Museu da Pessoa

Um ato de amor materno

autoria: Museu da Pessoa personagem: Marina Mendes Rocha

Museu aberto
Entrevistado por Imaculada Lopes e Sônia London
Depoimento de Marina Mendes Rocha
São Paulo, 2407/2004.
Realização: Museu da Pessoa
Transcrito por Maria Christina de Almeida Macedo.
Depoimento MA_HV086
Transcrito por Maria Christina de Almeida Macedo
Revisado por Fernanda Regina


P/1 – Dona Marina, para começar, gostaria que me dissesse seu nome completo, a data e o local que a senhora nasceu.

R – Marina Mendes Rocha, nasci em 25 de janeiro de 1937, em São Paulo.

P/1 – Em São Paulo, na capital?

R – Na capital. Precisamente no Jardim Europa.

P/1 – A família toda da senhora é aqui da capital, dona Marina?

R – Sim.

P/1 – Tanto por parte de mãe, como por parte de pai?

R – Os pais dos pais, os primos e tios eram de Santos, mas todos são daqui de perto.

P/1 – Como se chamava o pai da senhora, Dora Marina?

R – Pedro Mendes e a mamãe, Rosa Mendes.

P/1 – Da família do seu pai, a senhora conhece um pouco da história?

R – Ah! A história não muito bonita. Papai viveu sozinho, sozinho entre aspas, foi criado sem pai e sem mãe. A mãe dele morreu quando ele tinha seis meses em um acidente derretendo cera. A cera caiu por cima dela e ela não sobreviveu. E aos dois anos de idade, faleceu meu avô com a doença de febre amarela, que houve no passado. Então, papai foi criado com irmãos que eram pequenos, com alguns tios e até em conventos de padres. Então era assim, um pai enorme, com um metro e noventa, e forte. Era uma fortaleza realmente. Mas de sentimento ele era meio bruto, parecia uma pedra, embora o nome dele fosse Pedro, era uma pedra que não foi polida. Ele foi muito austero, muito bravo. E só depois de adulto é que fomos entender o porquê dele ser assim, pois se não recebeu, não podia dar o que não tinha. Ele não recebeu carinho nem atenção porque cada dia ele estava em um lugar com pessoas estranhas. Ele era o caçula de três, de mais duas irmãs, então eu acho que do pai me ficou isso: aquela fortaleza, aquele homem rude, mas também porque não recebeu muito pra dar.

P/1 – Qual era a profissão dele, dona Marina?

R – Pedreiro.

P/1 – Pedreiro?

R – Pedreiro (risos). Pedra...

P/1- E a senhora lembra dele?

R – Sim. Ele morreu há pouco tempo. E morreu com 83 anos, mas assim: em pé, sabe? Um homem que nunca ficou doente. Teve nove filhos. Todos tremiam quando ele chegava. Quando chegava em casa, ele punha os dedos na boca e dava um apito forte, um assobio muito forte, e saiam os nove filhos de onde estivessem. Saiam porque o pai havia chegado. Porque ele queria todo mundo lá em casa. Então ele não queria saber se você estava no vizinho. Era uma rua muito tranquila, as casas ficavam abertas com porteira, e tudo. Todo mundo entrava na casa do outro, era quase um campo do que um bairro antigo. Era bem espaçoso. O Jardim Europa estava nascendo naquela época, então bastava ele assobiar e saía um daqui, um de lá, outro de acolá. Chiiii... Saíam correndo porque o pai chegou, né?

P/1 – E depois que reunia a família acontecia o quê?

R – Ah, quando ele chegava cada um tinha uma tarefa. Um ia buscar o jornal pra ele, a mãe já punha uma bacia enorme no chão pra lavar os pés dele, calo, essas coisas, porque trabalhava com pedra. E acho que ele ressentia. Tinha muitos calos nos pés, então ele queria aquela água quente que a mãe punha junto com vinagre e sal. Ele sentava ali, batia o pé e os lavávamos. Ficávamos mexendo nos pés dele por algum tempo até a água esfriar. Ele ali com o jornal, e outro enxugava. Ele queria todo mundo por ali (risos) cada um estava ali pra atender. Então é uma doce lembrança essa.

P/1 – E ele casou cedo com a mãe da senhora? A senhora sabe?

R – Ele tinha 25. A mamãe tinha 16.

P/1 – E como eles se conheceram?

R – Ah, essa historia a gente perdeu. Ele foi uma pessoa esportista. Temos fotos e medalhas de ciclismo dele. Ele jogou futebol, até chegou a se apresentar em profissional como futebolista. Depois à medida que a idade ia vindo, ele foi mudando os esportes mais pra belle bocha. Enfim, não parou. Ele não parou de fazer alguma coisa nesse aspecto. Até no fim era dominó e baralho porque já não tinha mais força pra esporte. Mas foi bastante interessante o tipo de vida dele. Curtiu bastante, caçava passarinhos na juventude, mais velho começou a pescar, fazer pescarias. Era um homem muito ligado à natureza. Eu acho que isso passou pra gente porque eu também gosto muito. Tenho uma ligação muito forte com a natureza, com animais. Então me lembro dele trazer tatu pra mamãe cuidar, fazer, preparar pra ele o tatu que ele ia caçar com um bando de cachorros que ele tinha (risos).

P/1 – Ia caçar aonde, dona Marina?

R – No morro ali onde é hoje o Brooklin. Brooklin não, perdão. Morumbi. Aquela subidinha ali do Morumbi.

P/1 – Atravessava o rio?

R – É, passava para o lado de lá do rio, ali não existiam casas, então era ali onde a vegetação era baixa, não era floresta, era rasteira, é que ele ia com os cachorros buscar, procurar os tatus e etc (risos).

P/1 – E a senhora acompanhou alguma vez uma dessas caçadas?

R – Não, não. Não cheguei a acompanhar porque dos nove eu estou no meio, têm quatro pra cima e quatro pra baixo. Então uma coisa que ele nunca quis foi que os filhos andassem atrás dele. Era uma dessas coisas de homens. Então os homens é que iam. E por conta também que a mamãe nunca saiu. Uma pessoa que viveu só para casa e para os filhos. Então ele ia com os amigos. E trazia o produto da pesca ou da caça.

P/1 – A pescaria, onde é que era?

R – Em vários rios. Um pouquinho mais pra Embu e Itapecerica, que eu não sei onde eram, e Buguaçu. Ele falava alguns nomes. Não eram muito longe, mas alguns amigos iam e se juntavam. Ele nunca ia só, ia com quatro, cinco.

P/1 – A senhora falou que sua mãe se casou aos 16 anos. A senhora conhece um pouquinho da história da família de sua mãe?

R – Sim. Vovó e vovô vieram da Itália como imigrantes. Foram pra Bragança trabalhar em fazendas, acho que de café. Acho que todo imigrante passou por essa experiência. O que ela contou pra gente dessa fase é que ela morria de medo, que nunca tinha visto negro na Itália. Eu acho que foi nessa época que os escravos se libertaram e foram fazer serviços para os italianos. Alguns ainda ficaram em fazendas, não sei. Então ela dizia que morria de medo daqueles negros que ela nunca tinha visto. Era jovem ainda, acho que 22 anos, quando ela veio pra cá. Veio casada sem filhos. Ela foi com o vô para as fazendas, e conta que tinha medo deles. Porque nunca tinha visto pessoa negra, pensava que era mais bicho do que gente (risos). Não sei o que passava pela cabeça. Depois com o tempo acho que se libertaram das fazendas, conseguiram algum dinheirinho. Então vieram pra São Paulo e o vô começou a trabalhar em olaria fazendo tijolos.

P/1 – A senhora sabe onde?

