Museu da Pessoa

Um pé no passado, outro no futuro

autoria: Museu da Pessoa personagem: Rogério Cézar de Cerqueira Leite

Projeto: CTG - Imigração Chinesa
Depoimento de Rogério Cerqueira Leite
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
São Paulo/Campinas, 28 de outubro de 2021
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: PCSH_HV1122
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel

P1 – Boa tarde, professor Rogério, tudo bem?
R – Boa tarde para vocês.
P1 – Então, vamos começar com a pergunta mais básica: eu gostaria que o senhor dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde o senhor nasceu.
R – Rogério Cézar de Cerqueira Leite, data de nascimento é 1931 e a cidade é Santo Anastácio, no Pontal do Paranapanema.
P1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Júlio Cézar de Cerqueira Leite e Helena Cerqueira Leite.
P1 – E qual era a ocupação dos seus pais?
R – Meu pai era delegado de polícia e minha mãe era poetisa, (risos) não trabalhava profissionalmente, (risos) mas escrevia poesias.
P1 – O senhor tem irmãos?
R – Não, sou filho único.
P1 – Certo. Os seus pais eram da cidade onde o senhor nasceu ou eles tinham vindo de alguma outra região do país?
R – Meu pai era originalmente da cidade de São Paulo e minha mãe era de uma pequena cidade de Minas Gerais, que não me lembro o nome.
P1 – Certo. Então, vamos conversar um pouquinho sobre a sua infância. O senhor se lembra da casa onde o senhor morava, das brincadeiras que o senhor gostava de fazer quando era criança?
R – Veja bem, meu pai era delegado de polícia e passava de cidade em cidade, ficava um ano, dois, ligado à cidade, era hábito naquela época, de forma que eu passei a minha infância em várias cidades do interior, basicamente, até que minha mãe morreu, eu tinha quatro anos e meio, aí eu passei uma parte do tempo em São Paulo, na casa da minha avó e de vez em quando eu passava uns tempos com meu pai, ninguém me aguentava. Minha avó, digamos, ficava um pouco cansada comigo e me mandava embora. Aí meu pai ficava cansado e me mandava embora para casa da minha avó e assim eu passei a minha infância.
P1 – Certo. E do que o senhor gostava de brincar, quando o senhor era criança, nessa época?
R – Bolinha de gude, fui campeão. (risos) Me lembro bem de que eu sabia jogar direitinho, está certo, quando pequeno, jogava futebol muito e deixa eu ver o que mais... e correr atrás das meninas também.
P1 – Certo. E falando sobre o início da sua vida escolar, quais as lembranças que o senhor tem dos seus primeiros anos de escola?
R – Aí eu sempre fui eu queridinho das professoras e muito malquerido pelos professores no ginásio já, mas eu tenho boas lembranças de todo os meus estágios, digamos, em escolas. No interior às vezes e às vezes em São Paulo. O grupo escolar, eu fiz em São Paulo uma parte, uma parte em uma cidade no interior. O ginásio já fiz também uma parte em São Paulo e uma parte pequena no interior. O meu pai morreu, eu tinha catorze anos e daí em diante, obviamente, não pude mais ir para o interior.
P1 – Certo. E tinha alguma matéria que o senhor gostasse mais ou algum professor que tenha marcado esses seus primeiros anos de estudo?
R – A matemática sempre foi minha matéria preferida. Mais tarde, obviamente, quando eu passei já no científico - naquele tempo tinha esse segmento que se chamava científico -, eu gostava muito de física, química e matemática, que foi sempre minha base.
P1 – E nesse período o senhor tinha algum sonho de infância, do tipo: “Quando crescer, eu quero ser tal coisa”? O senhor tinha algum sonho assim?
R – Acho que não. Não me lembro, pelo menos. Eu gostava muito de matemática e achava que era a minha vida seria na matemática, mas sem nada de muito objetivo: ir para universidade ou coisa parecida.
P1 – E na sua infância, o senhor gostava de ouvir histórias, ou ler, ou que alguém contasse histórias para o senhor?
R – Eu me lembro que, no interior, tinha uma senhora (risos) que não vou me lembrar o nome, que contava as histórias de fantasmas e eu não conseguia dormir no dia seguinte... no mesmo dia. (risos) Mas isso é muito comum, era muito comum naquela época: essas senhoras, possivelmente solteironas, gorduchas, bem gordinhas, está certo, e ela contava história e a criançada ficava ao lado dela, sabe? Talvez não tivesse nenhum parente, eu acho, era a criançada da cidade. Assim, isso foi meu início, (risos) mas eu sempre gostei de ler, de ler muito.
