Museu da Pessoa

Um comerciante da memória

autoria: Museu da Pessoa personagem: Plínio Quintão Fróes

Memórias do Comércio da Cidade do Rio de Janeiro
Depoimento de Plínio Quintão Fróes
Entrevistado por Paula Ribeiro e Fernanda Monteiro
Rio de Janeiro, 27/06/2003
Realização Museu da Pessoa
Código: MCRJ_HV024
Transcrito por Marllon Chaves
Revisado por Ligia Furlan

P/1- Bom dia, Plínio!

R- Bom dia!

P/1- Eu queria começar a entrevista então, pedindo que você me dê o nome completo, seu local e data de nascimento, por favor.

R- Bem, Plínio Quintão Fróes. Nasci no dia primeiro de dezembro de 1955 e... Onde eu trabalho?

P/1- Onde você nasceu.

R- Nasci em Ferros, Minas Gerais, cidadezinha do interior, perto de Itabira.

P/1- O nome dos seus pais?

R- João Fróes e Maria Moreira Quintão Fróes.

P/1- E avós, Plínio? Você conheceu, lembra deles, o nome deles?

R- Não. Meus avós, infelizmente, eu não conheci. Minha avó me conheceu e tem algumas histórias engraçadas dela comigo, mas eu não me lembro dela, eu era pequenino quando ela faleceu. Mas minha avó, que foi uma pessoa muito marcante na nossa família, mãe da minha mãe, era dona Rosinha Quintão. Era uma aristocrata da época do café. A gente brinca, nós somos filhos de uma aristocracia cafeeira em decadência e da burguesia em ascensão. Só que a burguesia não chegou a ascender e a aristocracia chegou a decair na época do corte do café, do crack de Nova York, na década de 30, por aí. Então era família de cafezais em Minas, nossa família veio disso. E a minha avó era uma mulher muito forte. Era um matriarcado. Ela ficou viúva muito cedo, e tocou a fazenda de café sozinha. Com um grande número de funcionários, com... Ela chegou a criar 52 filhos, desde criancinhas até casar. Então era uma mulher que agregava pessoas em torno dela, e uma mulher muito forte. Era uma fazendeira muito dinâmica, que construiu um terreirão de café, consolidou o engenho de cana. Então eu venho dessa família. E o pai fazendeiro pelo... Perdão, um pequeno comerciante com uma loja de tecidos, depois um armazém, veio de Dom Joaquim, foi para Ferros e casou com a minha mãe.

P/1- Irmãos, em quantos vocês são?

R- Somos seis irmãos. Eu sou o mais novo, o caçulinha.

P/1- Hum, hum.

P/2- Homem, mulher?

R- Somos quatro homens e duas mulheres.

P/1- (Façamos?) então um pouquinho dessa tua memória da fazenda da tua avó. Você chegou a vivenciar isso, essa fazenda?



R- Sim. Eu nasci em Ferros, mas a fazenda era pertinho. Então a gente sempre estava na fazenda, junto com a família. É, foi, era a família. Era a fazenda que agregava vários tios, primos. Todos moravam naquela grande fazenda da minha avó. Casava-se e se mudava para lá, e ali se tinha... Cada tio tinha dez filhos, oito filhos. Então era uma grande família, todos nós, e eu vivi muito essa companhia dessa grande família. O meu pai − voltando um pouquinho −, ele era esse comerciante que veio de Dom Joaquim para Ferros com a loja, depois com o armazém, finalmente com o posto de gasolina. E um homem muito correto, muito ético. O meu pai tinha uma forma de trabalhar, de lidar com o comércio, de lidar com as pessoas, uma forma muito particular. A gente aprendeu muito com ele esse jeito de trabalhar, de lidar com o comércio. E ele se apaixonou pela minha mãe, né? E a minha avó disse que, quando ele quis se casar, ela só permitiu que ele se casasse com a condição dele deixar o comércio em Ferros. Porque era longe, era longínquo. Hoje é meia hora de carro, mas na época era duas horas no lombo de cavalo. Se ele viesse morar na fazenda junto dela... Porque a Mariazinha não poderia mudar-se para a cidade de Ferros, então ele veio para a Fazenda Cachoeira, se casou com minha mãe na própria fazenda e se transformou, virou um fazendeiro por um grande período da vida dele. Ficou ali na fazenda, cuidando de gado, já não era mais a fazenda de café. E ficou ali durante 20 anos, mais ou menos. Quando a minha avó já estava bem velhinha, bem doente, aí ele se mudou para Ferros. Quando novamente ele voltou a trabalhar com comércio, foi quando ele abriu o armazém. Aí levou a minha avó também para Ferros, porque ela já necessitava de estar perto de hospitais, do hospital da cidade, de médicos, e a vida na fazenda, na realidade, eu só vivi em finais de semana.

Mas é aquela vida de largueza, de amplidão, de muita fruta, de muita... De convívio com os primos, com os empregados, os agregados. Era uma fazenda que, além da nossa família, que era muito numerosa, mas também os agregados em volta da fazenda, né? Então os pequenos agricultores que trabalhavam à meia, ou à terça e que tinha as suas casinhas em torno da Fazenda Cachoeira. Era uma grande família, de várias castas, vários níveis socioculturais. A gente vivia numa harmonia muito boa.

P/1- Sabe o que eu queria? Fala um pouco da experiência, da vivência do seu pai no comércio? Vamos tentar recuperar um pouco os ramos de comércio diferenciados que ele trabalhava. Se você puder me datar que década era essa...

R- Está. O meu pai faleceu agora, vai fazer um ano daqui a alguns dias. Com 96 anos. O que eu me recordo é que ele começou a trabalhar aos 12 anos, quando o pai dele faleceu. Ele tinha que trabalhar para educar as irmãs, e chegou a educar e formar essas irmãs no colégio de freiras em Conceição do Mato Dentro. Então aos 12 anos ele começou a trabalhar em uma quitanda de uma pessoa lá de Dom Joaquim, de um senhor que o acolheu e deu esse emprego. E se tornou um excelente funcionário. Ele conta alguns casos engraçados, por exemplo: a quitanda era muito pequenina, então vendia aqueles biscoitos de goma, assim bem grandes. E que às vezes tinha dias que tinha um movimento muito grande, que o patrão não deixava vender todos os biscoitos, porque senão não tinha para os outros, para os outros dias. Então tinha que economizar até nas vendas, porque ele respeitava o cliente que vinha no dia seguinte e não tinha aquele biscoito para ele, ele dava uma segurada. Mas eu não tenho muita memória, porque obviamente ele não... Eu lembro mais da época dele já em Ferros. É, quando rapaz ele foi para Senhora do Porto, uma cidadezinha perto de Dom Joaquim. São todas cidades perto, Senhora do Porto, Dom Joaquim, Ferros, Conceição do Mato Dentro. E ali ele tinha uma loja com um primo, que era a Casa São Luis. Depois ele foi para o Viamão, que é hoje Carmésia. E também uma loja com esse primo e, depois, um irmão dele. Depois foi para Ferros, talvez quando ele... Deveria ter uns 30 anos. Ele nasceu em 1907. Talvez na década... Final de 30, 40 foi para Ferros e abriu a loja Casa São Luis, junto com o meu tio. Uma loja de tecidos que ficava na rua principal de Ferros. Mas (a cidade?) de Ferros só tem duas ruas. (riso) Em uma das duas ruas de Ferros. E ele, da loja... Eu também não tenho muita memória, porque eu ainda não era nascido − essa loja de tecidos. Depois que eu nasci, já em 55, quando eu cresci, eu me lembro mais do meu pai já no armazém, lá em Ferros, do outro lado do rio. Era um armazém de víveres: arroz, feijão. Buscava arroz em Goiás. E era um armazém muito grande, era o maior da cidade. O meu pai tinha uma relação muito boa com todas as pessoas da cidade. A gente brincava que era o homem que nunca teve um inimigo. Não tinha uma, não se envolvia em política. A política na minha cidade era uma coisa muito forte. Dava briga, dava morte. Então ele tinha uma... Se dava bem com todo mundo, mas ninguém sabia quem era os candidatos dele, então um homem que se isentou, na cidadezinha pequena do interior, dessa briga política. É, foi um comerciante sábio. Ele era um homem muito sábio, um homem muito ponderado. Era aquele que apartava, aquele que entrava nas coisas quando era chamado para ajudar a resolver os problemas. Desde o problema de pessoal, desde uma... Quando tinha um parente ou amigo com um problema financeiro muito grande ele juntava, chamava as pessoas, reunia, cotizavam e resolviam aquela questão. Então um homem que eu aprendi muito observando ele trabalhar, indo para o armazém todos os dias a pé, levava a sacolinha com a garrafa de café, a broa, o biscoitinho que minha mãe fazia. E observava os pequenos gestos dele no dia a dia. Então ele foi meu grande espelho.



P/1- Me descreve um pouquinho esse ambiente do armazém.

R- Do armazém? Olha, o armazém era, na realidade, um grande ponto de encontro de Ferros. Era aonde as pessoas iam para comprar e principalmente para conversar com o João. O armazém eram três sócios: meu pai, tinha o João Moreira e um primo, Antônio Quintão. Então na frente do armazém, antes do balcão, tinha sempre umas três, quatro cadeiras, onde ali você via sempre sentado o Senhor Nandin, que foi o prefeito, quatro anos, da cidade. Você via o Seu (Ésis?), que o era o homem mais velho da cidade. Conhecia todo mundo. Ele olhava para você assim, Fernanda, e falava: “você, você é filha de fulano ou é neta de sicrano.” Ele conhecia os traços das pessoas. Contava história de todo mundo. Tinha a Sacota, que era a diretora do colégio, tinha. Então era onde as pessoas se encontravam. Se discutia política, se discutia religião. E era um ambiente muito saudável, eu não me lembro de ter ouvido ninguém falar mal de ninguém, nunca. Meu pai ele dificilmente...

P/1- Era um bom político.

R- Ele era um bom político. Talvez, talvez sim.

P/1- E que é uma coisa assim interessante, quer dizer, é um pouco a função talvez desse maior comerciante?

R- Era.

P/1- Assim, eu queria entender como é que um comércio representativo na cidade... Qual era o papel desse comerciante, de repente, nessa época, né? Assim, quer dizer, tinha uma... Além de ter o seu comércio, mas o quê que as pessoas tinham? Ele tinha um respaldo na cidade, tinha um, não um poder, mas assim...

R- Eu sei. Tinha, tinha. Meu pai ele era muito respeitado. A forma dele agir no seio da sociedade. Era um homem religioso, não era beato, era um homem que nunca pedia nada a Deus. Ele sempre ia à igreja para agradecer o que ele havia alcançado. É um homem que sempre preocupou em dar uma formação moral para os filhos, de estudo também para os filhos. Meu pai tinha o terceiro ano de grupo incompleto, terceiro ano primário. A minha mãe também, terceiro ano primário. Talvez até por isso que não tenha chegado a me formar em minhas faculdades também (riso). Já é uma boa, até isso eu herdei dele. E o meu pai fez questão de educar, de formar todos os filhos até onde eles quiseram ir. Então tenho dois irmãos: uma irmã, um irmão, médicos. Outro professor, outra também da área, professora. Cada um procurou um caminho, ele sempre procurou educar, dar uma faculdade para todos nós. Agora, dentro da sociedade ferrense, ele era um homem que era muito ouvido, sempre as pessoas o procuravam para ouvir, para pedir conselhos. E meu pai era um homem que não era de falar muito, de fofocar, essas coisas. Hoje se fala muito essa palavra. Ele era um homem muito reservado. Muito correto, muito ético, que ouvia, ajudava, orientava. Quando morria alguém, precisava de um... Como se chama aquela pessoa que faz a divisão, que une a família? Quando você vai dividir as...

P/1- Inventário.

R- O inventário. Tem que ter inventariante, então meu pai era chamado para ser o inventariante, por ser homem de bom senso, que olhava todas as partes, e tentava ser o mais justo naquela divisão. Ele sempre foi, na sociedade, em Ferros, esta pessoa em que as outras citavam muito como exemplo. E nós sofremos muito com isso também, porque, meus colegas, por exemplo, de ginásio, de grupo, podiam roubar laranja no vizinho, roubar galinha, fazer uma galinhada. A gente não podia. “Você é filho do João Fróes. Menino do João, mas menino do João Fróes não pode fazer isso.” Então a gente cresceu...

P/1- Muito cobrado, né?

R- Muito cobrado, de ser... Tem quer ser muito certinho, muito correto.

P/1- Conta então um pouco a tua infância? Tuas memórias de infância, como é que eram? Brincadeiras, como é que era isso?

R- A cidade de Ferros era uma cidade muito bonita, é um vale. São montanhas muito altas, um rio no meio, uma ponte e duas ruas. É um “H”, né? Pequenininha. E a vida da cidade girava em torno do rio, nosso lazer principal era o rio. Muito bonito, o rio Santo Antônio, maior afluente do rio Doce. A gente nadava muito no rio. Tinha também o campo de futebol, tinham as peladas, a gente fazia nos cantos perto da igreja. É, e bicicleta também, a gente andava muito de bicicleta. Era mais... Não tinha, (você?) era muito pequenino, então não tinha...

P/1- Uma coisa, não tinha uma diferença entre a educação dos meninos e das meninas, por exemplo?

R- Ah, tinha, tinha. Os meninos eram... As meninas eram muito mais seguras, os meninos eram mais soltos. A gente tinha, na realidade, mais liberdade que as meninas para sair. Pegar bicicleta, podia ir para todos os cantos da cidade. As meninas já eram mais vigiadas, mais controladas. Eram duas, duas moças. Mas a minha família não era uma família castradora. Não, meu pai... Nem minha mãe. Eles davam muita liberdade para a gente, com limites, né? Com certo... Uma certa liberdade com limites. Mas a gente era muito cobrado e conversava-se muito. Eu acho engraçado que pessoas... Um nível de escolaridade que eles tiveram, mas procuravam sempre conversar com a gente quando surgiam algum problema ou quando eles queriam passar algum ensinamento. Principalmente meu pai, meu pai era um homem que lia. É, em Ferros né, daquele tamanhinho. Assinava jornais, bons jornais da capital, assinava revistas que lia. Então ele sempre teve um nível de informação muito alto, principalmente para Ferros. É um homem que sabia muito das coisas, da política, principalmente. Ele é um homem... Foi engajado com política. Embora eu tenha dito que não, mas por exemplo, você falou, ele realmente era um político. Eu me chamo Plínio por quê? Por causa do Plínio Salgado. Era o integralista. Anauê.

P/2- Isso que eu ia perguntar, se ele estava de olho no Brasil, na época?

R- Estava. Ele estava antenado com o mundo, né? “Anauê!” Então meu nome é esse por causa do Plínio Salgado. Mas é bom lembrar que com o tempo ele foi evoluindo também. (riso)

P1- Que isso fique registrado.

R- Isso fique registrado, ele mudou. Mas as coisas que são de dentro, elas não mudam, elas ficam gravadas. Vou te dar um exemplo. Agora, no finalzinho da vida dele, ele estava já bem... Tinha Parkinson, e a cabeça já não funcionava muito. Ele um dia cismou com um enfermeiro que tomava conta dele, cismou que o enfermeiro queria matá-lo, queria brigar. Ficou meio...

P1- Isso é da doença, né?

R- É da doença, da doença, do Parkinson. E os remédios, talvez os remédios deram uma combinação naquele dia que não fizeram... Ficou um pouco alucinado nesse dia. Cismou que o menino queria matá-lo e que queria matá-lo. E falou: “Plínio, manda ele para fora.” A gente falou, disse assim: “Oi Zezinho, vai embora. Pai pode ficar tranquilo, eu vou ficar com o senhor aqui. O Zezinho está indo embora, e tal.” O Zezinho foi e trocou de roupa, tirou a roupa branca e vestiu a camisa, uma camisa verde.

P1- Ah!

R- Quando o Zezinho passa perto dele com camisa verde... “Anauê! Meu amigo Zezinho!” E abraçou. Bem, o Zezinho continuou a noite com ele, tranquilo. Então ele... (riso)

P/1- Gente, essa é ótima.

P/2- A cabeça da gente é muito ________.

R- É. E voltando só, do meu pai em relação ao comércio, eu aprendi com ele uma coisa, que é uma coisa muito importante, que eu sinto que isso teve um reflexo muito grande, depois, na minha vida, e que me ajudou muito, me ajuda muito. Vou te dar um exemplo. Quando você quer... Ele falava: “olha, meu filho, você vai... Você não tem que desmerecer as pessoas, desmerecer nada as pessoas. Se alguém quiser te vender uma casa, por exemplo, um apartamento, você vai chegar lá, vai olhar. Então se você achou a sala, por exemplo, muito sol na sala, você não vê isso como um defeito. Uma janela muito grande, você fala: olha, mas que beleza! Uma janela grande, vai entrar muita luz aqui nessa casa. Se o piso é de madeira, por exemplo e você queria carpete, você fala: olha, mas que maravilha. Porque você tenta descobrir as qualidades da madeira, em vez de realçar os defeitos. Tente ver o que é bom naquele produto, naquela casa, seja o que for. E depois, se você não tem condições de comprar, você fala: olha, que pena! Eu adorei a sua casa, é muito bonita, é arejada. Mas eu infelizmente não tenho dinheiro, não posso comprar não, está além das minhas posses. Certamente aquele cara vai querer te vender aquela casa depois. Ele vai preferir vender para você, do quê se você chegar lá e falar: “não, essa casa Deus me livre! Uma janela grande dessa eu vou gastar muito com cortina, vai dar muito trabalho”.

P/1- Isso é uma lição de comerciante?

