Museu da Pessoa

Um cachorrinho, uma história

autoria: Museu da Pessoa personagem: João Gomes de Souza Filho

Arte Cidade
Depoimento de João Gomes de Souza Filho
Entrevistado por Karen Worcman e Rosali Henriques
São Paulo, 14/05/1999
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº ARTCID_HV010
Transcrição de Neuza Guerreiro de Carvalho
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho

P/1 – Vamos começar a entrevista? Vamos perguntar o seu nome e o lugar onde o senhor nasceu.

R – O meu nome é João Gomes, completo é João Gomes de Souza Filho. Eu nasci na Paraíba, em João Pessoa, em nove de dezembro de 1946.

P/1 – E qual o nome de seu pai e de sua mãe?

R – O meu pai se chamava João Gomes de Souza e minha mãe chamava Francisca Gomes de Souza. Faleceu, já.

P/1 – Os dois?

R – Sim.

P/1 – Eles também eram lá de João Pessoa?

R -

Eram. Os dois eram lá de João Pessoa.

P/1 – O que seu pai fazia?

R – O meu pai sempre foi... Como ele não tinha estudo, ele sempre foi ajudante. No caso, lá na Paraíba… Logicamente, na ocasião, era pequeno, ainda não tinha um conhecimento das coisas, mas a minha mãe dizia que ele trabalhava como se fosse na prefeItura, cavando boca do lobo, fazendo esse tipo de serviço lá. E por um tempo ele trabalhou como operário; lá tinha a Matarazzo, uma firma que era perto de casa. A firma nem existe mais.

Ele trabalhou lá até que... As condições lá não eram boas, a família foi aumentando e o governo aqui de São Paulo estava arrumando emprego pra quem vinha pra cá. Naquela época, inclusive, eles pagavam até a viagem pra pessoa vir. Aí meu pai e meu tio vieram pra São Paulo e deixaram a gente lá. Nós nunca tínhamos vindo pra cá, nem conhecíamos São Paulo. [Eles] vieram através de um conhecido, que já tinha vindo antes; pegaram o navio e vieram pra São Paulo.

P/1 – Vieram de navio?

R – Sim. Naquela época, [era] a viagem mais fácil pra vir pra São Paulo. Inclusive eu, quando vim a primeira vez, vim de navio. A gente vinha de navio até o Rio de Janeiro, aí chegava ali na... Pegava o trem onde até passou aquele filme lá, a Central [do Brasil], aí vinha e parava no Brás. Naquela época era a viagem mais corriqueira que tinha. Depois é que começaram a vir os ônibus, aqueles ônibus velhos, que levavam dez dias pra chegar até aqui, quando não quebravam no caminho.

P/1 – Mas lá na Paraíba, como era sua casa? Era na cidade, como era?

R - Era na cidade, num dos bairros lá, perto do matadouro. Eles moravam numa casa humilde, simples. Era de pau a pique que chamam, não sei como é que chamam. Era coberta de palha de coqueiro e as paredes, impressionante, eram de barro. Ao lado tinha um pé de manga e quando as mangas estavam maduras caíam em cima do telhado - que não era telhado... Caíam, batiam assim, [a gente] escutava um barulho, ‘taram’.

Esse tipo de casa, de palha mesmo, de coco.

P/1 – O senhor tinha muitos irmãos?

R – Dos vivos nós somos em cinco. Morreram três. Antes de mim já tinham morrido os três.

P/1 – Então são oito?

R – Oito, da primeira esposa de meu pai.

Com o tempo, ele casou outra vez e teve mais dois.

P/1 -

A sua mãe morreu antes?

R – Morreu antes.

P/1 – Ela morreu quando?

R – Lá pelo ano de 70. 70, mais ou menos.

P/2 – O senhor [tinha] quantos anos?

R - Já era casado nessa época. Devia ter uns 25 anos, sei lá. Eu me casei com dezoito anos.

P/1 – Ela já estava aqui em São Paulo?

R – Estava, já estava estabilizada aqui.

P/1 - Então vamos voltar um pouquinho àquela época. O senhor estava contando que tinha uma mangueira, tinha uma casa... A sua mãe ficava em casa trabalhando?

R – A minha mãe, ela ajudava meu pai nas despesas porque ela e minha avó, que morava com a gente, faziam pamonha e cocada pra vender. Enquanto meu pai fazia outras coisas, inclusive quando ele veio pra São Paulo, elas levaram a gente nessa base, na base da pamonha, da cocada, dessas coisas.
P/1 – Vendiam pamonha e cocada onde?

R – Na rua. Às vezes, as irmãs, que são mais velhas que eu, saíam pra vender pamonha. Até tinha lugar de entrega, nos bares.

E a gente era mais novo, eu e meu irmão ajudavávamos em casa - [a gente] mais atrapalhava que ajudava. Mas ajudava. Alguma coisa, às vezes a gente saía para vender também.

P/1 – Tinha uma bandeja e levava na rua?

R – É. Não era uma bandeja, era uma travessa de alumínio com uma tampinha e [a gente] punha a pamonha. Eu lembro que uma ocasião… Sou mais velho que ele, ele já faleceu. Eu lembro que era eu que gritava: “Olha a pamonha, olha a pamonha”.

E um dia fiquei tão rouco, mas tão rouco, que a voz não saía. Uma rouquidão terrível, a voz não saía de tanto falar na pamonha. Ele que falava...

P/1 - Pequenininho...

R – Era o irmão mais novo. Ele era um pouquinho mais novo que eu, bom, eu era o mais velho.

P/1- Em João Pessoa tem praia, não?

R - Praia, sim. Tem a praia bastante famosa que é a praia de Tambaú, não sei se você já ouviu falar. Essa praia é muito linda.

P/1 – Vocês moravam perto ou longe da praia? Como é que era?

R – Não, não era nem perto nem longe. Na verdade, João Pessoa é uma ilha, então o mar a cerca. Tem uma parte dela que atravessa um rio, um rio que emenda com ela... É uma ilha. A gente podia ir de ônibus ou às vezes a gente ia a pé. Só que a pé era muito longe, então normalmente a gente pegava o ônibus no centro de João Pessoa mesmo, e rapidinho estava lá na praia. Não era muito longe, não.
P/1 -

Em casa vocês comiam... Quem fazia comida era sua mãe?

R -

Era minha mãe. Minha mãe, a avó.

P/1 – E o que vocês comiam lá?

R – Olha, a comida lá é diferente da daqui.

A gente comia mais era carne seca com feijão e farinha.

Farinha era... Não podia faltar na nossa mesa.

P/1 – Mas tinha problema de ter dinheiro pra comprar comida? Como era?

R – Olha, problema não tinha muito porque, apesar da pobreza, tinha as comidas de lá. A gente conseguia as coisas lá na feira, então eu não lembro que lá a gente tenha passado muito apuro. Da minha visão de criança, eu não lembro que tenha passado muito apuro, mas eu lembro que havia ocasiões que a gente era menino, eu e meu irmão ia na feira [e] lá conseguia ganhar um pedaço de carne, um pouco de farinha. A gente ia pedir lá. As pessoas ficavam com dó.
Ah, outra coisa: acho que foi um pouco depois de minha mãe… Mandava um caldeirãozinho. Vocês se lembram que eu falei que nós morávamos perto do matadouro, então a gente sabia a hora que eles matavam os bois.

A gente ia lá, tinha um… Não sei se era um frigorífico, não lembro bem, eles penduravam os bois lá. E ali na medula do boi, na junta dele, bem no meio do osso da espinha, tem um tutano, vamos dizer assim, e a gente ia e pegava aquilo. Era o que servia de janta ou pra gente de mistura. E tinha o outro lado, onde ela trabalhava, que matava porco, então ela limpava. A gente passava ali e olhava; quando a chefia dela não olhava, a gente pegava um pedaço de carne, empurrava e pegava. Isso aí era alimento. Acho que não era tão fácil, pra gente ter que fazer dessas coisas.