P1 – E quando o senhor foi fazer o científico, aos poucos o senhor já tinha e começou a desenvolver a ideia do que o senhor queria fazer na faculdade ou o senhor demorou um pouco, depois do científico, para começar a faculdade?
R – Eu tinha também, eu sofria muito muita influência de alguns parentes meus, tios etc. que eram, digamos, intelectuais da área de literatura, de Ciências Humanas. Então, eu sempre vi e estudei um pouco de Ciências Humanas. Quando eu estava no científico, eu fiz alguns cursos na recém-criada Universidade de São Paulo, na área de Humanidades: o curso de Literatura Brasileira, por exemplo, Literatura Portuguesa e era dado por um professor português muito bom, que eu não me lembro o nome. E tive cursos também de espanhol, nessa época. Fazia científico e durante a tarde ia até a universidade, que era no prédio da Caetano de Campos. “Naquela época”, é muito tempo atrás, né? (risos)
P1 – E esse científico, o senhor fez, quando o senhor fez já em São Paulo, foi nesse prédio na Caetano de Campos, ali na Praça da República?
R – Não, não. A Caetano de Campos tinha... antes, a Universidade de São Paulo abrigou uma escola normal e eu trabalhei, fiz o científico no único colégio do estado que havia à época, que chamava-se Colégio Roosevelt, que era um colégio de boa qualidade, mesmo para os melhores padrões atuais: eram professores todos bem formados, muitos deles eram professores também da Universidade de São Paulo.
P1 – E o senhor se lembra desse período de estudos em relação a amizades, lazer, o que o senhor gostava de fazer fora da escola?
R – Eu sempre fui um fanático por música. Então, eu fui considerado o mais competente furador de teatro, eu sabia todas as mais maneiras de entrar em qualquer teatro brasileiro, está certo? Furava e me tiravam para fora, eu voltava e me tiravam para fora, eu voltava. (risos) Mas, enfim, até que um dia o Teatro Municipal permitiu que eu ficasse, com a condição de, durante as óperas, fazer o papel de extra. Então, durante as óperas, eu trabalhava como extra nas óperas. Extra é aquele indivíduo que não canta, que fica com cara de bobo o tempo todo, né? Mas sempre fui fanático por música. Ainda sou até hoje, música clássica principalmente.
P1 – Certo. E como foi a sua entrada, então, na faculdade? Por que o senhor escolheu o curso que escolheu? Como foi essa vivência da sua época de universidade?
R – Veja bem, eu entrei no primeiro exame no ITA, que era a escola da moda naquele momento, né, tinha sido criado há uns três ou quatro anos em São José dos Campos. O ITA fornecia cama, comida e um pequeno ordenado e você tinha a sua vida sem precisar de trabalhar, essa era a principal razão que eu entrei no ITA e que era uma boa escola, foi uma boa escola de engenharia, mas... Engenharia Eletrônica que eu fiz, que era uma novidade naquela época.
P1 – E que momentos acabaram marcando para o senhor nesse período de ITA, que o senhor se recorda até hoje? Que momentos marcantes o senhor se recorda dessa época, no ITA?
R – Difícil dizer. Era uma boa escola, a gente tinha que estudar bastante, mas como eu gostava... sempre gastei muito mais do que... muito dinheiro, né? Então, eu era obrigado a dar aulas no colégio do estado, na cidade de São José dos Campos. Dei em dois ou três colégios. Além do colégio do estado, eu dava aula em boa parte do período, do dia.
P1 – E o senhor gostava de dar aula, nessa época? Como era essa experiência para o senhor?
R – Ah, eu acho que gostava, sabe? E além do mais, quer dizer, eu dava aula de matemática, que era bem-visto, professor de matemática era sempre respeitado, né? (risos) E dei, quase o tempo todo que eu fiquei no ITA, aula no colégio do estado que eu tinha feito. Inclusive, naquela época, havia uma espécie de concurso que você fazia para professor de certas matérias e eu fiz esse concurso. Então, eu queria dar aula formalmente, oficialmente, nos colégios estaduais.
P1 – E quando o senhor se formou no ITA, o que o senhor fez? O senhor começou a trabalhar com Engenharia Eletrônica? Me conta o que aconteceu depois.
R – Veja bem, eu interagia bem com alguns professores, né, e um deles me convidou, dois deles, aliás, me convidaram para integrar o seu grupo. Era uma época em que os professores faziam pesquisa, ainda faziam, começavam a fazer pesquisas, professores do ITA. Então, eu fui imediatamente contratado no dia que eu me formei, mas não passei muito tempo no Brasil. Seis meses depois, eu fui pra França para fazer o meu doutoramento, na universidade de Paris, conhecida como Sorbonne.