R – As olarias eram onde hoje tem a comporta da Light, perto do Rio de Pinheiros na central ali. Dão pro fundo ali do Brooklin, final do Blooklin lá pra baixo. Ali que eles faziam os tijolos, entre o Brooklin, aquele pedaço. E ele comprou e construiu em um terreno onde é o Jardim Europa. Hoje é a nossa casa, a casa da mamãe, que ainda pertence à família.

P/1 – Que rua que é, dona Marina?

R – Rua Prudente Correa, hoje. Muito conhecida como Vila das Cabras porque todas as famílias, e tinham oito ou dez famílias no local, criavam cabras, inclusive a vovó. E mamãe também passou a cuidar de cabras porque era o leite para as crianças em casa. Então fomos criados todos com leite de cabra (risos) e eu morro de saudade de um leite forte, gostoso. Esse avô também morreu cedo. E ficou a vovó com seis filhos: três homens e três mulheres pra cuidar além da casa, e da chacrinha que o vô tinha deixado. A vó parece que endoidou um pouco por conta da falta que ele fazia porque esse avô era extraordinário pra ela, companheiro, e morreu muito cedo. Mamãe conta que ela levou uns dois anos pra se refazer da perda, que ela não assumiu mais a casa. Como o vô tinha alguns porcos também para o uso da casa, ela começou a ter que pagar as dívidas que ia fazendo com os porcos, porque ela não trabalhava e não tinha o que receber. Ela começou a desfazer do que ele tinha conseguido. Até que os meninos começaram a trabalhar, os filhos mais velhos, e ajudaram a vó. Quando a mamãe casou, nós fomos morar junto com a vó no quartinho do fundo. A vó tinha dois dormitórios nessa casa, ela ficou com um e a mamãe ficou morando no quartinho do fundo. Alguns filhos já tinham saído de casa. Papai construiu uma cozinha pra ele e mãe; e a vó ficou na frente da casa. Eu tinha 17 anos quando ela se foi. A lembrança que eu tenho dessa vó é assim: o que havia de mais doce em vó, eu acho que a minha tinha. Tanto que quando se fala em avó, doçura, ternura, essa vó foi. Tinha a mamãe que manter a casa, dar de comer para os nove filhos. E papai era pedreiro, então quando chovia, não trabalhava. Às vezes inventava uma pescaria no meio da semana, que pra ele era prioridade. O dinheiro era curto pra cuidar de nove. Então a mamãe supria essa parte, que acho que até passou pra gente: ir buscar. Quando você não tem, você vai ter que buscar, fazer, fabricar. Ela tinha galinhas, então tínhamos ovos e frango pra comer em casa. Cuidava da cabra que tinha o leitinho pras crianças. Ela tinha na chácara um quintal grande onde que ela fazia horta, que tinha verdura e frutas. Algumas bananas, laranjas tinha nessa hortinha. Não era muito grande, tinha 40 metros. Mas ali ela tinha um pouquinho de cada coisa. Então tinha fruta, verdura, galinha e cabra. Tudo nesse pedaço ela cuidava. E por conta de tudo que ela tinha que fazer para aquilo virar alimento, os filhos ficavam na rua brincando, soltos, livres. Os mais velhos iam ajudando, iam regar as plantinhas. Os pequenos ficavam por conta das irmãs mais velhas que também saíram para trabalhar em fábrica com 11 ou 12 anos. E como eu estava no meio, a gente participava dessa folia. Os maiores indo trabalhar, tirando essas duas mais velhas, a primeira e a segunda são mulheres, depois eu que estou no meio. Depois é só homem. Eram seis homens e três mulheres. As meninas tinham ido trabalhar e eu fiquei a única mulher no meio de seis homens (risos). Então os meus brinquedos eram brinquedos quase de menino. Pipa, bola (risos) e muito solta na rua. Por isso quando o pai chegava: “vrrrrrr” todo mundo corria pra dentro. Então mãe não dava muito cuidado porque ela estava trabalhando em casa e fazendo coisas da horta ou da galinha. Então a vó, pela qual eu disse ter uma doce lembrança, é que me preparava o lanche pra eu ir pra escola. Na minha casa não sobrava pão porque era muita criançada, mas quando sobrava, coisa de criança, eu não gostava de pão amanhecido. Ficava doida com pão amanhecido, não descia. Mas o lanche que a vovó fazia era pãozinho com marmelada e pão amanhecido, e eu achava aquilo o máximo. Acha possível uma coisa dessa? (risos). O carinho com que ela fazia, eu passava pela casa dela pra ir pra escola e ela dizia: “Já pegou teu lanche?”. Estou ouvindo essa voz: “Já pegou teu lanchinho?”. Imagina se eu ia esquecer daquela coisa linda? Porque se fosse esperar pelo lanche da minha mãe, era um pãozinho e acabou, uma banana no meio e acabou. E o dela tinha marmeladinha, goiabadinha dentro do lanche que fazia a diferença, né? Assim, criamos esse vínculo com a vó. Que senti muito, já era uma mocinha, mas sentimos muito a falta dela.

P/1 – A senhora cresceu nessa casa, dona Marina?

R – Cresci nessa casa. Quando eu tinha acho que 18 anos, o papai construiu do lado. Porque a vovó dividiu as terras dela, já estava se sentindo velhinha, ela dividiu o terreno que ela tinha pra seis pedaços, seis filhos. Papai ficou com a parte pegada à casinha da mamãe. Então sendo pedreiro ele levantou uma casa; mamãe ajudando, os filhos, todo mundo ajudou. Não existia pessoa de fora. Ele levantou uma casinha pra gente. Então acho que com 17 ou 18 anos a gente passou a morar na casa e deixou a vó. Porque a vó tinha um filho solteiro e esse filho casou bem tarde, depois dos 40 anos. Então ai iria aquela casa pra ele, né? Então papai resolveu acertar ali, continuamos do lado, até que ela se foi.

P/1 – Antes da senhora mudar pra essa casa, antes dos 17 anos, a senhora estava contando um pouco da escola. Dessa coisa de sair de manhã e ir pra escola. A senhora tem lembranças da escola, Dona Mariana?

R – Tenho. A escola era bastante longe. Embora eu morasse no Jardim Europa, não tinha escola no Jardim Europa: ou você ia pro Itaim, pra Pinheiros ou então todos da minha rua iam para o Grupo Escolar Couto de Magalhães que tinha na Rua Augusta, no final da rua ali onde tem o Clube Paulistano. Então pra lá a gente ia, todos os meus irmãos fizeram o primário lá. Até a quarta série todo mundo tirava o diplominha lá. Depois, quem quisesse, alguns estudaram, outros pararam. Mas primário, todos fizeram ali nesse Grupo Escolar.

P/1 – Como é que era essa escola?

R – Ah! Era um sobradão, mas era assim... Divino. Pra gente tinha uma responsabilidade de escola, o ir e vir. Usar o aventalzinho branco, a gente tinha que por e tinha que estar limpo porque senão pegavam no pé da gente. Realmente era legal. Pra ir, iamos até a Praça do Vaticano, que era uma praça que ficava a uns três quarteirões de casa, que ficava na Avenida Europa.
Ali era um balão do bonde onde pegavámos o bonde que fazia o balão ali e subia três quarteirões. Tínhamos, às vezes, que esperar passar porque era como fazia um balão: só tinha um trilho. Depois é que desse balão, lá em cima, o bonde desviava e tinha dois trilhos. Então andava o que? Esse bonde pegávamos ali da Praça do Vaticano e iamos até a Rua Estados Unidos onde descia. Seria o que? Uns dez quarteirões mais ou menos, não vou ser precisa. E o que faziamos? A mãe dava dinheiro, dois dinheiros: pra ida e volta. Quando a escola dava passe, quando conseguiamos ter um passe, tudo bem, senão ela dava um troquinho só pra ida e volta. Nessa Praça do Vaticano existia esse carrinho de pipoca, amendoim essas coisas. Eu tinha paixão por tramoço. Então o que a gente fazia? Ia de ônibus, de bonde, pra não perder a hora, mas quando saia vinha chispando a pé esses dez quarteirões pra sobrar o passe pra comprar o amendoim na Praça do Vaticano.

