Museu da Pessoa

Tudo acaba em comida

autoria: Museu da Pessoa personagem: Cíntia Zhu

CTG - Imigração Chinesa
Depoimento de Cíntia Zhu
São Paulo, 12/11/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista: PCSH_HV1125
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho

(00:30) P/1 - Boa noite, Cíntia, tudo bom?
R - Boa noite! Tudo e você?
(00:36) P/1 - Tudo ótimo. A gente vai começar, então, com a pergunta mais básica: eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R- Meu nome é Cíntia Zhu. Eu nasci no dia 31 de janeiro de 1996 e eu sou de São Paulo, capital.
(01:00) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Cíntia?
R - O nome do meu pai é Zhu Chi-Lin e o nome da minha mãe é Dai Ning Chang.
(01:16) P/1- Você tem irmãos, Cíntia?
R- Tenho dois irmãos: um irmão mais velho e o irmão do meio.
(01:27) P/1- Cíntia, os seus pais são de São Paulo mesmo ou eles vieram de algum outro lugar?
R- Meus pais nasceram na China, numa cidade chamada Guangzhou ou Guǎngzhōu, em chinês, né? E é perto lá de Xangai, bem pertinho.
(01:48) P/1 - E você sabe por que eles vieram pro Brasil?
R - Meus pais me contaram que vieram em busca de umas condições melhores, de mais oportunidade de trabalho. Inclusive, como a minha tia já estava aqui, eles se sentiram bastante incentivados em vir aqui, pra conhecer e tentar alguma coisa diferente.
(02:19) P/1 - E qual é a atividade dos seus pais, Cíntia, com que eles trabalham?
R- Atualmente, eles são aposentados, mas eles trabalhavam com importação, importação de bolsas.
(02:35) P/1 - Certo. Então, vamos conversar um pouquinho sobre a sua infância: Você se lembra de onde você passou a infância, na casa ou apartamento, como era, do que você gostava de brincar?
R - Desde quando eu me lembro como pessoa, eu morava na minha casa no bairro da Lapa. Eu lembro que eu gostava muito de subir e descer, ir pro quintal e pegar umas plantas, ficar fingindo que eu estava cozinhando. A coisa que eu mais gostava era brincar com coisas de cozinha, né? Eu pegava as plantas e eu (risos) destruía as plantas, fazia uma sopa de planta, de flor e aí ficava lá, me achando a cozinheira. (risos)
(03:31) P/1 - E essa casa, então, era uma casa que tinha um quintal? Conta pra gente como era, um pouco, em detalhes, essa casa, como era a convivência de vocês lá dentro.
R- Sim, minha casa tinha quintal, tinha um jardinzinho que a minha mãe cuidava. Ela gostava bastante de botar umas flores bonitas e eu ia lá e destruía. (risos) E aí também a gente tinha uma piscina, eu gostava muito de nadar. Quando tinha finais de semana ou feriado a minha família chamava parentes, amigos pra fazer um churrasco. A gente sempre foi muito dessa de comer, de chamar um pessoal pra comer em casa e de estar todo mundo junto.
(04:22) P/1- E você tinha algum sonho de infância, algo que você quisesse ser, quando crescesse?
R- Bom, quando eu era criança, eu achava assim: “Eu quero ser uma pessoa super bem-sucedida, quero ter uma casa enorme, com piscina e um carrão”. Na época eu gostava muito de arquitetura, então eu falava: “Eu vou projetar minha casa”. Eu ficava assim, (risos) cheia de sonhos. (risos) Chega a idade, aí você fala: “Não, não é desse jeito”. (risos) Brincadeira, gente. (risos)
(05:06) P/1 - E, Cíntia, quais são as primeiras lembranças que você tem de ir à escola? Você lembra se você ia a pé, se era longe, se era perto? Conta um pouco pra gente desses primeiros anos de estudo seus.
R - Na minha lembrança, eu lembro que, no começo, eu mudei bastante de escola. No Jardim II eu estava numa escolinha que era mais longe de casa, aí tinha que pegar a perua. E aí, era essa rotina, sempre de pegar perua de manhã cedão, não conseguia nem abrir os olhos ainda e já estava indo pegar perua. Ia lá pra escolinha, passava o dia, aí eu voltava.
No terceiro ano do jardim, eu fui pra uma escolinha perto de casa e aí eu comecei a andar a pé mesmo. Era bem tranquilo.
Eu era uma criança muito espatifada, animada. Lembro que toda vez que eu chegava da escola eu estava com um machucado porque, no caminho, eu sempre tropeçava em algum lugar e caía. (risos) Eu sempre estava com o joelho ralado. (risos)