P1 – E foi lá que o senhor se especializou em física, certo?
R – Certamente.
P1 – E quanto tempo o senhor passou na França e como foi essa experiência?
R – Eu passei três anos na França. Normalmente um doutoramento demorava cinco anos lá, mas dessa vez eu estudei um pouco. Então, eu consegui fazer em um tempo que foi bastante rápido, né, e certamente fui o primeiro da minha turma a terminar o curso. De lá, fui para os Estados Unidos, onde eu trabalhei no então laboratório Bell Labs - chamava -, que era o laboratório mais avançado do mundo na época: basta dizer que o laboratório que eu trabalhei tinha vinte mil pesquisadores. Isso era, para época, era uma coisa impensável, era uma coisa enorme. Isso, vinte mil em um dos prédios, tinha mais três localidades onde o Bell Labs atuava. Passei oito anos lá e eu tentei voltar para o Brasil depois de dois anos, eu cheguei aqui em 1964, no meio da revolução e eu fiquei praticamente seis meses ou pouco mais, sem nenhuma possibilidade de encontrar um laboratório, de fazer e ter um equipamento para continuar o meu trabalho. Aí eu voltei para o Estados Unidos, para o mesmo laboratório.
P1 – E durante esse período nos Estados Unidos, o que mais te marcou? Já que o senhor tinha passado por Paris e passou depois para os Estados Unidos, quais foram as diferenças que o senhor encontrou em relação ao Brasil? Sua vida se modificou muito?
R – A vida... eu vivi lá no estado de New Jersey, está certo, que é uma vida pacata, pequeno, não tem muitas grandes cidades e eu morei numa cidade bem pequena, perto do laboratório, que era também longe, eram uns sessenta, oitenta quilômetros de Nova Iorque. É claro que de vez em quando a gente ia à Nova Iorque, eu já estava casado, né, eu e minha esposa íamos a Nova Iorque, para concertos, para encontros literários, coisas desse tipo.
P1 – E o senhor conheceu a sua esposa aqui no Brasil ou conheceu em alguma das suas viagens?
R – Não, eu a conheci em São José dos Campos. Ela tinha morado em São José dos Campos, voltou um dia lá e nos conhecemos. Eu era ainda estudante, casei ainda estudante, irresponsável, mas foi bom. (risos)
P1 – E qual o nome dela?
R – Rute Matos de Cerqueira Leite. É psicanalista e foi professora da Unicamp, da área de psicanálise lá e até hoje ela trabalha como psicanalista.
P1 – E depois desse período de oito anos trabalhando nos Estados Unidos, o senhor voltou pro Brasil com a sua esposa?
R – Sim, eu fui... inicialmente, deveria ter vindo para Universidade de São Paulo. Eu tinha sido convidado para a Universidade de São Paulo e ia trazer um grupo de pesquisadores junto comigo, quando o então reitor, o homem lá do AI-5, era inimigo do Schenberg, Mário Schenberg, que foi um grande físico brasileiro e que foi quem me convidou. Os contratos estavam prontos até, ele não assinou e eu tive que vir para Campinas, então. Por sorte, Campinas estava começando a Unicamp e era um desafio maior que São Paulo, inclusive, porque eu pude criar, praticamente recriar, o Instituto de Física da Unicamp. Ele já existia quando eu cheguei, mas era diminuto, tinha dez pesquisadores, mais ou menos, a universidade era muito jovem ainda, recém-criada e foi uma boa experiência para mim, que eu pude montar um laboratório competitivo com os maiores laboratórios do mundo, está certo? Cheguei a ter mais de cento e cinquenta pesquisadores dentro dos laboratórios, eu consegui. E apesar de ser uma ditadura, o governo federal e o governo estadual me deram um grande apoio econômico.
P1 – Então, a partir desse momento, o senhor acabou se sediando mesmo em Campinas? Acabou se fixando em Campinas?
R – Em Campinas, sim. Hoje, digamos, derivou-se um pouco da universidade um centro de pesquisa chamado Cnpem (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais) e que hoje é, possivelmente, papo meu, mas (risos) é certamente o mais importante centro de pesquisa do Brasil. Vocês devem ter ouvido falar do ”Sirius”. O “Sirius” é um dos equipamentos de grande porte que tem no Cnpem. O Cnpem tem vários laboratórios e esse é um equipamento, mas ele fez muito sucesso, merecido, aliás, uma equipe excelente. Então, eu comecei lá há 35 anos, praticamente na criação, ajudei a criar, está certo? O que hoje é Cnpem, que deve ter outros nomes, mas, enfim, hoje é um laboratório muito bom e ainda sou presidente do Conselho de Administração.
