteve envolvido sempre, você tem alguma em especial que seja a sua preferida?

R - Olha, não. A gente... Eu não sou doido de deserdar as minhas queridas. Elas são todas, são... Foram feitas em momentos diferentes, em situações diferentes e tal, mas tem umas que sobressaem mais que as outras. Caso de “Nascente” que, talvez, seja uma de minhas composições mais conhecida. “Besame” também, que é minha com o Flávio, que também já teve muitas gravações e eu já ouvi em lugares dos mais diferentes. Em Manaus, eu estava ali passeando, entro num boteco e está tocando, as pessoas cantando. “Besame” também tem muita, são inclusive as duas músicas com as quais eu arrecado mais de direito autoral. As minhas líderes de arrecadação são essas duas, e tem algumas coisas que são meio especiais e tal, como agora, recente, que teve essa gravação da Maria Rita, a filha da Elis. Ela gravou uma música, uma composição minha com o Natan Marques, uma música que se chama “Vero”. Essa música, eu gosto muito dela, também por essas contingências, porque a coisa da Elis Regina, eu tenho... Infelizmente, não deu tempo pra que ela gravasse alguma composição minha, que eu adoraria, e ela, quando ela morreu, estava programado, o Ronaldo Bastos seria o produtor do disco dela. Eles estavam separando o repertório e tinham escolhido uma música minha com o Tavinho que se chama “Fim do Amor”. Ela iria gravar, já estava começando ensaio, separando repertório, aí ela morreu. E eu só vim a ser gravado pela filha dela, ainda bem, no primeiro disco dela agora, Maria Rita.

P1 - Como era essa canção, “Fim do Amor”?

R - É uma coisa meio valsa, meio... Ela tem uma conversa meio com uma poesia de época, que fala assim: “Chorando mas por querer, eu vi que esse amor singelo e feliz está chegando ao fim. Eu sei eu vi seu jeito de princesa, eu suporto tudo o que vale a pena, mas não me acostumo com a nobreza. Na espera da dor fiquei, não posso esconder, fiquei sem saber perdi seu coração. Ah, que pena! Pois perdi o medo de amar sozinho, apenas pra livrá-la dos lacaios…” Então tem essa coisa. Algumas palavras que são meio de época, dos lacaios, perene, é uma coisa... A música é muito linda.

P1 - Ninguém gravou?

R - Essa música foi gravada pelo Beto Guedes, no Amor de Índio tem ele.

P1 - Murilo, qual é o processo de compor? Ele é sempre a partir de uma música já feita ou não, é uma letra que surge?

R - Normalmente a gente trabalha em cima da melodia, a maioria. Não nos impede da gente fazer uma letra e dar para alguém fazer em cima. Mas a grande maioria é em cima das melodias, o que é mais gostoso de fazer, que a gente fica menos solitário, você vai ouvindo uma música, ela já sugere coisas, você vai brincando, você tem uma melodia, você tem ritmo...

P1 - Como é, particularmente, seu processo de composição? Como que você trabalha? Você fica na sala, como que você faz, tem um ritual?

R - Tem muito ritual, não. É ouvir, ouvir e ouvir. Eu sigo até ter a música dentro de você, pra então tentar uma coisa, venha desenvolver uma ideia. Às vezes tem um título que eu gosto, que eu persigo ele. Às vezes tem uma... Naquele momento que eu pensei o título, eu não tinha nenhuma música parecida com aquele título, depois ela aparece ali na frente, você deixa anotadinho ali e desenvolve ele. Às vezes tem um verso só que você adapta pra aquela música e acaba virando o tema dela, mas normalmente eu gosto de me deixar levar pelas canções pra que saia uma coisa bem espontânea, popular. Tem que ser uma coisa espontânea, não pode ser uma coisa muito cerebral, não. Senão ela fica ruim de cantar, as pessoas não vão gostar de cantar.

P1 - Você é um encontro solitário ou você partilha com a sua família essa primeira audição?

R - Não, isso é mais sozinho. Até ela ficar pronta tal a gente se guarda um pouco. Acho que todos eles. O Marcinho é assim, o Fernando... Deixa a gente e tem que gestar primeiro, depois, sim, aí você solta no mundo.

P1 - Você também teve uma experiência, teve um filme como ator, dois curtas?

R - Sim.

P1 - Multimídia, como é que foi isso?