P/1 – O que mais o senhor se lembra de sua mãe? Ela era uma pessoa brava, carinhosa?

R – Não. Minha mãe era uma mulher, na expressão da palavra, uma mulher

mesmo, de verdade. Ela era, se fosse casada hoje, o chefe da família, porque graças a ela é que [a gente] tinha essa vida assim. Mais tarde é que eu aprendi uma profissão, mas ela... Se não fosse ela, talvez meu pai não tivesse vindo pra São Paulo, mas ela era que comandava tudo. Era uma mulher baixinha, bonitinha. Era branca, já meu pai era um negrão meio reforçado. Mas, olha, ela não dava moleza pra ele. Porque se deixasse na mão dele as coisas a gente nunca ia ter nada na vida. Já não tinha nada, ia ter menos ainda. Então minha mãe foi que conseguiu levar a família, vamos dizer assim.

P/1 – Mas por que, ele era...

R – Ele era assim, meio despreocupado, desligado, não assumia certas... Não assumia responsabilidades. Era um coração muito bom, mas não assumia uma responsabilidade mais firme. A minha mãe sempre o dirigia e dizia assim, assim vai. Gostava muito de jogar. Minha mãe é que era...

P/1 – Ele gostava de jogar?

R - Jogava baralho direto, ele e o meu tio, esse que morava em Itu. Ele tentou.. Sei lá, como é que eu posso falar? Não deixava a provisão da família. Trabalhador ele sempre foi, mas só trabalhava, ganhava. O resto... Não se preocupava com mais nada. Era minha mãe que tomava as rédeas dentro de casa.

P/1 – E o senhor tinha irmãs?

R – Sim, tinha duas irmãs.

P/1 – E elas trabalhavam? Eram mais velhas?

R - Minhas duas irmãs são mais velhas que eu. Meus dois irmãos que vinham da mãe eram mais novos que eu, então essas minhas duas irmãs sempre ajudavam em casa.

P/1 – E elas cuidavam de vocês também?

R – Cuidavam da gente, levavam na escola. Elas sempre foram esforçadas. Até hoje estão vivas. Estão viúvas, as duas. Já têm a família formada, os filhos já estão casados.

P/1 – O senhor ia à escola lá?

Com quantos anos o senhor estava na escola?

R – Olha, eu ia lá, mas acho que aquela parte não valia muito. Em primeiro lugar porque, veja bem, eu vim pra São Paulo com seis anos. Nessa idade, eu não lembro que tinha ido a escola lá. Vamos avançar um pouco mais. Com seis anos eu vim pra São Paulo.

P/1 – Seu pai veio primeiro?

R – Veio primeiro, [se] estabilizou. A gente veio depois, eu e o resto da família, a minha avó, porque esse meu tio era filho dessa minha avó.
Aqui eu comecei a estudar um pouco, mas logo em seguida - não me lembro quanto tempo estivemos aqui - tivemos que voltar porque minha avó ficou doente. Voltamos lá pra... Nessa época então, eu fui numa escola lá, só que não me recordo de ter aprendido muita coisa. Eu me recordo que fugia da escola, mas não lembro de ter aprendido muita coisa lá. Da escola mesmo,

o primário, o marco mesmo, eu aprendi aqui em São Paulo.

P/1 – E voltaram pra lá...

R – Foi rapidinho. Ficamos lá um ano, um ano e pouco. A minha avó faleceu e viemos embora.
P/1 – E aqui em São Paulo, então, vocês foram morar onde?

R – Na Rua Cambará, na Vila Bertioga, aqui na Mooca mesmo. Era uma casa. Meu pai, meu tio já haviam feito uma oferta; era um barraco que tinha uma casa no fundo, e a gente foi lá.

P/1 – Era um barraco no fundo da casa?

R – É. Naquela época, a casa... Faziam muitos cortiços. Hoje talvez exista ainda, mas hoje os cortiços são de alvenaria, tijolo. Naquele tempo não, era barraco de madeira mesmo, e foi num desses que a gente morou. Em duas casas a gente morou assim, em barraco.

P/1 - Seu pai chegou aqui e fazia o que? Ele já tinha arranjado trabalho?

R - Meu pai aqui trabalhava de ajudante. Entrou na Good Year na época, sempre assim, de ajudante. Meu tio também, só que meu tio já tinha mais estudo. Meu tio já se virava melhor que ele, meu pai. Ajudava meu pai... Quer dizer, um ajudava o outro ali. E foi assim, trabalhava de ajudante aqui, ali... Só depois, quando ele conseguiu entrar na Ford, lá no Ipiranga, que as coisas começaram a melhorar. Mas mesmo no tempo que ele trabalhava de ajudante… (pausa)
Veja bem, hoje a gente associa a palavra pobre a uma pessoa que ainda tem condições de comer alguma coisa. Abaixo disso não é pobre, é miserável, hoje. Naquela época, tinha dia em que a gente não tinha nem janta, nada…(chora)

P/1 – Aqui em São Paulo já?

R – Aqui, porque lá a gente tinha. Passava mal, mas tinha onde recorrer. E aqui? Aqui não tinha. Por exemplo, eu ia lá no matadouro, conseguia alguma coisa; lá a minha avó plantava milho, a gente tinha uns pezinhos de coco lá no quintal. Minha avó plantava amendoim... Sempre tinha alguma coisa. E aqui?

P/1 – Desculpe por perguntar, aqui o seu pai trabalhava, mas ganhava pouquinho?

R – Pouquinho. E a gente... Lembra que logo que nós viemos pra cá, viemos em quatro irmãos; o último nasceu aqui, logo em seguida. Então pro meu pai sustentar cinco filhos, aluguel e tudo... Minha mãe fazia algum trabalho em casa. As firmas, naquela época, davam muito trabalho pra quem trabalhasse em casa, mas não sei por que tinha dias que eu chegava em casa e pedia a comida pra minha mãe e minha mãe falava assim: “Hoje é farofa.” Era água com farinha dentro, cebola, alguma coisa assim, sabe? Às vezes ela fazia uma sopa dessa verdura, couve. Eu lembro dessas coisas.

P/1 - Vocês tinham roupa?

R – Tinha. A gente também ganhava as coisas. A gente estava tão apertado que eu tenho… Nessa época, meu tio, irmão de meu pai, já tinha ido pra vida dele; tinha ido pro exército, depois tinha se casado. Casou e foi morar na cidade de Itu.
Como ele viu a sItuação que a gente estava passando aqui, ele veio e deve ter conversado com meus pais pra levar um dos filhos pra morar em Itu. O escolhido fui eu, fui morar com ele lá. Estudei lá - eu lembro muito bem, estudei lá numa boa escola. Fiquei morando quase uns quatro anos lá.

P/1 – E aí? Foi bom morar em Itu? Como mudou sua vida, melhorou um pouco? O que aconteceu?

R – Fui porque ali eu tinha condições melhores. Não me faltava roupa, no meu tempo vazio eu engraxava sapato lá na cidade. Trabalhava. Sempre fui de trabalhar.

P/1 – O senhor ia pra escola e ia trabalhar de engraxate?