P1 – E mudando um pouco de assunto em relação à sua vida profissional, quando o senhor começou a se tornar um colecionador de arte, interessado por obras de arte? Conta para gente como isso aconteceu.
R – Olha, esse meu desvio de conduta foi muito cedo. Eu, quando era aluno lá na França, eu já comprei uns quadros lá, trouxe, tenho até hoje em casa alguns dos quadros que eu comprei lá na França. Então, além de estudante, mas gastava um dinheirinho com arte. E você deve talvez estar interessado no meu interesse pela arte chinesa também. Eu tenho uma boa coleção arqueológica, acho que talvez seja a maior do Brasil, em obras chinesas. Eu comecei a me interessar especificamente pela arte chinesa quando eu fui convidado pela Academia de Ciências da China para uma visita à China, passei um mês lá, visitando os centros de pesquisas. E foi na época que acho que fui o primeiro, não fui só o primeiro brasileiro, mas um dos primeiros ocidentais a ir para a China, a visitar a China formalmente, a pedido do governo. A Academia de Ciências na China é parte do governo, substitui o nosso Ministério de Ciência e Tecnologia. Então, foi uma boa experiência, muito boa, eu fui várias vezes à China depois. Estou indo ano que vem, espero. Mas, eu passei a comprar muita coisa chinesa, às vezes na Europa, às vezes aqui no Brasil. Na própria China, eu comprei muito pouca coisa.
P1 – E o que chamou atenção para o senhor, nessa sua primeira viagem à China, para que o senhor começasse a desenvolver esse interesse?
R – Veja bem, a China era completamente diferente do que é hoje. Você, para conseguir falar de uma cidade para outra por telefone, demorava três, quatro, cinco horas para conseguir uma ligação, às vezes era impossível conseguir a ligação entre cidades grandes, né? Então, o sistema de comunicação era muito ruim, o sistema rodoviário era muito pobre, enfim, era um povo ainda muito agrícola. Mesmo Pequim era uma cidade ainda pouco desenvolvida. Quer dizer, eles já faziam carros, automóveis, mas eram automóveis muito primitivos e muitas poucas pessoas tinham carro pessoal, praticamente ninguém, mas os institutos de pesquisas tinham um carro ou dois, no máximo. E o que tinha era muita bicicleta, um mar de bicicleta. Pequim e outras cidades como Guangzhou, todas elas ali eram dominadas por bicicletas.
P1 – E como o senhor já tinha interesse em arte, o senhor chegou a ir à museus ou ter esse contato na própria China nessa sua primeira viagem?
R – Pequim tem a Cidade Imperial, né, a Cidade Proibida, que é um museu em si. Perdeu muitas peças, muito das suas posses, quando Chiu Kuo-cheng os levou para Taiwan. Então, hoje, essas grandes riquezas de obras são do período clássico, os bronzes de lá de dois, três mil anos atrás, sabe? Essas peças foram quase todas para Taiwan, muitas das pinturas do período Sung também foram para Taiwan. Chiu Kuo-cheng levou tudo que podia, quando expulso da China. E muitas das coisas que estariam hoje no Palácio Imperial lá da China, de Pequim, estão hoje no museu chamado também Imperial, de Taiwan. Mas tinha outros pequenos museus, ainda um pouco incipientes e tinha algumas lojas em que você podia comprar uma peça do interesse arqueológico ou peças mais bonitas também. E também é uma coisa recente, eu trouxe o que eu pude. (risos) Mas não tinha muito dinheiro, não. Quer dizer, o governo chinês bancou a minha estadia lá e tudo certo, mas naquela época vivia-se do salário, unicamente do salário da Unicamp, que era pouca coisa.
P2 – Professor, essas obras que você teve, que você adquiriu na China, têm alguma característica em comum entre elas?
R – Entre elas? (risos) Eu comprei algumas peças de marfim, que são fáceis de carregar, nenhuma peça muito cara, uma peça muito importante, digamos, da história chinesa, mas trouxe algumas coisas pequenas, principalmente de marfim. A China trabalhou muito com marfim, depois do século XV em diante. Marfim não era material de escultura e de qualquer outra coisa antes de 1500, em meados de _____ mais ou menos.
P2 – Além desses objetos de arte, você possui alguma pintura também?
R – Lá da China, não. Eu hoje tenho uma boa colecção de pinturas também, mas compradas posteriormente. No Brasil, é muito fácil, muitas famílias tradicionais iam à Europa e compravam obras chinesas, principalmente obra chinesa, era moda. Essas famílias hoje, infelizmente, são decadentes, os filhos ou os netos vendem essas obras barato. Então, são famílias que têm pequenas coleções, que foi a minha principal fonte de obras artísticas. Também tem os embaixadores brasileiros, que ganham um dinheirão quando estão fora do Brasil, voltam para o Brasil ganhando um salário que é três vezes menor e, aos poucos, começam a vender as suas obras, então eu comprei muita coisa de antigos embaixadores.