R - Ah, super bacana demais, eu falei da minha paixão pelo cinema desde antes tal. E eu fiz esses dois filmes, curtas-metragens, um primeiro foi o Sartori, Luiz Alberto Sartori que foi o diretor, é um filme preto e branco que se chama O Crime dos Irmãos Piriá, que foi um fato verídico acontecido aqui em Belo Horizonte, nas redondezas, que eram dois irmãos e um irmão foi preso, a sinopse dele é assim: foi preso um desses irmãos por um, ele estava... Ele tinha comprado uma radiola dele, estava na bicicleta, na bagagem da bicicleta e foi parado por um policial. Ele tinha… Como é que fala? As roupas muito simples e tudo, e o policial cismou que ele não tinha, que ele tinha roubado aquela vitrola. E prendeu ele por causa disso. Porque ele não tinha nota fiscal, essas coisas. Aí ele levou ele, foi preso, e aí o irmão dele ficou puto e foi visitar ele na prisão, não sei o quê. Enfim, armaram, providenciaram uma fuga. Ele conseguiu fugir num dia lá de noite e tal, aí o irmão dele ajudou nessa fuga e eles capinaram, foram pro mato e a polícia começou a perseguir, que aí virou uma questão de honra. Como é que foge? E foram perseguindo eles e tal. E até um dia de Natal, isso em 1980, final da década de 1980 assim, num dia de Natal eles conseguem fazer o cerco neles, porque eles tentaram várias vezes. Chegava, tinha notícia deles em Sete Lagoas, daí a pouco numa cidadezinha Pedro Leopoldo, Vespasiano, e eles iam andando sem parar. Eles ferveram em cima, fizeram o cerco neles e mataram os dois, e a história é essa. Esse filme ganhou uns prêmios, ganhou alguns prêmios. Foi muito bem recebido. O outro foi um filme do Aloísio Sales Júnior, o Juninho, que fez um filme chamado Solidão, que é a história de um terrorista, terrorista meio da direita. Uma, que nessa época brava e tal, tinha reuniões que se faziam nas comunidades, nas igrejas, nas comunidades de base. Essas paróquias todas organizavam, então é a história de um atentado que eu sou o terrorista, que eu ponho uma bomba numa comunidade dessas. Mas isso servia pra você contar como é que era o sistema de repressão, como eram as reuniões, como é que se faziam essas reuniões nas paróquias, os padres progressistas ajudando as pessoas encontrarem, resolverem prisões, ajudarem os outros. Era uma forma de organização muito importante nessa época. Esse filme também era em preto e branco e a trilha sonora era do Uakti. Todos eram cercados por bons trilheiros, que era muito bacana. Mas o espírito de equipe, acho que é uma das coisas principais, uma forma de aprender em cinema. Quando eu fui fazer o Cabaret (Mineiro), isso foi em 1979, eu nunca tinha feito cinema. Aí eu ajudei a arrumar o set. Até o diretor gritar “ação”, tinha o dedo da produção ali e de todo mundo. E foi muito bacana você ver colocação de câmera, os travellings, como se concebia os planos. E a gente era muito amigo, participava muito na elaboração dos planos das sequências. Até então, eu não sabia muito esse fazer do cinema, mas eu era um observador. Então o Cabaret foi onde posso dizer que aprendi o cinema, a forma do Carlos Alberto trabalhar, que era um diretor que buscava muito a economia, nunca tinha fartura, verba astronômicas para realizar os filmes dele, eram verbas muito pequenas. Então a gente tinha que usar, ele usava de extrema imaginação para poder simplificar os planos. Não tinha, não podia ter a grua. Podia ter grua dois dias, durante três meses. Então, outros planos, você tinha que improvisar, fazer carretilhas, fazer roldanas e tentar imitar uma grua, porque você estava lá no meio do sertão e envolvia com a comunidade, que é uma coisa muito viva. E aí, quer dizer, eu mexo, eu amo cinema. Talvez por um tempo, esse tempo da formação da gente era o tempo logo depois da Nouvelle Vague, o neorrealismo italiano, a gente sempre gostou mais dos filmes europeus. Era o Godard, depois os italianos, o Antonioni, o Fellini, o Pasolini, essa escola era muito boa, e os filmes americanos jamais, que era extra Hollywood. O andavam meio à margem, que eram os filmes que nos interessavam mais, mais próximos o possível do cinema brasileiro. Como já estava rolando o Cinema Novo, que também foi uma lição fenomenal pro Brasil, aí essa paixão pelo cinema. Assim como eu fiz algumas canções também, tem um outro filme também do Carlos Alberto, chamado Perdida. Na trilha desse filme, a trilha é do Tavinho e eu tenho algumas coisas, tem uma música da gente chamada “Mauá de Baixo”, que é uma rua daqui de Belo Horizonte onde tinha a zona boêmia, o meretrício. Eu falo que é o alto meretrício, não é baixo, coisa nenhuma. Essa música é sobre, assim como era no filme, a história de uma mulher que fez essa escala social. Ela era empregada doméstica, onde as pessoas ficavam sempre tentando pegar nela e comer ela à força e tal essas coisas. Aí ela sai da casa, vai ser operária, vai trabalhar. Foi nessa época que estava... Época da Sudene, essas coisas, vai trabalhar numa indústria onde sufocavam pelo próprio trabalho e acaba saindo dali não tendo muita oportunidade. E um sujeito, que é um chofer de caminhão, leva ela pra zona. É a trajetória social de muita brasileira, que rolava e ainda rola, de certo modo. Então esse filme tem algumas composições minhas com o Tavinho, que são colocadas ali. Acho que é isso aí, a base do cinema pra mim foi essa.

P1 - Sem esquecer, é claro, A um Passo da Eternidade.

R - Exatamente, o filme que eu fui tirado no letreiro.

P2 - Você poderia falar um pouquinho da sua profissão de poeta?

R - Uai! Pois é, uai! Isso é o seguinte, eu fiz o meu primeiro livro em 1979. O livro se chama O Gavião e a Serpente. Nesse livro eu coloco umas coisas, foi uma série de possibilidades de poesia em prosa, poesia-poesia, prosa poética. É um livro pequeno, mas ali eu tenho uma série de indicações pra mim mesmo, inclusive, dos caminhos que tomaria na minha poesia. Agora, a poesia é muito difícil de publicar. Muito difícil de você fazer a poesia chegar até as pessoas. Ela se dilui, não é a preferência dos editores, é dificultosa. Então eu fiz dois livros. Esse, O Gavião e a Serpente, e fiz um outro depois, já em 1990, que se chama Musamúsica, uma palavra só. É um livro que é de edição artesanal, numerada e assinada, que eu fiz junto com o Paulo Giordani, que é um artista plástico. E esse livro, ele tem uma singularidade, assim como os tons e os semitons. São doze, então tem doze estrofes, doze gravuras, gravuras em linóleo, e fala sempre a musa e a música. E tem assim, por exemplo, começa... Na gênese, fala assim: “O primeiro som foi o acordar de Deus, depois o universo roubou do silêncio, a hegemonia cósmica.” Começa assim, então são versos mais ou menos desse tamanho, compondo doze e tal, tem um que eu digo lá o seguinte: “Nasce a música, nasce Milton Nascimento, o rio ruge no deserto de cada um.” Já tem essas referências ao Bituca, essa admiração espantosa, essa coisa abismal que é o Bituca, que a gente comenta entre nós. Eu falo com meus amigos assim: “Poxa, que sorte que eu dei de ser de uma geração onde eu vi acontecer o Milton Nascimento e, por sorte, ele ainda cantou algumas canções da minha lavra e tal.” Poxa mas que sorte e ver o nascimento, o nascimento do Milton. Ele crescendo na música e acontecer na mesma geração sua, são coisas que, assim... Como eu queria que poder ver isso acontecer com o Noel Rosa, acontecer simultaneamente essa coisa e alguns outros, como foi também o Tom Jobim um pouco mais velho, mas no nosso tempo. Ou seja, nós demos muita sorte de fazer uma fornada dessas pessoas, que talvez seja a melhor música do mundo, e que está sendo feita hoje no Brasil. E não tenho dúvida disso, não.