R- De comerciante. De sempre você ver... Depois que eu comecei a trabalhar com antiguidade, passei a visitar as casas das pessoas para fazer compras, então que eu via a pessoa, quando me mostrava um móvel, uma mesa, um objeto, que queria vender. “Ah Seu Plínio, eu tenho essa cadeira aqui, mas essa cadeira está meio bamba já, o couro está rasgado.” “Não, dona Maria, não interessa. O couro a gente conserta, troca, coloca um novo, isso não custa nada. Bamba, isso a gente cola a cadeira. É uma cadeira muito bonita. Uma cadeira de estilo, tal.” Eu valorizava, e realmente eu não mentia, dizia o que era. Cadeira Luis XV, tal. “Agora, posso pagar tanto por essa cadeira, e está aqui o meu cartãozinho se a senhora... Então chame outras pessoas, chame outros antiquários aqui, veja o que eles podem pagar, de repente vão pagar melhor que eu. Depende, se tiver um cliente específico para esta peça.” Deixava, nunca que eu fechava

no primeiro dia, nem ela. Deixava sempre o cartão e um, dois dias depois ela estava me ligando.

P/1- Porque essa, então... É interessante. Quer dizer, essa é uma lição de comércio, né?

R- É.

P/1- Porque geralmente o comerciante faz o contrário.

R- Ao contrário.

P/1- “Essa cadeira é ruim, realmente ele não vale nada.” Quer dizer...

P/2- Querendo pichar.

P/1- É, querendo desmerecer tanto em termos de valor, ou em beleza, em qualidade. Pois é, a lição que teu pai te deu foi justamente o contrário.

R- O oposto. Vou lhe dar um exemplo. Posso dizer que, no Rio de Janeiro, em 12 anos de antiquário, eu acredito que eu nunca perdi uma grande venda.

P/1- Olha!

R- Uma grande compra, pessoas que ligam para vender uma casa inteira. Um caso de herança, ou de mudança, de morte de alguém, em que a gente ia fazer a avaliação mais próximo do valor real mesmo que a gente podia pagar, que eu julgava o preço daquelas peças. E a gente deixava o cartão. Dois, três dias depois as pessoas ligavam fechando com a gente. Chamava e a gente aconselhava: “Chame outros. Tem o shoping na Siqueira Campos, tem na Rua do Lavradio, tem no Cassino Atlanto, tem nas feiras. Chame outros comerciantes que a senhora vai checar outros preços.” Inúmeras vezes, mas a gente teve assim, resposta, como por exemplo: “é, Seu Plínio esteve aqui, o fulano, esteve aqui.” Foi até bom que a gente começava a conhecer os colegas que a gente não conhecia, a gente convivia mas não sabia os detalhes que o próprio cliente passava. “Olha, esteve aqui o fulano de tal, seu vizinho ali, e ele falou isso, isso, e isso assim.” Sempre chegava e detonava. “Mas isso não vale nada, isso aí tudo porcaria. Isto aqui não vale nada.”

P/1- É mais um jeito de comerciar, né?

R- Exatamente. Então a pessoa ficava irritada. A peça que ela guarda há 20, 30, 40 anos, herdou da mãe, herdou da avó. O valor que...

P1- Afetivo da história, (aí vai?) e denigre, né?

R- Daí pronto.

P/1- Bom, aí é.

R- Então o cara podia pagar...

P/2- É, mas não vai querer vender.

R- Ele podia pagar 100 reais, eu podia às vezes pagar 30. Ela preferia vender para mim, por 30, do que para ele, por 100. Porque ela sabia que eu ia cuidar daquela peça, que eu ia restaurar. “Não, eu vou restaurar essa cadeira. Vou trocar o pano. Vai ficar bonito como era na época da sua mãe.” Então ela tinha certeza que eu ia cuidar daquele bem. Que o bem era um bem que veio de herança dela, da vida da família.

P/1- Lição do seu João, né?

R- É. Tem uma, só uma historinha que eu vou contar, da dona Maria Amália, que era uma senhora velhinha aqui da Rua do Flamengo, que tem apartamento gigantesco, uma coisa maravilhosa. Um dia ela me chamou, queria vender uma cristaleira. Aí fui lá − nunca tinha visto −, cheguei para olhar a cristaleira dela. Era cristaleira colonial português, daquelas torneadas, que não têm, hoje, um valor comercial muito grande. Só que dentro da cristaleira tinha... Aí meu Deus do céu! Tinha peças de prata, porcelana inglesa, japonesa. Tinham preciosidades sem tamanho. Biscuits alemães. Quando eu cheguei e vi aquela cristaleira. Falei: “dona Maria Amália, a senhora está.” − Realmente você fica... Eu falei − “a senhora quer vender só a cristaleira ou a senhora quer vender esses objetos que estão aí dentro também?” “Não. Olha Seu Plínio, eu chamei aqui o fulano de tal, que falou, da rua tal.” Uma rua vizinha da minha, que também tem antiquários. “Ele me deu 500 reais na cristaleira, com tudo o que está dentro. Então se o senhor pagar um pouquinho mais eu vendo para o senhor. Eu gostei muito do jeito do senhor, o senhor valorizou.” E “bam”. Falei: “Está bom, dona Maria Amália. Eu pago 500 reais, mas não na cristaleira, que eu já lhe pago só naquela pecinha, naquele paliteiro de prata que está ali dentro.” E foi mesmo. E é verdade. Então a peça, tudo, que era 500 reais... Foi o preço astronômico, comparando com o que ele iria pagar. A gente comprou toda a cristaleira, com todos as peças. Depois ela chamou, a gente comprou a sala inteira. Depois a filha, não sei o quê. Aí compramos o... Bem, ficamos assim, até hoje ela é cliente nossa. E no dia seguinte ela me mandou um buquê de flores com um cartão, Falando que uma borboleta tinha pousado na casa dela. Um cartão mais lindo, com um buquê. Meu primeiro buquê de flores que ganhei na vida. Então assim, isso é muito legal, é muito prazer na gente.

P/1- Oh, Plínio, vamos então voltar rapidinho...

R- Eu sou conversador, sou complicado para isso. Me corta, porque senão...

P/1- Eu sei, pode deixar que vou te cortando. Um pouco mais ainda em relação à tua infância, lembranças da casa e comidas feitas na tua casa, se era feita pela tua mãe? Só para a gente acabar aí o período da infância.

R- Está... A comida. Agora, é aí que a minha mãe entra muito mais forte. É. (riso)

P/2- Então, falou do pai, agora qual é a...

P/1- Agora fala da mãe.

R- Isso. A minha mãe, como ela veio da fazenda de café... A fazenda nossa, dependia da cidade apenas de sal, remédio e do médico. O resto era independente. Tinha luz, tinha plantações de tudo e também animais, gado, porco. Então a minha mãe aprendeu, na época, com a minha avó, a fazer os quitutes mais deliciosos. A fazer assados. A fazer quitandas deliciosas, rosquinhas, broinhas.

P/1- Faz o quê?

R- Quitandas.

P/1- O quê que é quitanda?

R- Quitanda. Se fala em Minas, quitanda. As quitandeiras que fazem broas, fazem bolos, fazem rosquinhas, fazem roscas.

P/1- De milho?

R- De tudo. Quem faz essas coisas deliciosas que se toma junto com o café, se come com o café isso.

P/1- Hã, hã.

R- Então ela tem aquelas rosquinha de milho, rosquinha de fubá, rosquinha de trigo. Ela faz isso muito bem.

P/2- Ela chegava a vender?

R- É. Ela, na realidade, fazia para a gente, e dava muito para os vizinhos. Então por exemplo, fazia uma fornada de biscoitos, biscoito de goma, e sempre mandava um pratinho para a Samélia, que era vizinha. Mandava um pratinho para o Gil, da loja, que sentia o cheiro das coisas saindo pelo forro. Então todo mundo, quem o nariz alcançava, que sentia o cheiro da fornada, ela mandava sempre um pratinho para eles. Era muito generosa também, a minha mãe. E ia sempre para o padre da cidade. Ia, ia.

P/1- Religião é uma coisa marcante? Quer dizer...

R- Muito marcante.

P/1- Assim, na tua educação foi importante?

R- Foi muito marcante. Só complementando da venda, que ela me fez a pergunta antes. Então ela, a minha mãe vendeu. Aí eu já estava com sete, oito anos, a gente queria comprar uma televisão nova. E meu pai sempre era segurado, era meio pão-duro, controlado. Aí a gente... Nós começamos a vender. Eu vendia. Minha mãe fazia os tabuleiros de rosquinhas, de broas, e tal, alface que ela colhia na horta, queijo, requeijão que ela fazia, e eu − vinha da fazenda, né? − punha o tabuleiro na cabeça, saía pela cidade vendendo. Aí então eu ganhei o meu primeiro dinheiro ali. Eu tinha um percentual daquelas vendas, e com o resto a gente comprou a primeira televisão nossa, foi muito legal.

P/1- Como é que foi ver televisão pela primeira vez, lá? Você lembra?

P/2- O que vocês assistiram?

R- Ah, era meu... O meu grande sonho era ver televisão. Eu sempre fui muito ligado à imagem, ao mundo da imagem. Da relação com as pessoas e a cor, eu sempre gostei muito disso.E em Ferros a televisão chegou década de 60, mais ou menos. Eu estava com, assim 55, né... 69 talvez, já quando o homem pisou na lua. Então a televisão para nós era um grande sonho. Ver as pessoas se movimentando, ver as coisas, o cara cantando, tudo ali, ao vivo, né? E a televisão em Ferros foi uma coisa impressionante. O marco da televisão merece ser contado. O padre da cidade tinha televisão, porque ele comprou a primeira. Ele e o Braga, que era outra pessoa da cidade, do correio. Então o padre colocava a televisão na sacada da casa dele, todo mundo ficava na praça, vendo a televisão na casa do padre ou na casa do Braga e da dona Dina. Eram as três que tinham televisão. Aí chegou o advento do homem pisar na lua, só se falava nisso. Meu pai, como recebia as informações antes de todo mundo, lia, ouvia rádio, jornais... Criou-se aquela expectativa em torno do homem pisar na lua. Toda a cidade, no dia... −1960, não me lembro,1969, não me lembro mais o dia − Ferros inteiro parou na praça para ver a televisão. Era cheio de chuvisco, você não conseguia ver quase nada, cheio de chuviscos. Para ver o homem pisar na lua. Várias pessoas com foguetes, fósforos já ali, ligados, para soltar foguete na hora que o homem pisasse na lua. Aquela campanha americana do homem vai conquistar o espaço. E a cidade inteira ali, à noite, para assistir o homem dar o primeiro passo na lua. Foi, começou a contagem regressiva. O cara foi, abriu a porta da nave e a cidade inteira ali emocionada, gente chorando, aquela coisa. Ele foi e desceu o primeiro degrau, desceu o segundo. E gente... Já tinha gente para soltar o foguete, gente quase desmaiando. Nisso, o espírito de porco do Ferrenhas, o filho do Benedito, vai na ponte, puxa a chave geral que é da televisão. Assim broxou a cidade inteira. (riso) Na hora que foi botar o pé na lua, o cara tira a chave, ficou a cidade... E não tinha vídeo tape. Então ninguém viu isso, acho (riso).

P/1- Caramba!

R- Só vimos algum tempo depois, quando veio o vídeo tape. Foi uma coisa muito broxante, mas assim, notícia para cidade. No dia seguinte a cidade inteira comentava: “o homem não pisou na lua.” (riso)

P/1- Essa foi super, essa foi ótima (riso).

R- É.

P/1- Então assim, falamos um pouco da sua mãe, dessa coisa da comida. E assim, festejos? Ferros tinha uma grande festa anual? Alguma coisa religiosa?

R- Tinha, tinha. A religião era uma coisa muito forte na cidade. O grande acontecimento era a festa de Santana, e é até hoje. É uma festa que reúne toda a cidade em torno da santa, da fé católica. E a igreja sempre teve uma força muito grande dentro da nossa formação, dentro da cidade. A minha casa ficava colada na igreja. Todos nós ajudávamos, todos os meus irmãos fomos, nós fomos coroinhas, ajudávamos na missa, tinha aquelas coisas. Porque o irmão foi seminarista, quase foi padre. Então a igreja, essa Festa do Rosário, ela conseguia... É o maior acontecimento. Primeiro ela permitiu a sobrevida, vamos dizer assim, do folclore daquela região. Porque na festa que as pessoas se expressavam através de danças, de música. Então os Caboclinhos, os Marujeiros, os Congadas, os Batuqueiras. Até é uma boa dica para o Sesc um dia, de repente, visitar Ferros, que até hoje isto é muito forte, muito latente lá, que é o folclore da cidade que vem de séculos e séculos atrás. Então a cidade de Ferros é uma cidade histórica, é bom lembrar disso. Da época do ouro, uma cidade colonial. Essa Festa do Rosário se tinha um reinado, que era o Reisado. Então os reis do rosário, que geralmente eram da casta, que eram candidatos a políticos, eram candidatos a prefeitos... O marketing já era feito ali, junto com a fé, com a política. E até cheio de princesinhas, que eram as filhas deles, as filhas dos outros coronéis, políticos. E atrás, bem atrás do cortejo, vinham os reis do povo, que eram duas pessoas sempre mais simples, da cidade. Porque não tinham posses, e vinha atrás, estrategicamente vinha atrás. E tinha o último dia, era o grande leilão em benefício da santa, e que todo mundo doava alguma coisa para essa grande festa, com missas, com procissões, com festejos, a cidade toda enfeitada de bandeirolas. E os fazendeiros doavam para os reis do Rosário, bois, bezerros, peças de animais maiores, quantias pagas em dinheiros. E para os reis do povo as pessoas mais simples doavam galinhas, no máximo um porquinho, fazia rifa, pescaria, essas coisas, na cidade. Então você já sentia assim, você via, na própria Festa do Rosário, as castas sociais, diferenças sociais bem acentuadas, e ao mesmo tempo irmanadas em torno da fé da igreja. Então a igreja sempre foi muito forte, muito atuante na formação de todos nós de Ferros.

P/1- Agora, em termos de educação, lembrando de escola, como é que era o grupo escolar? Depois onde é que você foi complementar o seus estudos?

R- Eu estudei em Ferros, no Grupo Escolar Silveira Drummond. É, está. (riso) Dos sete aos 11 anos. Sete, oito e ______ sete, oito, nove, dez,11. Sete aos 11 anos com a professora dona Anita. Depois a dona Nilda, durante três anos, me acompanhou mais. Eram um... Minhas maiores lembranças são da dona Nilda Lúcia Leite, que era uma pessoa que tinha uma personalidade muito forte. Ela era uma mulher muito forte, muito ativa no seio da sociedade. Seja na igreja, na escola, nos festejos, no Sete de Setembro, nos cursos, nas missões religiosas. Então ela tinha sempre uma atuação muito forte. Era a professora que eu tinha um carinho muito especial por ela e fui sempre um bom aluno. Aluno de boas notas, porque filho de João Fróes tem que ter boas notas também. Tinha essa cobrança, né?

P/2- Teve algum irmão seu que foi assim o...

R- Ah, tinha. O Paulo, o Paulo só andava no laço. Aquele ali não gostava, não queria ser coroinha, não queria nada. Era o mais rebelde, sempre teve, mas os outros...

P/1- E você fez o quê? Você fez ginásio ali, também?

R- Aí eu fiz o ginásio lá em Ferros, eram colégios públicos. Era o único grupo, o único ginásio, e tínhamos bons professores no ginásio. Uma formação de base muito boa. Mas quando chegou aos 11, quando eu terminei o ginásio, aí a família se mudou para Belo Horizonte. Meus irmãos já estavam lá estudando, todos eles. A minha mãe e meu pai foram para lá também, alugaram uma casa, a princípio, depois compraram. E eu fui para lá para fazer o científico, que seria hoje o terceiro grau, não é isso? Estudar o científico.

P/2- Segundo grau.

R- Segundo grau, é. Fui estudar o científico já em Belo Horizonte. Mas as minhas lembranças de Ferros são muito mais ligadas mesmo ao armazém do meu pai. Ali que era o lugar mais gostoso para mim.

P/1- Quais essas memórias dessa transferência para Belo Horizonte? O que isso significou para você na sua juventude? Que bairro vocês foram morar?

R- Hum, hum. A gente foi morar em um bairro residencial, tipicamente residencial, chamado Prado, perto do Centro, perto do Barro Preto, Carlos Prates. De classe média. Era uma casa confortável, de quatro quartos, com uma pequena área verde, que tinha que ter para a minha mãe, que veio da fazenda cachoeira. Se não tivesse um lugar que ela plantasse o alface, a cebolinha, ela ficava doente. O meu pai já estava aposentado, veio aposentado, não trabalhou mais em Belo Horizonte. Era mais idoso, também. Era um bairro...Em Belo Horizonte a gente continuou muito ligado ainda à Ferros ainda por um período muito longo, né? A gente voltava sempre a Ferros, nos finais de semana. Foi um período de desligamento um pouco difícil, porque a gente era muito ligado às pessoas, à fazenda. Então, logo que eu cheguei a Belo Horizonte, eu já fui estudar no Colégio Anchieta, que era um colégio perto do Colégio Champagnat, tipo Loyola daqui, um Santo Inácio dessa rede. Estudei ali dois anos, depois eu fui para o Colégio Anchieta, que era mais próximo da minha casa. Eu já com... Fui estudar à noite, porque eu queria trabalhar. Eu não conseguia ficar estudando só, sem trabalhar. Era um bom aluno, de notas de razoável para boas. Mais pacato, mais tranquilo, não era um aluno rebelde, e quando eu fui trabalhar no Banco Mercantil do Brasil...

P/1- Como é que foi, em que ano você foi trabalhar? Qual é a tua, digamos assim, o teu primeiro emprego? Como é que foi? _______.

R- Foi em 72. Fui para o Banco do Brasil. Eu fui ser auxiliar administrativo, mas eu sempre, nos locais, em todos os locais que eu fui trabalhar, eu sempre iria para uma função, mas eu sempre descobria lá dentro algum caminho, alguma coisa que eu gostava de fazer. E passava um tempo eu já estava administrando alguma coisa, administrando um grupo de pessoas. Eu, aprendendo... Isso meio assim, meio no tranco. Mas eu sempre gostei de criar, de inventar coisas novas, além daquilo que, era me passado pelo chefe. Então no próprio banco também, era muito papel, muito número, conferência de cheques. Mas logo, logo eu já tinha inventado de montar um arquivo diferente, convencido meu chefe que ele tinha que mudar para aquele canto, que ali devia... Então eu sempre fui modificando as coisas e sempre sendo... As minhas ideias sendo sempre aceitas, reconhecidas, e me dado a oportunidade de experimentar.