P1 – E, professor, essas obras que o senhor acabou comprando já no Brasil são diferentes, aí nesse caso são pinturas, são esculturas? Conta um pouco para gente.
R – Bom, a China tem duas grandes fases, duas grandes... uma é do bronze, que começou e logo depois a porcelana, são as duas grandes... a cerâmica, porcelana veio mais tarde. Mas essas duas coisas são os principais meios de coisa e claro que também tinha um grande amor pelo jade, que é uma pedra específica, de interesse quase que... não apenas pelo ____, pelo interesse religioso às vezes, mas antes de tudo passou a ser um emblema da China. Quer dizer, a criança, ao nascer, durante muitos anos, muitos séculos passados, recebiam um pequeno objeto que levava com ele ou deixava em casa, mas a criança crescia com aquele pequeno objeto, isso era muito comum, em jade. Jade era, digamos, quase tão caro quanto o ouro, ou a prata, a prata era muito cara na China. Então, o jade é uma das minhas coleções maiores, sub coleções, enfim. O bronze clássico, temos que a China desenvolveu bronze muito antes que outros países. Quer dizer, já no século XX antes de Cristo, há quatro mil anos, eles já têm uma técnica com bronze que hoje é dificilmente alcançada, desenvolveram o bronze, que passou a ser uma coisa também muito valorizada pelos chineses, pela cultura chinesa. Tem filósofos posteriores que se dedicaram inteiramente a estudar os bronzes mais antigos. O jade também, mas o bronze teve um domínio muito maior no começo da evolução da história da China.
P1 – E o que mais acabou influenciando o senhor em relação à cultura chinesa? Eu digo em relação à literatura, ou outros costumes, culinária, enfim. Quais outros tipos de contato o senhor acabou absorvendo da cultura chinesa?
R – A comida chinesa é muito gostosa, mas tem que ser comida na China. As imitações que eu encontrei na Europa, principalmente, nunca são tão autênticas, porque o gosto deles é muito diferente do europeu. Nos Estados Unidos, eu nunca vi, não. Tem restaurante chinês, sim, mas eles não sabem, digamos, compor as comidas, os vários pratos. Um banquete típico na China tem dezessete pratos. Se você oferecer... eu tive que oferecer banquetes para os chineses, porque lá há um hábito: se eles te oferecem um banquete, você no dia seguinte tem que oferecer um banquete de volta e eu tive que oferecer. Então, não conseguia nunca oferecer menos do que dezessete pratos, era um número mínimo que eles consideravam aceitável. Então, é uma comida muito sofisticada e muito interessante. No Brasil, até hoje eu faço, eu gosto de cozinha, eu faço Chow Mein, que é uma mistura de frutos do mar com macarrão etc. e tal, que é muito específico e é fácil de fazer no Brasil. Outras peças são muito difíceis. Eu faço também um Pato-à-Pequim. Pequim era famoso pelo seu Pato de Pequim e tem dois grandes restaurantes, um que cabe quatro mil pessoas e outro acho que é duas mil pessoas, só. (risos) Tem um grande pato e um pequeno pato e o Pato-à-Pequim é uma coisa também simbólica, é uma cerimônia comer o Pato-à-Pequim nesses lugares específicos. A gente come até a pele do dedo do pato, a língua do pato, mas como o pato tem só uma língua, você só dá a língua para o chefe da casa. As pessoas mais velhas na China são muito respeitadas, não tanto quanto no Japão - no Japão é de outra forma -, mas na China se ouve os velhos, né? Então, os mais antigos são os que têm direito ao melhor pedaço do pato, o mais difícil.
P1 – E qual foi a sua viagem seguinte à China? O senhor demorou bastante para retornar?
R – Na segunda viagem que eu fiz à China, foi uma outra área. Eu tinha feito aquela área de Pequim, algumas das coisas, das cidades perto. Na segunda, fui ao sul da China e leste, a sudeste, que são onde ficam as minorias chinesas, são umas quarenta etnias diferentes. Cada um com as suas roupas diferentes, com as suas línguas diferentes, com, digamos, hábitos diferentes, religiões diferentes etc. Então, foi outro tipo de viagem. A terceira viagem foi que eu fiz a Rota da Seda, que é um lugar muito interessante, tem uma localidade, por exemplo, tem mil templos budistas, porque era o caminho, a rota da China foi mais ou menos criada pelo Budismo, montada pelo Budismo, que migrou para a China justamente nesse período da Rota da Seda. Enfim, essa região eu fiz e aí eu fui obrigado a interromper, porque eu tive um infarto e esse infarto me obrigou a... foi o quarto infarto que eu tive. (risos) Sou, digamos, apesar de ter noventa anos, eu ainda estou vivo, mas tive cinco infartos, no total. E nesse quarto infarto eu tive que voltar. Agora eu estou indo, ano que vem, justamente para refazer a rota da China, junto com toda a minha família, meus filhos, meus netos e alguns apêndices, (risos) enfim, mas eu realmente fui só três vezes à China, na verdade.