P/1 – O que era o tramoço?

R – Tramoço é um salgadinho que a gente come, mas ele vem num potinho e tira-se a casca. É como um amendoinzinho, uma coisa assim. Tramoço, um produto que os portugueses é que trouxeram. Então toda festa portuguesa tem o tramoço, uma bolinha amarelinha que você tira a casquinha. Parece um grão de bico, um pouquinho maior.

P/1 – E vendiam como, o tramoço?

R – Ela tinha um pote cheio, pegava uma canequinha e punha num papel, num saquinho e vinhamos comendo. Ou esse ou amendoizinho japonês. Escolhiamos um ou outro dependendo da gula do dia. Às vezes nos distraíamos no caminho porque da Praça do Vaticano até nossa casa passávamos por um campo de futebol que tinha uma valeta grande, funda, e era um mato mais ou menos que ficava paralelo a um campo de eucaliptos. Se demorássemos um pouco a mãe já ficava preocupada porque ali era um lugar mais ou menos meio fechado no qual teríamos que passar. Às vezes tinham desocupados, malandros por ali e a mãe sempre ficava preocupada. Às vezes nos distraiamos porque passavamos numas valas, subiamos, desciamos, subiamos, desciamos, era muito legal. Tinha amorinhas no meio do caminho. Achavamos sempre cambuí que é outra frutinha que tinha no campo e que a íamos procurar no meio do mato e nos perdiamos um pouquinho da hora, e ela ficava brava. Porque ela dizia que contava o tempo que deviamos sair da escola vindo de bonde. Mas ela não podia imaginar, imagina se ia contar pra ela que viemos a pé pra poder comprar o amendoim? Mas era assim, safadeza que criança faz. Era constantemente isto, constantemente. Ela estava sempre pegando no pé, vigiando e, às vezes, sapecava mesmo. Se demorassemos muito queria saber onde estavamos: “Ah! O bonde não veio! O bonde quebrou! O bonde saiu do trilho”. Sei lá o que inventávamos, coisa de criança. Havia muita pureza em tudo isso. Não era maldade, era aquela vontade de ser livre, de ter um momento da gente de brincar. Nunca sozinha; sempre com bando. Então existia muita criançada que fazia esse mesmo trajeto.

P/1 – E a adolescência também foi por ali, dona Mariana?

R – Tudo. Eu vivi, casei ali nessa mesma casinha que papai construiu do lado da que eu nasci. Então meu bairro foi sempre esse da infância até eu casar. Inclusive depois do casamento, ainda vivi oito anos numa casa nessa faixa que o tio tinha construído também no pedaço e alugou pra gente. Quando eu casei fui à casinha do tio que era mais três casinhas adiante. Então fiquei bastante tempo ali nessa rua, nesse local.

P/1 – Da adolescência a senhora tem alguma lembrança específica? Como é que foi essa época?

R – A única distração que tínhamos, a não ser o campo pra brincar, o pasto, existia uma pracinha a um quarteirão de casa onde tem até hoje a Igreja São José do Jardim Europa. Então ali foi, acho, nossa maior distração onde nos firmamos até como pessoas, moral, tudo. Porque ‘piquititica’ com sete anos, eu fiz a primeira comunhão frequentando catecismo desde cinco, seis anos com todas as criançadas da rua. Os padres de lá eram rígidos, então se educava quase como uma escola. Todos os preceitos, o que podia, o que não podia, o que era pecado, o que era feio, o que era não sei o que, fomos sabendo assim, isso aqui pode, isso aqui não pode, isso pode, isso não pode. “Nossa! Fulano fez isso! Fulano fez aquilo!”. Eu mesma disse assim: “Minha mãe não vai à missa! Meu Deus do céu! Ela vai pro inferno!”. Eu dizia isso, né? Pequenininha, imaginando. Então diziamos: “Meu Deus! Meu pai e minha mãe serão condenados porque não vão à missa. E na missa o padre fala que se não for à missa, se não for aos domingos à missa, comete um pecado mortal e aí então você já está condenado”. Eu começava a rezar: “Oh, meu Deus! Faça com que minha mãe vá à missa”. Falava assim: “Oh mãe, você não vai à missa?” E ela: “Ah! Quem vai fazer o almoço pra mim?”. E não sei o quê, ela dizia. E o pai com aquela rudeza dele nunca quis saber de ir. Não proibiam que fôssemos. Tínhamos aquilo como um lazer porque lá tinha teatrinho, brincadeiras, passeios, excursões que se formavam. Então desde o catecismo, depois do catecismo tinha cruzada eucarística onde usávamos uma faixinha amarela e participavamos da comunidade. Uma vez por semana nos reuníamos. Depois, na adolescência, a cruzada juvenil que então a faixa era ao contrário, era só no pescoço, amarelinha também. E nessa comunidade participava, de fora, o Colégio Santa Mônica e o Colégio Santo Agostinho. Íamos a concentração comemorar sempre alguma coisa, um dia de um santo, algumas comemorações. Era festa o dia que tinha saída nossa pra ir às outras comunidades. Reuníamo-nos: a nossa tinha 20, 30 e ia se encontrar com cem, duzentos. Era a glória, né? A mamãe nunca proibiu para os passeios da Igreja. Agora, as meninas da rua que pudessem: “Ah! Mamãe deu dinheiro pro cinema. Hoje nós vamos assistir o filme que está passando”. Ou qualquer coisa assim. Primeiro, que não tinhamos dinheiro sobrando e segundo, que tinha o: “Vai! Hoje tem a missa lá! Tem não sei o quê”. Pra lá ela deixava e pra outras coisas da vida ela proibia. Então nos criamos assim religiosamente, tendo freios. Acho que se uma pessoa não tem um freio na vida, um medo de alguma coisa, se avança, se entrega no mundo. Se eu for analisar a juventude de hoje porque não existe religiosidade, elas não têm uma obrigação, elas não têm exemplo de mãe, de pai. Então aí que quando encontram problema, dão de cara, e têm tantos problemas de droga, disto e daquilo. Acho que pra suprir algumas necessidades que gastávamos com essas comunidades, nós nos divertíamos, passeávamos e éramos muito alegres, tinhamos muita alegria. Não existia tristeza pelo fato de ser proibido. Não! Isso não pode, isso é feio: Acabou.

P/1 – A senhora se lembra de algo especial de alguma dessas cruzadas, algum desses encontros? Teve algum que ficou mais na lembrança?

R – Eu lembro de um que teve nesse Colégio Santa Mônica e que tinha que responder a um questionário. Eu estava tão afoita que eu não conseguia me fixar naquilo: “Como eu vou responder isso? Eu não sei, eu não sei, eu não sei”. Aí me passou pela cabeça e falei: “Mas eu sou uma burrinha mesmo, sou uma limitada porque eu não consigo me fixar nas perguntas”. E aí veio um complexo que dizia assim: “Bom, todas responderam. Por que eu não consigo responder?” Mas é que eu estava tão afoita. Então comecei a regredir no sentido de que minhas irmãs faziam um português correto e eu tinha algumas dificuldades na escrita, errava algumas palavras. Elas conseguiam sair, a mamãe as deixava fazerem compras lá em Pinheiros, lá no Itaim. Eu a mamãe não deixava. Não sei se porque era pequena ou se era menor na história. Então eu fui criando um complexo de inferioridade diante da família mesmo, sabe? Achando que eu não conseguia nada por causa disso e já começou ali naquele questionário que eu não respondi.

