Museu da Pessoa

Um jornalzinho dos jogos de várzea

autoria: Museu da Pessoa personagem: João Baptista da Silva Junior

A Gente na Copa - História da Gente Que Faz o País do Futebol.
Depoimento de João Batista da Silva Junior
Entrevistado por Lucas Lara e José Florenzano
São Paulo, 17 de Dezembro de 2013
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV438_João Batista da Silva Junior
Transcrito por Iara Gobbo


P/1 – Bom senhor João, para começar eu queria agradecer muito a sua participação, ter aceitado dar essa entrevista para gente.

R – Ah, é um prazer muito grande estar aqui.

P/1 – E eu queria começar perguntando para o senhor o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – Eu me chamo João Batista da Silva Junior, nasci em 22 de Abril de 1926, na cidade de São Paulo, bairro das Perdizes.

P/1 – E o nome dos seus pais?

R – Meu pai tem o meu nome, menos o Junior. E minha mãe Hortênsia Maria de Assunção.

P/1 – E o que é que os seus pais faziam, seu João?

R – Meu pai? Ele morreu em 45, fiquei sozinho no mundo, pensei que não ia suportar, mas graças a Deus os amigos têm me ajudado muito. E vocês dois estão inclusos nesse número aí.

P/1 – E o que é que eles faziam? O senhor lembra da profissão do seu pai e da sua mãe?

R – Ele trabalhava de publicitário, mas não tem relação nenhuma com meu jeito para fazer jornal. E tem outra coisa, todos aqueles méritos que eu tinha, sumiram. Eu tinha uma letra, modéstia a parte, bonita. Você já viu meu jornalzinho alguma vez?

P/1 – Não.

R – Está tudo agora no museu do Pacaembu e de maneira que até saí do controle da pergunta. Eu sei que eu sempre me dediquei muito a gostar de fazer jornal, com carvão, na cozinha da minha casa. Minha mãe me ensinou muito o alfabeto e com seis anos eu já sabia ler e escrever. E graças a Deus fiz o jornalzinho que aguentou 18 anos, saindo toda semana, eu fazia nas horas vagas. Eu trabalhava numa indústria metalúrgica nove horas e meia por dia e nas horas vagas dava um avanço no jornal. Ele nunca deixou de circular, a maior circulação, ao contrário de um jornal, um exemplar.

P/1 – E sobre o que é que era o jornal do senhor? Qual era o assunto do jornal?

R – Do esporte, eu fazia reportagens dos jogos, nosso campo ficava ali perto da minha casa, na Avenida Sumaré, onde hoje é a Avenida Sumaré. E eu fazia, depois todo mundo ia passando de mão em mão. Muitos desapareceram porque não devolveram. Mas foi a minha vida, eu me senti jornalista legítimo.

P/1 – E como é que o senhor escolhia os assuntos? A matéria?

R – Ah, eu fazia entrevista com jogadores, fazia antes dos jogos escalação das equipes, um certo comentário sobre como desenvolveu o jogo, criticava alguns jogadores indisciplinados. Não era desejar agouro de ninguém, nós éramos muito unidos. O jornalzinho saiu um monte desse tamanho. Foi a minha vida, eu realizei meu sonho de ser jornalista com o jornalzinho, agora estou aperfeiçoando. É isso aí.

P/1 – Agora vamos voltar um pouquinho para sua casa. Eu queria que o senhor dissesse, o senhor tem irmãos? O senhor tinha irmãos?

R – Não, todos faleceram.

P/1 – Quantos irmãos o senhor tinha?

R – Tinha duas irmãs e um irmão, eles morreram. A minha irmã Maria morreu faz dez anos. Gosto muito de animal, quando olho a fotografia dos animais, o coração dá uma beliscada no peito aqui que parece que eu vou ter uma síncope. Gosto, amo mesmo, é a minha riqueza.

P/1 – E o senhor era o mais velho dos irmãos? O mais novo?

R – Não, o caçula.

P/1 – E como que era a sua casa na sua infância? Como que era o bairro? Que lugar o senhor morava?

R – Ah, o bairro era tranquilo, pacato. A gente dormia, bastava botar uma cadeira atrás da porta, estava seguro para o resto da noite. Mas o bairro era tranquilo, mas tinha as pessoas menos civilizadas que assaltavam a casa, isso existe até hoje em número muito maior em todo o Brasil. Mas valeu a pena, até porque era uma vocação minha que tornei realidade para mim mesmo, tive aquele prazer de fazer o jornal. Eu era o paginador, o articulista, o entrevistador, ia no jogo, marcava os resultados, de modo que se é que é possível, eu me senti realizado. Como se eu tivesse um jornal que tinha eu e mais uns dez ou 20 invisíveis me ajudando. O jornal nunca deixou de sair.