P/1- Mas assim, em termos educacionais. Quer dizer, você tinha alguma expectativa, tua, profissional? Você tinha uma expectativa de querer fazer alguma faculdade? Você se interessava por alguma área específica já na sua juventude? Como é que era isso?

R- Sim. De pequeno, em Ferros, ainda eu queria ser médico, como todo mundo. Ou era médico, ou era dentista, ou engenheiro. Mas é porque admirava muito o José Virgílio, que é um grande poeta e prefeito, hoje, da minha cidade, e que era pessoa encantadora. Ele vivia... Ele era farmacêutico e vivia vestido de branco. Então eu acho que eu tenho essa influência de gostar muito do José Virgílio e querer ser médico. Depois eu logo esqueci, e eu queria era fazer arquitetura. Eu era, como falei, muito ligado ao mundo da imagem, da criação, da arte. Eu sempre gostei muito disso, e eu sempre quis fazer arquitetura. Só que no período que eu fiz vestibular lá em Belo Horizonte, foi no meio do ano, em julho. Na Católica, na PUC [Pontifícia Universidade Católica], não tinha Arquitetura, então optei por outro curso, que foi Ciências Contábeis e Administração, e fiz, passei. Fiquei cursando, mas sempre pensando em fazer Arquitetura. Então, na realidade, não era o curso. Eu vi que realmente não era aquilo que eu queria. Muito número, muita física, muita matemática financeira. Não era realmente a minha área, não era o que eu queria. Eu queria uma coisa mais solta, uma coisa mais livre, que eu pudesse estar me relacionando com as pessoas, com o mundo, de forma geral. Criando, desenhando, fazendo, construindo. Então eu fui para... Logo depois eu já fui para Vitória para fazer o vestibular de Arquitetura. Eu tinha uma namorada que morava em Vitória, que era a Miriam, e ela me convenceu a fazer o curso de Arquitetura lá. É ex-namorada, tinha acabado já, o namoro já tinha terminado, e ela já morava lá com família. Então eu fui fazer, fui para a Universidade Federal, fiz vestibular para a Federal de Vitória e passei, bem colocado. Fiquei fazendo, estudando de arquitetura em Vitória.

P/1- O seu pai tinha alguma expectativa, um desejo especial que você fosse?

R- Não, não. O meu pai, ele não influenciava nas coisas, na escolha, não. Ele respeitava muito o que você queria fazer. Obviamente que se... Ele conversava, mostrava o que cada profissão tinha, na visão dele, de positivo e de negativo, ele sempre orientava. Ele sempre tentava ajudar e orientar a gente, mas dizer: “você dever ser isso, deve ser médico, você deve ser...”, não, ele nunca apontou nem forçou essa barra. Nem ele nem minha mãe.

P/1- Como é que era, então, um pouco o ambiente da juventude na Universidade de Arquitetura, na década de 70, lá em Vitória?

R- Olha, foi um momento muito, muito rico, de muito aprendizado. Eu peguei a universidade num período de ditadura, ou seja, já... Não naquela fase áurea de ditadura, mas ainda tinha os resquícios da ditadura. E uma faculdade de arquitetura sempre você tem um grupo muito...

P/1- Politizado, né?

R- Politizado, de...

P/1- Militante.

R- Militante. Eu militei muito no nosso DCE [Diretório Central dos Estudantes]. Eu ajudei muito nos processos criativos, promovendo as festas, os bailes, organizando isso para viabilizar financeiramente, também, o DCE. Para a gente ter, né, custear as despesas do DCE, comerciante também, né?

P/2- É claro, é.

P/1- Já de entretenimento, né?

R- Por uma outra causa, mas é entretenimento. Já com marketing, fazendo marketing no grande salão do bandejão da escola, que eu pintava aqueles cartazes, sempre com uma pitada de humor, quase que umas charges, convidado para a festa de Arquitetura, que passaram a ser mais famosas da faculdade, da universidade. Então a gente tinha realmente festas muito criativas, e eu me lembro mais das festas do que das aulas. (riso)

P/1- Pois é.

P/2- Mas isto é claro, na faculdade.

R- E o grupo de professores, que eu tinha uma relação muito boa com os professores, também. De patrimônio, principalmente, Fernanda (Chiamé?). A Isabel Pelini, que veio até aqui agora, no Rio/Senai, a gente se encontrou lá dentro, ela tomou um susto, eu também. Ela veio como cliente. E então eu aprendi muito com os professores, eu acho que mais fora da aula do que na faculdade. Eu peguei momentos de muita greve. Já cheguei a seis meses de greve na faculdade. Por isso a gente tinha muito tempo livre para pensar nas outras coisas, organizar festas, organizar o DCE, comprar, aparelhos para o DCE, de vídeo, de projeção, de som. A gente ficou cuidando muito, porque não tinha aula, estava em greve. A gente fazia trabalho para os professores, mas era uma coisa muito informal.

P/1- E música? Que música vocês ouviam, estudantes, naquela época, década de 70?

R- Olha, lá em Vitória, nesse período, era muito forró. Era Alceu Valença, Elba Ramalho, João Bosco. Porque as festas eram embaladas muito pelo forró. Era o ritmo que reinava na universidade, nesse período. Porque quando eu descobri esse ritmo... A minha formação musical era bastante pobre, em termos de interior pequeno. Não tinha, você não tinha televisão, não tinha quase nada. Então a minha irmã comprou um toca-disco, a Zélia, e eu ouvia muito o Chico Buarque, Elis Regina, Maria Bethânia, toda música popular brasileira. Bons músicos, boas músicas. Mas em vitória já foi mais para o forró, esse tipo de música.

P/1- Você acaba a universidade, você conclui, como é que foi?

R- Nada. Nada dá... (riso) Eu saía de uma, entrava na outra. De arquitetura já pulei para administração. “Eu vou concluir administração.” Já estava meio caminho andado lá de Belo Horizonte, aí fiz outro vestibular para administração, passei maravilhosamente bem, sem estudar, nada. Falei: “vou concluir administração.” E aí fazia de manhã arquitetura, de noite administração e de tarde trabalhava como estagiário no órgão de trânsito, que era o Detran, lá na área de engenharia de trânsito. Fazia administração, fazia arquitetura, trabalhava na área de engenharia de trânsito, desenvolvendo projeto de educação de trânsito. Então fazia de tudo um pouquinho.

P/1- E você fica em Vitória até quando, Plínio?

R- Eu fiquei em Vitória durante dez anos, fiquei dez anos. Na realidade eu fui para estudar, terminei desenvolvendo um projeto que eu qualifico como um grande projeto para mim, para a cidade. Junto com um grupo de pessoas, onde eu exerci, na realidade, pela primeira vez, esse trabalho, uma experiência de trabalho integrado, com diversos órgãos, em diversas áreas. Eu fui para ser estagiário na área de engenharia de trânsito. Lá dentro eu descobri uma outra área na mesma, na engenharia de trânsito que é chamada de Educação de Trânsito. Me interessei muito por essa área, de ir para as escolas para dar palestras na área de trânsito. Então logo assumiu um diretor novo. Eu comecei a enviar algumas sugestões para ele, na área de educação de trânsito. Ele procurou-me, me chamou para conversar, aí logo eu já estava administrando esse departamento de educação de trânsito, com duas pessoas, com dois funcionários, estagiários. E a gente começou um trabalho de ir às escolas, de dar palestras, empresas. Aí, à medida que o projeto... Que a gente ia tendo ideias, a gente ia conhecendo outras pessoas. Já trazia gente da universidade, trazia gente da secretaria de educação. Não poderia contratar pelo órgão, mas estagiários poderiam vir. Então eu trabalhei muito com estagiários, com pessoas da minha idade, um pouco mais novas que eu. E a gente foi montando um projeto muito legal. Tanto que, éramos três, e quando eu saí, nosso departamento tinha 52 pessoas e um prédio próprio só para nós. Para você ter noção. Então chegamos a montar um programa de educação de trânsito nas escolas, um programa de educação de trânsito nas empresas − Vitória você tem a CST, Vale do Rio Doce −, treinando motoristas de empresas de ônibus. Então tinha várias equipes. Criamos uma Kombi que tinha... Armava uma tela, levantava uma tela, projetava filmes nos pátios das empresas, nas comunidades. E umas das primeiras experiências de trabalho com as comunidades também. As comunidades de Vitória... A gente levava essa Kombi, chamada Detran nas Escolas, para estas comunidades, e projetávamos com filmes de 16 milímetros, de educação de trânsito, para a comunidade, e falávamos sobre o trânsito e porque, o trânsito... Vitória era a cidade que tinha o maior índice de acidente de trânsito do Brasil, neste período. Então além dessas campanhas educativas que eram feitas, nós montamos no nosso departamento um projeto, elaboramos um projeto de educação de trânsito. Aí, já com professores, com pedagogos da universidade, a gente foi firmando convênios, tinha sempre apoio da direção do órgão, que era o Lézio Satler. Nós trouxemos dois professores da secretaria de educação do estado, da universidade, departamento de psicologia. E montamos uma equipe integrada, multidisciplinar. Elaboramos um material para o professor e outro material para o aluno. Seria uma cartilhazinha e material didático para professores, livros, na realidade. Todos voltados para o trânsito, mas multidisciplinar; você tinha de tudo, desde psicomotricidade. Treinamos e partimos para treinar também, os professores da rede estadual e municipal. Aí, concluindo, chegamos a treinar 15 mil professores da rede estadual e municipal e algumas particular. Depois atingimos 150 mil alunos com esses livrinhos de trânsito. Está aí o projeto que foi reconhecido a nível nacional pelo Denatran, pelo Contran. Aí passamos a dar palestras pelo Brasil, eu, a Ísis, a Aldéia, as outras professoras integradas divulgando esse trabalho em outros estados. Vários estados se espelharam em nosso projeto e também desenvolveram projetos de educação de trânsito similares. Nordeste, Mato Grosso, Brasília. Foi um projeto assim, foi o primeiro grande vôo meu junto com um grupo de pessoas muito competentes, muito amigas de lá de Vitória.

P/1- E o Rio? Por que o Rio de Janeiro, quando você veio e por que você veio para o Rio?

R- Eu já não queria mais arquitetura. Já tinha, já estava... Fechei o curso, já nem estava indo mais às aulas. Aí já queria fazer publicidade. Então, nessa vivência toda lá do órgão de trânsito do Detran, eu tive muito contato também com uma agência de publicidade, que era a Criativa, que trabalhava para o órgão de trânsito. Então eu comecei... A primeira vez que eu entrei em uma agência de publicidade, o que era um departamento de criação, os desenhos, o texto, a diagramação. Não tinha computador não, era tudo aquelas letrinhas recortadinhas. Não tinha essas coisas que vocês têm hoje, que é só apertar botãozinho, não. Então eu tive um contato muito grande com esse mundo criativo da Criativa, e me apaixonei pela publicidade. Principalmente pela criação, a parte que eu queria fazer era ser redator ou desenhista, ou as duas coisas. Criar campanhas publicitárias. Então o meu sonho era trabalhar em agência de publicidade. O meu sonho ia mudando, cada hora está em um lugar. Aí vim para o Rio a convite de uma empresa de ônibus daqui, a Braso Lisboa para montar um projeto de educação de trânsito para os motoristas desta empresa, que tinha muitos problemas de trânsito.

P/1- Empresa Brasil Lisboa?

R- Braso Lisboa.

P1- Ah, Braso?

R- É. Aqueles ônibus que tinham aqueles risquinhos, assim. Entendeu?

P1- Hã, hã.

R- Essa empresa de portugueses. Então vim para cá para montar esse projeto durante três meses, sempre com o departamento de psicologia de trânsito daqui. Montamos o projeto, deixei ele prontinho para o treinamento dos motoristas e dos cobradores. Mas a minha intenção já era de, com esses três meses, já não voltar para Vitória. Tentar, já queria entrar em publicidade. “Já estou aqui, vou tentar uma agência no Rio de janeiro.” Vitória só tinha a Criativa. Era a única, praticamente. “Vou tentar aqui.”

P/1- Isso em que ano, Plínio? Vamos recuperar?

R- 89, é 89? Fernanda sabe mais do que eu, as datas. (riso)

P/1- Controla aqui.

R- É 89, aí eu vim para a Criativa... Perdão, eu vim para o Rio, e meu irmão já morava aqui, o César, que é professor universitário. Mas eu morei, aluguei um quarto em Botafogo, ali na praça Jóia Valance, atrás do Cine Ópera. E ali eu me instalei, naquele quartinho bem pequenininho, era um quarto de empregada. Tinha cozinha... Um quarto pequenino, que eu tinha que dormir encolhidinho. Porque a parede tinha um metro e oitenta, um metro e noventa e quatro. A cama ficava naquele pedacinho, eu dormia sempre atravessado. Mas ali eu fazia as comidinhas e tal. E fui procurar emprego em publicidade. Eu me achava o máximo em criação; texto excelente, desenho excelente, experiência fantástica. Era só eu chegar em uma agência, dar o meu currículo e estou empregado, vou fazer o maior sucesso. Só que a vida no Rio era bem diferente, foi muito difícil. Levei meu currículo. Educação de trânsito não interessava nada, faculdade tudo incompleta, tudo por acabar. Então não tinha, na realidade, currículo nenhum. E em publicidade você começa aos 12 anos, aos 13 anos, no máximo 16. E geralmente você está fazendo faculdade nessa área, não era o caso. Eu trouxe todos os meu trabalhos de criação de lá, só que aquilo não tinha a menor importância para as pessoas das agências. Eu fiquei muito desiludido, muito, para voltar para Vitória. Tenho apartamento lá até hoje. “É, mas tenho que voltar, não tem jeito.” Eu estava desiludindo já, mas eu sou muito persistente. “Mas não volto, eu vou conseguir.” Um dia eu abro o jornal Pasquim, que a minha irmã já lia em Belo Horizonte, eu falei: “esse jornal aqui, vai ser esse jornal que vai me salvar.” Porque era um jornal muito irreverente, e tal. Eu falei: “ele vai.” Fui nesse jornal, fiz um texto, um anúncio muito criativo me oferecendo para trabalhar, mas nada convencional. Sabe, era uma garra assim, uma mão falando que eu estava no Rio, que tinha muita garra para trabalhar. Não lembro, mas era um texto bem bolado, bem criativo, e desafiando aquele cara pegar o telefone e ligar para mim, sabe? O meu futuro patrão.

P/1- Ligar quem, o Ziraldo?

R- É, exatamente. E cheguei lá nesse jornal, fui atendido pelo Arlérico Jácome. Levei meu anúncio para ele, o cara olhou e já deu uma gargalhada, e o cara “eu vou botar.” Eu disse: “é o seguinte, eu não tenho dinheiro para pagar esse anúncio não, não tenho um tostão. Eu estou sem trabalhar, eu quero trabalhar.” E o cara gostou de mim, gostou do anúncio. Falou: “está bom, vou colocar o anúncio.” Colocou o anúncio no Pasquim e sei lá, dois, três dias depois recebi algumas propostas. Uma pessoa me ligou, Evangelina Meireles, assessora de imprensa me ligou, porque ela não entendeu nada e queria saber o que era quilo. E ao mesmo tempo ficou instigada, curiosa: “quem é você? O que é que você quer? Será que isso é um (teeser?) de alguma campanha que vem por aí? Não sei o quê.” Fui, conversei com ela, expliquei, mas infelizmente não surtiu efeito, porque era assessora de imprensa. Era o tal do texto, eu achava maravilhoso, mas de início uma negação. E aí me liga o Jonas Suassuna da Zapt Propaganda, uma agência de publicidade que viu esse anúncio e falou: “vou chamar esse cara aqui para ver o que é que dá.” Entendeu? E ficou instigado com esse anúncio. Comecei a trabalhar no dia seguinte. Falou: “o que você quer fazer?” Eu falei: “olha, eu quero trabalhar na criação.” Aí bem, conversou cinco minutos comigo. O Jonas é um excelente vendedor, conversou comigo cinco, dez minutos e falou: “olha, você começa amanhã, mas criação você vai entrar depois. Você vai entrar primeiro na minha área comercial.” Porque ele viu e disse: “olha...”.

P/1- (Sentiu?) qual era a tua praia, né?

R- Ele falou: “Olha, se um cara que consegue se vender tão bem quanto você, para fazer eu sair da minha cadeira para ligar, para chamar você por causa de um anúncio que você pôs naquele jornal... Você se vendeu muito bem, cara. Então quero ver se de repente você vai me ajudar a vender na minha empresa.” Fui para a área comercial, como estagiário, com um mês, dois meses já estava ocupando a gerência da área comercial. Ela tinha uns três, quatro anunciantes, clientes da agência. Era aqui na Almirante Barroso. Em um conjuntinho de três, quatro salas. Logo, logo tinha já grandes clientes. A Guanauto, dentro do padrão da agência... A Guanauto tinha clientes que eu consegui captar. A princípio fui eu sozinho, porque era um trabalho mais individual, e logo a gente se mudou para uma casa na Lagoa, a Zapt. E foi assim,um trabalho de muita conquista, de muito sucesso e de umas histórias engraçadas também. Mas, é, aí foi o meu primeiro encontro mesmo com a, com o comércio, com o mercado comercial, com a área comercial. Foi na Zapt Propaganda.

P/1- Mas, quer dizer, era uma experiência de vender o comércio do outro, né?

R- Exatamente.

P/1- Porque você, no fundo...

R- Isso. O que eu vendia era o produto Zapt.

P/1- O produto do outro. Zapt.

R- Quer que eu te dê um exemplo, como é que eu trabalhava na Zapt?

P/1- Isso, dá um exemplo.