P1 - E o sertão é muito fértil.

R - O Sertão é. O Brasil é muito fértil. E essa junção de ritmos, de coisas, de mistura, baião, coco, xote, as valsas, as serestas, o samba... Isso tudo que o Brasil é capaz de gerar não tem nenhum outro país que consegue, que tenha isso. Então felizes nós, vamos aproveitar isso muito bem. Acho sempre que a música deveria ser o nosso principal produto de exportação, igual é o café. Os governantes deveriam dar muito gás em cima disso, dar apoio, políticas de exportação, de comercialização, facilidades pra isso, que é o nosso grande produto. O nosso grande produto não é só o futebol, não. Nós também somos pentacampeões na música, ou seremos.

P21- E o Murilo Antunes privado, a família, casado, filhos? Como é essa instituição?

R - Então, eu fui casado. Sou casado pela terceira vez, tenho um filho chamado João Antunes, que hoje tem 23 anos, que é meu filho com a Isabel. A mãe dele é a Isabel, que é uma bailarina. A minha primeira esposa foi arquiteta, a segunda bailarina. E agora eu sou casado com a Andréia, que é de Santa Catarina. Então eu fiz uma importação, mas isso. Eu fiquei entre os dois primeiros casamentos... E nesse de agora, eu fiquei quinze anos assim.

P1 - Compondo.

R - Compondo muito bem, obrigado. (riso)

P1 - Seu filho tem alguma coisa de musical, ele toca?

R - Tem, ele já está tocando. Ele toca violão, já está compondo algumas coisas, é muito amigo dos filhos do Beto. Eles tocam juntos algumas coisas. E a gente quer fazer nessas ações do museu, essa apresentação dos meninos, dos filhos da gente, filhos dos sobrinhos e tal. Eu estava conversando com o Marcinho e surgiu essa feliz ideia deles fazerem essas apresentações deles também, com o título de um dos versos que são meus e do Marcinho. É pela qualidade de nossa geração, que é a continuidade da... É uma música, uma letra que foi feita por mim e por Marcinho, mas naquela essa junção de coisas que eu falo que a gente trabalha e tal. É uma as ações, assim como essas ações que a gente quer fazer, que está respondendo já nos colégios e pra tocar música. A gente faz palestra e tudo. Fazer as Invasões Bárbaras. Vamos invadir os colégios, mostrar música boa pras pessoas, porque eu tenho certeza que as pessoas, quando elas ouvem assim de perto, vêem, desmistificam as coisas, passam a gostar mais, aprimoram a qualidade. Eu esqueci de contar uma coisa. A primeira vez que eu ouvi música clássica na minha vida, que eu me dei de Pedra Azul, era impossível ouvir música clássica. Lá ninguém mexia com isso, que é uma das pessoas. E aí, em Montes Claros, eu vi uma menina tocando piano. Ela tinha nove anos de idade, tocando Chopin, que era a Antonieta Silva e Silvério. Ela é neta do Lourenço Fernandes, o grande compositor brasileiro. Eu tinha doze anos e ela nove. Na hora que eu vi aquilo, eu fiquei enlouquecido. Falei: “Que coisa!” Uma menininha daquele tamanho mandando Chopin premiadíssimo. Era só esse detalhe, que ali foi a primeira vez que eu ouvi música erudita, pra depois me apaixonar. Pra qualquer música boa eu estou de ouvidos e olhos abertos.

P1 - O que representa pra você essa iniciativa do Márcio Borges de criar o Museu do Clube da Esquina? Como é que você enxerga esse momento?