P2 – Professor, como o senhor visitou várias vezes a China, você sentiu alguma diferença entre a cultura?
R – Veja bem, a China, em primeiro lugar, é uma diversidade enorme de culturas diferentes, às vezes até de etnias diferentes também. Esse último lugar que eu estive, na China, é um povo que não fala chinês, são muçulmanos, é um povo chamado uigures e têm costumes muito diferentes. A rota das Índias, o caminho das Índias é povoado por esse povo. O governo chinês está tentando tornar mais chinesa essa região, oferece moradias, todas as facilidades, mas os chineses não se sentem muita à vontade de mudar para lá. Então, recentemente, houve até uma rebelião que eles, os uigures, não queriam mais os chineses mandando neles. Acho que agora já se apaziguou, já está tudo em paz novamente etc. Mas lá na China tem várias Chinas. A China... Pequim já é uma cidade muito diferente de Xangai, por exemplo, apesar de ser o mesmo povo, falam mandarim, a língua da cidade, mas há vários dialetos ainda em vigência na China. Então, a diferença de ter a minha ida da primeira vez foi evolução tecnológica e econômica do povo. A primeira viagem que eu fiz à China foi em 1988, eu acho; a última viagem que eu fiz foi em 2000, mais ou menos, 2005, por aí, mais ou menos por aí. Então, a diferença foi marcante já nesse período, para começar, o sistema de comunicação é perfeito, você não tem mais medo. Da primeira vez que eu fui à China, eu fui pegar um avião em uma cidade, peguei outro, porque não tem como você... se você não lê chinês e eu não leio, não tem muito como se orientar, está certo? É claro que o governo chinês deu um jeito de me encontrar outra vez, que eu me perdi, fui pra outra cidade, me diverti muito nessa cidade. (risos) Guangzhou, que eu passei uns tempos em Guangzhou, passei uns três ou quatro dias, mas era impossível conseguir falar com Pequim de lá. Aliás, as pessoas, naquela época, né, quando viajavam de um lugar, de uma cidade para outra, não conseguiam marcar passagem de volta. Então, o que eles conseguiam? Eles têm que chegar lá e de lá comprar a passagem e ver se tinha lugar para voltar, quando pudesse. E era sempre uma procura de muita incerteza, essa era a China da minha primeira viagem. Hoje não, o nível de comunicação é um dos melhores do mundo, né? Hoje, a China tem um sistema completo de comunicação, digamos, estradas maravilhosas, bem moderníssimas, inclusive trens de alta velocidade etc. A China mudou terrivelmente.
P2 – E o senhor sentiu que tinha alguma semelhança com a cultura brasileira, mesmo que de alguma forma?
R – Veja bem, eu não sei. Eu sei que o chinês que eu conheço, os chineses que eu conheci fora da China, se adaptaram muito bem no ocidente, inclusive eu tive um professor chinês no ITA, que era um professor de eletromagnetismo, que era mais brasileiro do que eu. (risos) E foi quem me orientou no meu trabalho, publicamos um trabalho junto, né, inclusive, mas isso eu ainda estava fazendo ITA, ainda estava no bacharelado na engenharia. Enfim, eu vi e conheci alguns brasileiros morando na China, logo que eu cheguei, porque houve um sistema de comunicação etc. e eles também pareciam adaptados, eu acho que há muita ressonância entre Brasil e China. Apesar de serem historicamente muito diferente e também, de uma certa maneira, culturalmente muito diferentes, tem coisas da cultura chinesa que certamente nós, latinos, nem entendemos.
P1 – Então, professor Rogério, indo um pouco mais agora para sua vida pessoal, eu gostaria que o senhor me informasse qual o nome dos seus filhos e quantos filhos o senhor tem?