R- Como é que os meu colegas da Zapt... Porque eu aprendi, como eu não fiz faculdade do comunicação, eu aprendia sempre com quem estava do meu lado. Então o que eles faziam? Abriam o jornal ou revista, olhavam os anúncios, recortavam aqueles anúncios que eram os maiores e ligavam, por exemplo... Que você lê hoje, casa de vídeo, né? As lojas que anunciam muito. E ligavam, falavam com o dono ou com o gerente comercial. Iam lá para tentar vender a Zapt, para trazer aquela conta para a Zapt. Eu já tinha um raciocínio diferente, eu falei: “olha, se a empresa anuncia muito, já tem um vínculo muito forte com a sua agência de publicidade. Vou procurar aquele cara que não anuncia, não vou procurar quem já está anunciando. Primeiro eu vou ter que tirar o cara da agência e trazer para cá, eu vou convencer quem não anuncia.” Aí eu comecei a pegar páginas amarelas e os maiores anúncios das páginas amarelas que eu sabia que não anunciava em revistas e jornais. “Vou batalhar esses caras.” Foi quando eu conheci Ramos Madureira, esses galpões de empresas. Eu montei um portfólio da Zapt com todos os trabalhos que a agência já havia feito para outros clientes. Botava debaixo do braço, botava o terninho, a gravatinha, camisa do Jonas − ele tinha umas camisas bonitas que não usava mais, de linho − , e eu ia vendendo a Zapt. “A Zapt é isso, é uma empresa que trabalha com propaganda, publicidade, que faz planejamento.” Eu nem sabia o que era planejamento, eu sempre fiz primeiro e planejei depois. Mas já tinha o discurso pronto, porque eu já tinha aprendido com o Jonas. Acompanhava ele em algumas visitas, depois comecei a fazer, a sair em prospecção de novos clientes, vender a empresa Zapt, a minha empresa. Tem uma história interessante que eu vou resumir para você como é que eu trabalhava. Um dia eu fui para uma grande empresa lá na zona norte, para tentar trazê-la para ser cliente da Zapt, não lembro mais o nome dela. Por acaso ele era uma que anunciava muito, mas que o Jonas queria que eu convidasse, porque ele achava que tinha possibilidade de trazê-la para a gente. Eu fui, com toda a certeza. E quando saí − o Jonas é sempre positivo − me deu aquela injeção de ânimo: “Sei que você vai vir com o cliente ganho.” Tá, tá, deu aquele tapa assim. Peguei o ônibus, calor de 40 graus, lá para Ramos. Chego lá, converso, converso, mostro, abro o portfólio, o cara me ouviu penosamente e falou: “olha, nós já temos propaganda, já temos nossa agência, trabalhamos com ela. Quando a gente resolver mudar de agência eu procuro você.” Me deixou o cartãozinho. Aí saí com aquele espírito de derrota. Eu não sou derrotista, não sou. Eu sempre sou muito positivo, sempre acredito que as coisas vão dar certo, e realmente elas dão certo. Aí eu vim. Mas nesse dia eu vim cabisbaixo, ali. Eu fui de táxi, o Jonas pagou o táxi. Para voltar eu falei: “eu não mereço o dinheiro do táxi para a volta.” Peguei o ônibus, 40 graus suburbano. Suando, de terno, mas ensopado. Esse calor do Rio, que eu não estava acostumado. Quando eu passo ali perto da Guanauto, São Cristóvão, uma loja de carros, eu vejo aquela... Eu disse: “o dia que essa empresa, o dia que a gente, nós da Zapt tivermos uma empresa, um cliente com a Guanauto, vai estar feito.” Nisso o ônibus para em frente à Guanauto e abre a porta para uma senhora sair. Quando a porta ia, eu fui e “zapt”. “Vai ser agora.” Eu desci e falei: “vai ser agora, vai ser, vou, vai ser esse cliente.” Eu desci e subi, me enxuguei em um banheiro lá embaixo, subi e cheguei com pose de quem foi para uma reunião ali. Falei: “eu queria falar com o gerente de marketing de vocês.”, que é o Werner Capeto, o filho do dono. Tinha chegado da Europa, cheio de ideias novas na cabeça. Novinho. Falei: “Êpa, maravilha!” Aí eu chego lá, está a secretária sentada. “Eu queria falar com o senhor Werner.” “Ah, sinto muito, mas ele está em uma reunião de diretoria, ele não vai poder atender o senhor. Dê o seu cartão, eu falo uma outra hora.” “Mas uma canetinha da Zapt, nossa agência para a senhora, não sei o quê e tal.” E fiquei conversando com a secretaria. Tinha que seduzir de conquistar, tinha de alguma forma conseguir falar com aquele homem, a secretaria que estava no caminho. Ela falou: “olha, faz o seguinte. Ele está saindo da reunião, está terminando agora. Ele está saindo, toda a diretoria, para o almoço. Eu vou ver se ele não dá uma palavrinha com o senhor, com você.” − Ela era menina ainda − “Aqui na porta.” Eu falei: “está bom.” Bom, nisso sai, vem o velho... Eu pensava que era aquele senhor velho, de bigode, de óculos, careca , cabelo branco, feio que nem eu. Nisso vem um garotão e me apresenta. Eu Falo: “olha, eu sou da Zapt Propaganda, vim aqui para te falar da minha empresa.” Ele me olhou: “Quem te mandou vir aqui?” Eu falei: “como?” “Por que você está aqui?” Eu falei: “porque eu quero apresentar a minha empresa para a Guanauto. Quero que você seja nosso cliente.” Ele falou com os outros diretores, pais, parentes e toda a diretoria: “olha, vocês podem ir almoçando. Eu vou dar uma palavrinha com esse rapaz aqui. Sentamos na mesa deles, da diretoria, aquela mesona imensa, oval, que eu nunca tinha visto na minha vida, já fiquei assustado quando entrei naquela sala. Devia ter umas 40 cadeiras em torno da mesa, e tinha tudo escrito: projeto 21, projeto 90, anos 90. Anos 90, estava chegando o início dos anos 90. Era uma programação da empresa para os anos, uma reestruturação da Guanauto par aos anos 90, e que não podia vazar para ninguém aquilo. Eles estavam reunidos para buscar uma agência de publicidade, que fosse, que o Werner veiculou isso da Europa. “A Guanauto tem que ter uma agência de publicidade, não pode não ser divulgada.” E ele queria saber quem o mandou ali. Ou seja, como a informação vazou. “Por que você está aqui?” E me pressionando. Eu falei: “eu estou aqui, eu...” Aí eu olhava as fotos na parede para descobrir por quê. Porque não sabia nada, não sabia nem... Só sabia que a Guanauto vendia carro, porque eu via o carro lá, cheio de carros, na entrada. Eu olhei para a parede, aí uma fábrica da Guanauto que eles estavam construindo na Barra, num painel, estavam construindo naquela época. Então eu tentava pegar elementos do que eu via para inventar uma história para ele. Pronto: “o meu chefe, o meu diretor, o Jonas Suassuna, ele sempre foi apaixonado pelo trabalho, que vocês conhecem, que ele mora por aí, ele mora na Barra, inclusive é vizinho da fábrica que vocês estão construindo. A nova loja que vocês estão construindo lá.” Mentira. Eu ia juntando uma coisa com a outra para amarrar a minha história com a dele. E ele: “tudo bem, mas vem cá. Mas por que você está hoje, nesta hora, neste momento?”

P/1- Porque a porta do ônibus abriu e eu...

R- Neste momento... E eu não ia dizer nunca. Conclusão, resumindo a história, ele falou: “olha.” Aí ele abriu o jogo. Eu falei: “Olha, o Werner... Então e nós não temos nenhuma empresa de veículo na nossa agência, a gente queria muito ter uma empresa de veículo. A Guanauto é a empresa que nós queremos. O Jonas é apaixonado pelo trabalho de vocês, mora na Barra do lado da fábrica.” (riso) Aí ele falou: “olha, nessa reunião aqui nós estamos decidindo qual agência que nós vamos trabalhar, acabamos de decidir quais as três empresas nós vamos trabalhar, eu vou convidar também, então, a sua empresa para apresentar uma proposta.” Eu falei: “nós vamos apresentar e nós vamos conquistar a sua conta.” Dito e feito.

P/1- Ah, que bárbaro!

R- E foi. Foi a grande conta da Zapt. E o Werner Capeto não sabe essa história até hoje. (riso) Ninguém sabe disso, só o Jonas que sabe. Ele não sabe disso.

P/1- Ah, que legal!

R- E foi a grande conta da agência, foi ela que permitiu que a Zapt desse o grande salto, mudasse para... Porque se mudou para a Lagoa, alugou uma grande casa lá. Mas esse... A Guanauto foi a grande conta que deu, permitiu que a gente fizesse isso. E eu continuei atendendo a Guanauto algum tempo.

P1- Plínio, então eu queria que você contasse para a gente como é que foi a sua ideia, o que você pensou para vender para a Guanauto. Qual era, então, a tua ideia de empresa da década de 90? Como é que essa empresa devia se divulgar? Como é que era o marketing, como ela deveria fazer o marketing dela?

R- A Guanauto era uma empresa que não anunciava, não tinha nenhum anúncio em jornais, em revista, televisão, e por isso ela estava procurando uma agência de publicidade. Agora, na realidade, a minha preocupação não era com a Guanauto, era chegar na Zapt e dizer para o Jonas que eu não consegui a conta daquela empresa lá de Ramos, essa era a minha preocupação. Então eu tinha que conseguir a Guanauto na marra. E obviamente, quando eu entrei e vi aquela empresa daquele tamanho, se transformou no meu grande sonho, no meu grande desafio, que aquela conta fosse para a Zapt. Diante dessa recepção, que começou calorosa, com a secretaria, depois com o Werner Capeto, que atrasou o almoço... O pior é que ele não sabe dessa história até hoje, hein?

P1- Mas agora vai para o site do Sesc.

R- (riso) E desse papo informal com ele, até a aceitação de que a Zapt participasse da concorrência, embora fosse só três, ela seria a quarta, o meu desafio se tornou muito maior. Eu sempre gostei de desafios, sempre lutei para vencer as barreiras. Então o que eu fiz? Saí dali, já cheguei assim... Fui, peguei um táxi de novo. Fui para a Zapt, louco para contar para o meu diretor, para o Jonas que a gente estava com a possibilidade de ter a conta da Guanauto. E tem uma história aí também que eu esqueci, depois eu me lembro. Eu cheguei na agência, contei para o Jonas isso e ele abriu um vinho, a gente comemorou

com os funcionários. “A gente vai ganhar essa conta, a gente vai ganhar.” Ele era muito positivo, tinha reuniões de brainstorm, com um grupo de incentivar. Mas era um desafio. Para mim era um desafio maior ainda, porque apenas a Zapt concorrer em pé de igualdade com as outras agências, apresentando uma campanha publicitária, eu achava isso muito pouco e muito arriscado. Eu falei: “a gente tem que ir mais fundo.” Eu falei: “Jonas, me libera das outras contas. Pede alguém para tender meus outros clientes que eu vou cuidar da Guanauto, só.” E passei, fiquei. Nós tínhamos uma semana para apresentar uma campanha inteira de criação, de tudo. Era muito pouco tempo, e as outras empresas já estavam já trabalhando em cima disso. Então eu fiquei três a quatro dias dentro da... Só pedi que o Werner Capeto me abrisse a Guanauto para que eu pudesse conversar com as pessoas. Eu entrevistei, fiz relatórios entrevistando funcionários, o gerente da oficina, o mecânico, a faxineira, e fui colhendo informações de todos os níveis dentro da empresa, até o nível de gerência de diversos departamentos. Me permitiu então, com sensibilidade de entrar no coração das pessoas, de colher informações profissionais. Montei um relatório que era quase um livro, umas 40 páginas, batidas à máquina ainda, manual. E apresentei para o Jonas. Esse relatório permitiu que a Zapt pudesse entender a Gaunauto, as suas deficiências, as suas fragilidades, os seus anseios. Porque a Guanauto não é só o que pensa a diretoria, principalmente, o grupo de suporte, os vendedores de veículos, a oficina, que era um dos carro-chefe da empresa. Então eu ouvi de baixo, essas pessoas e passei isso para o papel. A Zapt, diante dessas informações, conseguiu montar produtos para a Guanauto, produtos para a oficina, produtos na área de vendas. Então a gente criou produtos diferenciados para a Guanauto. Isso, departamento de criação, todo de criação, todos os departamentos, tiveram esse relatório em mãos e conheceram a alma da empresa. Então foi muito mais fácil fazer uma criação com a empresa vista pela ótica dos funcionários. Foi um... O grande sucesso da nossa campanha foi esse, e na grande reunião de apresentação da campanha que o departamento de criação preparou. A Zapt foi aplaudida e foi a vencedora, a gente ganhou a conta.

P/1- Uma coisa que me chamou a atenção e que eu achei muito interessante é que você disse assim: “ah, quando eu cheguei lá, dei uma canetinha da Zapt para a secretária.” Era assim que a agência de publicidade... Como é que agência de publicidade tinha os seus produtozinhos naquela época, era uma canetinha?

R- É, na realidade...

P/1- Hoje uma agência de publicidade ainda tem?

R- É, hoje é tudo internet. Não, naquela época as coisas eram muito caseiras, era muito na máquina, era manual. Não era nem... Eu não me lembro nem se tinha máquina elétrica na Zapt. A criação, você que é publicitária também, a criação você recortava as letrinhas, montava com a faquinha olfa as letrinhas para montar os títulos dos anúncios. As letrinhas eram todas montadas. Hoje você vai no computador. E a Zapt era Zapt Propaganda e a Zupt Promoções, mas atuei nas duas empresas. Então a gente tinha alguns brindezinhos, era uma agência pequenina. Era canetinha, sabe, coisas... Caixinhas de fósforo. Era a forma de você criar um elo de... O primeiro contato com secretária foi super simpático. Uma falha: me esquecei o nome dela. Mas não era para ter esquecido, não sei se é Vitória... Então a canetinha era o que eu tinha para oferecer para ela e dizer: “pelo amor de Deus, Vitória, deixa eu falar com alguém da área de marketing.” Mas as agências eram realmente desprovidas de... Era outra época, né?

P/1- Então quais são as suas outras experiências na publicidade antes de entrar no ramo de antiguidades?

R- Isso. Da Zapt eu saí para o... Fui para Meio e Mensagem, o Jornal Meio e Mensagem.

P/1- O que é o Jornal Meio e Mensagem?

R- Era e continua sendo o maior jornal do meio publicitário, um jornal voltado para o meio, você deve conhecê-lo. A sede é em São Paulo, o Rio tinha a filial. Cujo diretor é Clipson José Renato.

P/1- Como é o nome dele?

R- Clipson José Renato. Ele desenvolveu um grande trabalho no Rio. Eu trabalhei na área comercial também. Certamente se a Zapt tivesse me colocado na área de criação, eu não teria tido o sucesso que eu tive na área comercial. Realmente foi ali que eu me encontrei. E também atuei na área comercial do Meio e Mensagem. Depois uma pequena experiência na Columbia-Tri Star de cinema, também na área comercial, de veicular aqueles comerciais antes do cinema, da fita rolar, aqueles anúncios de empresas, tipo Nescau, que você veiculava antes da fita de cinema. Tinha umas promoções que eram passadas antes do cinema. Só que isso já era antes do plano Collor. Então Meio e Mensagem e a Columbia-Tri Star, já era início do plano Collor, onde a nossa economia já estava numa situação muito difícil, dona Zélia Cardoso de Melo segurando o dinheiro da poupança. Não tinha dinheiro no mercado. Foi onde eu dei o salto para o comércio de antiguidades, como comerciante mesmo, como meu pai. Comprando e vendendo.

P/1- Então conta para a gente assim, como é que isso despertou na tua vida? Você... Como, vivendo na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, esse já era um ramo que te atraía? Você era um consumidor de antiguidades? Como é que isso foi surgindo na sua cabeça antes de virar um comércio, mas como interesse? Isso existia ou não?

R- Eu não sabia o que era biscuit, não sabia o que era art décor, o que era art noveau, não sabia nada. Não tinha a mínima noção do que eram antiguidades. A única informação que eu tinha era dos meus cursos, por exemplo, de Arquitetura, História da arte, História da Arquitetura. Então eu já tinha uma noção. Meu campo de interesse era voltado para esse universo. Eu entendia... É mais fácil falar olhando para você do que para a câmera, né?

P/1- É.

R- Ficar olhando para essas meninas bonitas aqui, né? Ah, então onde é que nós estamos?

P/1- Se você entendia... Por exemplo, na sua casa você tinha alguma antiguidade? Você, quando morava... Você tinha antiguidade?

R- É. Tem uma coisa interessante que você me lembrou agora. Não, na minha casa não tinha. Mas eu nasci na fazenda do café em Minas, com oratório, com santo, com engenho, com parol, com tudo isso. E em Vitória eu aluguei um apartamento, aliás, comprei um apartamento pequenino com o dinheiro que eu ganhava no Detran, pequenas prestações na Cohab. E esse apartamento, eu fui com o dinheirinho que me sobrava... Eu comprava pequenas pecinhas de antiquários, que na época não era muito valorizado, em Vitória. Isso há 20 anos, 30 anos, sei lá. Então santinhos, cabeças de arreio, aquelas de prata. E fui comprando essas pequenas coisas, principalmente ligada à fazenda, religiosidade. Fui pregando na parede do meu apartamento. E as pessoas que iam lá, elogiavam, adoravam. E realmente isso foi me despertando mais para decorar o meu apartamento com pequenas peças antigas. Até que depois, já no Rio, eu fiz... Enquanto eu fiz terapia, descobri na análise que o que eu estava tentando fazer em Vitória era trazer para lá todas as minhas memórias.

P/1- Era Ferros.

R- Era Ferros, era trazer da fazenda. Era fazenda, a religiosidade mineira, trazer tudo aquilo que eu sentia falta, que estava vazio, e colocando dentro da minha casa. Foi meu primeiro contato com antiguidade. Não sei nenhuma... Nenhum estudo, não abri um livro, nada, para estudar. Nunca foi do meu campo de interesse, nunca. Então no Rio...

P/1- E você morava aonde?

R- Em Botafogo.

P/1- Você continuava morando no quartinho?