P/1 – E foi nesses encontros que a senhora conheceu o marido?

R – Não, não. Ele morava no bairro e estávamos na adolescência. Comecei a olhar os meninos mais bonitos, mais feios, mais bonitos, mais feios, esse... E o meu marido não tinha nada a ver com aquilo que eu achava de beleza. Mas era tão falante, era tão... Contava estórias, contava piadas que aonde ele chegasse a turma se reunia atrás dele pra ele contar bobagem. Parecia que era um menino além da idade dele. Enquanto os outros eram infantis, ele tinha a cabeça mais além. Então era bastante engraçado. E o que me chamava atenção nele, fisicamente é que ele era pequenino, mas cativava falando. Hoje ele é outra pessoa parece... Eu digo pra ele: “Você não é a pessoa que eu conheci. Você era alegre, brincalhão”. Mas a vida vai nos levando pra outros caminhos, né? Ele não conseguiu segurar a barra sozinho. A barra que ele teve como homem de enfrentar fez dele outro homem. Mas o que me cativou nele realmente era ele ser uma pessoa adulta e muito alegre, muito engraçado, mas muito engraçado mesmo. Então...

P/1 – Teve pedido de namoro e tudo, dona Marina?

R – Sim. Teve. Eu tinha um namorado onde eu trabalhava. Eu trabalhei por 14 anos no Esporte Clube Pinheiros numa escolinha que tinha lá, como auxiliar de escolinha. Entrei com 14 e sai com 28 anos de lá. Casei e continuei ainda trabalhando por mais quatro anos. E lá eu conheci um moço com o qual eu namorava, namorava entre aspas, escondido do pai e da mãe. Imagine se a mãe soubesse que eu tinha ido trabalhar e que lá dentro tinha uma paquera? Não passava de uma paquera porque era só conversar lá dentro. Pra fora os meus irmãos andavam pra cima e pra baixo, pai passando pra cima e pra baixo, que eram dois quarteirões de casa. Como é que eu ia sair com o rapaz? Nunca! Eu morria de medo porque pai já tinha feito gatos e sapatos com as irmãs. Imagina o que não ia fazer comigo também. Por medo dele ninguém podia saber que eu estava paquerando outro. Esse meu amigo aí que ia lá em casa, era amigo do pedaço, paquerava, mas eu dizia assim: “Sai fora! Sai fora!” Não era fisicamente o meu tipo. Mesmo porque eu tinha outro namorado, mas houve problemas lá com o outro namorado. Ele saiu do trabalho e eu fiquei sem vê-lo. Então eu falei: “Quer saber?” A tristeza era maior do que a necessidade. Então eu falei: “Não posso viver assim, tenho que suprir isso aqui o mais rápido possível.”. Porque entrei em uma tristeza muito grande. Falei: “Quer saber? Vou dar uma oportunidade pra esse moleque aí”. (Risos) Era moleque, na minha cabeça era moleque, fisicamente. Mas vou sair com ele, que todo mundo conhece, eu não preciso estar escondendo de pai e mãe nem nada. Então comecei a sair com ele. A família toda estava ali, estava vendo, não tinha que esconder. Coisa que com o outro tinha que esconder porque ninguém conhecia. Mesmo porque ele era moreninho. “Imagine!” Moreninho... Papai tinha muito preconceito de cor, essas coisas. Ele era moreno bem pardinho. Imagine se eu fosse levar um moreninho lá pra casa? Coisa que depois as coisas mudaram. Meus irmãos casaram com duas mulatas lindas, maravilhosas. Mas pra eu chegar com um mulato lá, como é que eu ia? Pra mim não era mulato nada, era o máximo, pra mim era o máximo. Enfim...

Eu acho que esse foi a grande paixão na adolescência. Mas depois namorei mais cinco anos com esse, com o Wilson, molecão. Até que ele se firmou e a gente então pode casar.

P/1 – E nesses cinco anos de namoro, ia passear, dona Marina? Ou era um noivado assim...

R – Não. Fazia passeios sempre juntos. Nunca um passeio sozinhos, nunca viajei sozinha, sempre com a família. Os passeios eram assim: ir a um cinema... Mas tinha que ter um irmão junto. Nunca podia sair sozinha. À missa ia sozinha. Todo mundo ia à missa, então iamos à missa. E tinham rezas o mês de maio inteirinho, rezas de Nossa Senhora. Então no fim fazia uma coroação de Nossa Senhora. Tudo isso participávamos prazerosamente porque era uma forma de se encontrar, né? Agora, que esse Wilson pegava no pé... Era diariamente. Passava na minha casa e assobiava e eu sabia que ele estava passando. Nem sempre eu pude porque o pai dizia: “Terça e quinta já está muito bom! Só quinta e sábado! Pra que todo dia?” Ele passava porque passava, era muito ciumento. Era não, é muito ciumento. Eu dizia: “Meu Deus, ele está passando aí e eu tenho que ir lá fora se não ele me come”. Porque era um gênio muito, muito forte, interessante mesmo. Pra eu dar conta de atendê-lo, ia até a porta: “Tudo bem, não dá! Vai! Vai! Vai embora!”. Tinha que fazer isso. E a mãe sempre de olho ali, não podíamos sair. Mas os dias que estavam marcados o pai tolerava. Só que quando davam 22h ele dizia: “Está na hora de ir dormir!”. “Você não está com sono, não? Está na hora de dormir!”.

Quer dizer, às 22h ele abria a porta do jeito que estivesse: de cueca ou como estivesse lá dentro. Ele saia lá fora, porque a casa tinha um terracinho, e a ficávamos sentados ali. Pois ele: “Esta na hora! Está na hora!” Tocava mesmo pra ir embora e o namorado dizia: “Não é possível! Não é possível!” Mas no fim ele foi entendendo que era o gênio dele. Possessivo, dono das coisas, e nunca ninguém fez aquilo que não fosse do gosto dele. Então tudo bem. Casamos naturalmente depois de quase cinco anos.

P/1 – Casou em que ano, dona Marina?

R – 1961.

P/1 – A senhora se lembra do dia do casamento?

R – Ah! Sim! Chuvarada! Arrumamos tudo. O quintal com festa. Porque eram festas de quintal, né? Preparavamos tudo com toldos, lonas e mais não sei o que, tudo bonitinho. Não estava chovendo. A gente foi pra Igreja, caiu um toró danado. Então quem ficou em casa cuidando das coisas teve que colocá-las entre o muro e o toldo. Lá em cima ficou um vão, que a chuva vinha de lado. Aí puseram o que acharam: tapete, não sei o que, foram pondo trapos, enfim, pra tapar ali que a mesa vinha logo em seguida. Tinha feito uma mesa enorme com todas aquelas coisaradas. Quando eu cheguei eu falei: “Meu Deus do céu, eu saí daqui estava tão arrumadinho, agora...” Era tapete com franja, era... Sabe? Aquela maloca inteira. Dizia: “Meu Deus do céu!” Mas por conta da chuva... Antigamente era assim mesmo, era coisa de quintal.

P/1 – E a festa foi boa?

R – Muito boa. Era perceptível a alegria de todo mundo.

P/1 – Como é que eram essas festas de casamento?

R – Ah! Fazia-se churrasco. Uns faziam churrascos. O nosso não tinha sido churrasco, fizeram muitos sanduíches com carne moída, com carne desfiada, com carne não sei que lá. Tinha uma mesa grande onde ficavam cervejas e chopes. Eram chopes, serviam chopes assim adoidado, não sei quantos barris lá. E do outro lado era a mesa dos doces. Doces eu gostava. Como sempre gostei muito de frutas. Meu irmão trouxe caixa de uva então fazíamos aqueles apanhados de uvas feito essas fruteiras onde põem balas só que eram cachos de uvas caindo, caindo. Era fruta por toda a mesa com melindro, no meio dos melindros. Melindro não sei se vocês conhecem, é uma plantinha miudinha, trepadeira, que se cortava e punha nas mesas. Em cima tinha a toalha branca e em volta, como se fosse festão, esses melindros. Então os cachos de uva iam ficando no meio dos festões. Estava muito legal.