P/1 – E como é que veio a ideia de fazer o jornal?

R – Mania, eu sempre desde criancinha pegava o papel que vinha embrulhado o pão também e ficava rabiscando. Ficava rabiscando o chão da minha cozinha da minha casa, a minha mãe consentia e foi ali que eu aprendi a ler e escrever. A minha mãe me ajudou também, não posso ser injusto, e de maneira que depois de 18 anos destruíram o local do nosso campo e virou Avenida Sumaré e vai se agravar mais, porque vão alargar o córrego que está canalizado lá, vão fazer mais largo e vai fazer buraqueira do Sumaré até o campo do Palmeiras. Mas é o progresso.

P/1 – E o senhor falou desse campo, quais eram os times que jogavam nesse campo, perto da sua casa?

R – Quem é que jogava?

P/1 – É.

R – Conseguia, anunciava na Gazeta Esportiva o jogo, eles acertavam, eles vinham. Nunca houve nada de grave, graças a Deus, adversários bons e disciplinados. E o meu cachorrinho do lado, Carimbo. Até eu fiz um poema para o meu cão. Eu me sinto inferior ao meu cão, ele tinha virtudes que eu não tenho. É coisa que dá um nó aqui na garganta. Gostar mais de cachorro do que de certa gente e é verdade. O meu cachorro era submisso a mim, eu era o Deus dele. Até que depois de 13 anos morreu. Ele ia todo sábado ver o jogo comigo, todo mundo conhecia ele, o Carimbo. E agora estou ajeitando as poesias, eu pus Ode ao Meu Cão. Eu aprendi muito mais, não tinha vício o cachorro. Eu gostava de uma pinga depois do jogo. Então, achava-me inferior ao cachorro, porque ele tinha mais virtude do que eu. Lógico, o cachorro não tem vícios.

P/1 – E eram jogos de várzea que o senhor acompanhava ou eram times profissionais?

R – É, jogo de várzea. Não era nem campeonato. A gente mandava ofício, aquele sistema antigo mesmo. Era dirigido por uma pessoa dedicada, o Peão, chamado Peão, que já faleceu. Foi uma época luminosa na minha vida.

P/1 – E o senhor estava comentando do bairro. E a região ali entorno do Estádio do Palmeiras, como é que era? Era muito diferente do que é hoje?

R – Ah, muito diferente, porque a Avenida Sumaré sai do Araçá e vai até a Rua Turiassu e depois vai lá para baixo com outro nome e aquilo que impulsionou o progresso do bairro. As Perdizes agora está apinhada de prédio, mas na minha mente eu estou vendo aquele campo desigual, parte gramada, parte de terra. Mas é o modo de ser feliz, não é só a fortuna que faz a felicidade. Tem certos detalhes que a gente encontrar todos os amigos, todos os sábados, tudo em paz, graças a Deus. É um fato que passou e não vai mais voltar, porque eu já estou no plano declinado, estou com 88 anos, espero viver mais uns meses.

P/2 – Senhor João, mas o senhor chegou a frequentar o Parque Antártica? Assistiu alguma partida?

R – O Parque Antártica? Eu sou do tempo de Oberdan Cattani, Da Cunto, Viladonica, Luizinho, Echevarrieta, Lima, Pipi. Eu só não me tornei palmeirense porque tinha aquele negócio de guerra, você não podia comentar, tinha raiva dos nazistas. O jogador não tem culpa nenhuma, é filho de italiano. E o italiano, a gente deve muito ao italiano, o progresso de São Paulo, o que eles fizeram, o Matarazzo, basta falar do Matarazzo, que é perto da minha casa, agora acabou. Mas tinha os jogos, o Palestra e Corinthians era um clássico medonho. O Parque Antártica estremecia. Jurandyr, Carnera, Junqueira, Tunga, Gogliardo e Del Nero, Luizinho, Waldemar Fiúme, Echevarrieta, Lima e Pipi. Belos tempos.

P/2 – O senhor ia ao estádio do Parque Antártica ver os jogos?

R – Ah, ia, ajuntava garrafa vazia durante a semana para arrumar um cruzeiro, que era a entrada na geral. Eu tenho um monte de Gazeta Esportiva em casa. Antigamente era tabloide e de maneira que quando eu leio aquilo, volta ao passado. Mas só leio a vitória do São Paulo, eu renego os outros resultados. (riso) Não, eu estou brincando, futebol tem que ser global o amor.

P/1 – E como é que era o Parque Antártica? O senhor podia descrever para gente? Como era assistir um jogo lá?