R- Naquele quartinho, no quartinho em Botafogo. Tinha entrada independente, tinha o quarto de empregada, era ótimo. Quarto alugado. E eu tinha um amigo, conheci um amigo no Rio, que era o Nelson Tozé, que era vizinho em Botafogo. A Regina Ribeiro, uma outra amiga também, já feitos, os amigos no Rio de Janeiro. E o Celso, esqueci o sobrenome dele, Celso Quental. Nós resolvemos montar, a Regina nos trouxe uma proposta de montar um... Comprar um box na Rua do Lavradio, porque a Regina era do BNDES. Trabalhava no BNDES, trabalha ainda, bibliotecária. E um colega dela do BNDES montou uma loja na Rua do Lavradio, uma loja bem comprida, que era um centro de antiguidade, chamada Art Center. Era um grande tapete vermelho em um daqueles casarões na Rua do Lavradio, número 22. Do lado direito e do lado esquerdo eram pequenos boxes de antiguidades, então você... Quem entrava na loja tinha uma noção, uma dimensão de uma loja. Era como se fosse uma loja única, mas na realidade eram vários boxezinhos de vários comerciantes, só tinha uma marcação discreta no chão. Então nós compramos dois box nessa loja por mil dólares, as economias que a gente tinha, e começamos a trabalhar com peças consignadas. Não tínhamos como comprar nada, e nessa loja a gente encheu o nosso box com essas... Móveis e pecinhas que as pessoas queriam, os amigos queriam, tinham para vender. E foi a nossa primeira experiência como... A minha, do Nelson, a Regina e o Celso, nós nunca tínhamos tido experiência nessa área. Só que do meu lado tinha Ana Maria, que trabalhava com prata. Do outro lado o outro trabalhava com porcelana, o outro com biscuit, o outro com objetos curiosos, o outro com móveis. Cada antiquário, pequeno antiquário, era especializado numa área. O outro era aviador que resolveu montar um antiquário, era o Robertinho, que vivia viajando pelo mundo inteiro e visitava todas as feiras de antiguidades: Paris, Londres, Santelmo, na Argentina. E trazia as ideias, as experiências dele para a gente. O outro era o Luciano Cavalcanti, que tinha... Responsável, arquiteto responsável pelo acervo do Museu de Belas Artes, que já tinha outra experiência de vida. A Lu Vicente, que trabalhava na área de artes plásticas como marchand na Petit Galery. Então era um grupo muito heterogêneo de pessoas, convivendo diariamente dentro de um espaço confinado. Queira ou não, quisesse ou não, tínhamos que estar trocado informações diariamente. Então eu, particularmente, o Nelson, a Regina, aprendemos, entendemos do mundo de antiguidade, inicialmente por osmose, conversando com as pessoas, convivendo diariamente dentro do Art Center. Por exemplo, quando a Margarida, do meu lado, Ana Margarida, não é Ana Maria, que vendia pratas, eu descobri que um objeto de prata tem uma marcaçãozinha embaixo, que tem um “P” com uma coroa por cima, ou tem uma águia. E que aquilo, se eu abrir um livrinho ali, eu vou encontrar aquele símbolo naquele livrinho, e esse símbolo me diz a época, o século que aquela prata foi feita, o país que foi feito. Então fui descobrindo o códigos da antiguidade. Um quadro antigo eu sabia, comecei a descobrir que tinha um catálogo de um livro chamado Artes Plásticas. Outro francês que você vê pelo nome do artista, você descobre o valor daquele quadro no mercado, a época, o estilo. E fui descobrindo livros especializados em estilos de época, o que é art décor, o noveau. Então convivendo com aquelas pessoas que tinham as suas... Os pequenos comerciantes, a maioria deles não era nem comerciante. Eram pequenos... Sacoleiros, que é a expressão que hoje se usa no mercado, que faziam feiras de antiguidade. Então eles eram expositores de feiras e antiguidade.

P/1- E eram aonde na cidade, Plínio?

R- As feiras de antiguidades? A mais tradicional, a Feira de Troca, na Praça Quinze, continua até hoje, uma das feiras mais charmosas do Rio. Tinha a Feira da Praça Quinze, que é uma outra feira, ali perto do Restaurante Alba Mar, que era mais elitizada do que a de troca. A de troca eram aquelas coisas no chão.

P/1- Embaixo do viaduto?

R- Do viaduto, exatamente. Tínhamos a feira do... Hoje é debaixo do viaduto, mas na época não era... Era mais para lá, mais perto do mar.

P/1- Era aonde?

R- É ali perto do Restaurante Alba Mar, à direita ficava a Feira dos Antiquários, que era o do cassino Atlântico, eram lá da Siqueira Campos. E a do Troca era mais para frente , mais ainda para o lado da Praça Quinze. Não era bem debaixo do viaduto, era naquela praça ali.

P/1- Na direção do mar?

R- Na direção do mar, exatamente.
P/1- Do Troca.

R- Do Troca, e continua com esse nome. Aonde as pessoas iam e faziam trocas. Você levava um objeto, trazia outro. Tínhamos a Feira do Jóquei, que não existe mais. Era onde é o Jóquei Clube, aquele... Perdão, Estádio do Remo. Estádio do Remo. É, tinha também a Feira do Leblon, na praça, como é que chama aquela praça do Leblon?

P1- Antero de Quental?

R- Antero de Quental, que a prefeitura reformou a praça. A feira saiu de lá. Então eram essas as feiras mais conhecidas, né? E voltando então ao nosso antigo Art Center, essa convivência permitiu que a gente aprendesse primeiro um pouco do mercado, convivêssemos com as pessoas, aprendêssemos também os macetes da profissão. Eu estava ali do lado, eu via a Ana Maria comprando, a Ana Margarida comprando a prata. Eu via a Sônia comprando uma porcelana, como ela negociava com as pessoas. Via o que eu achava, eu aprendia o que eu achava certo. E eu via o que era o errado, o que eu não deveria repetir também, então foi um grande laboratório. A gente... Eu vejo que assim, o Art Center e o Antig Center, que é a loja ao lado, 28, que veio primeiro, com o mesmo espírito do Art Center... O Art Center foi a cópia do Antig Center, com um grande laboratório, uma incubadora de antiquários. Dali saíram vários antiquários, que hoje são pessoas atuantes no mercado, e com a mentalidade um pouco diferente. Nem melhor nem pior, do que os antigos antiquários da região. Porque nós tivemos outra formação que não a de antiquários, formado em família, de pai para filho. Essa coisa de trupe. E nós não, nós tivemos... Cada um veio de uma área, já adulto, maduro, depois de uma série de experiência de vida. Nos encontramos no espaço. Aprendemos, obviamente com essas informações de vida, de estudo que nós tivemos, com muito mais facilidade, os segredos da profissão. Nós sabíamos frequentar a biblioteca, frequentar uma livraria, comprar um livro. Já tínhamos outro tipo de informação. Então todos nós nos formamos antiquários. Não vamos nos formar nunca, porque esse é um mercado infinito. Você não vai nunca saber tudo dessa área, mas nós nos especializamos em determinadas áreas. Eu, o Nelson e a Regina praticamente na área de móveis e de objetos.

P/2- Deixa só eu perguntar. Falando dessa relação com os que estão... Que estavam lá há mais tempo. Tinham algum preconceito por vocês serem novos, Não serem de famílias de antiquários? Como é que era essa relação?

R- Não, não. A gente tinha uma convivência muito boa com os outros. Embora os antigos antiquários... Eles eram mais fechados, mais reservados, eles nos olhavam um pouco mais desconfiados, porque eram... Obviamente, como era uma loja, era diferente. Era um centro de antiquários, tanto o Art Center como o Antig Center. Então ele fazia certo burburinho, porque o amigos tinham uns amigos de todos nós que estavam 20 numa loja, 20 na outra. 20 do Art Center, 20 do Antic Center, 20 box em cada. Imagina os amigos dessas pessoas todas. Os convidados dessas pessoas todas. Então esses dois prédios, essas duas lojas passaram a ser um referencial também de antiguidades, como se fossem dois pequeninos shopings, vamos dizer assim. Muita gente começou a frequentar ali. Então a gente tinha uma rotatividade muito grande de público, de vendas. Não vou dizer que isso chegou a incomodar os outros, não. Mas foi bom porque trouxe mais gente para a região, os outros também foram beneficiados, Tinha o Zingler, que era um grande comerciante da Rua do Senado, quase na esquina a Rua Desembargos. Bem gordão, ele ficava sentado na cadeira na porta da loja. Era conhecido no mercado como o comerciante mais mal humorado do pedaço. As pessoas... Muitos clientes contavam para a gente, entravam na loja dele, ele já olhava, aí a pessoa fazia uma pergunta, por exemplo: “por favor senhor, quanto custa aquela jarra ou aquele móvel?” “A senhora vai comprar ou não? Se não for não precisa nem dar mais um passo.” E a pessoa saía irritada, ia embora e ia para a nossa loja. A gente servia um cafezinho, tinha um queijinho, tinha um vinhozinho, um licorzinho. Então era outra forma da gente trabalhar. Mas o Zingler era uma pessoa muito amável, muito doce com a gente. Mas o jeito dele de receber o cliente era muito particular, e era muito criticado.

P/1- Plínio, eu queria recuperar agora um pouco. O que era a Rua do Lavradio antes da vinda de vocês? Vocês trazem essa inovação já dos boxes, né?

R- Hum, hum.

P/1- O que era e como é que ela era reconhecida no contexto da cidade? Esse ramo de antiguidade está nessa região há muito tempo. E onde estavam também os outros antiquários no Rio, na década de 80?

R- A região, na realidade, já era... A Rua do Lavradio e a região já era conhecida há algumas décadas como uma referência do mercado de antiguidades do Rio. Com um diferencial de outras regiões, como a Siqueira Campos, por exemplo. Foi o primeiro shopping. Foi o Arnon Mello que construiu o primeiro shopping do Rio de Janeiro, acho que o primeiro shopping do Brasil, que é o Shoping de Antiquários, ali na Siqueira Campos, 43. Mas eram lojas pequeninas. São lojas pequenas, e obviamente com muito objeto e pouco móvel. E o móvel, no máximo uma mesinha, uma cadeirinha, são móveis pequenos. Mais recentemente o Cassino Atlântico, que veio depois, já ano final da avenida Atlântica, com um perfil mais sofisticado, mais elegante. E mais recentemente tem ainda o Shopping do Leblon, que foi a (art center?) com a feira de antiguidades, lá dentro. Também muito elegante, porém a Rua do Lavradio e a região tem uma particularidade, ou seja, como os casarões, são casarões muito grandes, espaçosos, 200 metros quadrados, 300, 500, 1500. Então são espaços muito grandes, que permitiam aos comerciantes adquirir um acervo grande das pessoas de mobiliário. Você tinha salas inteiras, quartos, você podia comprar a casa e ir entulhando aquilo tudo. Eu acredito... Isso é uma coisa que eu tenho conversado com os antigos, eu tenho... Acho fantástico esse trabalho que vocês estão fazendo aqui, porque eu sempre quis fazer isso de alguma forma, nunca que a gente faz. De conversar com esses comerciantes mais antigos e deter essa memória. O Zingler mesmo é um que eu queria ter conversado mais com ele, ter gravado depoimentos dele, para ele me contar mais daquela época. O Seu Moura, que é outro comerciante também tradicional da Rua do Riachuelo, que faleceu também, e depois que o Seu Moura faleceu eu falei: “meu Deus do céu, eu não cheguei a gravar o depoimento com o Seu Moura.” E assim outro. Então a Lavradio, na região, existiam muitas fábricas de móveis no início do século 20. O próprio... Uma muito famosa inclusive, que até hoje os móveis são disputadíssimos em leilão, em leilões, que é o do Alemão, é o... Fugiu. É uma fábrica de móveis alemão, que estava... De um alemão que se estabeleceu na Rua do Riachuelo, pertinho da Lavradio, outras oficinas, outras indústrias moveleiras se aglomeravam naquela região. Não é se aglomeravam, existiam algumas naquela região. E na própria Rua do Lavradio, numero 24. Essa semana que eu descobri isso, quando olhei um papelzinho que estava pregado debaixo de um móvel com o nome da fábrica ali na Rua do Lavradio, numero 24. A gente, os próprios móveis vão contando a história da região. Então os móveis, as lojas de antiguidades se estabeleceram naquela região em função do próprio comércio das indústrias moveleiras. As indústrias moveleiras e o comércio se estabeleceram na região. Não só o comércio de móveis, mas também de móveis antigos, usados, mas também de assessórios para esses móveis. De dobradiças, puxadores, parafusos, de todo material voltado para o mobiliário. Você tem hoje lojas de ferragens muito naquela região também, e os próprios antiquários que vieram em função dessa indústria moveleira que existiu ali.

P/1- Mas assim, e no restante da cidade? Você falou dos shoppings, né? Quer dizer, havia então dois tipos de mercado para o antiquário. Um era o shopping center, e um era uma rua como a Lavradio, que é uma rua. Qual era a diferença em ter um negócio de rua para este ramo, ou ter negócio de shopping do ramo de antiguidades? O que diferenciava, por exemplo, a clientela?

R- Era muito mais fácil, muito mais cômodo, muito mais tranquilo você comprar na Siqueira Campos, por exemplo, que era antiquários e tinha lanchonete, você tinha estacionamentos. Mas só que na Siqueira Campos você atendia o público classe A, que gostava de antiguidades. Quem compra antiguidades é um público muito especial, é um público qualificado, um público de alto poder aquisitivo.

P/1- Hoje, né? Porque antiguidade também estava ligada àquela coisa de coisa velha, antigamente?

R- Você tem duas coisas, você tem um móvel usado e você tem a antiguidade. Quem gosta de antiguidade, quem valoriza a antiguidade, ele paga por aquela peça, o quanto ela vale. A Lavradio não era uma loja de móveis usados, é diferente, é um brechó. Não é... O móvel usado é aquele móvel que não tem um valor, não tem um estilo definido, não tem um valor artístico é um móvel mais simples, um móvel com material inferior. Já o móvel que é vendido no antiquário, que já era vendido na Rua do Lavradio desde aquela época, é um móvel de estilo, ou é um art décor, ou é um art noveau, ou móvel em jacarandá, um móvel em imbuia, um móvel em peroba. É um móvel que tem, retrata uma época, que veio de uma família. Então não é um duplex, você não encontraria lá na Lavradio. O público que frequentava a Rua Lavradio, que era uma rua... Depois a gente vai falar sobre lá, ela estava totalmente degradada. Mas era um público qualificado, um público de antiguidades sempre foi um público muito especial. Não vou dizer “sempre”, o poder aquisitivo não é a medição principal que define esse público. É o público formador de opinião, um público que gosta de arte, que gosta de cultura, um público que valoriza uma peça de arte, que valoriza o móvel bom, que valoriza a qualidade do móvel. Você quer comprar um móvel bom, que não vai se acabar e enfeita a sua casa, né? Então essas pessoas sabiam que na Rua Lavradio você tinha um volume muito grande de móveis, você tinha... Os casarões eram muito grandes, e certamente você, garimpando aquelas lojas, você ia encontrar uma cômoda Dona Maria. Você ia encontrar um armário do Leandro Martins, você ia encontrar alguma peça de valor artístico, cultural e de material de primeira categoria, que não se deformaria com o tempo.

P/1- Não, então vamos... Me fala um pouco da Rua Lavradio. O que ela era quando você começou a trabalhar lá e o que ela ficou? Para depois a gente entrar no seu ramo, na sua loja.

R- Era exatamente o que eu ia falar e que me fugiu agora. Está chegando a hora. Então essas lojas da Lavradio, elas tinham um aspecto que combinava com a rua degradada. Era muita poeira, muita poeira, as paredes não tinham pintura. As pessoas que iam à loja, aos antiquários... Não tinha um banheiro decente. Os banheiros eram imundos, fétidos, eram uma coisa assim deprimente. E olha, eu não me recordo de uma loja que tenha, na época, 12 anos atrás, tivesse um banheiro decente, de uma pessoa poder entrar, que tivesse papel higiênico, não tinha. Então eram muito feias, as lojas. Mas guardavam relíquias maravilhosas, e tinham comerciantes que usavam estratégias muito interessantes. Por exemplo, que escondiam ou que pegavam algumas peças mais valiosas, e jogavam no chão, debaixo de um outro móvel velho, de cabeça para baixo, uma escultura, por exemplo. Então as pessoas que entravam, tinha gente que entrava e via aquela peça lá, mas abaixava, pegava com carinho, imaginando que o comerciante não tinha a mínima noção do que era aquilo. Então o cara sabia muito bem quanto era, quanto valia. Ou era um marfim, ou era um bronze assinado francês. Mas pegava aquela peça “Olha, a quanto o senhor está vendendo, quanto é que está essa peça?" “Ah, isso aí, mil reais está bom demais.” Mas a peça valia 500. “Mil reais está bom demais.” Então o cliente pensava que o comerciante não valorizava aquilo que ele tem, não tinha... Se estava jogado no chão, cheio de poeira, de cabeça para baixo, é porque não dava o devido valor. Isso valia muito mais de mil. Então fizeram excelentes vendas em cima dessa técnica de venda. Você escondia, jogava debaixo as coisas mais valorizadas e as pessoas tinham um prazer de garimpar. Vai-se para o mercado, você vai para garimpar. Então os clientes entravam na loja, eles queriam garimpar, descobrir o que estava atrás. Eles vão puxando os móveis, puxando as camas e vendo o que está ali atrás. Se sujavam todos de poeira, mas o negócio era garimpar e descobrir, era como se estivesse no garimpo mesmo.

P/1- E aí, como é que então... Como é que foi a transformação da Rua do Lavradio?