P/1 – Teve bolo de noiva?

R – Ah! Um bolão enorme. O meu sogro foi padeiro. Então o confeiteiro da padaria ofereceu um bolo de três andares com aqueles noivinhos em cima; tão obsoleto, né? Aquele casal de noivinhos lá em cima. Então aquele bolão enorme lá no meio da mesa (risos). Interessante.

P/1 - E na Igreja o casamento foi bonito também?

R – Foi muito bonito, muito bonito. Uma coisa engraçada: quem me levou pra Igreja foram os meus irmãos. Era um quarteirão de casa então um carro só me levou pra lá e tudo bem. O meu marido veio da casa dele com os padrinhos dele de carro também. Nenhum de nós tínha carro. Fomos com o carro dos outros (risos). Aí todo mundo se cumprimentou na Igreja e foi pra festa. Só que todo mundo foi e nós ficamos cumprimentando. E cadê o carro pra nós? (Risos). Cadê o carro? Quem me levou achou que eu fosse com o padrinho e eu fiquei sem carro. Falei: “Meu Deus do céu!” Aí um primo que estava passando por último falou: “Ei! E agora?” Então mandou a família dele ir a pé pra que a gente fosse de carro porque estava chovendo. Então falei: “Meu Deus! Wilson você pensou em tudo menos no retorno. Já começou aí”. Falei: “Já começou a falhar nas coisas na hora do casamento”. (Risos)




P/1 – Teve viagem?

R – Fomos pra Praia Grande (risos). Para uma pensão que tinha lá. Ficamos lá uma semana. Quer dizer, o primeiro dia na pensão porque dali a gente ia pra uma colônia de férias no Suarão. Suarão fica em Itanhaém. Meu marido era bancário e o banco oferecia essa colônia de férias. Passamos só a primeira noite nessa pensão porque chegamos de madrugada e depois fomos para uma semana no Suarão, que era uma colônia de férias legal e estava boa.

P/1 – Depois que se casou a senhora continuou trabalhando, dona Mariana?





R – Por mais quatro anos. Eu casei em janeiro e em novembro o Wilson já nasceu com toda aquela problemática de um filho. Tudo estava tão certo na minha vida e também mamãe com nove filhos sadios. Nunca, nunca me passou pela cabeça que eu pudesse ter um filho excepcional, um filho doente. Dez meses depois de casada o Wilson nasce com toda aquela problemática. O menino não descia, eu não vi o parto dele porque fui anestesiada. O menino foi tirado a ferro, fórceps. E quando eu acordei eu já estava no quarto sem ter visto o nenê. Passando muito mal. Aí começou a minha batalha: “Eu quero ver o meu neném! Eu quero ver o neném”. E o marido atrás de mim dizendo: “Não! Ele vem, ele vem, ele vem”. Só que ele estava me enrolando porque quando ele nasceu já o chamaram ao berçário e disseram que o menino custou pra nascer porque tinha um problema na coluna. Em toda pessoa a coluna é fechadinha e a dele abria, e onde abria tinha assim um tumor, criava-se um tumor. Era preciso remover esse tumor, essa infecção que tinha no final da coluna porque se não operasse, se não limpasse aquela área o menino iria ter uma meningite e poderia morrer, ficar cego, mudo, surdo. Quer dizer então: se correr o bicho pega, se ficar o bico come. Então teria que fazer de qualquer maneira e tinha que ser urgentemente, ele não podia ficar daquele jeito. Então meu marido: “Ele vem, ele vem”. Só que eu comecei a chorar e dizia: “Não! Não é possível! Todo mundo viu o neném, eu não vi, eu não vi”. Ele foi tentar lá no berçário pedir que levassem o bebê pra mim. Então o levaram, eu o vi dois minutinhos e já o levaram. Mas eu queria pegar, dar de mamar para o neném. Chamaram uma freira da Beneficência Portuguesa pra dizer que o menino tinha nascido com problema, mas não contava qual era o problema. Problema sério que precisava ser operado e que toda cirurgia corre risco, que ele podia não sobreviver. Ela aconselhou que eu providenciasse batizado para o dia seguinte de manhã cedo lá na maternidade porque não sabia se ele ia sobreviver. Eu fui entrando em pânico. Você espera a coisa mais doce, mais bonita, mais ‘nanana’ e de repente, uma criança que nem poderia sobreviver. Foi feito no dia seguinte o batizado do menino dentro da enfermaria lá do berçário. Só tiraram ele lá de dentro pra uma salinha dentro da incubadeira, não podia mexer. E ali um padre, nosso amigo, foi lá, com a madrinha e o padrinho e fizeram o batizado do nenê.

P/1 – Batizou com qual nome?

R – Wilson, que era o nome do pai e a gente repetiu o nome no menino. Uma coisa que me marcou profundamente nesse batizado foi que o menino veio dormindo peladinho só com uma fraudinha. Então o padre não podia mexer, ninguém podia mexer. Estavam duas enfermeiras ali do lado. Ele fez lá o que devia fazer, aquelas orações do batismo e tudo e aí ele falou: “Ela pode por a mão, a madrinha pode por a mão lá dentro só em cima, sem por a mão?”. Ela disse: “Pode”. No que a minha comadre, a mãe, a madrinha do Wilson foi por a mão lá, ela não tocou o menino, sabe? O padre foi falando: “Eu te batizo em nome do pai”. Ele se estremeceu e mexeu inteirinho. Quer dizer, coisa que hoje ele não mexe as pernas. Então eu tenho certeza que antes da cirurgia ele mexeu porque eu vi ali peladinho e ele se mexeu. Aliás, ele fez uma série de cirurgias, mas essa era a primeira e a mais séria. Nunca mais ele mexeu a perna. Então eu tenho a impressão de que ao limpar, ao mexer, o corpinho dele foi danificado, nervos que eles afetaram. Então eu me pergunto e pela vida inteira me perguntei: “Se ele não tivesse feito essa cirurgia será que hoje ele estaria andando? Ele não estaria aqui se não tivesse feito a tal cirurgia?” Então é uma vida com uma interrogação. Será? Será? Fiz bem? Não fiz bem? Tinha que ser feito? Se o médico falou que ele não iria sobreviver, tivemos que fazer a cirurgia. A ignorância da gente é tamanha que nos entregamos totalmente à sabedoria da medicina. Sendo operado ele disse para o meu marido e pra mim: “Olha, assim que vocês puderem, providenciem o segundo filho porque provavelmente esse não vai sobreviver um ano. O máximo de vida que ele tem é de um ano”. Então realmente eu passei o primeiro ano muito angustiada fazendo tudo o que era pra ser feito, porque com dois meses ele voltou a fazer uma cirurgia na cabeça porque a cabecinha que nasceu normal começou a crescer. Com dois meses de vida ele pôs uma válvula na cabeça pra retirar o excesso de líquido que tinha, era desviado através de uma sonda que ia pra gargantinha e eliminava nos rins mesmo. Saia pelo xixi.