R – Ia pra escola e depois saía pra engraxar sapato. Durante a semana, saía em outro período da escola e de sábado e domingo tinha já um ponto certo lá. Os meus tios faziam isso pra eu ter responsabilidade. Ali já não era uma necessidade, como era aqui em São Paulo, fiz isso aqui também. Eu catava lata, catava vidro na Rua da Mooca. Essa rua, a Avenida Álvaro Ramos, aqui na ponta, era um córrego que tinha aí, era um rio onde passa essa avenida larga, a [Salim Farah] Maluf. Isso aí era um riozinho, não sei se vocês lembram dessa avenida antes, era um córrego. Perto da Rua Duarte tinha uma fábrica de vidros. A gente vinha catar os vidros que jogavam fora, bolinhas de vidro. [A gente] catava latas nesse córrego. Isso que [eu] fazia aqui era por necessidade.

P/1 – O senhor catava lata e catava vidro e levava pra vender onde?

R – Lá perto de casa tinha uns locais que compravam ferro velho. Todo dia a gente saía e vendia. O meu irmão, eu não me lembro bem… Mas a gente saía sempre.

P/1 – O senhor tinha uns oito anos?

R – Nessa época, eu devia ter mais ou menos isso. Eu fiquei uns quatro anos lá. [Quando] voltei de Itu, eu devia ter uns doze anos. Ainda continuei fazendo isso, até conseguir entrar no SENAI e afirmar uma profissão. Até essa época foi uma vida muito sofrida.

P/1 – E a sua mãe, ela ficava muito triste? Eles brigavam? Como é que era?

R – Brigar, sim. Eles bebiam um pouco. Isso era no final de semana, eu acho que na semana ele trabalhava. Meu pai, quando ele bebia, ficava meio estourado; a minha mãe, acho que bebia junto com ele, mas a minha mãe não… Ele sim, ele bebia demais. Ela só aquele negocinho, de aperitivo. Depois a gente percebia que eles brigavam, sim. Meu pai é que entrava bem, porque quando saia uma briga de agarrar mesmo, minhas duas irmãs iam em cima dele. Isso eu lembro bem.
Um dia a gente estava jantando. Eu estava aqui, minha irmã estava na frente, meu pai aqui [ao lado]. Eu não sei o que houve ali na mesa, uma discussão séria, ele pegou o prato e jogou na cara da minha mãe. Aí ela abaixou na hora e o prato estourou na parede. “Ah, mas depois avançaram no coitado lá…” (risos) Mas por que? Porque ele era muito bom, trabalhador, mas [quando] bebia um pouquinho ficava talvez alterado. Não é um negócio que eu me lembro. Eu sei que ele, depois de...

P/1 - O senhor gostava dele?

R –

Do meu pai? Gostava pra caramba. Gostava, meu pai... Ele não era ruim, mas depois de adulto costumava beber. Um dia o peguei no bar, eu já era casado. Eles falaram pra mim: “Coroca, seu pai tá meio assim lá no bar.” De fato, eu fui e ele estava ruim. Homem já velho, era viúvo. Eu o levei pra casa e o deixei lá. Mais tarde, quando ele estava bom, dei uma dura nele. Ele jurou que nunca mais ia fazer aquilo, mas depois disso ele não teve muito tempo mesmo pra fazer. Logo ficou doente e faleceu.
Ele já era viúvo da segunda vez. Lembra que eu falei que ele casou e depois a mulher também morreu? Teve uma doença, câncer, sei lá.

Morreu e ele ficou com dois filhos pra criar. A minha irmã mais velha é que o ajudou a criar os dois filhos.

P/1 – Então o senhor ficou um tempo trabalhado de engraxate?

R – Isso. Estudei. Fiquei uns três ou quatro anos, lembro bem, depois eu voltei pra São Paulo. Aí comecei a estudar aqui em São Paulo. [Era] o último ano, naquela época o básico era quatro anos só, hoje são oito anos. Naquela época era quatro anos, depois vinha a admissão ao ginásio, depois o ginásio, essas coisas todas.
Nesse último ano eu estudei e nessa época que eu estudava, olha quanta coisa que eu fazia. Não conheço nenhuma de vocês, é mais fácil a gente mentir pra família, pro parente do que pra estranhos. Então nessa época eu ainda catava minhas latinhas, mas já era menos. Engraxava sapato, mas por que?


Na semana, tinha um senhor, um alfaiate, aí ele falou pra minha mãe se eu não podia trabalhar com ele.

Eu entrei na alfaiataria, estava aprendendo, trabalhava e gostava demais. Era um negócio que eu gostava. Eu entrei lá. Podia também costurar, alinhavar, costurar na máquina. Puxa, pra mim era uma beleza, tanto que quando foi pra eu fazer teste no SENAI eu não queria ir. Eu queria ser alfaiate.
É por isso que eu digo que eu devo depois à minha mãe. A minha mãe é que me obrigou a ficar ali, junto com aquele pessoal todo, pra fazer o teste, ver se conseguia entrar no SENAI. Eu consegui passar e adquiri uma profissão, mas… Aos doze anos então, mais ou menos, eu estava aqui. Fiz o primário, trabalhei um pouco de ajudante de alfaiate, aprendi e consegui depois entrar no SENAI. Aprendi uma profissão e aí fui desenvolvendo. Foi aí que a gente foi melhorando a nossa vida,

porque aí eu também já ganhava. Porque, Ford... Foi pela Ford que eu entrei no SENAI. A Ford pagava o estudo. A gente recebia um ordenado de aprendizado e aquele ordenado a gente encaminhava pra família.

P/1 – O senhor foi aprender o que no SENAI?

R - Ajustador mecânico [era] a profissão. Com o tempo, eu passei a exercer a profissão de ferramenteiro, que é tudo dentro da metalúrgica.

P/1 – Então você entrou pra trabalhar na Ford?

R – Entrei como aprendiz, por fim eu trabalhei um período lá.

P/2 – O seu pai já trabalhava na Ford?

R – Já. Meu pai trabalhou, passou um tempo lá.

P/1 – E a Ford era lá em?

R – Ipiranga… É Mooca mesmo ali, porque fica antes da... Fica na linha de trem.

P/1 – Vocês continuaram morando na Mooca?

R – Sim. Depois, eu estava já no meu último ano de SENAI.

P/1 – E esse barraco, que o senhor me contou? Vocês continuaram lá?

R – Isso. Mas a minha mãe, aí é que é a esperteza... A minha mãe, sem meu pai saber - eu também não sabia que era -, ela ia fazendo uma espécie de

poupança, vamos dizer assim. Não sei como chamava na época. Guardou um dinheiro, escondido do meu pai.
Ela trabalhava, ela e minhas irmãs, em casa, até que uma das minhas irmãs arrumou [emprego em] uma fábrica lá perto de casa. Eu levava a marmita pra ela. Nessa época, meu pai já havia começado a trabalhar na Ford. Ele começou não diretamente na empresa, ele trabalhou lá como ajudante de pedreiro pra construir a fábrica de motores da Ford. Com o tempo, acabaram o trabalho e a Ford admitiu alguns; entre esses, estava meu pai.
Minha mãe começou a vender, começou a ganhar porque na época a Ford pagava bem, até mesmo pra ajudante, e começou a guardar o dinheiro. De repente, ela falou pro meu pai sobre comprar uma casa. Foi onde... Se não fosse ela, a gente... Conseguimos comprar uma casa; eles conseguiram comprar uma casa lá na Vila Ema e é onde… Não nessa casa, mas é o bairro que eu moro até hoje.

P/1 – A Vila Ema fica perto de onde?

R – Depois da Vila Prudente. É Mooca, [depois] Vila Prudente e Vila Ema, nesse sentido. Depois, nesse outro, mais à direita, vem Mooca, Vila Prudente, Parque São Lucas, Vila Alpina.

P/1 – Vocês compraram uma casa na Vila Ema. Já era uma casa de alvenaria?