R- Aí é um capítulo bem especial. Eu vou falar só um pouquinho da história da Rua do Lavradio, eu posso depois lhe dar tudo isso por escrito, uma pesquisa que eu fiz sobre a história da rua. A rua surgiu, ela foi aberta em 1881, pelo marquês do Lavradio, que era o terceiro vice-rei do Brasil. Ele veio de Portugal, da Bahia, para cá. E foi um vice-rei muito dinâmico. A Lavradio foi a primeira rua residencial do Rio de Janeiro, e eram moradias basicamente de móveis, de basicamente, móveis (riso), era moradia de nobres. Então ali residiram vários condes, barões, viscondes. O próprio Marquês de Lavradio residiu ali, ou Visconde do Rio Doce, o Marquês de Olinda, o Conde da Gávea. Eu tenho uma relação de uns 25 nobres que moraram na rua, e eram palacetes que ficavam no meio das quadras, cheio de verde em volta. E não eram... Não tinha essa formação de casas de frente de rua, como é hoje. Depois, já no final do século XIX e início do século XX que ela passou a ter essa formação com casas de frente de rua, que são os sobrados ecléticos dessa virada do século, com alguns prédios do século XVIII, como a Sociedade Brasileira de Belas Artes, que era a sede do vice-reinado. A Loja Maçônica... Então são prédios tombados, que já a grande maioria são prédios preservados hoje pelo corredor cultural, e que são dessa virada do século, em estilo eclético, construídos em alvenaria, muitos deles com paredes de pedra, 59 a 69 centímetros de largura, pedra sobre pedra, argamassa com areia e óleo de baleia, que existe um risco muito grande de incêndio. Até hoje esse óleo é perigoso em caso de incêndio. Muita madeira, principalmente pinho de viga, que veio de Portugal. Eu acho que eu estou muito cansado.

P/1- É?

R- O que foi que você perguntou?

P1- Não, não. Como é que era um pouco... Como é que foi a transformação da Rua do Lavradio? Quer dizer, como é que ela hoje é hoje, ela é um grande centro de referência, ela tem atividades culturais? Como é que foi se dando essa...

R- Isso. Estou nessa história da rua. Ela teve então esse período do século XIX com a construção desses casarões. Ela foi uma referência nessa virada do século, final do XIX, início do XX. Ela foi uma referência cultural, sociocultural do Rio de Janeiro. Ali era uma região onde os grandes saraus literários aconteciam. Ali na casa de Valentino Magalhães, Olavo Bilac, Coelho Neto, os literários, os literatos se encontravam naquela região. A música floresceu muito naquela região, com Chiquinha Gonzaga... É história de grandes... Noel Rosa. Tinham histórias memoráveis de passagem das músicas naquela... Criações naquela região, na Rua Lavradio, principalmente no que se refere a teatro. A Rua Lavradio teve seis grandes teatros. O Teatro Apolo, que era o mais famoso deles, onde Sarah Bernard se apresentou, grande atriz francesa, como o Teatro do Lavradio, o Teatro Polytheama, o Teatro Raylife e o Teatro de Exposição. Todos os seis grandes teatros, a maioria especializados em ópera e operetas. E a Lavradio, isso já no início do século XX, começou... Logo depois ela começou a entrar em decadência. Em meados do século XX os investimentos de urbanização do Rio contemplaram outras áreas, na Rio Branco, na Tenente Vargas, com o prefeito Pereira Passos. Investimento na zona sul, Botafogo que era... Copacabana, que era muito longe ainda. E a zona antiga do Rio ficou... Ela entrou num processo de decadência muito grande, e a Lavradio também, como a maioria das ruas do Rio. Então nenhum investimento de urbanização foi feito, e essa decadência, ela obviamente se refletiu em tudo, principalmente nos esgotos, que afloravam. Quando eu fui para lá − 12 anos atrás, um retrato dela 12 anos atrás −, esses antiquários... Pelo menos 25 a 30 antiquários nessa época. Já tinha isso, se conserva até hoje, esse número. Muita poeira nas casas. A rua muito esburacada, muito esgoto aparente. As calçadas estreitinhas com aquelas pedras largas bonitas, de granito. E em qualquer chuvinha que se dava, a Rua Lavradio tinha assim, meio metro de água dentro das lojas. Isso era um transtorno muito grande para o comércio, prejuízo muito grande, porque qualquer chuva a gente tinha que, no dia seguinte, limpar todos os móveis.

P/2- Perdia muita coisa?

R- Perdia muito móvel, estofado, tapetes, você tinha que mandar lavar, era um custo muito alto, e era realmente um desgaste muito grande. Então o Antig Center, o Art Center, essas duas lojas que tinham esses 40 pequenos comerciantes, com essas vivências diferentes. Nós nos preocupávamos muito com o estado da rua, com o público que nós recebíamos, que era cada vez mais qualificado, um público cada vez mais especial frequentava a rua. Pessoas de várias áreas né, jornalistas... Danuza Leão, por exemplo, teve um papel muito importante na nossa rua, nessa virada. E a gente, nós nos sentávamos à noite, tomávamos um chopinho por ali, em algum barzinho. “O que a gente pode fazer para melhorar isso aqui? O que a gente...” Aqueles desafios que a gente sempre... “O que a gente pode fazer? Fazer a feira.” Aí veio o Robertinho com a experiência dele, ele era funcionário da Varig. “A feira de Santelmo é assim, a de Portugal é assim. Porque fazer uma feira aqui assim...” Então cada um ia dando ideia e nós chegamos à conclusão que a feira seria a redenção da rua. “Vamos criar a feira de antiguidades.” Uma feira na rua, de antiguidades, tem que ser uma feira de antiguidades. Vai ser a melhor feira do Rio. “Vamos fazer essa feira.” Não tinha esse objetivo de ser a melhor feira, de competir, isso eu estou falando agora. Mas a gente sempre quis fazer uma boa feira, mas que fosse diferente, que tivesse a ver com a história da rua, com a identidade da Rua do Lavradio. A gente sempre buscou, tudo o que a gente procura fazer lá hoje é buscando o passado, nos espelhando no passado, e resgatar este passado. A gente sempre procurou fazer isso, e tem dado tão certo. Então criamos a primeira feira de antiguidades da rua. Essa foi em outubro de 1986.

P/1- Tinha nome?

R- Feira Rio Antigo. Foi até o meu sócio, Nelson Frosec, quem deu esse nome.

P/2- Era final de semana, era tarde...

R- Primeiro sábado do mês. Agora, essa criação da feira, ela aconteceu em um momento muito importante. Aconteceu no local certo, na hora certa, no momento certo e com as pessoas certas também, nos apoiando nos postos chaves. Eu vou falar sobre isso. Então, para montar essa feira, para criar essa feira de antiguidades, nós nos reunimos em torno de uma associação que é a ACA, Associação de Comerciantes do Centro do Rio Antigo, que foi... Era uma associação que estava desativada. Foi criada há cerca de 14 anos, e estava desativada. Nós revitalizamos essa associação em função da criação da feira, e fomos até a prefeitura pedir autorização para a realização da feira. A gente queria apenas que a prefeitura nos desse o documento. “Pode fazer a feira.” E a gente... Nós nos comprometemos a fazer o resto. E encontramos uma pessoa fantástica, muito importante, e que eu acho que seria muito importante que tivesse nesse livro, dando o seu depoimento, que é o subprefeito do centro na época, Augusto Ivan de Freitas Pinheiro. Uma pessoa que com a sua vivência, com a sua sensibilidade, com a sua determinação, então ele contribuiu muito para transformar e dinamizar o comércio no centro da cidade. Acho que o Augusto Ivan, com o seu grupo de trabalho, colaboradores, como a Olga Bronstein, que era administradora regional, outras pessoas, eles tiveram um papel muito grande, de apoiar, de ouvir a comunidade dos comerciantes, especificamente do que eu vou falar, mas também ouviu a comunidade de uma forma geral. E de contribuir substancialmente para a revitalização de toda essa região. Então tenho que um pouquinho do Augusto Ivan, difícil falar do processo da Lavradio sem falar sobre ele, porque ele foi um dos criadores do corredor cultural da prefeitura. Então já tinha todo um movimento de revitalização que vinha no trabalho dele. E na frente da subprefeitura ele nos ouviu o tempo todo. Ele nos ajudou naquilo que era possível. E nos norteou também, nos dava dicas e tudo que a gente tinha de grandes dificuldades que nós encontrávamos frente aos órgãos públicos, principalmente municipais, policiamento, o Augusto Ivan nos socorria na prefeitura, oferecendo ajuda. Esse trabalho dele foi fundamental para revitalizar essa região. A Feira do Rio Antigo foi lançada em outubro de 96. 86, 96, perdão. E a gente recebeu no primeiro mês, na primeira feira, em outubro, seis mil pessoas na Rua do Lavradio. Tinha um trabalho de assessoria de imprensa da Renata Bernardes, que é de Santa Teresa. Um belíssimo trabalho que ela fez durante três meses. Tivemos seis mil pessoas, foi uma divulgação fantástica. O Rio de Janeiro inteiro baixou lá. Gente famosa, gente bonita, muitos artistas, escritores, poetas, jornalistas. Foi um grande sucesso. A feira trouxe a Rua do Lavradio para mídia, trouxe o público para a Rua do Lavradio, trouxe o público para o centro antigo do Rio. E a feira tinha um diferencial, além de móveis de antiguidades ao longo de toda a rua, ela tinha mesinhas, os box no chão. Nós também apresentávamos programações culturais. Foi minha loja, mesmo. Eu levava dois pianos de cauda para a rua, contratava o João Roberto Kelly, não sei quem para cantar, para tocar. Então a gente sempre fazia na feira um grande sarau no meio da rua. Era um evento, os bares, os restaurantes na calçada vendendo chopp, salgadinhos. Seu Antonio, do Cantinho do Senado do Bar Esperança, as pessoas todas participavam. O evento da Lavradio foi um projeto vencedor, porque ele foi realizado a muitas mãos. Então não é um projeto que tem um cabeça, tem um líder, aquilo não... Realmente era um grupo muito coeso, era um grupo... Cada um, com sua vivência, cada um com a sua experiência de vida. Mas todo mundo focado no nosso negócio que era antiguidade, na nossa rua, que é onde o nosso negócio estava, e com vistas a melhorar aquela região através do nosso trabalho, interferindo no cotidiano da Rua do Lavradio. E com o sucesso da feira, trouxe no seu bojo o processo, o projeto de reforma da Rua do Lavradio, projeto de recuperação da Rua do Lavradio promovido pela prefeitura no primeiro governo do César Maia, ainda. O projeto foi apresentado através do Augusto Ivan, sempre ouviu a comunidade. Levava para Rio Urbi, trazia para discutir com a gente. Então o projeto da Lavradio é vencedor, ele deu certo porque foi discutido conosco desde o início. A proposta que foi nossa a prefeitura respondeu. A gente ia, a gente falava, discutia detalhes do projeto. Ele foi democraticamente negociado todo o tempo. Então é um projeto muito bonito, que foi implantado com muito sucesso e hoje está na Rua Lavradio, você podem comprovar.



P/2- Quanto tempo durou a obra, a reforma?

R- Aí foi uma luta isso, a obra. Foram três anos de obra, foi concluída agora, novamente no governo César Maia. Passou pelo governo Conde, a parte da obra na realidade começou no governo Conde. É, o início do planejamento foi todo no governo César Maia. Depois ela... Agora foi um período muito difícil para a gente, porque ela... A rua praticamente interditada, né? A prefeitura... Porque a gente conseguiu negociar isso também. Era feito um quarteirão, depois era feito outro, depois era fechado outro, então ela foi feita por partes. Mas tinha momento que a rua tinha que ser toda interditada por algum motivo ou outro. Era um problema de esgoto maior, as intersecções que eram complicadas, que são... E os esgotos eram mais ou menos deste tamanhozinho. Hoje foram substituídos por galerias que eu passo de braços abertos dentro dela. Então foi toda, realmente, remodelada, reformado. Não só a parte de infraestrutura, mas também a parte de urbanização. As calçadas deste tamanhozinho, de um metro, foram alargadas para quatro metros e meio. A primeira quadra, que nós estamos hoje, é uma rua de serviço. Foram criadas três novas praças. Plantados palmeiras imperiais, árvores. Os postes antigos que vieram de Copacabana, que eram idênticos aos que existiam na Rua do Lavradio antigamente. O projeto foi elaborado pela Rio Urbi, pelas arquitetas Elvira e a Vera ______, Elvira Rossi, e todo o grupo da Rio Urbi, e foi implantado com muito sucesso. Um projeto muito bonito, feito com muito carinho, e que deixou todos nós muito felizes. Que se foi sofrida a demora, agora a gente não interrompeu a feira, porque a feira que era o grande barato da Lavradio. Então, mesmo com a obra na rua, a gente insistiu em fazer a feira na Rua Lavradio. Então várias pessoas sugeriram: “olha, vamos mudar a feira lá para a Lapa. Vamos mudar para a Lapa, vamos colocar a feira na Praça Tiradentes, esse período?” Então a gente não quis por vários motivos. Um deles, primeiro vai para a Tiradentes, dá certo, depois ninguém quer voltar. Já era um problema. Mas outro, a gente quer assumir essa obra, a gente quer chamar atenção dessa obra. Queremos que as pessoas venham para a feira e que vejam a obra. Então a feira... Às vezes tinham manilhas, a gente colocava as coisas, a lupre, colocava os móveis dentro das manilhas. Fincavam uma cristaleira em cima de um monte e terra de lá, eu tenho fotos de isso tudo. As pessoas iam para a feira naquela confusão, naquela balbúrdia de obra, de tratores, escavadeira, de móvel, de objetos, mas tudo entrelaçado. Mas acompanhar, a população também acompanhou a obra, vivenciou a obra, vivenciou aquele momento que para a gente é histórico, é muito importante.

P/1- E agora eu queria que você falasse do seu negócio, especificamente. Quer dizer, quantas lojas você tem? Como é que é o nome das lojas, os endereços e quais as diferenças em cada uma das lojas?

R- Nós começamos naquele espaço do Art Center. Logo em seguida eu estava na Columbia-Tri Star, de cinema, só que como plano Collor. Eu não conseguia comercializar um anúncio, não se vendia nada, então fui me dedicando ao comércio. Fiquei aprendendo com aquelas pessoas à minha volta. Ali, dali a gente foi crescendo, fomos diversificando aquele comércio. A Regina já ficou com um box independente dela, eu e o Nelson com outro box. O Celso saiu. Depois compramos outro box, um terceiro, um quarto. Aí fomos para o Antig Center, que é essa loja ao lado, que alguns pequenos comerciantes, alguns boxistas saíram e montaram as suas lojas na Lavradio, ou nas imediações. Então as lojas deram cria. Como eu falei, era uma incubadora. Cada um foi montando a sua lojinha. A Lu montou um empório, o Robertinho montou a Catedral. Cada um foi montando a sua lojinha. Então nós compramos a metade do Antig Center, do Ricardo e do Marcelo, depois compramos os outros 50 por cento, eu e Nelson, e ficamos proprietários do Antig Center, com alguns boxes ainda lá dentro. Esse perfil de boxes foi um sucesso muito grande naquele período. Mas com a saída dos antiquários, cada um montando a sua loja, esses boxes foram sendo... Os poucos que ficaram foram comprando os outros boxes. Então de 20, você tinha três, quatro comerciantes, na realidade, dentro de cada uma dessas lojas. Está entendendo o processo?



P/1- Está. Agora deixa eu só entender. Você então começar a adquirir o box, você compra o box de outro e começa a alugar esses boxes? Como é que é?

R- Isto. A Art Center, o proprietário era o José Geraldo, do BNDES, o amigo da Regina, que nos levou para lá. Nós compramos esses box, o direito de explorar aquele box, e pagávamos um aluguel mensal para o José Geraldo de 100 dólares por mês, 200 dólares por mês. Compramos o box por 2 mil e pagávamos 200 dólares de aluguel por mês. O José Geraldo que era o dono do Art Center, então ele tinha um funcionário que fazia a limpeza, fazia um cafezinho. E nós cuidávamos do nosso box. Na nossa ausência, o funcionário dele efetuava as vendas no nosso box. Tinha um caderninho com o nome da peça, com o preço daquela peça. Ele vendia e nos repassava o dinheiro da venda.

P/1- E Antig Center?

R- O Antig Center funcionava da mesma forma. O Marcelo Miranda e o Ricardo Cup, que são dois antiquários já um pouquinho mais antigos do que nós, excelentes antiquários até hoje, de muito sucesso, eles é que começaram com essa ideia, montaram o Antig Center com essa ideia. Funcionou. Depois o José Geraldo se associou a eles dois e montaram Art Center. Então a ideia nasceu com o Ricardo e com o Marcelo, era o mesmo perfil. Agora, depois nós compramos a metade do Antig Center, junto com o Ricardo e Marcelo, eu e Nelson. Então ficamos quatro sócios, com 20 por cento, 25 por cento cada um. E nós passamos a alugar para os outros comerciantes, boxistas, que estavam lá dentro. E tínhamos os nossos boxes, também, continuávamos com os boxes na Art Center. Aí vendemos os da Art Center, posteriormente, e ficamos somente com Antig Center. O Ricardo e o Marcelo saíram para uma outra loja, e nós terminamos comprando a empresa, a Antig Center. Não o imóvel...

P/1- Existe até hoje?

R- Existe até hoje. Então hoje ela é uma loja nossa, um antiquário de compre e venda. Os boxes não existem mais em nenhuma delas, é uma loja.

P/1- Tem uma especialidade de objeto?

R- Móveis. A maioria dos casarões é de móveis, objetos, lustres.

P/1- Qual é o número?

R- 28. Lustres, objetos curiosos, telefones antigos, porcelanas, louças, cristais, é tudo o que se encontra dentro de uma casa, e você compra, tira e coloca.

P/1- E quais são as outras lojas que você tem, Plínio?