R - Primeira coisa, eu acho o seguinte: só Márcio Borges seria capaz de fazer uma iniciativa dessa por contingências históricas, talento pessoal, capacidade de agregação que ele em e por ser autor, o feliz autor deste termo e dessa música Clube da Esquina, tanto o 1 quanto o 2. Por ser o epicentro de tantas coisas fundamentais. Essa coisa eu tenho certeza absoluta que se multiplica pelo mundo afora. Porque essa dispersão, essa deglutição que fazem das coisas, das artes brasileiras, hoje, ou até no mundo inteiro. Esse papo de globalização, sei lá o quê, isto pulveriza muito as informações, pulveriza muito as criações. As pessoas não têm tempo. Na hora em que elas estão começando assimilar uma canção, já vem outra em cima, a mídia já promove uma coisa qualquer que vai durar um ano e sumir. E a gente trabalhando com a perenidade, nós estamos revelando traços, botando a alma brasileira naquelas canções, e isso estava correndo um imenso risco de se diluir no tempo pela massificação das informações e tal. É tão importante e algumas pessoas ainda não se deram conta disso. É só a gente pegar, é assim, eu pergunto: existe o museu do tropicalismo em Salvador? Não. Existe o museu da bossa nova no Rio de Janeiro? Também não. Quem sabe com isso eles se alertam e fazem também, porque é imprescindível. Mas uma vez, essa ação, assim como a nossa música, é uma ação de vanguarda na arte brasileira, então espero que outros percebam isso e construam esses museus necessários. Com esse detalhe de ser um museu vivo, uma coisa pulsante. Nós estamos todos em ação, nós continuamos a fazer música, continuamos a escrever, a apresentar e tudo. Então isso, especialmente, além de provocar o encontro da gente, está provocando um reencontro entre nós maravilhoso que vai provocar muitas canções, muitos livros e ações culturais imensas. Muitas mesmo. E acho que é fundamental ter isso, senão vai pra onde toda essa raridade? Se não tiver esse escoadouro, essa mina fenomenal, essa mina volumosa e rica de canções... Porque, com certeza, a música... Se a gente pegar, particularmente, Minas Gerais, nela existe pré e pós-Clube da Esquina. O marco definidor é o Clube da Esquina. Antes, você pega pessoas que batalhavam muito na música, a música da noite, o Pacífico Mascarenhas, a pré-bossa nova. Algumas expressões da música, que é claro que existiam e faziam marchas, sambas e coisa e tal, Gervásio Horta... Existia um movimento insípido porque o mercado fonográfico era insípido no Brasil, então a expressão principal da música de Minas é o Clube da Esquina, acho que ninguém tem dúvida sobre isso.

P1 - Você tem mais alguma coisa que você queira deixar registrado?

R - Ai, ai... Assim, de relance... Assim, de relance, é fogo.

P1 - Então eu vou encerrando por aqui.

R - Está bom! Se eu lembrar, eu te falo.

P1 - Foi bom pra você?

R - Foi legal, acho que tinha umas coisas do tempo da agora. É que a gente ficou no passado, mas acho que isso se resolve aí pra frente, que era uma coisa dos parceiros. Esse leque de parceiros que a gente vai ganhando durante a vida, e isso é uma coisa. Vamos botar, que vão construindo a vida da gente. E, musicalmente, eu só tenho a agradecer esses meus parceiros, que são os melhores do mundo, claro. E é com eles que eu construí a minha via e consegui ampliar um pouco a visão de mundo. Foi por causa deles, que confiaram na minha poesia ou me fizeram fazer a poesia. Ter uma visão poética que eu empresto a eles, dou a eles, e a todo ouvinte que porventura vier a me ouvir.

P1 - Muito obrigada, acho que a gente ainda tem muitas conversas adiante. A gente não quer tirar teu couro, porque quem trabalhava com couro lá atrás era teu avô.

R - Pois é, falta de couro. (riso) Se tiver, com certeza está ficando muita coisa pra fora. Ah, menina, espera! Tem um caso, eu preciso contar um caso. (pausa) Então, tem um caso pra gente perceber como é que é a realidade do fazer música no Brasil. Tavinho Moura, meu querido parceiro, que eu não falei nada dele, que eu acho que é um absurdo, é o cara que eu acho que eu aprendo mais música com aquela raridade. O Tavinho tem um caso fenomenal, o primeiro disco que ele gravou, que se chama Como Vai Minha Aldeia, que é uma música dele e do Márcio Borges, ele foi chamado pra gravar, e foi pra São Paulo. E ele queria muito que eu fosse com ele, que gente é muito perto, nós somos irmãos mesmo. E acontece o seguinte: não tinha dinheiro. As produções eram assim. “Pô, esse cara ali, ninguém ouviu falar dele.” Então eles davam uma passagem de avião, e só pra poder chegar lá, pra poder levar alguma participação musical, já era um custo. Imagina um poeta que não ia cantar nem nada. Mas, pô, a gente sabe porque nós gostamos e a gente sempre foi palpiteiro nessas produções, de ajudar a escolher o repertório, de ajudar nas capas dos discos, nas formulações, e não tinha dinheiro. Eu falei: “Pô, não seja por isso.” Eu peguei um ônibus, saí daqui, o Tavinho foi e cheguei lá no hotel que o Tavinho estava. Eu não tinha dinheiro, a gente era estudante e duro. Eu com o mínimo de dinheiro no bolso. O que nós fizemos? Cheguei, encontrei com o Tavinho e ele falou assim: “O negócio é o seguinte, aqui no hotel…” Era o Hotel Eldorado, lá em São Paulo. Um hotel muito grande. “... eles trocam a guarda, trocam os recepcionistas e tal, hora assim, assim, é de noite. Então é o seguinte, a produção não tem como pagar a sua hospedagem, mas eu quero você aqui.” Eu falei: “Eu não tenho dinheiro pra pagar minha hospedagem.” E nessa nós fomos fazendo assim. Ia pra gravação, fomos pra gravação e chegamos quatro horas da manhã, era uma pessoa na recepção. A gente ia, dormia, ele achava que eu era hóspede ali, não me registrei nem nada. Fiquei clandestino nesse hotel. Saía de manhã, saía depois... A gente só saía à tarde, gravava até cinco horas da manhã e tal. Saía à tarde, já era outra pessoa na recepção. Então, pra todos os efeitos, eu era um hóspede ali, e nessa eu fiquei hospedado clandestinamente durante dez dias lá em São Paulo, ajudando o Tavinho a fazer esse disco e tal. Foi muito bacana. Pra você ver a dificuldade que é se fazer música no Brasil. Poxa, os poetas eram meio assim: “Pô, esses caras são malucos, tudo doidões, não é?” Não tem esse negócio, não. Poxa, consideração que se tenha aos criadores. Esse fato eu acho curioso. E com Tavinho... Eu falo que ele me ajudou muito nessa formação. Nós fizemos várias viagens pelo interior de Minas, onde tinha Festa do Rosário, coisa e tal. A gente ia com nossas magras economias, ficava numa pensãozinha fodida e tal, pra poder fazer aqueles registros, conhecer melhor aquelas manifestações da arte e tal. Teve uma vez que aconteceu uma coisa fenomenal ali no Jequitinhonha. A gente estava em Rio Preto, e a gente foi gravar uma Festa do Rosário lá. A gente estava numa pensão ao lado da igreja, estava acontecendo a missa, e logo depois os foliões de reis iam cantar na igreja. Só que nesse momento um menino subiu lá na torre do sino e bateu numa janela que ficava sempre fechada. O menino foi lá mexer e bateu numa caixa de abelha imensa, de abelhas africanas que desceram por aquela igreja hiper lotada afora, e saiu todo mundo enlouquecido, aquela gritaria na cidade e a gente do lado da igreja. A gente ficava fechando tudo quanto é janela e porta e as pessoas chegavam assim... Muitas já chegavam caindo, desmaiando por causa do veneno e tal. E a gente recolhendo essas pessoas e botando debaixo d’água, chuveiro, tanque, lá no quintal, mangueira, para poder ver se tirava as abelhas e tal. Foi uma coisa legal, uma Nossa Senhora do Rosário diferente. Se eu tivesse uma camerazinha eu ia fazer um documentário incrível. Foi um momento entre essas tantas coisas que acontecem nessa viagens, essa foi incrível. A cidade ficou vazia, de repente todo mundo escondido, parecia aqueles filmes latino-americanos, faroeste, rolando aqueles fenos no chão, e vinha uma pessoa, vinha um cara de lá a cavalo, ele vinha pra festa, estava bem vestido, roupa de domingo e tal. Eu vejo a gente olhando pela greta da janela assim e ele todo curioso, espantado. Ele veio pra uma festa e não está vendo ninguém na rua, era meio-dia, uma hora da tarde, um solão bravo e ninguém na rua. E olhando, olhando... E o cavalo foi batendo a ferradura nas pedras do chão e foi chegando perto da igreja. Esse barulho do cavalo espantou as abelhas de novo e ferveram em cima dele. Derrubaram o cavalo e ele, derrubaram ele junto. Ele saiu berrando e batendo o chicote nele mesmo, batendo a taca nele. Coisas assim foram acontecendo, pessoas desmaiando, tendo febre, foi tudo que Nossa Senhora do Rosário não queria.