R – No aspecto da construção? É, tinha aquelas duas arquibancadas cobertas, do lado da Turiassu, a geral era em frente, mas sempre foi um estádio inacabado, sempre ficou faltando alguma coisa. E eu ia ver jogo do Corinthians no Parque São Jorge. Eu gosto do clube pelo que eu vi, não a rivalidade, que o São Paulo é maior vai bater no Corinthians, voltar chateado para casa quando perdia. Não, eu reconhecia que o Corinthians é uma potência do futebol, Jango, Brandão e Dino. Ô meu Deus do céu, o passado de vez em quando ele volta e fica rodando aqui, mas graças a Deus está tudo bem, estou muito contente de estar aqui, em primeiro lugar, o resto é secundário.

P/1 – Agora senhor João, eu queria voltar bastante lá atrás, e voltar para sua infância. Eu queria que o senhor dissesse como o senhor era menino? Do que o senhor gostava de brincar? Como é que era?

R – Ah, tinha carrinho de rolimã, descia a Rua Bartira. Conhece a Rua Bartira? Então, descia aquela velocidade lá, puxava aquele breque lá, o carrinho virava. Quando não jogava a gente para o meio da rua. Eu acho que o moleque goza mais a vida que o filho do rico, eu era livre para tudo, fazer tudo, dentro da moral. Ah, mas é muito bom.

P/1 – E o senhor já gostava de futebol nessa época? O senhor acompanhava o futebol quando menino?

R – Eu? Acompanhava, mas desde os dez anos, ia ver jogo no Parque São Jorge. O São Paulo jogava na Rua da Mooca, lá na Rua Bresser, bem lá perto da estrada de ferro, no campo da Companhia Antárctica Paulista. Era um campinho pequeno, mas muito sedutor, bonitinho, bem gramadinho, ia todo domingo lá.

P/1 – E como é que o senhor fazia para ir aos jogos?

R – Ah, subia a ladeira da Rua Bartira, pegava o bonde grandão lá, na Praça do Correio, que ia para o Largo São Bento e pegava o Mooca, o Bresser, mas era uma maravilha. Ajuntava garrafa vazia a semana toda, para ter dinheiro para condução. São coisas que fazem a felicidade, às vezes a gente não sabe, a gente pensa que felicidade é nadar em dinheiro e não é não.

P/1 – E nesses jogos o senhor ia com alguma camiseta, uma bandeira ou não?

R – Naquele tempo não tinha negócio de bandeira. Não tinha mesmo, agora que ficou. Outro dia eu ganhei umas bandeiras do São Paulo, a turma sabe, a turma que não é são-paulina, mas eles sabem que eu gosto do São Paulo, eles mandaram. Recebi no meu emprego, tudo assinada, de modo que eu gozei a vida, muito mais que muitos filhos de gente rica.

P/1 – Quando o senhor ia ver esses jogos no Parque Antártica ou no Palestra, as torcidas dos times elas ficavam misturadas? Já tinha separação? Como é que era?

R – Tinha aquela uniformizada tinha o lugar dela. De um lado o Palestra e do outro o Corinthians, por exemplo. O Parque Antártica era um campo inacabado, mas era sedutor, era bom ir lá, representava muito o Palmeiras. Eu não tenho raiva dos outros times, só quando jogava com o São Paulo. É porque eles me deram alegria também, eles me deram um futebol lindo. O Corinthians, Joel, Jango, Brandão e Dino, Luizinho, Servílio, Teleco, Joane e Carlinhos. Ah, hoje não dá para guardar escalação de time, o repórter já ia em campo, já sabia qual a escalação, hoje não se sabe. Jogaram a Portuguesa lá no lixo, depois que ela foi duas vezes na Europa, jogou 20 vezes, perdeu uma ou duas partidas, daquele torneio, nem sei o nome do torneio, e sabia que ia sobrar para Portuguesa, para o Fluminense não sobra. A corriola lá é...

P/1 – Senhor João, tinha algum jogador na sua infância que era o seu ídolo?

R – Não vou falar Friedenreich porque aí você vai achar que eu estou muito velho. Leônidas da Silva, Dom Antônio Sastre, Gijo, Piolim e Renganeschi, Bauer, Rui e Noronha, Luizinho, Sastre e Leônidas, Remo e Teixeirinha, esse era o time. Jogava o ano todo a mesma formação. Hoje começa o jogo, a gente não sabe quem está jogando, quem não está, mas foi muito bom. Eu fui um menino pobre, mas feliz.

P/2 – O senhor chegou a ver esse time do São Paulo jogar no Pacaembu? Com Leônidas da Silva?