R – O meu filho - eu tenho três filhos - é empresário. Na realidade, ele tem uma empresa de produtos de tecnologia, mas ele já foi empresário de outras empresas; o nome dele é Sérgio Cerqueira Leite. Tenho uma filha chamada Luciana, que trabalha no Butantã; ela é pesquisadora sênior lá e trabalha justamente, digamos assim, de uma maneira geral. Ela, inclusive, dá aula na França, na Universidade de Lyon, vai a cada três, quatro meses para lá e passa uma semana lá dando aula, tem alunos de doutoramento lá. Ela é uma pesquisadora bastante reconhecida, editora de várias revistas no mundo, europeias, americanas. Então, ela tem uma vida de cientista e é chata por causa disso. (risos) Tenho uma segunda filha, que é psicanalista como a minha mulher e vive disso, de psicanálise, e dá aula na faculdade de psicanálise; essa mora em Curitiba. O que mais? O meu filho... eu tenho três, então, para você ver, tenho seis netos: uma é empresária, uma se forma esse ano, em medicina. O meu filho trabalha no Nubank, esse novo Banco esquisito que existe por aí, né, que parece que é muito inovador, e ele trabalha lá. Tem uma outra que se forma em arquitetura esse ano. E dois outros pequenininhos, um entrou na Unicamp esse ano, enquanto a escolinha que eu criei vai ser... eu montei uma escola de ciências que, digamos, vai ser muito procurada. Ele, como entrou na universidade antes da escola começar, então ficou na Unicamp. Ele vai fazer, perder um ano, porque está no primeiro ano, mas ele vai ter que entrar no primeiro ano dessa nova escola, que se chama Ilum. E tem uma menina de dezesseis, dezessete anos, que ainda está estudando. Essa é a família. (risos)
P1 – Certo. E indo para as perguntas finais, professor Rogério, conta um pouco sobre essa escola, sobre essa sua atividade. Essa escola é recente? Conta um pouco pra gente.
R – Eu sempre tive uma preocupação com alunos brilhantes, excepcionais, que vão para as universidades, que são massificadoras, e saem de lá igualzinho aos outros. São indivíduos extremamente promissores, ganham nas olimpíadas, alguns ganham olimpíadas internacionais. Depois, a universidade não tem como acolher isso, a cultura da universidade tradicional - não uma boa universidade, uma USP, Unicamp etc. -, não consegue lidar com esse tipo de aluno. Se a universidade começar a dar uma atenção especial, eles começam a ser, digamos, rejeitados pelos demais, porque ele é diferente. Então, eu criei uma escola, quer dizer, que tem, digamos, que trata um problema específico para cada aluno, trata quase que individualmente. Tem o corpo docente que está sendo treinado, passaram anos sendo treinados para lidar com esse pessoal, que são professores, digamos, da Unicamp, que vieram para cá, professores da USP, do Brasil inteiro, que estão entrando nessa escola. Escola muito especial, que vai receber quarenta alunos só, por ano. Vemos que o ITA recebia cem alunos, mas era engenharia e tal. Aqui na escola vai produzir cientistas que são... hoje, a ciência está caminhando para uma fusão, está certo? Hoje, físico trabalha com problemas... tem muitos físicos trabalhando com problemas de Biologia, tem biólogos trabalhando com física e químicos fazendo as duas coisas. Então, hoje há uma coisa, então essa escola é pra essas pessoas que aceitam esse tipo de “ressignificação” etc e tal, de atitude cultural um pouco diferente e que são... não diria que são geniais, mas que são... que se distingue por uma coisa alguma. Nós vamos fazer... nós somos obrigados por lei a seguir o Enem, mas, além disso, os alunos serão entrevistados, há um esforço a se enveredar também aos seus professores e aí que vai se decidir quem a gente vai... começa em janeiro a fevereiro do ano que vem. Já estão abertas as inscrições, abrimos essa semana as inscrições.
P1 – E essa Escola Ilum está ligada à Unicamp?
R – Não, ela está ligada ao Cnpem, que é um instituto de pesquisa, é uma instituição de pesquisa, mas tem boas relações com a Unicamp. O atual reitor da Unicamp tem grande interesse nessa escola, porque ele quer fazer uma convivência, para a gente ver o [que] eles podem aprender com essa... porque é uma experiência nova. Existe uma coisa parecida na França, que se chama École Normale, Escola Normal. Quer dizer, são pessoas que foram escolhidas, os alunos. Às vezes nas outras universidades, às vezes em escolas secundárias. É uma experiência francesa antiga, quem criou foi Napoleão Bonaparte, que criou algumas escolas desse tipo, École Normale, que é para ciência, Polytechnique que é para essas engenharias, né? E essas são escolas muito especiais, que procuro aproveitar porque, digamos, eu sou socialista, né? Então, parece que eu sou elitista, querendo aproveitar só o pessoal mais rico, mais bem desenvolvido, mais inteligente. Mas não, é uma questão somente de economia, você aproveitar uma pessoa brilhante e não estragá-la, pode significar para o país um valor econômico muito grande, né? E o Brasil ainda não percebeu quanto vale a inteligência. Percebeu, mas muito devagar. Você vê, por exemplo, os Estados Unidos continua roubando, digamos, levando os talentos brasileiros agora, nesse momento, né? Levaram alemães, levaram nazistas, _____, brasileiros, levaram uma quantidade enorme de alemães, depois da guerra, logo depois da guerra, que fizeram um grande avanço tecnológico nos Estados Unidos. Então, o que eu preciso nessa escola são alunos excelentes e professores bonzinhos. (risos) O que faz a qualidade de uma escola não é o professor, não. Faz também, né, mas é o aluno, a escolha do aluno é fundamental. Eu sempre disse baixinho que o ITA era o que ele era por causa dos alunos, porque os professores eram tudo de segunda classe. (risos) Não todos, mas a maioria.