P1 - Ou o Rosário era de mel, né?

R - É verdade. E só foram embora quatro horas da tarde, que elas tomaram rumo. Que puderam as pessoas sair pra rua de novo, mas foi um fato bacana.

P1 - E a sua música, qual você vai cantar?

R - O que eu vou cantar... Na verdade, eu acho que tinha que falar de cada parceiro, esses principais. Não vou fazer isso agora porque eu não falei nada. Falei do Tavinho agora, mas sobre música mesmo, nós não falamos, contamos só curiosidades, acho que tinha que ter.

P1 - Estamos à sua disposição. Mais meia hora?

R - Então, o Tavinho Moura, um dos caras que tem muita importância no meu trabalho. Ele, o Tavinho Moura, eu acho que considero como se fosse o Villa Lobos da música popular. A originalidade do trabalho dele é espantosa, os caminhos pelos quais ele se enredou e, naturalmente, isso foi também minha riqueza, foi passando. Ele é um divididor, assim como ele tem um grande trabalho com o Fernando Brant, com o Marcinho, com o Ronaldo... Ele fez menos com o Ronaldo mas, no mais, essa riqueza do Tavinho é perceptível. Talvez eu cante aqui uma música minha com ele, que vocês estão querendo é isso. Mas eu não sou cantor, não. Eu vou cantar essa música, que é baseada num motivo de domínio público de Montes Claros, o refrão. Então a gente... Aí o Tavinho compôs a música e eu fiz a letra pra gente poder chegar nesse refrão, e essa música fala assim:

“Disse que aqui mas nada é de graça, nada é de coração. Vamos num tal de toma de lá, dá cá, minha nêga eu pago pra ver, ver por debaixo o osso do angú. Disse que aqui mais nada tem troco, tudo que vai não vem. Perdem bodoque, facão, corneta, quebra a defesa Nêga Fulô, que o trem tá feio e é bem por aqui. Meu facão guarani quebrou na ponta, quebrou no meio. Eu falei pra morena que trem tá feio, iá iê iá oiá. E a cana caiana eu disse a raiva, carne de sol, palha, forró e fumo de rolo, tudo é motivo pra meu facão. Arma de pobre é fome, é facão, abre semente, aperta inimigo espeta até gavião. Corta sabugo e lança um desafio, não conta nem até três que o trem tá feio, e é bem por aqui. Meu facão guarani quebrou na ponta, quebrou no meio. Eu falei pra morena que o trem tá feio, iá iê iá oiá...”

É isso. Mas, olha, eu preciso falar um pouquinho do Flávio Venturini. Preciso, não tem jeito. Eu recebo umas mensagens via aérea... Eu tenho que falar dele porque é o cara com quem eu tenho mais músicas, as minhas músicas mais conhecidas são com ele. E é preciso, ele tem o seu lugar muito especial na minha vida. É um cara com que eu tenho esse volume grande de músicas e que é uma pessoa que sempre confiou na minha poesia. Ele não questiona, é uma coisa incrível. Porque os outros, a gente tem os parceiros que são invocados, são hiper exigentes e tal o que é bacana pra nós. Então não passa nada, esse negócio de ficar fazendo uma coisa mais ou menos, não adianta que não passa nos nossos parceiros, então tem que ter um capricho mesmo. Mas o Flávio, ele é também muito exigente. Só que ele, primeiro ele dá o voto de confiança total. Ele compõe aquelas coisas magníficas, e sempre o que eu fiz ele topou. Até hoje não teve uma música que ele não tivesse topado uma letra, que eu tivesse que refazer e tal. E é o cara que eu falo que faz uma música celestial, uma música divina, ele é uma pessoa também muita pura, muito pura de intenções, muito livre de coisa ruim. Isso, a gente convivendo com ele, ele passa pra gente. Na hora que eu vou fazer uma letra pra uma música daquela, que é tão doce, tão divinal... Poxa, ele me faz entrar naquele barato. Ou seja, ele me ajuda também a não ir pros territórios do mal e acho que ele tem essa importância na muito grande minha vida, assim como todos os meus parceiros. Evidente que com ele, com o Tavinho, a gente desenvolveu um trabalho mais profundo, pelo próprio volume de coisas que nós fizemos junto.