R – Ah, vi. Até o Friedenreich eu cheguei a ver uma vez, num jogo de veteranos, o Friedenreich participou. Mas o Leônidas eu acompanhei a carreira dele de 42 a 2001.

P/2 – E o senhor lembra de um jogo Palmeiras e São Paulo que marcou muito, dessa época? Uma partida entre o São Paulo e o Palmeiras?

R – Ah, vi muito São Paulo e Palmeiras, primeiro e segundo turno. Eram rivais, mas nunca deu confusão.

P/1 – E senhor João, na casa do senhor, o seu pai gostava de futebol? A sua família acompanhava o futebol?

R – Eu sou são-paulino porque meu pai era são-paulino. Mas meu pai trabalhava no Jóquei Clube e nunca tinha domingo livre.

P/1 – E as vezes que o senhor não ia para o estádio, como é que o senhor acompanhava o campeonato?

R – Ah, através do jornal O Esporte, a Revista Equipe e mesmo a Folha de São Paulo, Diário de São Paulo, eu sempre tinha um jornal em casa para ler.

P/1 – E o senhor acompanhava jogos pelo rádio também?

R – Mas eu ia no campo. Só o jogo noturno que nem sempre eu ia porque a minha família não gostava, descer o Vale do Pacaembu perto do estádio lá e era perigoso. Agora está tudo povoado lá.

P/1 – Tirando o Parque Antártica e o Parque São Jorge, que outros estádios o senhor chegou a ir ver jogos?

R – Os dois principais eram esses. Tinha o Comercial que tinha um campo lá na Rua São Jorge, perto do Corinthians. Mas geralmente eram dois, sempre dois, olha, já estou atrapalhado. Está entrando cisco no pensamento. Mas futebol, qualquer jogo me servia. Preliminar, tinha grandes preliminares, times poderosos. Hoje não vou mais, fico em casa.

P/1 – E quando o senhor ia assistir esses jogos, com quem o senhor ia? Com amigos, com familiares?

R – Com meu guarda-chuva de mulher (risos). Eu ia sozinho. Eu penso nisso já me dá vontade de chorar, os olhos já ficam úmidos, mas era bom. Voltei muitas vezes horrivelmente decepcionado. São Paulo e Corinthians, segundo jogo decisivo. Segundo tempo, São Paulo abre a contagem, 1 a 0, e quando faltava 15 segundos para acabar o jogo, o São Paulo cedeu o empate. Eu tinha largado de beber, graças a Deus eu aguentei a dor, mas não tomei nenhuma bebida. Mas foi uma decepção, a bola, ah, nem quero pensar. O juiz já estava olhando o relógio, vai acabar o jogo, 1 a 1. O Corinthians não ganhou nada, porque o Corinthians não estava classificado.

P/1 – O senhor lembra que campeonato que era?

R – Foi mil novecentos e agora não estou lembrado o ano, deve ser 65, 66. Eu deixei de beber em 65 e eu tomei assim umas duas Coca-Cola de raiva (riso). Mas graças a Deus eu resisti, podia reincidir e o vício quando reincide é doloroso, acaba com a gente mesmo. E a Copa do Mundo de 50 também eu amarrei o diabo no pé da cama, (riso) é coisa de gente dado a isso, para segurar o jogo, o Brasil estava ganhando de 1 a 0, quer dizer que bastava jogar mais um pouco o jogo acabava. O Corinthians empatou em cima da hora, em cima mesmo, 45 minutos. Subi o Vale do Pacaembu indo para as Perdizes e fui me encher de Coca-Cola. Graças a Deus que eu fui mais forte que o vício.

P/1 – E seu João, agora voltando um pouquinho para trajetória do senhor, com quantos anos o senhor começou a trabalhar?

R – Eu trabalhei foi em 45, eu tinha 19 anos. Trabalhei, me aposentei nessa firma aí, indústria metalúrgica, era na Barra Funda. Eu não tive muito emprego, eu ficava bastante tempo. Depois me aposentei, um salariozinho. É injusto, a pessoa se sacrifica no serviço, agora uns nababos aí dão um desfalque, não acontece nada, é doloroso, se a pessoa for fraca, ela torna a errar.

P/1 – E quando o senhor começou a trabalhar dificultou essa coisa de ver os jogos? Como é que fazia para acompanhar?

R – Os jogos?

P/1 – É.

R – Não, jogo era à noite. Nas horas vagas, no serviço eu fazia muito o jornalzinho. Meu patrão viajava muito para o Sul, ele era vendedor e de modo que eu ficava tomando conta da casa e fazendo jornalzinho. Mas perdi a capacidade daquela letra que eu tinha, eu tinha uma letra de imprensa mesmo, não consigo fazer mais. Esse jornalzinho que eu dei para o estádio, para o museu, tinha o título, eu posso ir lá, pago sete paus e vejo, mas eu queria eles comigo. Ah! Meu jornalzinho.