Nesse tempo então a gente foi vivendo uma tristeza porque sabia que a qualquer momento eu poderia perder o menino. Realmente rezando muito. Quando Wilson tinha cinco meses eu soube da gravidez do segundo filho. Muito perto um do outro. Eu tinha muitos problemas com a recuperação dele, com tratamento e exames. Não saia do hospital e de laboratórios, sempre medindo a cabeça porque poderia ter problemas. E a barriga começou a crescer do segundo. Eu já fui ficando menos ágil e preocupada com o nascimento desse outro. “Será que esse segundo vai ter problema?”. Era a pergunta que acho que qualquer mãe faria. Era uma ansiedade para que esse nascesse pra saber se era perfeito porque senão minha vida estaria acabada. Se o segundo nascesse também com problema, encerraria ali minhas atividades de mãe e acabou. Então quando o Wilson estava com dez, onze meses ele começou a ter febres altas que subiam e desciam. Teve nesse período todo de um ano muitas convulsões, uma atrás da outra, de repente. E a cada convulsão que ele tinha eu achava que o Wilson iria embora.

Porque a sensação de uma convulsão é de morte, se batendo, se batendo. O médico começou a fazer muitos exames pra saber qual era o problema na verdade e não descobria o porquê dessas febres. Ela subia 40 graus e depois caia 35. Ele ficava roxo, gelado. De repente, um calor enorme e o menino dava aquelas convulsões nessa altura. Disse: “Meu Deus! Ele está, ele está indo embora realmente”. Os sintomas pra mim, falei: “Está indo embora”. Ai localizou uma infecção que estava na pecinha que estava na cabeça dele. Então o médico disse: “Olha, nós temos que retirar esta válvula. Ele vai ficar uns 15 dias em observação e se ele começar a desenvolver a cabeça outra vez...“ É possível que tiremos aqui e ela volte a crescer. Ai nós colocamos do outro lado uma nova sonda. Eu já estava no último mês de gravidez tendo que correr com o menino com todos esses problemas. Eu internei o garoto, fiquei com ele. Então tinha que registrar de hora em hora tudo que acontecia com ele. Medindo febre, o que ele comeu, que remédio que ele tomou... Os cadernos estão lá em casa (risos). De hora em hora, de cinco em cinco minutos, todas as reações dele, ia anotando. Ele já estava internado cinco dias pra ver o que é que eles iam fazer: se tirava ou não tirava a sonda, se era realmente isso aí enquanto esperava os exames. Eu tive o primeiro sinal (risos) do segundo parto: rompeu a bolsa. Ai o que a gente ia fazer? Chamei a minha irmã, que era solteira na ocasião, pra ficar com o garoto. Minha irmã veio ficar com o Wilson e eu subi pra maternidade no sexto andar, ele estava no terceiro. Mas a minha preocupação com esse parto não era nada. Eu não queria saber desse parto, eu queria saber do menino. O parto pra mim parecia ser algo inoportuno na hora. Porque a minha cabeça estava com o menino na situação opera hoje, não opera. Conclusão: (risos) eu fui dar a luz e ele foi operado no mesmo dia. Então cada um para um lado e eu sem poder estar presente, mas estar rezando (choro). Foi outra agonia muito, muito grande. Quando o menino nasceu perfeito eu disse: “Deus seja louvado!” Este é perfeito. Eu gritei pra mulher: “Ele é perfeito?” e ela respondeu: “É! É bonito, é lindo e perfeito! É menino!” Eu disse: “Bom, uma coisa eu já resolvi. Então agora eu posso pensar no outro. Esqueci desse coitadinho do meu filho (risos), o segundinho. O segundinho ficou de lado porque eu desci da sala de cirurgia e fui pra lá em cima. E a moça disse: “Ele já desceu”. Eu então falei: “Bom, então eu vou lá pra baixo”. Meu marido: “Você não pode estar andando assim. Teu bebê nasceu hoje cedo”. Eu disse: “Quem sabe de mim sou eu. Eu quero ir lá, eu quero vê-lo!”. Apenas tiraram a sonda e não colocaram outra. Ele ia ficar em observação. Então desci correndo, passei por um grupo de médicos porque a maca ia lá na frente naquele corredor e falei: “Bom, ele passou na minha frente e eu não vi”. Sai correndo, meu marido não me alcançava. Olha, eu tinha dado a luz naquele dia, meu marido não alcançava meu passo. Passou por um grupo de médicos então um médico falou: “Mas aquela não é a tua mulher? Ela não deu à luz hoje?”. Ele falou: “Quem segura essa mãe? Quem segura?” E o médico falou: “Não é possível!” (Risos). “Deu à luz agora e está correndo!”. Mas fui lá, me acalmei quando vi que colocaram ele lá no quartinho com minha irmã, acomodadinho e tudo. Aí eu serenei, pude voltar para o meu canto e acabou. Realmente foi assim um tempo muito difícil desde que ele nasceu. Eu fui embora e ele ficou no hospital por mais 20 dias. Então eu ia, amamentava no hospital por duas vezes ao dia. Ia de manhã e à tarde amamentá-lo.


P/1 – O Wilson?

R – Wilson, o bebezinho. O outro já estava em outra fase. Quando o segundo nasceu, o Wilson já não mamava mais. Já tinha sido desmamado e tudo. Mas foi um tempo de aprendizagem de vida, de valorizar. Quando o segundo nasceu, o Wilson não precisou colocar a segunda sonda. Ele passou assim uns 15 dias sofrendo muito com dores cabeça. O suor a gente via nascendo, ele gritava muito. Colocamos a cabeça dele pra baixo e ele aliviava. Ai levantava e dali a dez, 15 minutos outra vez levantavamos. Foi assim até que o tempo foi diminuído de dez pra 15, pra 20. Espaçando as dores dele. Isso chegou e o médico disse: “Bom, agora é só ficar medindo pra gente observar a cabecinha dele. O resto está tudo bem”. Felizmente essa sonda foi benéfica enquanto durou porque não afetou o cérebro dele. Ele pode ter uma vida natural. É por isso que quando você perguntou do grau de mentalidade dele, eu disse tem uma pequena, esses dois meses que ele teve aquela pressão na cabeça. Mas que em dois meses a gente sanou e não foi possível mais nada.

P/1 – Depois desse primeiro ano dona Mariana, como é que foi o desenvolvimento do Wilson?

R – Depois com essa mudança para Guarapiranga, houve problemas financeiros mesmo. A gente teve que fechar lá, passar o ponto. Eu fiquei muito ociosa. Trabalhamos sempre muito em casa, era muita coisa pra ser feita. De repente eu me vi sem nada. E por conta também de estar mais distante eu não podia voltar pra casa pra depois pegar o Wilson. Eu tinha que ficar esperando ali na Rodrigo Mendes porque eram duas horas ou três, quatro, cinco. E o tempo que eu vou até Guarapiranga, eu vou lá, tomar um café e voltar. Então eu achei que seria até mais barato pra gente não ficar gastando gasolina ir até lá em baixo. Comecei a ficar na Rodrigo Mendes. Ai observando falei: “Meu Deus do céu, eu posso fazer alguma coisa aqui. Não posso ficar parada aqui essas três horas”. Então me passou pela cabeça: “Bom, eu vou me oferecer. Tem duas coisas: ou eles me aceitam como aluna porque está fazendo inclusão social a escola - eu posso, eu não preciso ser deficiente (risos) pra participar. Só que financeiramente não daria pra pagar as duas, a minha e a dele - ou então vou ser voluntária, vou fazer alguma coisa aqui como voluntária. Ai ofereci a minha proposta”. Falei: “Olha, tem duas coisas: ou eu posso ser voluntária aqui pra vocês, só às quintas-feiras porque eu também não vou vir lá de casa só pra fazer algum trabalho aqui. Mas essa horinha que eu estou aqui, posso fazer alguma coisa pra vocês. Ou eu posso pagar metade, se vocês aceitarem metade do que pago pro Wilson e vou ter aulas também de pintura”. Aula, que até na verdade, eu queria de desenho pra poder facilitar, ajudar o Wilson em algum desenho que ele não tivesse capacidade de fazer, pra orienta-lo no trabalho dele. Ai a professora falou na entrevista: “Você nunca fez tela?” “Eu nunca fiz tela na vida”. “Ah! Então nós vamos fazer uma tela”. Falei: “Mas falou que ia fazer desenho, você vai querer fazer tela agora?”. Pensei cá comigo, mas não falei nada não. Falei: “Bom, Graças a Deus que aceitaram (risos) as minhas condições”. Então eu passei a ser aluna do Rodrigo Mendes pagando 50 por cento do valor graças à generosidade da Associação. Estava tendo a oportunidade gratificante de frequentar também, embora o professor tenha me separado do meu filho. Ele estava em uma sala e eu em outra pra não interferir no trabalho dele. Então eu ficava em outra sala, ouvindo o que ele estava falando, mas não tinha contato com ele. Estava fazendo o meu trabalho, descobrindo o que era capaz de fazer, trabalhava com tinta a óleo. Estava me descobrindo. Então uns quadros saíam melhores, outros saíam precisando de uns retoquezinhos. Mas eu estava amando a Associação pela oportunidade que estava me dando de produzir alguma coisa independente de qualquer um. Porque dentro de casa a arte não valia muito para o meu marido. Uma pessoa que tem outra visão, sabe? Trabalhou sempre com dinheiro, 30 anos bancário. Então tem outra visão; parece que não valoriza a arte em si. Eu sou o oposto, eu vejo a natureza, eu vejo lá a represa, eu quero botar no papel aquilo, eu quero (risos) transferir para o papel aquilo que eu estou vendo. Começo a enquadrar lá: “Isso daqui daria um belo de um quadro”. Quer dizer, eu nunca tive essa visão, mas de repente, porque Rodrigo Mendes estava me dando essa oportunidade, eu estava descobrindo que com um pouquinho de boa vontade, eu conseguiria fazer alguma coisa.