P1 - Só? Estávamos esperando mais uns quatro, seis, sete parceiros.

R - Eu falaria de um por um, mas fica muita coisa.

P1 - Então eu repito os agradecimentos em nome de toda equipe.

R - Uai! Então eu é que agradeço a vocês por esse trabalho lindo que vocês estão fazendo. E que sempre contem com a gente pra qualquer parada que houver nesse sentido da construção de uma memória que é viva. E especialmente ao Marcinho e a Cláudia, que foram os primeiros detonadores desse processo, e por causa disso a gente está aqui hoje, vamos voltar e vamos fazer um lugar que vai ter também a sua sede linda, que vai ser visitada pelo mundo inteiro. Com certeza, e que vai atrair, vai ser um ponto de atração de Belo Horizonte, que especialmente constrói com veracidade a verdadeira história de uma música que é inesquecível e é eterno. É isso aí.



(pausa)

P1 - Murilo, dando continuidade à nossa entrevista, eu queria que você falasse um pouco da composição “Viva Zapátria”.

R - Olha, “Viva Zapátria”, minha primeira música gravada... Aconteceu com ela uma coisa incrível. Assim que eu fiz essa música, em 1970... A Dona Clélia, do bar Saloon, que foi um bar que a gente frequentava, era um bar incrível, a gente encontrava todo fim de tarde o Fernando, Tavinho e tudo, e a dona Clélia ela tinha uma gravação dessa música em fita cassete, e ela própria chegou e inscreveu essa música no Festival Internacional da Canção em 1972. Aí ela inscreveu e a música foi selecionada, só que nesse tempo tinha censura prévia, então essa música, pra ela poder passar, pra ela ser cantada no Festival, nós tivemos que ir ao Rio de Janeiro, eu e o Sirlan, que era o meu parceiro nela, pra poder responder um interrogatório na Polícia Federal e poder liberar a música, senão não passava no Festival. Quer dizer: ou passava ou não. Então eles mandaram passagem mais ou menos uns quinze dias antes do festival, e eu fui pro Rio. Chegando lá, eu assim: “Poxa vida, minha primeira música que vai ser transmitida pela televisão, o Brasil inteiro vai conhecer, a primeira música da minha vida e eu já vou ter que ir pra Polícia Federal. Que profissão que eu fui escolher...” Então eu fui, chegando lá, cheguei um dia antes dessa coisa da polícia, e à noite eu fui num show. Fui encontrar com o... Era um show do Chico Buarque com o MPB, um show pequeno, numa boate e tal. E eu já os conhecia aqui de Belo Horizonte, a gente jogava bola junto e tal. Aí eu fui nesse show. Acabado o show, eu fui no camarim e fui conversar com o Chico. Falei: “Ô, Chico, amanhã eu tenho que ir lá na polícia. Você que já está acostumado lá, já tem escova de dente e pijama lá na polícia, eu estou pensando em contar uma mentira, porque essa música tem que passar, tem que ser tocada lá no festival.” Aí eu falei com ele qual era o número que eu estava pensando em fazer lá. E ele falou comigo: “É isso mesmo, você tem toda razão, eles são muito... Não são muito perspicazes.” Porque eles pegavam os censores, pegavam de outras instituições. Como estavam lotados em outra instituições federais, departamento jurídico não sei de onde, foram juntando essas pessoas na Censura Federal. Então eles não manjavam nada da coisa da arte em si, desse trabalho nosso. Então, no dia seguinte, eu fui, o Chico deu a maior força. Assim: “Não, tranquilo, pode representar lá que eles engolem e tal.” Aí eu fui, cheguei lá, era uma mesa grande, tinham oito censores, duas mulheres e seis homens, e começaram a me perguntar. Primeiro, chamava “Viva Zapátria”. Por que pátria no nome? Eu falei: “Ah, não. Isso é porque eu fiz essa música, é um filme que eu assisti chamado Viva Zapata, eu não queria imitar o mesmo nome do filme porque eu não queria começar minha carreira plagiando e tudo. Por isso que eu fiz esse trocadilho com a pátria, para ficar diferente do original.” Claro que não era isso, que é uma referência ao Zapata, o herói mexicano da guerrilhas e tal. Aí eles começaram a me perguntar sobre ligações, fazendo com uma técnica incrível de cada um perguntar rapidamente sobre a pergunta do outro pra gente poder ficar nervoso e tal. Aí eles começaram a perguntar sobre os movimentos de esquerda, se eu conhecia alguém do MR-8, do Movimento Revolucionário Oito de Outubro, da POLOP [Organização Revolucionária Marxista Política Operária], da FP e tal. Eu conhecia, sim, porque a gente era. No movimento estudantil do secundário, que eu participava e tudo, eu tinha conhecido muita gente dessas organizações. Ajudei em algumas coisas e tal, alguma ajuda. Eles foram perguntando e eu falei: “Ah, seu moço, eu sou de Pedra Azul, lá do Vale do Jequitinhonha, eu não sei. Mudei pra capital tem pouquinho tempo, eu não sei o que vocês estão me perguntando, nunca ouvi falar desses trem, não.” Bem assim, eu fui falando bem capiau, bem desse jeito, bem sertanejo e fui desviando a ação deles e tal. Eles perguntando, começaram a perguntar nomes de pessoas que eu conhecia, várias delas, aí eu: “Não sei, nunca ouvi falar.” Perguntando do José Carlos da Mota Machado, que era muito conhecido da gente, que o Márcio Borges ajudou a dar fuga pra ele e tudo. Eles foram perguntando e eu: “Uai, Sô, nunca ouvi falar, não, Sô.” Sabe? E fui dando uma de capiau assim, aí eles voltaram nessas perguntas e eu fui falando do filme novamente, eu falei: “Não, mas eu fiz foi pro filme, Sô, e o filme é um filme com o Marlon Brando, que conta uma história de amor, que ele fugia pro mato lá, e ele doido pra encontrar a namorada dele e não podia, se ele chegasse lá ele ia ser preso. Achei essa história espetacular e tal.” Na hora que eu falei do Marlon Brando, uma das censoras era fã do Marlon Brando, uma coroa lá. Aí ela: “Ah, poxa vida, eu assisto muito os filmes do Marlon Brando e não sei quê.” Eu falei: “Ah, pois então a senhora viu esse filme e a senhora lembra aquela vez que ele consegue sair lá do mato, foi escondido de noite pra encontrar com a namorada dele, chegou pelos fundos da casa e não podia fazer barulho pra ninguém perceber e a casa toda vigiada pela frente esperando exatamente que ele fosse lá pra prender ele.” Com isso fomos dispersando a história pra esse lado e acabou que aí foram dispersando, entendeu? Fizeram mais umas perguntas, nós ficamos umas três horas lá dentro, respondendo coisas do arco da velha. Isso é uma coisa que eu estou citando pras pessoas perceberem como a gente estava começando a fazer música e o Brasil inteiro estava sofrendo esse tipo de censura, de cerceamento da liberdade. É uma coisa que estraga qualquer país com isso. Depois a música foi apresentada no festival.