P/1 – E para quem que o senhor entregava? O senhor vendia esses jornalzinhos? Como é que era?

R – O que? Se eu vendia? Dava para a pessoa ler. Eles ficavam sentados no barranco lendo o jornalzinho. Fazia entrevistas com ele, entrevista com 90 perguntas. Aquela banalidade de sempre, de maneira que era a minha vida, era a minha alegria. Até isso me tiraram, fora as decepções amorosas (riso). Não tive muita sorte, mas sou feliz. Porque Deus está sempre comigo.

P/1 – Senhor João, o senhor disse que é são-paulino. Queria saber se o senhor lembra do primeiro título que o senhor viu o São Paulo ganhar? Ou que o senhor lembra de ter acompanhado.

R – Foi a de 43, empatou 0 a 0 com o Palestra e o empate favorecia o São Paulo e ele foi campeão. O jogo que demorou um século e meio para acabar. Tinha que fechar os olhos e tampar o ouvido, e bateu uma falta contra o São Paulo, como se isso adiantasse alguma coisa. Mas o futebol antigamente era um balé de Tchaikovsky. Hoje não, hoje é retranca, aquele jogador do São Paulo, o Aloísio, não sei o que ele tem de pular em cima dos outros, assim com o pé, companheiro, se ele pega um cara cabeça quente, pode até matar o cara.

P/2 – Seu João, em 42 teve aquele jogo São Paulo e Palmeiras no Pacaembu. O senhor foi?

R – O São Paulo fugiu de campo?

P/2 – É. O senhor estava lá?

R – Estava.

P/2 – Conta para gente como é que foi então.

R – Eu nem sei o motivo da reclamação do São Paulo. Eu sei que o São Paulo resolveu sair de campo, saiu e a gozação em cima da gente, na rua, como moleque, é terrível: “Fugiu, heim? É sempre assim”. Mas esse jogo que está se referindo, me lembro todos os detalhes. King foi um goleiro espetacular. São Paulo tem um time de aspirante maravilhoso também, foi quatro vezes campeão, seguida, Ieso, jogava Ieso, Fernando o goleiro. Os jogadores às vezes eu esqueço o nome, mas esses estavam sempre lá. E sempre ficava para onde o São Paulo estava atacando. São Paulo sempre costumava atacar para o gol da concha acústica. Eu sentava na direção do gol dos fundos. Depois do intervalo vinha o portão principal, é a mania que eu tinha. Ah! São Paulo Futebol Clube. Ganhei uma camisa do São Paulo lá no serviço. Tinha uma corintiana lá, uma preta bonita para chuchu, uma atriz de cinema mesmo, ela sempre pega no meu pé, mas é uma amizade sadia. Eu não fico bravo com ela, ela não fica brava comigo, mas dá aquela gozação. Eh! São Paulo.

P/1 – E o senhor tem alguma superstição? Alguma mania quando o senhor acompanha os jogos?

R – Não, até que não. Pedir a Deus é absurdo, para proteger o quadro da gente, não tem cabimento, mas eu pedia, rezava uma Ave Maria, às vezes dava certo, é a fé. Quando dava errado! Outra coisa, com licença, agora que houve essa festa no Pacaembu, que me festejaram muito, graças a Deus, não sei se eu mereço, agora os neurônios estão fraquejando. Eu sei que, mas esqueci mesmo, deu um breque aqui em mim agora.

P/2 – Não tem problema seu João, daqui a pouco o senhor lembra o que o senhor ia dizer. Mas o senhor falava de um jogo que o São Paulo ganhou de 6 a 0 do Palmeiras.

R – É, foi na Rua da Mooca. Pedrosa, Agostinho, Iracino, Fiorotti, Lysandro e Felipelli, Mendes, Armandinho, Elysio, Araken e Paulo. Coisa antiga eu lembro e coisa recente esqueço.

P/2 – E esse jogo o senhor estava lá no estádio?

R – Não, esse jogo eu não fui. Eu fiquei assistindo com um amigo palmeirense, e caladinho para não sair briga, mas foi gostoso. E no domingo seguinte São Paulo apanhou da Portuguesa, 5 a 0. Uma semana depois acabou a graça.

P/1 – Seu João, o senhor lembra quando o nome do Palmeiras mudou de Palestra Itália para Palmeiras?

R – Quando virou? Eu não me lembro muito bem com detalhe. Eu sei que a inauguração do Pacaembu quem inaugurou foi o Palestra, ganhou 6 a 2 do Coritiba. E no jogo principal, o Corinthians ganhou do Atlético Mineiro por 4 a 2. Saiu uma briga, parece que o estádio ia desmoronar, todo mundo descendo os degraus lá e eu encolhido lá entre um degrau e outro.