R- Depois do Antig Center nós passamos... Eu e o Nelson compramos, aliás, alugamos uma casa em frente, número 23, uma loja chamada Antigo Lavradio. Na realidade nós compramos o ponto de uma amiga nossa que se estabeleceram na rua, Luciana e a Célia. Montamos ali uma loja especializada em réplicas com madeira de demolição. Então já era um antiquário das duas, e nós passamos a trabalhar com a réplica de madeira, com réplicas, nessa loja, e que agora está mudando o perfil. A partir do mês que vem não vai ser mais loja, essa vai... Só o Antig Center vai continuar como antiquário. Essa vai ser um botequim bem diferente, bem interessante, que é surpresa, não posso falar aonde, agora. Nesse momento nós compramos... Além de ter comprado o ponto do Antig Center, nós alugamos essa outra loja, 23. Aí, nesse período, nós compramos o prédio do Antig Center, que era de uma família de portugueses que morava ali, herdeiros que moravam em Portugal. Aí compramos o prédio, isso em um período de dez anos, hein? A gente estava na lona. Foi só com o comércio, comprando e vendendo nos boxes, depois o Antig Center, e aí compramos o imóvel, depois do Antigo Lavradio, no 23. Nós alugamos há quatro anos e meio atrás uma outra loja, que é o Rio Scenarium, hoje. É uma loja... Já montamos uma loja especializada para locações, de cinema, teatro, televisão. Porque a Rua do Lavradio é uma rua muito procurada, principalmente pelas televisões, TV Globo e outras produtoras de vídeo e de cinema para alugar os nossos móveis, os nossos objetos para cenários. Então nós já montamos o Rio Scenarium com esses objetivo. Por quê? Aquelas peças ali são peças específicas para cenários. Nós temos quartos art décor, art noveau, a sala império, em diversos estilos, com objetos, com tapete, com luminária, anos 50. E tipo cenários completos para locação. Então daqui a um ano, dois anos, a produtora quer voltar aqui para um ambiente igual, para continuar um filme, que, por exemplo, foi interrompido. Essas peças vão estar aqui, ainda, e nos antiquários não acontecia isso. Você alugava... Como logo vendia, você perdeu aquele acervo.

P/1- Bom, ali não vende de jeito nenhum?

R- De jeito nenhum. É a verdadeira galinha dos ovos de ouro. Porque a gente vende aos pedacinhos, e a peça continua sempre da gente. É o melhor negócio que tem.

P/1- Então vamos, por favor, centralizar no Rio Scenarium. Queria que você falasse do ambiente da loja. Que tipo de peça você tem, e como é que ocorreu essa mudança de inserir ali, naquele ambiente, por exemplo, atividades culturais, com música, como o barzinho?

R- O Rio Scenarium, nós já abrimos há quatro anos e meio, com mais dois sócios, que é o Evandro, um funcionário nosso do Antig Center. Aquele menino novo que veste a camisa, que se dá, que gosta daquilo que faz, que cresceu junto com a empresa, entrou garoto, ele já veio para cá como sócio. E a Elma, que é uma grande amiga de Vitória, uma decoradora fantástica que a gente convidou também e veio trabalhar com a gente aqui. Então já passamos a ser quatro sócios no Rio Scenarium. Mas há quatro anos e meio, como eu falei, como espaço de locação, porém há um ano e meio atrás. Ele passou, se transformou em um espaço cultural, com música, com dança, com teatro, e isso faz parte de um processo. Com a feira da Rua do Lavradio, a feira dinamizou a região, permitindo, revitalizando a região com a abertura de novos espaços. O primeiro deles foi o Empório 100, na Rua Lavradio, número 100; é um espaço com musica, com choro, com samba, dentro do antiquário da Lu. Depois o Carioca da Gema, com Tiago, com (Lefê?), que já faziam a parte da música e do restaurante do Empório. Aí eles saíram e montaram o Carioca da Gema. A Lu continuou com outro grupo, mais o Alberto. E aí veio o Semente na Lapa, que infelizmente acaba de fechar as portas.

P/1- É uma pena, essa é uma pena.

R- É, mas a gente está com um movimento aí para trazer o Semente de volta, está surgindo, espera um pouquinho só.

P/1- Os cariocas agradecem.

R- Esperem um pouquinho. E aí veio a Casa da Mãe Joana, veio o Sacrilégio, ao lado do Carioca da Gema. O Centro Cultural Carioca, na Rua do Teatro, o Espaço Constituição. Então a região foi ganhando força, a subprefeitura sempre atuante. A segunda região administrativa também, sempre muito atuante, sempre apoiando a gente. E esses espaços culturais sempre trazendo para o centro do Rio um público muito especial, um público qualificado, um público que gosta de antiguidades, isso também, né? Então esse movimento foi ganhando corpo, e o Rio Scenarium é uma... É a última a ser aberta. E outras estão vindo por aí. Então é um casarão muito bonito, eclético também, de 1880, que nós, a princípio, alugamos, há quatro anos e meio atrás. E estamos há um ano e meio, o compramos há um ano e meio. Estamos pagando ainda hoje os empréstimos feitos em família para pagar esse casarão, está quase quitado. Ele tem três andares, em que funciona de terça a sábado, com música ao vivo todos os dias, à noite. Durante o dia, horário comercial, é como antiquário de locação. Tem um prédio, e agora nós alugamos um prédio anexo a ele com mais1500 metros quadrados. É um prédio muito bonito, é onde funcionava o Dancing Humaitá, onde funcionava o Salão de Bilhar Guanabara, que há 46 anos mudou para a Praça Tiradentes, está lá. Então o prédio já tem uma história muito bonita, também, e que, no terceiro andar, tem uma casa de cômodos. Aliás, arquitetura de uma casa de cômodos que existiu no passado e que nós vamos restaurar. Então nós estamos, nesse momento, integrando os dois imóveis através de uma passarela em dois andares, de ferro. Ele vai ser um complexo cultural com dois mil e 700 metros quadrados, interligados através de um elevador, que já temos.

P/1- Já tem elevador no Rio Scenarium?

R- Tem elevador. E agora com as duas passarelas interligando os outros prédios. Vamos criar mais uma sala de teatro, vai ser um cabaré. Nesse grande salão vai ser um cabaré onde a gente pretende, reviver a memória dos antigos cabarés do Rio antigo, do teatro de revista, com uma programação de teatro, de dança, de música, e um dia da semana será dedicado às cantoras do rádio, que a gente vai poder assistir os shows com a Marlene, Emilinha, Dóris Monteiro, Helen de Lima, Adelaide Chioso, Zezé Gonzaga, Violeta Cavalcanti e antas outras que ainda estão por aí, com uma bela voz e a gente quer ver essas pessoas lá, se apresentando nesse espaço. E no térreo, ainda, nós construímos uma cozinha moderna, com câmara fria, frigorífico, toda adaptada para o restaurante. Fizemos a parceria muito positiva e muito boa, que agregou o valor ao Rio Scenarium, com o Rodolfo Botino, um grande chef de cozinha, que toca a nossa cozinha. E atrás dessa cozinha, através de um grande corredor de barca passarela, vai ter um outro salão, que é a casa da ópera, dedicada à música erudita e instrumental.

P/1- Mas como é que é essa convivência, quer dizer essa coisa... Acho que são bárbaras, das lojas. Como é que e agora a convivência do cliente com o produto? Porque a gente entra no Rio Scenarium, tem as coisas lá penduradas, tem o manequim, pode ter um rádio antigo...

P/2- Um Carro...

P/1- Um carro. Como é que é isso, quer dizer, qual é essa relação do cliente com a mercadoria, ali? Ninguém toca, ninguém quebra.________, aprecia. Isso dá um toque especial, acabou virando o teu marketing também do lugar, como é que é isso?

R- Olha, é uma relação de muito respeito do cliente. Porque o acervo do Rio Scenarium é o acervo que a gente selecionou das outras lojas nossas e colocamos aqui para não vender. Temos duas carruagens do século XVIII, umas Carruagens Vitória. Temos um Ford 28, um Ford 29. Temos peças raras da história do Rio de Janeiro, dos quadros do Guinle. Material de dois acervos, de grande importância histórica para memória cultural do Rio. Um deles o acervo do Albino Pinheiro, que adquirimos da família. Todo o acervo com milhares de fotografias, depoimentos inéditos, gravações com Pinxiguinha, com Cartola, com...

P1- Biblioteca vocês compraram.

R- Também. Tem livros, tem agendas pessoais do Albino, toda a memória da Banda de Ipanema, toda a memória da festa da Penha. Memória do Seis e Meia. Então fotografias de artistas, o Gonzaguinha quando era menino, dessa turma toda que ele lançou. Vídeos, Aracy de Almeida cantando de madrugada pelas ruas de Vila Isabel, então tem coisas fantásticas. O acervo do Albino está todo encaixotado. A gente pretende em breve, no terceiro andar, acima do Cabaré, expor e abrir ao público esse acervo do Albino para visitação e pesquisa pública. Tem um segundo acervo, da Nadir de Mello Couto, que é a grande cantora lírica dos anos 40, 50, que nós temos também todo o acervo de vida dela e que retrata a história da música lírica no Rio de Janeiro nos anos 40 e 50. Então a Nadir cantou com os grandes expoentes mundiais do mundo lírico, e tem um acervo de preciosismos que também será exposto nessa casa da ópera. Então o público respeita, embora o acervo da Nadir e do Albino ainda não estejam expostos. Mas nós temos no térreo peças muito particulares. No segundo andar nós temos uma farmácia antiga, que nós conseguimos preservar de 1936, uma farmácia art déco que veio da Rua do Riachuelo, número 20. O seu farmacêutico estava vendendo, ele ia vender os pedaços da farmácia, os móveis ele ia... Um decorador ia comprar para levar para Búzios, o outro ia para a Barra. A gente pediu: "pelo amor de Deus, João Bosco, não faz isso. Vamos preservar a memória da sua família, vamos preservar a sua memória, a sua história. Nós nos comprometemos a comprar esta farmácia e de preservá-la eternamente. Nós não vamos vender uma peça. Se for o caso a gente faz um documento por escrito.” E depois de alguma negociação a gente conseguiu comprar, adquiriu a Farmácia inteira. Está lá, preservadinha, a farmácia com o laboratório.

P/1- Isso é muito interessante, né, no fundo você é um comerciante de antiguidade, mas você acaba demonstrando que você tem quase uma relação, quer dizer, você tem toda uma relação e uma consciência do valor histórico dessa peça. Quer dizer, você, ao comprar a farmácia, está comprando um bem ao teu negócio, né?

O que te move, por exemplo, a assinar um termo e dizer: "Olha vamos manter inteira a história dessa farmácia?” Se chega alguém e diz assim: “eu te dou um milhão de dólares por essa farmácia.” Sabe, assim? O que move... Porque você é um comerciante de um bem antigo, mas você tomou uma consciência de manutenção e preservação dele.

R- Lógico, não tenha dúvida. Acho que esse respeito pela memória do homem, pela memória da cidade, pela nossa cultura. Sei lá, acho que isso vem da fazenda, de você respeitar aquele oratório, aquelas imagens. Não só como um senso... Como um objeto de adoração religiosa, mas a arte daquelas esculturas em madeira... O próprio curso de arquitetura também me deu essa noção, também, de respeito pela arte, pela história, pela preservação. Agora, isto eu tenho... É, eu estou falando de mim, mas eu não posso esquecer que eu tenho três sócios que comungam comigo e que têm o mesmo ideal, pensam exatamente da mesma forma. Nós sempre queremos, a gente não... Chega um momento que a gente não tem coragem de vender determinadas peças.

P/1- Você acaba criando uma coisa, tanto uma relação...

R- Exato.

P/1- Mais afetiva, mas uma consciência...

R- Mas que agrega um valor. Ela é um negócio. A cultura é, para nós, hoje... O nosso negócio é cultura. Então essa farmácia agrega um valor ao Rio Scenarium. Dentro daquela... Você encontra uma farmácia antiga, com laboratório, com vidraria, com tudo original, ali dentro. Você vai no terceiro andar, você tem um espaço Ariano Suassuna, uma exposição dedicada ao homem brasileiro. Você tem um pequeno museu de ferramentas, tem história de um marceneiro. Quando a mesa de marceneiro, as peças de marcenaria antiga, a boleadora de flores, a costureira, a rendeira, o português, o índio, o negro, o tronco inicial da cultura brasileira, o minerador, o tropeiro, o boiadeiro. Então a gente conseguiu reunir um acervo de peças, de objetos que contam a história do homem brasileiro. É o Brasil real, que o Ariano fala, né? Não é o Brasil oficial. Você tem, na realidade peças da escravidão, objetos da época da escravidão, documentos de compra e venda de escravo. Então a gente tem um acervo, um Atlas do século XVIII, de 1730. Um Atlas, um mapa mundi em que o Brasil ainda era chamado de ______ Ilhas Amazon. Então objetos de um valor muito grande. E na realidade, para a gente é um prazer, é uma alegria muito grande disponibilizar ao público esse acervo. Há um respeito muito grande. As pessoas... Até hoje não demos falta de nenhum objeto roubado na loja.

P/1- É?

P/2- Não quebra? Ainda mais à noite, que é a hora do bar.

R- Não temos... Não quebra, há um respeito. E assim, o astral do bar é muito bom. A música é a música brasileira, a gente valoriza, que tem a ver com a identidade da Rua do Lavradio. A casa da ópera nossa tem a ver com os teatros da Lavradio. A gente sempre busca a história lá atrás, de revitalização, buscando a inspiração no passado da região. Então não soa como um projeto falso, porque ele não é falso. Ali já existiu ópera. Aqueles casarões já ouviram ópera, os sons devem estar impregnados ali até hoje. A Chiquinha Gonzaga, o Noel, aquelas pessoas passaram por ali. Então a gente tenta trazer para o hoje essas lembranças do ontem, e fazemos disso negócio, né? No Rio Scenarium você paga para entrar, você paga para comer, paga para beber. Mas você sai feliz, dançando. As pessoas saem com um astral maravilhoso.

P/1- Já rolou de algum bebum fazer um... Querer comprar aquele carro lá, não assim, tem assim... Porque vocês não vendem, né?

R- Não.

P/1- Assim, conta só um caso assim de uma negociação ali, ou na sua outra loja. Me dá um exemplo de como é que se negocia uma peça de antiguidade. Você escolhe uma e me diz como é que se negocia.

R- Olha, na realidade, quem entra num antiquário... Não sei se em toda loja, mas num antiquário, quem entra...

P/1- Você atende na loja? “Deixa eu só ver...”

R- Sim. Eu recebo as pessoas, sou um bom em relações públicas, eu recebo as pessoas. Agora, hoje, eu não trabalho mais tanto na área de vendas. Na realidade o antiquário está um pouquinho de lado, a gente está se dedicando muito mais ao projeto cultural. Na expansão, as reformas do espaço. É onde a gente está concentrando a maior energia, hoje. Mas que vai... Quem frequenta um antiquário − acho que as outras lojas também −, nem sempre vão lá em busca de um objeto. Às vezes sim, às vezes vai lá para comprar uma cadeira, porque precisa de uma cadeira para a sua escrivaninha. Mas a maioria das vezes, a grande maioria das pessoas vai em busca de carinho, de afeto, de um papo, de ver a loja, de conversar. Então cria-se um laço de afetividade de você pode dizer... Muitas vezes de amizade, como a dona Maria Amália, que hoje é minha amiga.

P/1- Dona Maria Amália, sensacional.

R- E vendeu, hoje ela compra comigo. Já mudou tudo. Então a gente tem uma relação de troca muito grande. Às vezes as pessoas chegam lá: “olha, eu queria comprar uma mesinha para colocar no corredor da minha casa. Pois é Fernanda, mas como é que esse corredor, como é que é a casa?” Bom aí você descreve a sua casa. E eu consigo, vou imaginando o que é a sua casa e vou entrando na sua casa. De repente naquele corredor tem a mesinha, mas pelo que você me descreveu na sua sala, falta um sofá. Aí você termina comprando a mesa, termina comprando o sofá, comprando a jarra para mesa... Então nessa conversa eu mais pergunto do que falo. E você, e quanto mais eu pergunto da sua casa, mais você fala. E as pessoas querem falar, querem carinho, querem ser ouvidas, querem ser recebidas. Eu acho que quem vai numa loja, quer muito mais do que comprar ou vender.

P/2- Ela quer, bem... Aquela coisa do sonho, também. A pessoa também vai ver aqueles móveis, assim.

R- Tem as pessoas que vão em busca do... É, isso é um caso interessante para eu contar, você pediu uma história interessante. As memórias, né? Porque quem trabalha com antiguidade trabalha com memórias, trabalha com as coisas que estão por dentro. Não é um móvel comprado na loja moderna, é diferente. Então tem uma cliente que entrou em nossa loja, queria comprar uma cômoda. E eu atendi, falei: “olha, tem essa cômoda, que é uma cômoda tipo andele. Não é uma cômoda muito antiga, mas é do anos... Da década tal. É uma madeira muito boa, é peroba.” “Deus me livre, Seu Plínio, Deus me... É igualzinha à cômoda que tinha na casa da minha tia, Deus me livre. Minha mãe, minha tia, todos o móveis eram tudo desse jeito, Deus... Não quero não.” Aí terminou olhando outro móvel, comprou outra cômoda. Dias depois entra outra pessoa na loja. “Ah, eu queria.” Cômoda é uma coisas muito procurada. “Eu queria uma cômoda antiga.” Eu falei: “Olha, tem essa cômoda aqui, uma cômoda tipo andele, em peroba, uma madeira boa, cavilhada, não sei o quê, marchetada.” “Ah, que maravilha Seu Plínio, é igualzinha à cômoda que tinha na casa da minha avó. Ah, que maravilha!” Conclusão: comprou aquela cômoda. Então certamente aquela pessoa teve uma infância muito mais feliz do que a outra.

P/1- Ou a cômoda te representava...

R- Aquilo sim, ela teve uma infância feliz. Aquela cômoda trouxe boas lembranças para ela. Ao passo que a outra, a cômoda devia lembrar ela alguma coisa não muito boa da sua criação.

R- O nome da indústria de móveis que tinha na Rua do Riachuelo, que eu havia me esquecido no início, do Laupt (Schirirt?). Era um alemão que se instalou aqui e desenvolveu uma grande indústria moveleira, com móveis muito bonitos e que são disputados hoje no mercado, nos leilões, que era naquela região.

P/1- Agora, sobre formas de pagamento no seu comércio? Qual a moeda mais usada? Se ainda se barganha muito, se você recebe muito cheque, cartão de crédito, como é que isso? Como é que é esse comércio, o pagamento desse comércio?

R- Olha a, no Antig Center, alguns anos atrás a moeda era... Os preços eram em dólar. Eram em dólar, depois... Hoje não, hoje a gente trabalha com real, raramente a venda é feita em dólar, só quando é turista mesmo. Mas agora, no Rio Scenarium... É até uma coisa interessante, falar de pagamento. É um bar com teatro, com música, com dança, e neste um ano e meio do Rio Scenarium, nós recebemos cheque, cartão ou dinheiro. Em um ano e meio, nós não temos um cheque sem fundo, nenhum.