R – Já. Era uma casa de alvenaria, uma casa nova. Era um quarto e cozinha. Naquela época, a gente morava na Mooca. Morar na Vila Ema, era como, fazendo uma comparação, sair daqui pra morar nos fundos lá de Santo Amaro. As pessoas diziam: “Puxa, mas morar num lugar daquele?” Todo mundo achava “Mas vocês vão mesmo morar lá?” Hoje, a Vila Ema está bem adiantada. Era tão assim que nos fins de semana, em vez de ficar lá eu vinha aqui, ficava aqui na Mooca com os colegas.

P/1 – O que era bom de fazer na Mooca?

R – A gente brincava. Ia ao cinema todo domingo, a gente não falhava matinê. Aqui na Rua Natal tinha um cinema, acho que hoje não existe mais, já faz tempo. A gente ia ali. Toda matinê.

P/1 – O que você gostava de assistir no cinema?

R – Naquela época, não tinha a televisão tão difundida igual é agora, então tinha muitos seriados no cinema que chamavam a atenção da gente. [A] cada domingo a gente assistia um quadro. Continua no próximo domingo, continua no próximo... Então a gente não perdia, procurava não perder nenhum. É como se fosse uma novela, só que num cinema.

P/1 – Era americano ou brasileiro?

R – Americano.

P/1 – Você lembra qual era o herói? Quem era?

R – Olha, tinha… Tinha vários, vários tipos de filmagem. (pausa)

Eu não lembro agora, puxa vida.

Falar pra você o certo...

Tinha uns mascarados... Caramba.

P/1 – Não tem problema.

R – Por exemplo, o Zorro era um seriado de cinema. Era um seriado que passava todo domingo. Depois começou a passar na televisão, mas era de domingo a domingo. Tem outros assim. Não lembro no momento, mas a gente não perdia um.

P/1 – Além do cinema… No fim de semana você gostava de ir ao cinema com os amigos...
R – Era só. A gente ficava na rua batendo papo. Bola não, bola era fundamental. Isso aí...

P/1 – Jogava futebol?

R – Todo domingo a gente estava lá.

P/1 – Tinha terreno baldio?

R – Tinha bastante. Eu quebrei… A primeira vez foi a mão. Nessa época, eu trabalhava na Ford, era aprendiz ainda. Jogando bola eu trinquei esse osso aqui [do pulso]. Movia ainda. E pra falar pra minha minha mãe era ‘foguete’, qualquer pisada na bola ela pegava o cipó e… E eu com aquela mão quebrada. E agora? Disfarcei. Cheguei em casa, quando fui, se não me engano, pegar um copo d’água, senti aquela dor... “O que foi, menino?” Aí já não tinha mais jeito, tive que engessar. Foi a primeira vez que eu quebrei a mão num jogo. Quebrei a perna, me quebrei outras vezes. Mas a gente gostava, futebol era fundamental.
Aqui na Mooca tinha tanto terreno vazio que a gente vivia… Eu vinha de lá pra cá, a gente caçava borboleta, caçava passarinho. Fazia tudo que a criançada hoje não faz, a gente fazia. Tinha a [Avenida] Paes de Barros; indo daqui pra lá, do lado direito dela, onde tem o Juventus, era só mato.

A gente vinha caçar passarinho ali, não era tão longe. Borboleta... Era legal pra caramba.

P/2 – Aqui nesse prédio, o senhor lembra o que era?

R -

Aqui na frente… Não sei se pertence, porque eu passava em frente, era a Santista.

Aqui também era da Santista?

P/1 – Era.

R – Aqui neste cemitério eu vim algumas vezes.

P/1 – Por que?

R – A gente vinha... Dia de Finados, era o único que tinha aqui pertinho. Tinha o da Vila Formosa, mas aqui era mais no jeito pra vir.

P/1 – O senhor vinha pra visitar alguém, pra trabalhar, pra fazer o quê?

R – Não. Só pra rezar, vamos dizer assim.

Não era pra visitar, aqui a gente não tem ninguém. Tem a minha mãe na Vila Formosa, meu pai está na Vila Alpina. A gente vinha como se fosse dar um passeio.

P/1 – Vocês eram... A sua mãe era muito religiosa?

R - Não. Ela não era muito religiosa, ia de vez em quando nesse… Não sei como podia chamar aquilo, acho que é umbanda que fala. Naquela época, a umbanda era bastante difundida, principalmente ali onde a gente mora. Agora já não é tanto. Quando ela pegou o derrame dela, aí chamaram o rapaz, o pai de santo, pra ver se não era algum trabalho aqui - que coisa -

pra ver se não era algum trabalho que foi feito pra ela, mas não era, não. E meu pai era da tal de mesa branca, mas ele nunca foi fanático.

Não tinha posição definida.

P/2 – Conta pra gente, na Ford, então. O senhor virou ferramenteiro?

R – Comecei estudando, entrei na Ford. Agora vou começar da onde eu entrei… Eu chorando ali e minha mãe: “Não agora que nós estamos aqui, vai ter que fazer.” Naquela época, tinha o básico, tinha a admissão ao ginásio, tinha o ginásio. Eu dizia: “Mãe, dá uma olhada nesse pessoal aí. Eu não tenho chance nenhuma.” Lá tinha… Pareciam estudantes de universidade que estavam na minha frente. Minha mãe: “Você vai, você vai.” Fui.
Olha, pra entrar no SENAI era um vestibular, vamos dizer assim. Um negócio... A pessoa que conseguia chegar estava feita na vida. Era muito difícil mesmo. A gente era, mais ou menos, uns trezentos candidatos na Ford. E era tudo eliminatória. Tudo. Você está fora. Eu fui, se não me engano… A minha sorte é que [tinha feito] o último ano de escola havia pouco tempo, então as matérias estavam na minha cabeça, frescas. Justamente o que caía naquelas provas eu havia aprendido no momento. Sei lá se alguma coisa me ajudou. Sei que foi eliminando na Ford, eliminei as provas. No SENAI teve mais duas provas seletivas. Resultado: eu fiquei entre os dez de aprendiz.
Fiz o primeiro estágio. A gente fazia... Era um estágio no SENAI, outro na Ford.

Eram cinco meses no SENAI - não, seis meses no SENAI, tinha um mês de férias e outro na Ford. E assim vai. Isso tudo durou três anos, aí saí do estudo. Não saí do estudo com diploma, já saí profissional. Com o tempo é que a gente vai adquirindo experiência, é que a turma vai… As promoções, fui aprendendo. E eu perdi a oportunidade, quando foi em 67, teve um corte lá e eu… 67, não... Teve um corte lá e eu saí. Depois de dez meses, quando abriram novamente as vagas, eu voltei pra Ford.

Sei que foi um total de oito anos que eu fiquei lá, aproximadamente.

P/1 – Trabalhando?

R – Ferramentas. A última profissão minha, quando eu saí de lá, já era ferramenteiro. Entrei de aprendiz e saí um profissional, na época.

P/1 – O ferramenteiro na época ganhava bem? Como era?

R – Ferramenteiro na época ganhava muito bem. Foi graças a esse começo, nessa época, que eu pude comprar minha casa. Hoje em dia é uma profissão até bem remunerada, mas fazendo uma comparação com a época… Ferramenteiro, naquela época, era como se fosse um engenheiro, vamos dizer assim. Ganhava muito bem mesmo. E as firmas brigavam pra ter nosso trabalho, tanto que a gente recebia carta em casa, convidando pra trabalhar. Trabalhei na Ford, na Volkswagen, na Karmann- Ghia. Naquele tempo tinha a Willis. A gente saía de uma firma, entrava na outra pra ganhar mais. Hoje não, você pega uma firma e nunca consegue ganhar mais, mesmo que trabalhe mais. Naquele tempo, era... Ainda mais a gente que tinha profissão, era uma beleza.
P/1 – Você ficou oito anos e saiu pra outra?