P/2 – Saía muita briga naquela época também?

R – Não, mais é a pessoa embriagada, aí vinha os meganhas lá e pegavam os briguentos e punha lá na corintiana, veículo de presos, preto e branco. E depois acabava o jogo, soltava o pessoal. Hoje não, uma confusão e vai na justiça, o negócio vai na justiça, fica a vida toda nisso. Mas uma vez eu fui no Pacaembu, eu tinha um pouco de dinheiro a mais, fui de arquibancada, quando cheguei lá dentro eu, tinha a estátua do Davi, conheceu o Davi de Michelangelo? Eu falei: “Eu vou dar uma olhadinha lá para ver de perto a estátua”. Fui e na volta o vigilante lá pensou que eu tivesse entrado, invadido o estádio. Pegou eu pelo cangote e levou para rua. E eu conhecia, eu tinha pago a entrada para entrar, e eu conhecia o bilheteiro, podia falar com o bilheteiro, esse rapaz sempre passa por aqui para comprar ingresso, mas não me ocorreu, era ingênuo, menino ainda. Mas eu voltei, paguei, entrei de novo, mas deixa a gente frustrado. Quando não se tem culpa de uma coisa é duro, de modo que o Pacaembu me recebeu outro dia muito bem, graças a Deus. Eu falei: “Será que sou eu que estou aqui?” Por causa do jornalzinho.

P/1 – E como que foi essa recepção? Eles fizeram uma homenagem?

R – Pessoas ilustres lá me cumprimentaram. Comendadores, juízes de direito. Agora mesmo nós tivemos lá no... Coisa recente eu esqueço. Eu sei, eu fui homenageado lá também no Ministério Público, um prédio lindíssimo que tem lá na cidade. Então, recitaram, um senhor ilustre, jurídico declamou um poema meu, Ode ao Meu Cachorro, ao Meu Cão, fica mais bonito. E depois, no fim, quando acabou o programa, eu fui lá para o fundo, todo mundo foi lá me cumprimentar, eu vivi um dia de herói, graças a Deus. Não foi em vão meu trabalho, mas é ruim contar coisa da gente porque parece que a gente quer aparecer. De maneira que até passou na internet, meu jornalzinho começou com um papelzinho assim, um lápis, e agora passa na internet. Estão com o Fernando, o Fernando vai me dar cópia. Tiraram mais de 30 fotografias minha.

P/2 – Senhor João, o senhor já entrevistou, nesse jornal que o senhor fez, jogadores que depois se transformaram em atletas profissionais?

R – Ficaram profissionais, do amadorismo?

P/2 – Isso. O senhor entrevistou gente que jogava ali na Sumaré e que depois fez carreira de jogador?

R – Ah, só teve um chamado Bueno, que jogou no Ipiranga. É o único, ele era ponta direita e jogava muito bem. Mas a avenida acabou com tudo. Eu tenho um complexo da Avenida Sumaré, morre tanta gente atropelada lá, cara.

P/2 – Quando que acabou o campo na Sumaré?

R – 1968.

P/2 – E não teve protestos?

R – Não, disseram que foi ordem da prefeitura. Quem éramos nós para fazer isso? No dia seguinte eu fui lá, estava um buracão lá, no meio do campo. Mas tudo acaba na vida, não adianta querer para sempre tudo.

P/1 – Senhor João, e na sua memória tem algum jogo ou algum lance que tenha marcado para o senhor?

R – Varzeano?

P/1 – Pode ser também.

R – Não, agora no profissional é o gol do Leônidas contra o Palestra, em 42, que ele pulou lá três metros de altura e deu uma chapada na bola no ângulo, mas no meu clube não houve nenhum destaque. Leônidas na Silva.

P/1 – E esse jogo do Leônidas o senhor estava no estádio?

R – O Leônidas? O Leônidas era atração maior, era meio briguento, mas foi um grande jogador.

P/2 – O Leônidas era como o Pelé?

R – Não, o Pelé a gente não pode comparar com ninguém, é difícil. Eu não gosto muito do Pelé por causa do que ele fez com a filha, desprezou a filha, foi uma atitude feia, mas ela herdou, os filhos dela faz parte da herança. Luizinho, Sastre, Leônidas, Remo e Teixeirinha.

P/1 – Senhor João, a gente está aqui falando do Pelé, eu queria que o senhor falasse então, um pouquinho das suas lembranças de Copa do Mundo. Qual a primeira Copa do Mundo que o senhor lembra de ter acompanhado?