Às vezes entra o cheque e não tem saldo, você liga para o cliente, ele manda compensar ou vai lá e troca. Mas nós não perdemos um cheque. Então assim, define muito bem o público que frequenta a nossa casa. E cartão representa hoje 60 por cento das nossas vendas. Semana passada mesmo tivemos um problema com um cartão. De madrugada saiu do ar, o Dinner’s Club. Como o cliente só tinha... Três clientes só tinham aquele determinado cartão, não tinham nem cheque nem dinheiro, nem outro cartão, aí o gerente me chamou. “Plínio, Seu Plínio, o que resolve aqui?” Falei: “olha.” − E assim, as pessoas aflitas, porque... − “Deixa a identidade.” Eu falei: “Não, não há necessidade nenhuma. Você volta outro dia e paga, não há necessidade. Ou, se o senhor quiser, o senhor pode depositar na nossa conta.” Então as três pessoas saíram, foram embora e eu falei: “olha, acho que agora a gente vai ter um cheque sem fundo, acho que dessa vez nós perdemos.” Mas o meu feeling dizia que não, que aquelas pessoas voltariam e pagariam. E não teve dúvida. Dois dias depois, dois voltaram e pagaram aquela conta sem nenhuma comprovação, nenhum comprovante do gasto. O terceiro telefonou e fez uma reserva para uma mesa de 20 pessoas. Ele era diretor da Lozano, de uma empresa grande. Fez uma grande festa e pagou, então continuamos.

P/1- ______ uma conta maior.

R- Uma maior. Então não temos, até hoje, nenhum cheque sem fundo.

P/1- Plínio, então agora, falando assim, de você, pessoalmente: como é que é a tua casa em termos de mobílias?

R- (riso) Casa de ferreiro, espeto de pau. Minha casa é na Rua do Lavradio, que eu moro − número dez − há três anos. É um casarão antigo, alugado, da Santa Casa de Misericórdia. E esse é...

P/1- Você é o único morador da rua?

R- Não, a rua já tem muitos moradores.

P/1- Hoje?

R- Já. Nesse processo de revitalização da rua, a gente conseguiu, junto da prefeitura, com o governo do estado.

P1- Bárbaro, né?

R- Muitos tinham prostíbulos, tinham coisas barra pesada. Alguns prédios complicadíssimos, com... Barra pesada. Cabeça de porco, tóxicos. A gente conseguiu, junto com o Estado, que fosse feita realmente um... Os prédios mais complicados que eram do Estado ou da prefeitura, eles tiveram uma substituição de suas atividades, vamos dizer assim, por outras mais culturais. Agora, o que você me perguntou?

P/1- Como você mobiliou a sua casa?

R- Ah, fugi da resposta. Não, a minha casa é um... Esse casarão antigo, muito bonito, a arquitetura é muito bonita. A minha cama fica no mezanino, e em cima tem uma claraboia de vidro que eu vejo a lua passar. É do século... De 1908. Mas os móveis não são móveis antigos, que eu levo para a minha casa. Às vezes... Já levei uma sala bonita, art nouveau, já levei uma cama de século XVIII. Mas às vezes eu estou na loja, chega um cliente. “olha, eu queria alugar uma sala art nouveau para o filme do...” Eu tenho que... “Olha, eu acabei de comprar uma sala art nouveau, exatamente como você quer, amanhã você pode passar que eu lhe mostro a foto.” Na época não tinha nem internet ainda, que é há algum tempo atrás. Então eu corro na minha casa, fotografo tudo, mostro. “Exatamente o que eu quero.” Já alugo pela foto. Aí tira tudo, fico dormindo no chão, no colchão no chão, mando as coisas para lá. Então, na realidade, eu fico meio provisório. E hoje não, então são móveis simples.

P/1- Mas você tem um móvel que tenha uma relação de afeto total?

R- Na minha casa?

P/1- Uma coisa trazida de Ferros?

R- Não. Olha, é engraçado. Lá em Vitória o meu apartamento tinha um monte de coisas. Hoje não, hoje mudou essa relação. Quando você tem o antiquário, você perde muito desse de querer ter essas coisas junto de você. Você perde esse apego pela peça antiga. Você deixa de ter, passa a negociar e a comercializar. É, na realidade as peças mais significativas, mais especiais, elas estão hoje no Rio Scenarium, abertas às pessoas. Então eu tenho na minha... Eu tive na minha casa algumas peças muito interessantes, mas eu parei com essas histórias. Olha, estou eu e meu irmão, moro com meu irmão. Só nós dois vendo esses quadros, esses móveis... Só para dois? Sabe, não é justo que a gente vá privar outras pessoas de ver. Por exemplo, retratos de condes, de barões, pintados a óleo. Quadros acadêmicos brasileiros maravilhosos. Ficavam na parede para eu e meu irmão vermos. Não dá nem para levar gente lá, porque é tanto papel, tanto livro, é tanto retrato da Lavradio, tanto recorte de jornal. Então a gente levou esses quadros para a loja, e estão lá à visitação, para que todos vocês possam ir lá, ver e conhecer.

P/1- Bom, e em temos de lazer? Sem ser a tua atividade na Rua do Lavradio, o teu trabalho, você tem alguma outra atividade?

O que você curte? Você se permite esse tempo livre, sai, viaja?

R- Eu fiz assim... Eu viajo muito pouco. Viajei para San Telmo para conhecer a feira de antiguidade de lá. Fui para o Recife antigo também com o objetivo de estudo, de conhecer o Recife antigo, como se deu a formação do Recife antigo, como foi revitalizado o Recife antigo, se foi de baixo para cima, foi de cima para baixo. Então entender esses processos, né? Como trazendo essas experiências para o nosso caso, o caso da Lavradio. Foi de baixo para cima, um processo que nasceu com a gente, e poder... O público veio junto conosco. É, viajei para a Europa também, mais para descansar, mas terminei visitando antiquários, visitando feiras e terminei não passeando. Quer dizer, terminando viajem cultural, mas vendo as coisas dentro do mercado. Agora, hoje eu vivo muito a Lavrado, trabalho cerca de 16 horas por dia. De manhã, no horário comercial, estou no antiquário, à noite tem a ciranda do Rio Scenarium. Então sempre pessoas especiais que a gente está recebendo. Todos são especiais, o público nosso é muito especial, então a gente cuida com muito carinho de cada detalhe, da limpeza, do atendimento, da decoração, a iluminação. A gente está sempre fazendo alguma coisa e nunca que e gente está parado. Então os quatro sócios estão ali direto. O Nelson hoje também trabalha direto lá. A Elma, o Evandro. A gente está cuidando da casa como se fosse de um filhinho. Hoje o Rio Scenarium é uma referência da boa música brasileira, é um espaço visitado por turistas nacionais, estrangeiros, que vão ver... Vai conhecer um pouco da cultura brasileira, carioca. E a gente tenta preservar isso ao máximo. O meu lazer, na realidade, é sair do número vinte e ir par ao número dez, onde eu moro; do dez para o vinte. De vez em quando dou uma caminhada ali no Campo de Santana, que é coladinho, que é muito bonito. Tem jardim, tem... De bicicleta, ando de bicicleta, e domingo caminhar ali pelo Saara, ver aquela arquitetura. Você descobre, no domingo de manhã, naquela região, coisas lindas que você não vê durante o dia, com o trânsito. Você anda na rua, você vê. Então a arquitetura é fantástica. Eu admiro muito o centro. Umas caminhadas nas Paineiras, no caminho do Bem-te-vi, eu gosto muito da natureza.

P/1- É, tem uma marca? A tua empresa tem um logo?

R- O Rio Scenarium? Tem.

P/1- Qual é? Por favor, descreve?

R-Não é... O Antig Center e o Antigo Lavradio nós usamos o logo, um desenho bico de pena dos próprios casarões. A logomarca deles é o bico de pena de cada um dos casarões. Já o Rio Scenarium, não. É uma placa, uma forma de uma placa antiga, aquelas placas... Aqueles luminosos, que tinham no Rio antigo, como ainda tem hoje. A Lisboeta, o Hotel para Solteiros, na Gomes Freire. Aquelas placas luminosas, e dentro Rio Scenarium, escrito, o nome Rio Scenarium. Não é porque Scenarium... Porque a loja montada com cenários de época para alugar para cenários.

P/1- Ah, ________

R- Isso porque a marca Cenário já havia sido registrada por outra empresa. Nós buscamos algumas alternativas. Tentei fugir, obviamente, do inglês. E fomos na origem, sempre buscando a origem, o latim. Íamos pôr Scenarium... Rio tínhamos que incluir o Rio também, porque o INPI [Instituto Nacional da Propriedade Industrial] não aceitou o Scenarium sozinho, porque o som lembra o outro. Então incluímos o Rio, por ser uma loja tipicamente carioca, um espaço carioca. Então ficou Rio Cenarium, é uma marca que deu certo, está funcionando direitinho. E só assim uma... Você, dos acervos, falou assim da memórias das outras casas. Além da farmácia desses dois acervos, que eu lhe falei, do Albino, da Nadir, a gente sempre está colecionando restos de ontem, pedaços do passado do Rio antigo. Por exemplo, a Casa Camelo fechou. Então nós compramos muita coisa da Casa Camelo. Até aqueles dois camelos que ficam na fachada. Eu compro com muita tristeza, mas se eu não comprar, ou vai para o lixo, ou alguém vai comprar e vai se desfazer.

P/1- Ao lado Gabinete Real?

R- Exatamente. Os camelos ficavam ali em cima.

P/1- Uma casa tradicional de tecidos.

R- De tecidos, super tradicional, aqueles expositores de tecidos. Um dia a gente vai montar uma pequena Casa Camelo lá dentro. O Piscinê de Ouro, fechou na rua da Carioca, então nós adquirimos uma bilhar do Piscinê de Ouro, toda em cristal (ruby?), que é uma coisa fantástica.

P/1- Como é que você sabe que uma coisa está à venda?

R- As pessoas vão até nós. Vão até nós. A loja já é muito conhecida, tanto o Antig Center como Rio Scenarium. Então, quando as pessoas querem vender as peças especiais, elas vão até a gente e oferecem, e a gente visita, se for interessante a gente compra. Então tudo que é relacionado à memória do Rio de Janeiro, ou do Brasil, ou brasileiro, a gente compra e vai guardando. Um dia vai estar tudo isso exposto, vai ser um... Espero um dia fundar, quero que isso se transforme numa fundação e que isso fique definitivamente para a cidade. Porque na realidade não é um acervo. A gente, com o tempo, conseguiu adquirir isso tudo, reunir esse acervo, esses pedaços de memória, e a gente quer deixar isso para a cidade. Isso não vai ser vendido nunca, vai ser para seus netos, para os seus filhos.

P/1- Você tem filho?

R- Não, não tenho. Infelizmente não.

P/1- Você quer colocar mais alguma coisa?

P/2-Não.

P/1- Então eu tenho uma pergunta para te fazer. Se você pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, você mudaria?

R- Se eu mudaria? (pausa) Eu acho que não. Estou muito feliz com o que eu faço. Obviamente, alguns erros, que a gente comete, eu tentaria não cometê-los novamente. Mas os pequenos erros... Eu não tenho lembrança de grande erros. Certamente eu não concluiria minhas faculdades de jeito nenhum (riso). Eu estou muito feliz com o que eu faço, estou muito feliz com as pessoas à minha volta, muito feliz com os meus sócios, com os clientes, com os amigos. Eu não modificaria muita coisa não. Estou muito feliz com a Rua do Lavradio, com o projeto que a gente desenvolve lá, com as parcerias que a gente desenvolveu com os colegas, os comerciantes que deram as mãos para a gente neste projeto. Como já falei, construído com a participação comunitária. Estou hoje presidente da Associação de Comerciantes, e me sinto muito feliz de estar representando a minha classe, de estar lutando junto com ela para melhorar a nossa região, estou muito feliz. E eu acho que eu não mudaria muita coisa não. Eu teria que pensar muito para saber o que eu mudaria na minha vida.

P/1- Então o que você acha desse projeto de Memória do Comércio da Cidade do Rio de Janeiro? O que você achou então de ter dado seu depoimento e contribuído para o projeto?

R- Olha, esse projeto é fantástico. Eu queria parabenizar vocês duas, pela... E toda a direção desse projeto,né? O museu do homem, não é isso?

P/1- Museu da Pessoa.

R- Museu da Pessoa, também. Eu acho que isso não tem... O próprio trabalho nosso de preservação, vocês estão exatamente preservando a memória do homem brasileiro, do comércio. E é o comércio que move essa cidade, que já nasceu em função do comércio. Foi a nossa atividade principal, continua sendo, também turismo, tudo isso é também comércio. Ah, eu acho que esse projeto deve ser estendido para as outras áreas, ser ampliado. É um a ideia inicial, mas já é uma memória. Eu me sinto muito honrado de estar aqui. E quando... Foi a Fernanda que me ligou e falou que estaria entrevistando as pessoas. Eu me senti muito distinguido com esse convite. Eu falei: “por que eu? Tem tanta gente que eu conheço que eu poderia estar indicando para vocês, para falar do comércio aqui da nossa região.” E foi assim, com muita responsabilidade que eu estou aqui falando um pouco da vivência nossa, na nossa região. Então eu queria desejar sucesso a vocês, a esse livro, a esse projeto. Que ele fosse ampliado, que o Sesc multiplicasse por outras cidades do Brasil. E no que eu puder colaborar, dentro da minha região, da minha comunidade, com meus colegas comerciantes, ajudo a vocês a abrir novos caminhos lá dentro, estou disposto. E queria parabenizar mesmo, vocês estão de parabéns, um grande projeto e sucesso.

P/1- Bom, então eu te agradeço. E quer colocar mais alguma coisa?

R- Eu queria colocar só uma coisinha que eu pontuei e deixei de falar de uma pessoa muito importante nesse processo de revitalização da Lavradio, que é a Danuza Leão. A jornalista Danuza Leão. A imprensa teve um papel importantíssimo, a Danuza também. A Danuza Leão, ela frequentava a rua há muito tempo. Antes de nós estarmos lá comprando peças, comprando móveis. E quando a gente estava pensando em fazer a feira de antiguidades, Feira Rio Antigo, a Danuza apareceu no Antig Center e alguém falou: “a Danuza Leão está aí.” Quando aparecia famosas, vinham correndo falar. E eu fui lá, cumprimentei a Danuza, me apresentei e conversei um pouquinho com ela. Falei que tinha uma ideia de fazer uma feira na rua, e ela falou: “olha, eu frequento essa rua. Eu acho ela o máximo, e eu vou dar uma notinha sábado que vem, naquela coluna minha.” − Chamada Bom Programa – “Sobre a Lavradia, falando do...”

P/1- Da feira.

R- Da Feira. Não era nem da feira inda, da própria rua, do comércio da rua. E ela deu a nota fantástica, convidando os cariocas para irem à Rua do Lavradio para conhecer a feira. Conhecer a rua, conhecer os móveis, conhecer os comerciantes. Falou dos comerciantes, falou dos móveis, falou das antiguidades. Então na véspera eu fui em vários comércios da região e falei: “olha, a Danuza vai, amanhã, dar a notinha.” Falei no bar, falei no restaurante: “compre salgadinho, faz mais salgadinho, seu Antonio. Põe mais chopp para gelar, porque...” E fui nos antiquários também. Conclusão: no dia seguinte a rua foi invadida, mas invadida por um público especialíssimo. O público que lê o Jornal do Brasil, o público que lê a Danuza Leão. A rua ficou entulhada de gente. O que se vendeu nesse dia, é um negócio impressionante. O momento estava difícil, de venda. Aí à noite nós nos reunimos, os comerciantes todos, todo mundo eufórico. Os de cima desceram, vieram para o Antig Center. Todo mundo com o bolso cheio, com cheque, dinheiro. Então vamos comemorar, vamos tomar um chopp. Aí eu falei: “vamos agradecer a Danuza, mas de que forma? Agradecer a Danuza Leão, mandar um vinho, mandar um licor, mandar uma flor”. Eu sei que nessa conversa com ela, ela me falou que colecionava cálices antigos. Eu falei: “vamos dar cálices antigos, cada um vai dar um cálice.” Cada comerciante então deu um cálice antigo. No dia seguinte mandou um cálice antigo. A gente reuniu uma cesta com pelo menos 50 cálices antigos, cada um de uma cor, de um formato, de um século, a coisa mais linda. A Lu, a Rosana, montaram o presente bonito, cheio de papel celofane. A dona Fátima, dona da loja de tintas, falou: “mas até vendi tinta para danar. Eu queira dar, mas eu não tenho cálice, posso dar uma lata de tinta?” “Dá um Suvinil branco, se ela não gostar, dá para... Ela põe.” Deu um Suvinil branco. A loja de acrílico deu um negocinho de pendurar toalha, de acrílico. Então cada comerciante deu o que tinha. E aí a gente levou à noite, no dia seguinte, essa... Uma cesta daquela de padaria, cheia de tinta, de cálice, tudo para a Danuza. E dentro de cada cálice, o cartãozinho do comerciante, com um obrigado para a Danuza. Em cima, na alça da alçada bolsa, um cartãozinho, “Danuza, a Lavradio te abraça!” Aí deixamos na portaria do prédio dela. No dia seguinte ela ligou chorando. “Olha...” Ficou emocionada. Então assim, foi o primeiro vínculo com a imprensa que nós tivemos, através da pessoa da Danuza. Ela sempre deu notas, toda feira ela divulgou. Então foi muito importante esse papel da Danuza, nesse momento nosso de ressurgimento, de revitalização da rua. Eu não poderia deixar de registrar o papel da Danuza Leão, do Augusto Ivan, da Olga Bronstein. E mais recentemente do Sérgio Ricardo, que é da Turisrio, que também participa conosco. Reunindo com os comerciantes da rua num movimento cultural Pró Rio Antigo. É um outro movimento que está surgindo. Então são pessoas muito importantes e muito queridas a nós.

P/1- Então eu te agradeço. Plínio, muito obrigada

pelo depoimento, pelo bonito depoimento.

R- Eu que agradeço. Obrigado a vocês e parabéns a todos.