P1 - Quem defendeu?

R - Foi o Sirlan mesmo. E era bacana, a banda e o Sirlan, era o Beto Guedes no baixo, o Flávio Venturini nos teclados e o arranjo do César Camargo Mariano. Foi muito bem tratada ela, e fez um sucesso louco lá no festival, muitos aplausos e tudo, ganhou a menção honrosa do festival, que ficou empatado com... Eram classificadas duas músicas pra ir pra parte internacional, então uma era... Ficaram empatadas, no fim, “Viva Zapátria”, uma música chamada “Diálogo”, do Baden Powell e Paulo César Pinheiro, e “Fio Maravilha”, que era uma música do Jorge Ben que a Maria Alcina, uma cantora de Juiz de Fora, inclusive, cantava. Então essas três músicas ficaram empatadas, aí volta o júri para reunir de novo, soma os votos de novo, novo empate, as três. Eles não conseguiam tirar uma, até que teve o Voto de Minerva do presidente do júri, que era editor do Jorge Ben, a Maria Alcina tinha acabado de assinar contrato com a Som Livre. O festival era promovido pela Rede Globo, e a Som Livre é da Rede Globo. Então deram preferência pro “Fio Maravilha” e pra música do Baden Powell, porque tinha um editor dele também, era o editor dele na Alemanha. Então a gente não tinha nada disso. Acabamos, eles inventaram essa menção honrosa por causa desses empates. E foi muito tempo depois disso, pelo sucesso que essa música fez e tal, que eles propuseram ao Sirlan fazer um disco. E o Sirlan assinou com a Som Livre pra fazer o disco. Aí nós já tínhamos várias músicas compostas, eu e os parceiros do Sirlan, era eu e o Fernando Brant, então nós apresentamos as músicas, a primeira leva das músicas, umas quinze músicas na censura. Sobrou uma que era instrumental, aí tá bom, voltamos. Esperava passar um tempinho, dava uma mexidinha na letra de novo, eles liberaram duas. Então não tinha repertório pra fazer o disco. Aí a gente tinha, pela quantidade de músicas, a gente estava trabalhando muito intensamente, então eu e o Fernando fizemos uma coisa: como não estava conseguindo passar nós trocamos as parcerias, as músicas que ele tinha feito, eu fiz uma nova letra e as que eu tinha feito, ele fez. Que foi uma forma também de conseguir tirar umas. Aí nós fomos aos poucos, mas isso era um processo burocrático também, iam as músicas pra lá, eles demoravam a dar solução, se liberava, se não liberava, ia atrasando. O Sirlan querendo pegar o calor do festival pra aproveitar aquilo, pra poder vender o disco melhor, mais divulgado, e eles foram atrasando isso, atrasando... Com isso, eles censuraram umas 35 músicas da gente, e com esse negócio foi passando o tempo, se passaram três anos. O Sirlan só conseguiu fazer o disco depois de três anos do festival, em 1975, que ele lançou o disco dele. Aí ninguém lembrava mais do festival, a divulgação já era muito, a repercussão foi muito menor. Ou seja, eles enterraram a carreira do Sirlan, entendeu? Essa é uma das fatalidades, que é um grande cantor e um grande compositor, e esse é um fato muito marcante na minha vida. E como essa turma que eu comentei aqui, do Saloon, que a Dona Clélia inscreveu essa música, a gente ia pro bar dela, que era em frente ao Cine Palladium, na Rua Rio de Janeiro, a gente ia todo final de tarde e tal. E tem uma importância muito grande esse bar, em todo esse movimento que a gente está gravando aqui, essas pessoas. Porque foi lá que a gente fez também a ligação com a turma da literatura. Como ia gente que trabalha com literatura, a gente está escrevendo o tempo inteiro. Então foi lá que nós ficamos conhecendo uma geração do Suplemento Literário, que funcionava a meio quarteirão de lá do bar. Que trabalhava lá o Adão Ventura, que é um grande poeta, o Jaime Prado Gouvêa, que é um contista, o Luiz Vilela e Sérgio Santana, que é um grande contista, premiadíssimo e tal, e eram amigos. Nós ficamos muitos amigos nessa época, eles iam pra lá e a gente juntava literatura com a música. O Suplemento Literário também foi muito censurado e foi onde eu publiquei o meu primeiro poema, que se chama “Era um Ramo de Mato Seco”. Então foi a minha primeira publicação, depois dele eu publiquei em várias outras revistas literárias, fiz livros e tal. Mas ali foi o primeiro que eles olharam: “Poxa, aqui é legal, vamos publicar.” Entende? E foi um incentivo muito grande, fez essa geração muito boa, foi a época que explodiram os contistas mineiros pro Brasil inteiro. Eles começaram a ganhar os concursos, virou uma febre de contistas, todos escrevendo muito bem. E aqui sempre teve uma tradição literária muito grande. O Murilo Rubião, por exemplo, era o editor geral do Suplemento e era um escritor fenomenal. Esse contato com a literatura eles adoravam música também, foi um casamento muito bacana. Então o Saloon também tem uma importância muito grande nessa história. A gente ia pra lá tomar cerveja. É assim: chegava, por exemplo, Tavinho com uma música nova, a gente ia pra lá de tarde e ainda não tinha os fregueses normais, então a gente aproveitava e ficava lá até umas oito hora da noite só a gente. E a gente tomando chope e trocando essas coisas. Foi lá, por exemplo, que o Bituca, o Milton, quando ele chegou dos Estados Unidos, foi gravar o primeiro disco dele, o Courage, que é Travessia... Que ele gravou nos Estados Unidos, chegou de lá, aí chegou no Saloon com um disco do James Taylor, que a gente não conhecia ainda no Brasil. Aí colocou pra tocar lá no bar e a gente ficou ouvindo, ficamos conhecendo James Taylor. Eu adoro James Taylor, depois eu comprei todos os discos do James Taylor que saíam e tal. E a Dona Clélia era meio que aquela mãezona da gente, entende? Ela fazia almoço na casa dela também. A gente ia pra casa dela que era em frente ao bar, e numa dessas vezes, por exemplo, o Bituca…