R – Acompanhei, mas aqui do Brasil, Copa do Mundo de 38 para cá assisti tudo, 38, 42 não houve, 50, 54, 58, 62 Brasil bicampeão. É, de lá para cá vi todas as Copas. Espero ver a próxima, vamos ver. Eu tenho um medo de morrer e não ver a Copa do Mundo agora.

P/1 – E tinha alguma preparação a mais para Copa do Mundo? Vocês e seus amigos esperavam? Ficavam ansiosos ou não? Como que era?

R – Desde 38 tinha aquela barulheira, 38 então era um foguetório nas Perdizes que eu nunca vi igual, de maneira que agora vamos ver esse ano. Futebol está muito avacalhado, todo mundo quer mandar. A Portuguesa fez duas incursões na Europa, voltou praticamente invicta, todo mundo esquece isso, fez 22 campeonatos, fez 20 jogos, perdeu um só, honrou o nome do Brasil e agora fazem essa sacanagem com ela. Como se ela fosse a única errada das coisas.

P/1 – E tem algum lance do Brasil, senhor João, que tenha marcado assim, de Copa? Algum lance, algum jogador que tenha marcado para o senhor?

R – Jogo do Brasil? Foi a decisão com Itália em 38. Brasil perdeu 2 a 1, eu cheguei chorando em casa, e chorava mesmo, era uma tragédia. É, foi esse jogo, os únicos foram mais ou menos normais.

P/2 – E o senhor ouviu pelo rádio, em 38, né?

R – É.

P/2 – Mas era o rádio em casa ou o senhor se encontrou em algum lugar para ouvir o rádio?

R – Não, em casa. Com aquele barulho lá pi pi pi pi, aquelas intromissões das outras estações. O Domingos que era frio de nervos, fez um pênalti besta, o Brasil perdeu o jogo.

P/2 – Lá nas Perdizes, senhor João, nessa época tinha muito descendente de italiano?

R – Ah! Tem bastante, ainda mais em redor do campo do Palestra Itália. Os brasileiros se julgavam italianos, por isso que eu tinha uma certa raiva deles, mas não é para ter raiva, cada um opta por o que quiser. E aí de modo que eu vivi a vida do futebol.

P/2 – Mas tinha rivalidade, então senhor João, entre os torcedores do Palestra e os demais?

R – Ah, tinha, os carcamanos. Mas eu sou são-paulino, mas eu sempre gostei do Palmeiras. Foi ali que eu comecei assistir jogo de futebol. Quando o Palmeiras joga eu sempre torço pelo Palmeiras, quando não é contra o São Paulo. Mas graças a Deus, futebol é muito bom quando é jogado seriamente.

P/2 – E o senhor jogava bola, senhor João?

R – No campinho. Eu fiz um gol olímpico, bruta casualidade (riso). Eu bati direito, eu bati da ponta esquerda eu bati com esse pé assim, a bola entrou. E todo mundo olhando para mim, me aplaudindo. Eu tive meus dias de glória.

P/2 – E o senhor registrou esse gol no jornal que o senhor fazia?

R – Ah! Não, ainda não fazia o jornal.

P/1 – Senhor João, para o senhor qual que é o maior rival do Palmeiras?

R – Eu acho que é o Corinthians e o São Paulo, não pode perder desses aí. Mas eu não levo futebol por esse lado, ter raiva, ódio porque torce para outro clube, cada um torce para o clube que quiser.

P/1 – E hoje em dia o senhor continua acompanhando futebol?

R – Só pelo rádio. Já não tenho pique para ir no estádio. Não é que eu brigava, eu não posso correr se houver uma avalanche, então melhor ficar em casa.

P/1 – E senhor João, o senhor falou para gente que trabalhou sempre quase na mesma empresa, se aposentou. Eu queria saber o que o senhor faz hoje? Fala um pouquinho da rotina do senhor.

R – O que eu faço hoje? Não faço nada, vivo. Agora parece que a idade me pegou agora. Eu ando uns vinte minutos na rua aí, já sinto problema na perna. Mas fui um bom jogador de várzea, modéstia a parte.

P/2 – O senhor jogava em que posição?

R – Ah, jogo de várzea é liberado, joga onde quiser, mais de atacante. É gostoso bater um escanteio assim, a bola entrar. Eu tive essa alegria, mas por acaso não é habilidade.

P/1 – E como que era a bola naquela época? Era muito diferente da que é hoje?

R – Era é amarrada, era fechada com couro. Mas a bola é um caso sério quando chove, fica pesada. Dar cabeçada na bola molhada a gente vai para trás e a bola fica no mesmo lugar.