R – Saí de lá e fui pra Willis. Trabalhei em outras firmas.

P/1 – E aí o senhor já estava casado?

R - Tinha, porque me casaram, essa é a expressão. Casaram-me quando eu tinha dezoito anos. Vocês querem que eu conte essa história também?



P/1 -

Ah, com certeza.

R - (risos) No final de 64, eu saí da Ford. Nessa época, eu fiz dezoito anos. Olha a data: dia nove de dezembro. Bom, eu saí. “Já que eu saí da Ford, vamos passear na Paraíba. Quem vai?” Fomos eu e o meu cunhado, inclusive o cunhado já faleceu.

Fomos passear lá. Assim [que] chegamos lá… A minha irmã era ciumenta, muito ciumenta. Ela punha telegrama pedindo pra ele voltar, que a moça estava mal e não sei o quê. Ele ficou um pouco de tempo, uns dois, três dias, no máximo e veio embora. E eu fiquei lá.
Foi em janeiro. Eu estava com dezoito anos em janeiro. Fiquei na casa de uma tia minha e essa tia, dona Jurema, uma senhora, ela tinha junto com ela uma mocinha que tinha vindo do interiorzão lá; veio pra ficar com ela, pra morar com ela, pra ela cuidar. Fiquei conhecendo também essa moça. Não sei se usaram de má fé, de malandragem, sei lá o quê.

Eu sei que eu ficava...
Eu tinha duas tias lá. Jantava na casa de uma, dormia na casa da outra e assim vai. Só que na casa dessa que tinha essa mocinha, eu só almoçava ou jantava na casa. Mas sempre à tarde eu gostava de cochilar, deitar um pouquinho, aí eu ficava nessa casa. Eles saíam e me deixavam sozinho com ela, com essa moça. Ela cozinhava muito bem. Na cozinha era espetacular, até hoje eu estou pra ver um tempero igual ao dela.
Bom, você sabe: um homem, um rapazinho, dezoito anos e uma mocinha de dezesseis anos, sozinhos dentro duma casa. O resultado foi que a gente se envolveu. Não digo [que] se envolveu emocionalmente, negócio de amar... Não, só talvez atração. E essa minha... Eu tinha feito quase nada com ela, e essa minha tia estava tão esperta nesse sentido que, não sei, ela chegou e começou a inquirir a mocinha se tinha acontecido alguma coisa. A mocinha, essas tontas lá do interior, não sei o que falou pra ela. Bom, me chamaram. “Agora você vai ter que casar.”

Assim mesmo. Aí mandaram e escreveram para os meus pais aqui. Resultado: nos casaram.
Casar, você escolhe uma namorada, vai namorar, sem conviver com ela, antes de casar. Com aquele preparo, pensar no futuro. Ali não. Ali foi... Com dezoito anos. Eu me casei [no] dia dezesseis de fevereiro. Com dezoito anos e dois meses, me casar.

P/1 – Lá?

R – Lá.

P/1 – Você ficou lá então?

R – Teve que assinar os papéis. Não, eu me casei, mas logo em seguida eu vim embora. Eu vim pra cá. Escrevi uma carta pra minha mãe. Minha mãe, só pensava nela. Falava que a moça é boazinha, não sei o quê... Acabei vindo com a moça pra cá.

P/1 – Como ela se chamava, a moça?

R – Chama-se Severina.

P/1 – Ela é sua esposa até hoje?

R – Até hoje.

P/1 – Então deu certo ou não deu?

R – Certo em termos. Ela é uma mulher que sempre cuidou da família, dos filhos e do lar. Mas quem se casa nesse tipo de acontecimento, sem possibilidade de escolha… Depois com o tempo vai passando e a convivência faz com que um se aproxime do outro, goste muito, mas não é igual. Então a gente... Eu sempre fui um camarada não de coração ruim, então muitas vezes a gente tem vontade de fazer certas coisas e o coração fala: “Não, fica aí. Deixa assim.” Estou assim até hoje. (risos)

P/1 -

Quantos ela teve? Quantos filhos vocês tiveram?

R – Nós tivemos... [tosse] Acho que é falta de bala, né?

P/1 – O senhor quer que eu lhe dê outra água? Alguma coisa?

Será que não é

garganta seca? Eu vou lhe dar. Espere um minutinho.

(pausa)

P/1 – Bom, o casamento foi lá. Como é que foi?

R – Foi lá. Só que como João Pessoa é a capital, pra me casar em João Pessoa era meio difícil pra eles. Meu pai estava aqui, minha mãe estava aqui. Eu tinha dezoito anos, era menor, então o que fizeram? Foram até Santa Rita, que é uma cidadezinha tipo… [Como se] a gente estivesse aqui e fosse pra Santo André… Pertinho [como] São Caetano. Foram pra Santa Rita, arranjaram lá dois homens, o escrivão, cartório, como se fala, aí acertaram tudo e marcaram o casamento. A minha mãe precisou mandar dinheiro pra mim, para o meu casamento lá.

Então a gente… Alugamos uma perua, fomos até Santa Rita, que era pertinho, casamos e voltamos.
O nosso casamento tinha... Santa Rita era um lugarzinho pequeno e tinha garrafa de guaraná - esse meu tio trabalhava numa fábrica de bebidas, existe até hoje lá. Tinha um litro de vinho de caju. Eu não bebia. Um litro de vinho de caju, uma meia dúzia de guaranás e um bolinho que não sei nem de onde apareceu. Mais nada. Só a festa. A gente foi ficando pelos cantos lá.

P/1 – Você estava triste no dia do casamento?

R – Olha, pra falar a verdade, acho que eu nem sabia o que estava fazendo.

Verdade mesmo.

P/1 – E ela, estava contente?

R – Também não... Não dava pra se perceber na… A gente era dois meninos. A gente era… Puxa vida. Eu, baixinho, pequenininho, com dezoito anos, tinha cara até de ter menos naquela época. Era cara de bem mais novo e ela também. A gente se conheceu bem pouco. Nem sabia… Naquela noite que nós casamos não sabia se ia dormir na minha tia ou ficava dormindo com ela. É verdade, naquela época era assim. Até a gente se firmar, puxa vida, foi longe.
Bom, vocês vão achar que é papo furado, que é mentir demais). Verdade verdadeira, o que eu vou te falar. Pra eu ver a minha esposa sem roupa, demorou muito tempo, porque [quando] ela ia se trocar, ela apagava a luz pra eu não vê-la sem roupa. Não é mentira, não. Ela apagava a luz, até a gente se acostumar com a presença da gente - da gente não. Eu, por mim, não tinha problema, mas ela era muito retraída. Só depois de um certo tempo foi que ela perdeu a vergonha. É verdade mesmo.
Mas casamos, viemos pra cá e eu só vinha no caminho pensando: “Pra aguentar a barra aqui…”, por causa da família. Veja bem, dezoito anos e dois meses, estava desempregado, tinha saído da Ford, estava na idade do exército, não estava livre. Tinha pegado a… Tudo isso aí.


No começo, minha mãe, ela. Ela não queria saber, maltratava um pouco a minha esposa, achava que ela era culpada. Até quando nasceu minha primeira filha, a Vera, aí mudou. Quando nasceu a minha filha, então… Nossa, ela ganhou uma netinha, né? Aí mudaram as coisas, começaram a se dar bem e começou... Nessa época eu já tinha também arrumado emprego.
Por várias vezes a minha mãe falou que eu tinha que voltar. Voltar pra quê? “Você vai ter que voltar e já que você casou com ela, vai ter que conviver com ela lá, que aqui…” Era assim. Foi duro mesmo.
Foi um começo de casamento terrível. A gente dormia no sofá na sala de casa com aquele... Hoje em dia o pessoal usa bicama, naquele tempo era sofá-cama, arrastava e abria. Não sei se ainda tem esse sofá hoje. Aquilo era nossa cama.