(pausa)

Então, a Dona Clélia, que é essa mãezona da gente, ela morava, a casa dela, o apartamento dela era em frente ao Saloon, esse bar. E ela, de vez em quando, ela oferecia nos fins de semana, convidava a gente pra ir lá. Fazia uma comida, fazia peixe e tal. Aí nós fomos uma dessas vezes, o Bituca chegou lá também pra almoçar e tinha um piano na sala dela. Aí o Bituca chamou assim: “Deixa eu mostrar pra vocês, eu acabei essa música ontem.” Aí ele começou a tocar. Era o “Cais”, dele com o Ronaldo, que estava sem letra ainda. Ele tinha acabado de fazer, então foi muito bacana esse momento.

P1 - Eu queria que você falasse, voltando à literatura. Você foi premiado na Espanha, você tem prêmio lá?

R - Não é prêmio, não. É o seguinte, isso é interessante, é a coisa da literatura e tudo. Eles tinham lá na Espanha, existe até hoje, Academia Española del Desastre, Academia Espanhola do Desastre, e eles explicam assim: desastres são as guerras, são os desastres, essas grandes catástrofes do mundo. Então eles faziam parte deles criticando essas coisas, as violências do mundo, esses desatinos. E eles eram uma academia que não tinha uma sede própria, entende? É uma academia volante. Então faziam parte dela, os artistas plásticos, compositores, escritores, poetas, arquitetos que compunham essa academia. Então eles trocavam, eles tinham uma publicação, publicavam uma revista, faziam exposições de artes plásticas, movimentavam ali a Espanha. E eu fiquei sabendo através de um amigo meu, o Fernando Fabrini, que tinha ido à Espanha e tinha ficado conhecer algumas dessas pessoas, e trouxe o manifesto da academia que, por exemplo, um deles falava assim: “Prometo não cumprir e fazer cumprir todos esses mandamentos.” E era essa coisa de ficar sempre atento a esses desatinos da humanidade e tal. E era uma arte que fosse crítica a essas coisas. Então nessa época eu escrevi pra um jornal, chamava Jornal de Domingo, eu tinha uma coluna lá. E esse jornal era editado pelo Wander Piroli, que é um grande escritor, também contista mineiro. Aí eu fiquei sabendo desse negócio desse manifesto da academia, vi algumas publicações deles e escrevi uma matéria sobre isso, sobre a Academia Española del Desastre. E essa coisa, esse meu amigo pegou a minha coluna e mandou pra eles lá pra Espanha. Eles adoraram que a coisa estava repercutindo fora da Espanha e tudo e me colocaram como sócio desta academia, que não paga mensalidade nem nada. E pouco tempo depois eles me mandaram a carteirinha como membro efetivo da Academia Española del Desastre. Eu só sou dessa academia, não quero ser de mais nenhuma.

P1 - Eles existem ainda?

R - Existem essas pessoas, eu tenho muito pouco contato. Há muito tempo que eu não tenho contato com eles, sabe? Que são pessoas também, que nessa época, eles já eram mais velhos do que eu. Hoje eu estou com 53 anos, eles estão certamente com setenta e tal, alguns já morreram, entende? Mas eu sei que funciona. Eles fazem essas intervenções artísticas, fazem desastres estéticos, era isso, né?