P/1 – E senhor João, eu queria saber o que é que o futebol, o que é que o esporte significa para o senhor? O que é que ele significa na sua vida?

R – O que ele significa, o esporte? Eu acho que um companheiro de diversão. É chato a gente vai deitar, vê aquelas baboseiras na televisão, no rádio. Agora tem um jogo Corinthians e Palmeiras à noite, no Pacaembu, ah! Isso eu ouço até o fim, e ouço com prazer.

P/1 – Então senhor João, eu queria saber do senhor, quais são os seus sonhos para frente aí? Que sonhos o senhor tem hoje em dia?

R – Sonho para frente, com 88 anos? (risos) É, meu sonho é que o mundo se reúna, o mundo todo e faça um tratado de paz definitivo. Hoje um tem ódio do outro, a guerra. A guerra é a coisa, é um mito. Num poema escrevi isso, a guerra é um mito. Num calendário, eu já não sei de cor, que diziam que vinha a paz. A paz nunca vem, no mundo sempre tem uma coisa, uma nação contra a outra.

P/1 – E senhor João, o senhor comentou em vários momentos aqui para gente, dos seus poemas. Quando que o senhor começou escrever poesia?

R – Primeiro escrevia sem a métrica, depois eu comprei um livro do Olavo Bilac e do Guimarães Passos, aí aprendi a metrificar: “No rude tédio desse amor sem vida, que foi sublime, mas que morre triste, mal sei exprimir-te, oh! Musa querida, que mágoa infinda no meu peito existe. Oh! Pátria amada da paixão perdida, imputa as dores que jamais sentiste. Mas que pecado tens, pobre querida, se esse amor nasceu e agora que inocente abriste. Se a musa não dá asa à minha alma aflita, se a musa não dás envolta triste no sofrer de morte, não mais amar meu coração cogita, pois todo o bem dessa paixão tão forte, já derrotado nem ao menos grita, nos frios braços de tão rude sorte”. Isso é decassílabo.

P/1 – Senhor João, para encerrar, eu queria que o senhor dissesse para gente como foi contar sua história para o Museu, como foi fazer parte dessa história?

R – Do que?

P/1 – O que o senhor achou de ter contado um pouco da sua história para gente?

R – Ah, me transportei para aquele tempo, eu esqueci que estava aqui. Que vocês eram uma tela de cinema vendo um filme.

P/1 – E tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado que o senhor queira falar sobre o São Paulo ou o Palmeiras ou sobre a sua vida?

R – Não, futebol é aqueles altos e baixos. Do São Paulo eu não falo mal não, eu xingo mesmo (riso), eu gosto, eu gosto do símbolo, preto, branco e vermelho. O profissionalismo estragou com o jogador, agora o objetivo sempre é dinheiro. Antigamente era mais o jogador punha a canela nas divididas, hoje não, qualquer coisinha está machucado. Mas como de noite, quando eu não tenho o que fazer, ouvir um jogo é bom. Mas gosto de jogo decisivo, que dali vai sair o campeão, não esse negócio primeiro turno tem duzentos jogos pela frente. Isso é difícil, é chato esperar quem vai ser o campeão. Mas graças a Deus o São Paulo vai melhorar.

P/1 – E sempre foi assim, senhor João? Os campeonatos foram sempre muito longos ou não?

R – Primeiro e segundo turno podia ser com menos regras.

P/1 – E antigamente era assim também?

R – Não, mas o Campeonato Paulista tinha dez times só, não passava de dez. Dez de um lado, dez do outro. E o campeonato sempre tinha um interesse, até o finzinho tinha interesse. Hoje tem o Santos arma um time forte, dispara, o campeonato perde toda a graça.

P/1 – Então está certo senhor João, eu queria agradecer mais uma vez a sua participação, em nome do Museu da Pessoa e do Ludens, eu queria agradecer muito a sua entrevista.

R – Eu me sinto muito honrado. Eu nunca vivi essa época na minha vida. Eu pensei que eu era um pobre esquecido, que ninguém ligava para mim. Pelo ao contrário, agora o Pacaembu cheio de gente, comendadores, deputados, tudo me abraçando, cumprimentando. Lá no Ministério da Justiça também vieram tudo me cumprimentar. Gente, eu via que é mil vezes mais inteligente e mais rica do que eu, vieram me cumprimentar. Teve um que declamou um poema, Ode ao Meu Cão, um cachorro que eu tive. Então ele veio me cumprimentar, todo mundo gostou, todo mundo aplaudiu. Nunca bateram palma para mim. Ah! Acho que eu mereço, né?

P/1 – É isso aí. Muito obrigado, viu?

R – Foi um prazer imenso meu.


FINAL DA ENTREVISTA