Até que eu voltei pra Ford, comecei a ganhar um salário mais ou menos, porque já era um profissional naquela época. Voltei não como ferramenteiro, voltei como ajustador de ferramentaria. Aí comecei a ganhar dinheiro e construí no fundo da casa de meu pai, no terreno; construí um quarto e cozinha que até hoje está lá, só que é minha irmã que mora. Aliás, agora é meu sobrinho que mora. Minha irmã mora na frente. Eu fiquei uns seis anos morando no quintal com eles, depois consegui comprar uma casa. Começando a ter vida realmente de casado.
Ela, a minha mulher, foi criada no sertão, lá no nordeste. Ela não sabe ler. Pra eu casar com ela, logo de cara, ela não tinha registro de nascimento, teve que tirar o registro dela. Esse nome de Severina era Silva Souza, não era Severina da Silva. Não sei nem se esse nome dela era esse mesmo, de nascença, aí colocou esse nome nela e ficou com meu sobrenome Souza. Bom, ela não sabe ler nem escrever. Até hoje ela... Foi no Mobral, foi pra cá, foi pra lá; numa época que eu estava bem, eu pagava uma mocinha pra ensinar pra ela, mas nunca conseguiu aprender. Ela sempre... Eu a trouxe de lá pra cá, veio comigo. Quem ela tinha de familiar? Só nós, então qualquer coisa assim, ela ficava… Sempre com dó dela. Mas aí ela não foi.
Hoje eu durmo na sala, ela dorme lá no quarto. Estamos levando esse tipo de vida.

Mesmo assim, eu acho que se sair, se for morar em outro lugar, mesmo com os filhos todos, ela vai ficar assim, sei lá, acho que doente. Ela é muito dependente - na parte material, a parte afetiva, isso aí ela… Não tem nada a ver.

P/1 – Não?

R – Não. Ela foi criada lá no sertão. Eu sempre... Quando ia fazer algum carinho pra ela, eu dizia: “Só eu que faço carinho?” Ela falou que foi criada assim, naquela rudeza. Nesse sentido é que estraga tudo. No sentido material, de cuidar da casa, isso ela cuida.

P/1 – Ela é pouco carinhosa.

R – Coisa nenhuma.

P/1 – Nada carinhosa.

R – Sempre cuidou muito bem dos filhos. Nós tivemos quatro filhos, três homens, três mulheres e um homem. Depois nós adotamos uma mocinha, hoje ela é uma mocinha. Adotamos uma criança, a gente não sabia se ia ser homem ou ia se mulher porque a moça estava grávida ainda. Como nasceu uma mulher, chama-se Érica, hoje está com quinze anos. É o xodó que eu tenho na casa, talvez seja ela que mais me segura lá. Temos quatro filhos biológicos, essa menina, essa mocinha maravilhosa.

P/1 – E porque vocês a adotaram?

R – A gente estava na igreja e uma conhecida nossa disse: “Olha, gente, mora uma moça na casa de minha irmã, ela tem um filho. Ela não tem onde morar, fica lá com minha irmã, dorme no chão. E ela vai ter outro filho, tá grávida.” Ela falou: “Puxa vida, quando nascer ela vai dar, se alguém não quiser vai dar pra FEBEM.” Não sei como chamava na época, FEBEM, né?

“Não tem condições.”
Minha esposa falou: “Vamos lá fazer uma visita pra ela?” “Vamos.” E de fato, quando chegou lá, a moça dormia mesmo no chão. Tinha um pequeno, acho que não tinha um ano ainda. Puxa vida. Ficamos com dó da moça e resolvemos adotar assim que nasceu. Foi lá no hospital Beneficência Portuguesa, no centro. Veio direto pra nossa casa.
De toda história da minha vida, a parte mais contente que eu fiz, que eu me apliquei mais… A melhor coisa que eu fiz na minha vida foi adotar essa moça - hoje moça, claro. Ela é espetacular. Amorosa, inteligente. Ela é tudo lá, é um amor de moça.

Então a gente... Bom, a minha outra filha, logo depois dela, está com 21 anos - 21 ou 22, sei lá. Já é casada também.
Um amor de menina. Moreninha, alta, magrinha. Muito inteligente, quietinha, estudiosa. Eu falo pra ela, com a inteligência que ela tem, a sabedoria... Ela faz até peça pra teatro em escola, fez uma peça lá. Teve um concurso, a peça dela foi escolhida. Eu falei pra ela: “Com a inteligência que você tem, tudo isso, todos os predicados que você tem, caiu na família errada.” Se eu tivesse condições de manter estudo pra aquela moça, era uma inteligência que ia ser bem aproveitada.

P/1 - Me conta. Você ficou trabalhando na Ford, Volkswagen, Karmann Ghia como metalúrgico e ferramenteiro. E aí você parou? O que aconteceu? Hoje você não trabalha?

R – Hoje eu [me] aposentei. A última firma era na Vila Ema mesmo, chama-se Luciflex. Trabalhei nessa firma [por] doze anos. Teve um tempo que essa firma saiu da Vila Ema e foi pra Bragança Paulista, onde está até hoje. Eu fui pra lá. Fiquei quatro anos lá, já aposentado. Mesmo assim, fiquei quatro anos lá. Eu tinha... Era líder de setor, eu fiquei. Agora em setembro vai fazer um ano que eu saí da firma. Nunca tinha trabalhado na rua, nada.


Quando eu saí a firma começou a cair, tiveram que dispensar pessoas, gerentes; pessoas que ganhavam um pouquinho a mais que os outros, pra diminuir o custo. Eu saí também, aí um vizinho falou: “Você quer vender cachorrinho comigo?” Aí pronto, aqueles cachorrinhos [foram] a salvação. Não aguento ficar em casa. (risos) Não estava acostumado.

P/1 – Aí você começou a trabalhar vendendo cachorrinho?

R – Foi.

P/1 - Você pega o cachorrinho e onde você trabalha? Como é que começou? O primeiro dia.
R – O primeiro dia eu os acompanhei. Onde foi o primeiro dia? Não lembro que bairro que a gente foi no primeiro dia. Puxa vida, que cabeça, não? Mas foi num bairro longe, porque eles iam muito longe.
No começo, eu andava, andava e não vendia nada. Só andava. Depois eu fui pegando a rédea até sair sozinho, fazer os pontos. Até um que tinha aqui na Mooca mesmo, ali onde você conversou comigo o pessoal já está acostumado comigo ali, só que eu venho só duas vezes na semana.
No começo eu andava muito, eu já fui vender cachorrinho no Rio de Janeiro. Esse ano mesmo fui; não assim, direto. Dois meses vendendo, desde janeiro até o dia de carnaval. Ia de quinta feira, viajava à noite. Ficava sexta, sábado, domingo e segunda feira à noite eu vinha. Vendia bem lá, vendia na praia. As pessoas tudo comendo camarão, tomando cerveja, eu oferecendo cachorrinho.

P/1 – Vendia bem?

R – Vendia ainda mais caro que aqui, só que acabou o verão... Eu não quis mais ir pra lá. Um outro rapaz, aqui da vila, faz lá.

P/1 – Porque o senhor não gostou de ir pro Rio?

R – Vendia bem, ganhava bem, agora a despesa era alta. Com hotel, com comida, com tudo isso, então metade do que a gente ganhava ficava por lá. Despesa e longe do pessoal também, então não compensava muito, não.