P/1 – Tem algum quadro que já foi o seu preferido assim que a senhora fez?

R – O primeiro. Coisa mais engraçada. Ele me perguntou o que eu gosto, eu falei: “Natureza. Gosto de flores”. Então ele foi olhando e achou uma paisagem na qual tinha uma cadeira de jardim com um vaso grande e um apanhado de flores. E o professor explicando: “Olha, começa pelo fundo, vem vendo tudo que está lá no fundo depois por último você põe o que está aqui na frente. Como se fosse colocando as coisas”. E (risos) eu fui entendendo e nunca podia imaginar que uma pintura começasse assim. Eu já ia ao que está aqui na frente, depois o que está atrás, não. E quando vi que aquilo saiu, eu reproduzi exatamente o que estava ali, faltavam só as flores. O vaso, a cadeira, tudo já estava pronto, o fundo, tudo. Falei: “E agora? Esse monte de flores aqui?”, “Uai! Você nunca viu as flores? Pinta as flores!”. Eu falei: “Mas posso pintar do meu jeito e não como está aqui?” “Claro! Aqui é apenas uma referência”. “Ah!” Comecei a tchuc, tchuc, tchuc, tchuc e as flores saíram grandonas, bonitas, coloridas, sabe? Eu falei: “O que é isso?” (Risos).Quando eu olhei, falei: “Não, isso não é meu. Não fui eu que fiz”. Sabe? Então aquele quadro me encantou. Quer dizer, eu posso fazer muita, muita coisa. É lógico, o segundo não saiu lá essas coisas, escolhi um tema meio tristinho, uns gofinhos num por de sol meio escuro. Mas estou aprendendo, estou aprendendo e isto é muito importante. Sabe, com 66 anos estar descobrindo um encanto novo na vida, já que passamos muito tempo com a cabeça voltada pra problemática do Wilson. Hoje percebo que estou livre, solta, sabe? Que o Wilson é companheiro, que não preciso mais estar carregando nos braços. Então agora que eu comecei a viver. Viver entre aspas, viver com visão de vida, de qualidade, de natureza, o que é importante. Então eu procuro só essas coisas assim. Eu não quero coisas pesadas, eu quero só coisa solta, coisa leve (risos) e é muito interessante.

P/1 – E a relação do Wilson com a arte também é grande? Ele tem prazer?

R – Ele gosta. Uma vez por mês tem história da arte. É dado, não é trabalho, é uma história. Vai contando história da arte. Então cada vez escolhe um artista pra falar e enfim, ele presta atenção, se você vai perguntar sobre arte ele sabe deste, daquele, daquele outro. Os quadros que fizeram, aqueles quadros mais famosos. Então percebo que se conversar com Wilson sobre arte ele é muito interessado. Evidente que o trabalho dele hoje é uma coisa discreta, como posso dizer, é uma coisa meio apagada. Mas isso na visão da gente que quer ver um quadro colorido, bonito. Mas o professor valoriza muito o trabalho dele e diz que é encantador, que é isso e aquilo. Sabe, essas coisas eu tento passar para o meu marido que enfim, eu tenho que brigar lá em casa pra colocar na cabeça dele este tipo de coisa. Que o que importa é que os outros estão gostando, ele fez e aquilo deu satisfação pra ele. Fim de papo.

P/1 – A senhora acha que essa experiência mudou alguma coisa no dia-dia ou na vida do Wilson?

R – Do Wilson? Ah sim! Dá sentido de vida. Inclusive, quando conversa e há a pergunta: “E a escola como é que está?” “Ih! Está ótima!” Quero dizer, ele tem assunto pra falar e isto gera um assunto de horas. Se você quer falar de arte com ele, demora horas. A escola promove duas a três visitas a museus, exposições, galerias, essas coisas. Não perde uma. E é interessado, vai ver tudo, sabe? Não sei se na cabecinha dele ele consegue tirar lições, mas o importante é o conhecimento da arte em si. É o valor que ele dá. E dá sentido pra vida dele na verdade.

P/1 – A senhora disse que ele gosta muito da Associação, por quê? A senhora consegue identificar o porquê de ele gostar?



R – O Wilson necessita muito de companhia, de conversa. E lá ele tem a oportunidade de conversar porque tem amigos. Ele está numa sala com dez, 12 adolescentes, adultos, enfim. Todos dão atenção, todos falam a mesma língua sobre arte, sobre tinta, sobre pincel. Então ele está entrosado de tal maneira que hoje logo cedo ele falou assim: “Tem que andar depressa aí com as coisas que hoje é quinta-feira”. Quer dizer, ele conta que quinta-feira é o dia dele sair pra ir ao Rodrigo Mendes. Então nota-se que é prazeroso pra ele, não é uma obrigação: “Ah, vou à escola, aquela escola chata”. Não. É prazeroso ir à escola por conta de um todo. Não é o professor, não são os alunos, não é o que ele aprende, é o todo. Ele necessita daquele núcleo, daquelas pessoas, daqueles amigos. E olha, a sala dele é uma gargalhada só o tempo inteiro, é uma alegria só.

P/1 – E nesses anos todos de escola mudou alguma coisa na Associação?

R – É, ela está crescendo. Ela era pequenininha, uma salinha pequena, uma casinha pequena. Foi pra uma maior e agora esta indo pra uma maior ainda. E estão oferecendo oportunidades. Oportunidade de outros trabalhos. Eles fazem “Arte no Muro”. Numa praça, todo mundo vê todo mundo pintando lá. Ele participa das exposições que a escola faz. E de quando em quando ele já fez exposição na Abril, os quadros dele ficaram por um mês lá. Ele fez várias exposições em lugares fora que não têm nada a ver com a escola. Fez em Itapecerica da Serra, no Banco do Brasil lá. Então ficou exposto um mês o trabalho dele. É oportunidade dele estar se mostrando. Se isso vai render ou não, é outra história que não entra na história. O pai se preocupa: “E amanhã a gente falta. Ele precisava ter...” Falei: “Isso é outra história, o futuro você sabe que não me interessa. Eu quero viver hoje. Hoje ele está feliz, produzindo e é o que importa, é o que importa”.