P1 – E indo para as perguntas finais, professor Rogério, quais são as coisas mais importantes para o senhor, hoje em dia, na sua vida?
R – Ah, no momento, eu tenho um projeto. Além daquela coleção de obras chinesas, eu tenho mais sete coleções, são oito no total, diferentes, algumas de dimensões iguais as da chinesa. Eu tenho essas mais ou menos quase mil peças chinesas, quase mil peças pré-colombianas, quase mil peças japonesas e assim por diante. E tem outras coleções menores, mas então, tenho tentado negociar, com o governo de São Paulo, um prédio que eles não aproveitam, que é magnífico e que está vazio, mas o governo de São Paulo não decide o que fazer com o prédio. É uma inércia enorme, não tem coragem de fazer uma decisão e significar de algum lado. Mas eu tenho apoio da Unicamp, tenho apoio da PUC, tenho apoio do prefeito e tenho apoio de todo mundo, digamos, tentando obter esse prédio para montar um museu, porque no Brasil, para falar a verdade, não existe um museu arqueológico, digamos, realmente arqueológico e antropológico também. Existem algumas coleções boas, importantes, em alguns museus, mas não fazem um conjunto, não é uma totalidade. Esse é o meu projeto maior. Claro que a minha continua, hoje a escolinha que eu concebi tem uma direção especial, eu não me envolvo mais com a direção. Quer dizer, eu converso com os diretores, né, e certamente eles precisam um pouco da minha experiência. Então, mas eu não estou muito mais envolvido e o Cnpem tem diretor, tem meia dúzia de diretores excelentes. Então, eu fico só presidindo o Conselho e, de vez em quando, aborrecendo um deles, um dos diretores, (risos) que não faz o que eu quero. (risos) Meu projeto hoje é esse do museu. Aliás, as universidades já estão produzindo os catálogos que serão das coleções. Vai demorar um pouco, porque as universidade são sempre devagar, né?
P1 – Então, indo para a última pergunta, professor Rogério, o que o senhor achou de contar um pouco da sua história para a gente, hoje?
R – Eu achei... durante muito tempo eu evitei a verdade sobre certas coisas da minha infância, da minha juventude etc. A morte trágica da minha mãe, meu pai etc. Uma família que foi muito rica e que, na geração anterior à minha, foi muito pobre. Isso, eu não sei porquê, eu me envergonhava de ser pobre. (risos) Porque a família ainda tem, mantinha aquela pretensão. Então, escrevi um livrinho que dizia tudo que eu conversei aqui com você, você está nesse livrinho, que foi uma necessidade para contar para os meus filhos coisas que eu não contava pessoalmente, principalmente. Filhos, netos etc. Esse livro foi publicado, anda por aí, você pode possivelmente comprá-lo pela internet, mas enfim. Acho que é bom falar, a gente, digamos, vencer as próprias inibições, né, falar de si mesmo é uma coisa... velho, eu não sou velho, sou como um gelo. (risos) Mas velhos gostam de falar do passado, porque não têm futuro, mas eu sempre olho o futuro, apesar de ter tido uma vida satisfatória etc. e tal, eu trabalho para o futuro. Então, apesar disso, eu falo do passado também, acho que talvez eu até tenha alguma coisa para ensinar aos jovens, com a minha vida. Lembro que Helena Nader, por exemplo, era presidente da Sbpc, na época que meu livro foi lançado, ela queria adotar o livro para tudo que era jovem no Brasil, mas isso não vai ser assim, não. (risos) Ele não tem sucesso suficiente, o charme suficiente, mas é um bom testemunho.
P1 – Bom, então agradeço muito pelo seu depoimento de hoje, pessoalmente e também em nome do Museu da Pessoa. Muito obrigado.
R – Eu que agradeço. Espero que tenha sido, digamos, satisfatória a entrevista. Até logo para vocês todos, então, está certo?