P/1 – Onde os senhores pegam os cachorrinhos?

R -

Numa fábrica que tem lá em Santo André, que eu não sei... Eu sei mais ou menos a localidade, não é que eu não queira dar o endereço. O rapaz telefona pro dono, ele vem trazer. Ele traz os cachorrinhos e esse rapaz, vizinho meu, que está no Rio hoje, traz ali. E ali eu vou, à noite pego os bichinhos pra vender no outro dia. Eu pego na noite, vendo durante o dia, na noite eu acerto. É uma consignação que a gente faz. Os que eu vendi hoje… Daqui a pouco eu vou passar lá, não passei ainda porque tive que vir pra cá. Acerto, aí o homem... Eu pego mais e vou trabalhar.

P/1 – Tem dois pontos na Mooca?

R – Eu trabalho no metrô Conceição. Trabalho em Santo Amaro, na Mooca e São Judas. De vez em quando eu vou pra Guarulhos, mas não é sempre, porque a concorrência lá é um pouco grande.

P/1 – Como você escolhe os lugares onde você vai trabalhar?

R – Pela movimentação de pessoas. Pelo comércio.

P/1 – Você vai andando assim...

R - Eu vou. Por exemplo, eu vou pra Água Rasa. Chego lá na Água Rasa e vejo onde tem os pontos comerciais. Bom, os outros andam muito, mas eu não posso. Com mais de cinquenta anos não posso andar tanto, que nem eles. Eu vejo um ponto comercial que tem movimento de pessoas, escolho um ponto e fico ali com a bandejinha na mão, esperando o pessoal passar e se interessar pela mercadoria.

P/1 -

Em qual lugar você consegue fazer mais? Qual é o seu melhor ponto?

R – Agora é a Conceição. Conceição e Santo Amaro, quando é de sábado. Ou então sexta e sábado, [é] muito bom. [Às] segundas-feiras aqui na Mooca, eu vendo bem. Os caras falavam: “Segunda feira é um dia meio parado.” Um dia eu vim marcar uma consulta pra minha esposa e disse: “Quer saber de uma coisa, eu vou levar os cachorrinhos.” Peguei logo a [Avenida] Paes de Barros desde o começo e vim andando; parei na Mooca e vendi tudo, aí comecei a vir de segunda feira. Hoje eu trabalhei duas horas e pouco só, na hora que eu ia começar a vender bem eu vim pra cá. (risos) Vou ter que pagar isso à noite.
Já vendi acho que uns oito cachorrinhos. Eram pequenos, cavalinhos. Acho que uns três desse etezinho, negocinho… Se eu fosse até mais tarde, talvez vendesse mais. Só que, lógico, não é toda... Todos os dias do mês que é assim.

Por exemplo, do dia um ao dia quinze eu tenho que ganhar pra cobrir os outros quinze dias, porque nas semanas, nos dias finais do mês ninguém tem dinheiro. O pessoal só acha bonitinho, mas ninguém compra. Agora não. Nessa terra, até o dia quinze, que é amanhã, ou talvez até na segunda feira, eu tenho que aproveitar. Hoje eu pedi quarenta cachorrinhos pra mulher lá, é pra vender amanhã. Não vou conseguir vender os quarenta, mas pelo menos eu tenho um bom volume pra trabalhar.

Tem dia, por exemplo, dia 27, 25... 22. Esses dias vendo seis cachorrinhos, coisinha pouca mesmo.

P/1 – Quem compra mais os cachorrinhos? Tem um público certo?

R – Geralmente são pessoas de uma faixa etária mais... Da minha idade, faixa de uns quarenta, cinquenta anos. Pessoas que já tem neto. O jovem mesmo é um pouco mais difícil, são pessoas mais veteranas, tanto homem como mulher.
Os homens, eles compram mais pensando em colocar no carro. Esses cachorrinhos, eles colocam muito naquela parte de trás do carro ou no painel; quando o painel é reto, eles põem um pequenininho, mas geralmente [fica] atrás, o grande. Eles falam assim: “Esse é aquele cachorrinho que a gente põe no carro?” “É.” Eu falo assim, na brincadeira,

“É e ano que vem vai ser um equipamento obrigatório.” (risos) Uma brincadeira. E as mulheres compram pra pôr nos móveis, falam que é porta-jóias.

E as vezes é pra dar de presente, muitas vezes [pra] o marido colocar no carro ou pros netos. E assim vai, mas são as pessoas mais de idade que compram.

P/1 – O senhor gosta de ficar vendendo esses cachorrinhos?

R – É a melhor coisa que eu fiz. [É] assim, que nem uma terapia. É cansativo, mas… Que nem eu falei pra Bárbara, vocês não estão com o rascunho dela aí não? Estão? Não sei se ela escreveu aí.
Eu já tenho a família já formada, todo mundo já encaminhado. Já aposentei, não tenho mais... Dificilmente uma firma emprega pra aproveitar a minha experiência como metalúrgico. [É] muito difícil, então não tem mais…Vamos dizer assim, eu não olho mais o futuro como sendo algo esplendoroso. Não, não olho mais nada. Pra mim o futuro acabou, então o que me mantém vivo, o que me mantém com ânimo, é esse trabalho que eu faço.
Se eu não fizer nada, acabou. O que é que eu vou esperar mais da minha vida? Eles falam: “Não, o senhor é novo.” Agrada a gente ouvir isso, mas sendo realista mesmo...
Os cachorrinhos me tiram esses pensamentos. Não estou me dando bem com a minha esposa, então eu fico o dia inteiro com os cachorrinhos e vai. Se não fosse isso, não sei o que eu estaria fazendo da minha vida hoje. Eu passo meu dia com isso, se vender, se não vender...
A gente escuta muitas histórias. O pessoal vem, gosta, conta isso: “Olha, preciso comprar um desses porque meu pai...” São histórias que as pessoas contam. É tanta história pra lá, pra cá, que eu acabei contando minha história pra uma pessoa na rua, vendendo cachorrinho.

P/1 – O senhor também é um bom colecionador de histórias, não?

R – Também. Escuto, escuto. Às vezes pessoas de mais idade vêm, tem que ter aquela paciência de ouvir. Eu tenho, [elas] vêm falar. Tem pessoa que até chora, ocorre isso. Ou diz: “Olha, eu vou comprar um desse aqui com sentimento. O senhor sabe. Eu tenho um cachorro…” Um cachorro, puxa vida, não é que o carro matou o cachorro dela? Aí compra aquele bichinho pra levar porque o carro matou. São coisas assim que a gente escuta. E muitas vezes a gente [se sente] gratificado, mesmo ganhando pouco dinheiro, sabendo que aquela pessoa tá levando uma coisa [que valha] talvez muito pra ela, vai ajudar em alguma coisa.

E assim vai… [São] as histórias que eu escuto.



P/1 – Dá dinheiro isso? Junto com a aposentadoria está conseguindo viver, não está?
R – Não. Conseguindo viver estou, mas... Veja. Vou contar a história atual. Mas é rápido, o filme já deve estar quase no fim.

P/1 - Vamos fundo que o silêncio está ajudando!