P/1 – A gente vai finalizando, eu só queria que a senhora contasse como é atualmente o dia-a-dia típico da vida da senhora e da vida do Wilson?

R – Um dia comum como o de todo mundo. Levanto muito cedo, seis e meia por aí, já preparo o cafezinho da família, fervo o meu leitinho. Vou buscar leite e pão em frente de casa, que tem um mercadinho. Ai vou dar volta, fazer caminhada lá na barragem. Pego uma hora caminhando diariamente, recomendação médica, por problema de saúde mesmo. Então levo uma hora dando a volta e saio pelo

outro lado na qual pego o jornal, e já levo. Quando eu chego em casa o Wilson já está acordado e o pai continua dormindo. Então vou cuidar do Wilson. Levo cafezinho pra ele, dou o jornal, vou preparar o banho dele, cuido dele. Wilson estando pronto, estando satisfeito (risos) já está acordado. Aí eu vou preparar alguma coisa, ver alguma coisa pro almoço, dar uma ajeitada na casa. Levo o Wilson pro jardim porque eu tenho uma areazinha na qual é toda de grade baixinha na qual ele vê a rua, as pessoas passarem. Tem no cantinho duas palmeiras, e faz uma sombrinha, que o sol nasce atrás então faz uma sombra ali. E ali eu tenho uma mesinha, quadradinha dessas de restaurante, dessas de coca-cola, plástica, e ali ele senta, fica ali sentado embaixo da sombrinha da palmeira escavando. Ali eu levo o material dele e ele fica ali até meio-dia, meio-dia e meia.









Ele conversa com as pessoas da rua, explica para as pessoas da rua o que está fazendo porque alguns se interessam. Porque nós chegamos lá há pouco tempo, estamos há um ano e meio só. Então quando ele chegou era um bichinho estranho. As pessoas foram chegando aos poucos. Ele vê passar crianças e já cumprimenta. Então a pessoa por si só já pergunta, já vai entrando. Quer dizer, o contato de animais e crianças faz com que ele passe a conversar com as pessoas. E isso o levou a ser conhecido no pedaço. Porque ele dá atenção e gosta de explicar o que ele está fazendo. E agora nas férias ele não quis ir pra fora. Mesmo porque estava frio, e ele não quis ir. Também não o obrigamos. Não tinha que levar trabalho nenhum pra escola, nem nada. Então o deixei mais pra dentro, ele ficou vendo mais televisão. As pessoas na rua perguntam: “O menino está doente? Aconteceu alguma coisa pra ele não sair à rua?” Entendeu? Quero dizer, já estão sentindo falta dele. Eu falo para o meu marido: “Você quer saber? É gratificante”. É qualquer pessoa: é o garrafeiro, é o homem do gás. É qualquer pessoa. As mulheres que vão à vendinha, porque tem um mercadinho em frente, dão um passo da minha calçada pra ir ao outro lado. Então é o que faltou porque lá em casa, antes de mudarmos pra Guarapiranga, onde eu falei que tínhamos uma lanchonete, ele ficava na lanchonete; trabalhando ali e vendendo chicletinho, essas coisinhas pequenas que eram só dele. Ele tinha contato com o público, diariamente. E lá ele sentiu falta daquele povo que vinha conversar diariamente com ele. Foi aí que resolvemos botar ali fora, ele trabalha ali fora que assim resolveu-se o problema. Ele continua tendo contato com as pessoas que ele tanto gosta de conversar, ele gosta mesmo, de explicar para as crianças o que ele está fazendo. Outro diz eu vi um menino babando: “Puxa! Mas dá pra fazer com qualquer pauzinho, qualquer madeirinha?”. “Dá pra escavar. E só você arranjar um espetinho pra você cavar aí e você vai ver o que você vai fazer”. E aí ele me chama: “Mãe!” Eu vou lá ver. Mostra pra ele um quadrinho que eu já fiz”. Aí eu vou lá pego um quadrinho já na moldura, na minha sala está cheia de quadros dele, vou lá e mostro: “Olha, isso aqui foi feito assim, cavando a madeirinha depois ele passou”. Quero dizer, é uma forma dele explicar e fica encantador. Fica um ambiente muito legal. Ele está tendo contato com as pessoas da rua. Ele tem amigos, entre aspas, porque ninguém entra lá em casa pra bater papo, mas conversa ali na cerca o dia todo. Se você ficar o dia inteiro, o dia inteiro tem uma pessoa ali com ele. Eu acho que isso é qualidade de vida: contato com o ser humano.

P/1 – E olhando para o futuro a senhora tem ainda algum sonho pra senhora? Um sonho para o Wilson? E um sonho para a Associação?

R – Pra Associação em primeiro lugar. Eu gostaria realmente que ela crescesse, desenvolvesse em qualidade, pela oportunidade que ela oferece. Para os portadores de deficiência seja ela qual for. Ela descobre talentos, ela ensina a pessoa a trabalhar. E aquele que tiver um pouquinho mais de paciência e de dom consegue fazer alguma coisa. Eu acho que até dom é uma coisa engraçada. Você procura o seu dom, você vai, é só gostar de alguma coisa que o resto a escola ensina pacientemente. Então eu digo que tomara que a escola viva cem anos, duzentos, trezentos, sempre com esse espírito de colaboração e voltado ao deficiente físico, pra dar oportunidade. Fundamental que seja dada essa oportunidade porque junto com a oportunidade vem a amizade, vem um monte de outras qualidades. Pra mim, não sei se com 66 anos vai ter muitas expectativas de vida, mas eu gostaria realmente de ver tranquila, sabendo que o Wilson está bem, que o que a gente plantou está colhendo.

Muitas pessoas falam: “É! Você não tem medo? Vai embora, quem vai cuidar dele?” Falei: “Em cada momento da minha vida Deus supriu todas as minhas necessidades. Sejam elas quais fossem foram superadas. Não por mim, mas pela Graça de Deus com a gente, porque nos dá sempre uma esperança”. E quando formos embora e o Wilson ficar, Deus nos ama tanto que vai exatamente achar a pessoa certa pra cuidar dele. Porque ele necessita realmente de apoio, de quem cuide. Então não me preocupo, Deus há de olhar e dar o que ele necessita, se assim for o caso. O futuro a Deus pertence. Não quero me preocupar, não quero mesmo, com o futuro. Quero viver hoje. Hoje, viver intensamente hoje. Com tudo que Deus me deu: com saúde, com esperança, com tudo que Deus me deu.

P/1 – A última pergunta: o que a senhora achou de ter contado um pouco dessa história toda?

R – (Risos) Muitas vezes já passou pela minha cabeça o seguinte: eu acho que eu passei nessa vida em branco. Se um dia perguntassem: “Quem foi Mariana no passado?” Ah! Entrou e saiu sem deixar rastro. E uma televisão (risos) filmando a gente, eu vi, os outros vão poder ver que realmente, se isso vier a acontecer lá para o fundo, que as pessoas tenham esperança, que lutem todos os dias porque é o amanhã sempre melhor do que o hoje: sempre será melhor. Desde que você acredite que você não está só, que Deus caminha com você. Então o fato de terem registrado tudo isto é fantástico, fantástico. Realmente eu não conhecia esse tipo de trabalho, não sabia nem que existia. E estou assim feliz da vida por ter participado, por ter tido a oportunidade de contar a minha pequena historinha, mas cheia de emoção. Eu realmente vivi cada momento desta vida com dificuldades, mas tudo foi superado porque existe um Deus maior por trás de tudo isso.


P/1 – Dona Marina, muito obrigada. Gostamos muito de ter a senhora aqui com a gente.

R – Eu é que fico grata por tudo, pela oportunidade realmente, tá?