R – As minhas filhas não deram muita sorte. Tem uma que mora lá em Campinas. Porque ela foi lá pra Campinas? Porque ela se juntou com um rapaz aqui. Ela já tem uma filha que é a gente que cria - essa mais nova, depois eu falo da outra. Arrumou esse rapaz aí, se envolveu com esse moço e nasceu mais um filho. E o cara era desempregado. Ela também nunca fez nada. Eles moravam de aluguel, eu era o fiador deles. Eles não tinham como. E passa de emprego, pra cá, pra lá.
Bom, eu tenho uma tia que mora em Campinas. Lá tem um quarto e cozinha no fundo, disse que deixa a gente lá até a gente se firmar, então… Só que... Eu é que envio o dinheiro pra eles sobreviverem, porque lá ele arrumou um bico de vigia, vigilante, sei lá, pra ganhar vinte reais por noite, só de final de semana.
Telefonei pra minha filha: “Se é pra estar assim, vem pra cá. Dorme com a gente e comida tem.” Pra provar pra vocês, eu estou com o recibo aqui do dinheiro que envio pra ela. Ganho dinheiro com os cachorrinhos, envio dez reais num dia, dez no outro.
Quando foi quarta feira… Aquela primeira filha que a gente cria, ela é separada e o rapaz dá ajuda. Não é ajuda de custo, como é que é?

Pensão. 120 reais de pensão. Então, ela lá, com o outro rapaz, contando com esses 120 reais que o moço ia dar todo dia dez, arrumou algum cheque emprestado, sei lá, de oitenta reais. No dia dez o rapaz não apareceu em casa pra trazer, pra eu depositar pra ela. Minha esposa foi lá com minha outra filha [e ele disse]: “Olha, estou desempregado, só na semana que vem.” E agora esses oitenta reais pra cobrir o cheque da mulher? Adivinha quem deu? Estou contando isso aí pra você ver porque esse dinheiro não dá.
Eu tenho uma outra filha que tem uma outra filha. (risos) Uma filha, outra filha... (risos) Só tem mulher em casa. Também nós criamos a Karina, a outra neta. Tem treze anos. Essa aí também vou contar. Agora também arrumou outro, um cara, e tem outra filha, só que esses moram dentro da minha casa mesmo. (risos) Arrumamos um... (risos)

Como é que chama? Mutirão, lá pro lado de Itaquera, fim de mundo. A casa nunca fica pronta. Inclusive hoje falei pro rapaz: “Hélio, sei que você também [está] numa pior aí…” Ele trabalha agora, os dois trabalham, só que ela trabalha de quinta, sexta, sábado e domingo. Ela é caixa de um supermercado lá perto mesmo, [um] supermercado que tem algumas filiais. Eu falei: “Hélio, precisa mês que vem ajudar a pagar a conta de luz.” Eu estou com duas contas de luz atrasadas. Uma é pra pagar agora de vinte e oito reais, porque o mês passado não deu pra pagar. Em casa são duas netas que eu crio. Adotei as duas netas, as duas me chamam de pai, pai mesmo, desde pequenininhas.
Essas duas são as filhas que dão mais trabalho, porque a outra, a Vera, que mora nos fundos... Casou, dei uma força pra ela. Ela mora no fundo também, leva a vida dela. E tem meu filho também, esse é o único que está firme. A mulher dele trabalha num... [Ele é] auxiliar de farmácia, trabalha no Hospital Cruz Azul. Ela é enfermeira, trabalha no Bandeirantes e ele trabalha no Cruz Azul da polícia, do governo.
Se os outros fossem isso aí... Eu falo pra elas: “Puxa vida, as pessoas se casam…” Por exemplo, os homens se casam hoje, tem a mulher, ela vai pra casa deles ou arrumam casa; vocês [se] casam e trazem os outros pra cá. O pior é que não ajudam em nada.
Bom, deixa pra lá, lavar em casa a roupa [suja]...

P/1 – Então está apertado.

R – Tá. Conta atrasada. (risos) Tem uma carta urgente do Banco Itaú. Tá escrito aqui: “Os cheques abaixo indicados, de sua emissão, foram devolvidos e o seu nome poderá ser incluído no cadastro.” Meu cheque era três estrelas do Itaú. Continua sendo, mas não tem dinheiro pessoal. Protesto.

P/2 – Moram quantas pessoas atualmente na sua casa?

R – Já falo pra você. Aqui são os recibos do dinheiro que eu deposito pra minha filha. Dez reais... Oitenta, que eu depositei outro dia. Isso minha esposa não sabe. Eu protejo os filhos por debaixo do pano.

P/1 – Ela não acha boa ideia?
R – Ela acha que eu estou tirando dela pra quem não precisa, mas precisa sim. Pra ela falar: “Puxa vida, se elas arrumaram marido, pra que é então?” (risos) “Isso é pra você alimentar marido.” Tem outra conta, essa conta aqui. A outra que veio agora é de 115 reais.

P/2 -

Nossa, mas é alta.

R – É porque moram em duas casas.

P/1 – Então na sua casa agora moram três meninas, três netas e a filha com o marido.

R- É. A filha com o marido e as duas filhas: quatro. Eu, a dona Severina, a Érica, que é a adotiva, mais a Patrícia. Oito... Sete...

P/1 – E lá atrás mora...

R – Lá atrás mora minha filha, com o marido e dois filhos. Doze. Ele trabalha, ele é policial. Nunca teve… Até nisso eu dou azar, um policial honesto. (risos) É Polícia Rodoviária, o cara. Está lá, mas quem está cuidando sou eu.

P/1- Tá confuso. Bom, deixa eu te fazer uma pergunta agora pra gente finalizar. O que você gostaria de fazer agora na vida? Qual é o seu sonho?

R – Meu sonho, se eu pudesse, se alguém me desse uma oportunidade, voltava a trabalhar na profissão minha. Só isso, mais nada. Não queria mais nada. Essa é uma coisa que eu queria. E acabar com todas as dívidas que eu tenho, que não me deixam dormir de noite. Não são muitas dívidas, são diversas, com 1500 reais eu zerava tudo. Mas a gente não é acostumado a ter esse tipo de cobrança. Isso me fere, me magoa, sabe? Eu não tenho como ver isso aí.
Voltar àquilo que eu fazia antes e gostava. Fazer ferramentas, limar, coisinhas que eu fazia. Só isso. Não queria ter mais nada. Carro, nunca. E ver, principalmente, tudo isso é pra ver... Essa minha filha Érica ter um futuro melhor que as outras tiveram. Ela tem cacife pra isso - não é cacife que fala, cacife ela não tem. Ela tem dom pra ter uma pessoa muito boa na vida, porque é…. Só se vocês conhecessem, falo mesmo como puxa-saco de filho. Eu não falei nem um pouquinho bem das outras, das legítimas. E se eu conseguisse, sei lá, ganhar uma bolada de dinheiro, alguém deixar uma mala aqui, que nem nas novelas… Mas, infelizmente…
Mais nada. Eu usei uma expressão pra Bárbara: “Bárbara, acho que eu não tenho mais tesão na vida pra nada.” E é verdade. Se eu parar de vender cachorrinho, eu vou fazer o quê? Nada, nada, nada. Eu sempre chego em casa, vocês podem inclusive telefonar pra minha casa, eu dou o número do telefone. Que hora que o seu João se deita? Que hora que ele levanta? Depois você confirma. Eu chego, tomo banho, janto e cama. Todo dia. Domingo cedo eu vou à missa ou vou à tarde, às vezes levanto um pouquinho mais tarde e não dá tempo de ir.
O tempo que eu jogava bola… Eu jogava bola, depois quebrei o pé, faz uns cinco anos [que] quebrei esse pé aqui. [Jogava] futebol de salão. A quadra você deve conhecer, se mora em Sapopemba. Fui na quadra lá do gordo, não sei se você já ouviu falar, Kalil Mamede. Fiquei internado no Hospital da Vila Prudente. Depois disso parei de jogar bola. Era a paixão que eu tinha, gostava de jogar bola. E aí acabou. “Aqui jaz”, não tem mais. (emocionado)

P/2 – Tá bom então.

R – Acabou?

P/1 – Acabou. Obrigada.