(06:25) P/1- E no seu ensino fundamental, você tinha alguma matéria que você gostava mais ou algum professor que te marcou, por algum motivo?
R- Sim, eu lembro que as aulas que eu mais gostava eram as aulas de Artes e, inclusive, foi a minha professora de Artes que mais marcou a minha vida mesmo, porque ela me incentivava bastante. Ela falava: “Nossa, você ia sair bem trabalhando, seguindo essa área de artes mesmo”. E ela sempre acreditava muito em mim, então ela foi uma pessoa bastante marcante.
(07:06) P/1 - E fora da sala de aula, vocês tinham festas, eventos? Você participava de alguma outra atividade, na escola?
R - Fora da escola, na época do fundamental, eu era uma criança, uma pessoa mais fechada, mais tímida. Também por conta dos meus pais, porque eles eram mais conservadores, uma família bem tradicional chinesa. Eles achavam que, sei lá, criança tinha que estar estudando, não podia ficar saindo, então era muito raro eu ir à casa de um amigo, só se eu precisasse mesmo fazer um trabalho e se fosse aniversário. Era bem difícil, tinha que ser alguém que eles já viram, conheciam, sabe, alguma coisa assim, tinha que ir lá e voltar cedinho pra casa. Então, festa e evento eu não ia muito.
Outras atividades também que eu fazia era vôlei, basquete na escola e aí isso eles deixavam de boa. Eu ia às vezes jogar, competir. Também não foi uma coisa muito duradoura, mas foi bem legal, conheci bastante gente.

(08:31) P/1- Você estava falando sobre a sua família, sobre os seus pais serem uma família tradicional chinesa. Vocês tinham muito contato com a comunidade chinesa aqui de São Paulo? Os amigos da sua família eram também imigrantes chineses?
R- Sim, a gente tinha bastante contato com a comunidade chinesa, inclusive meu pai também participava de uma associação de chineses aqui no Brasil. Os amigos deles eram praticamente todos da comunidade chinesa mesmo, todos que vieram aqui trabalhar também e é isso.
(09:16) P/1- E como foi, pra você, crescer entre duas culturas - digamos assim: uma mais da sua vida pessoal, mais pra dentro de casa e outra mais pra fora, na escola, já um pouco diferente, mais brasileira? Você sentia muita diferença do que você vivia com a sua família com o pessoal pra fora, seja em comida, costumes, algo nesse sentido?
R- Eu sentia bastante diferença, era uma coisa bem doida crescer em dois tipos de cultura diferentes - praticamente opostas, eu posso dizer. Eu tinha muito contato com a cultura chinesa e [com] a brasileira, então eu senti que eu fui trazendo da minha personalidade coisas que eu gostava de uma cultura e coisas de outra e isso me formou. Eu percebo que é bem diferente, lembro que às vezes eu levava alguma comida que o pessoal olhava e ficava: “Que é isso”, sabe? (risos) “Eita!” Mas eu tive sorte, tive muitos amigos bem receptivos, então eles também me abraçaram e abraçaram a cultura da minha família. (risos)
(10:42) P/1- E caminhando nos seus estudos pro ensino médio, você chegou a mudar de escola?
R- Não, eu permaneci no ensino médio, desde o fundamental II, na mesma escola e eu fui pra faculdade até nessa mesma escola, mas depois acabei saindo.
(11:33) P/1- Certo. E nessa época de ensino médio, você já tinha ideia do que você queria fazer, de curso superior?
R - Eu lembro que na época era assim, milhões de ideias e muita confusão, porque eu gostava muito de coisas relacionadas a artes, tipo Arquitetura, mas aí eu percebi que eu gostava de moda, só que aí meus pais pensaram: “Moda? A minha filha vai morrer de fome”. (risos) Eles queriam que eu fizesse Contabilidade, porque meu irmão fez Contabilidade e ele estava já com uma carreira legal. Eles queriam que eu seguisse o caminho dele, que ia ser mais seguro e mais estável. E aí eu fiquei nessa coisa: “O que eu escolho? Pressão da família ou eu sigo o que eu quero?” E aí foi isso o ensino médio inteiro. (risos)
(12:34) P/1 - E quando você se decidiu a fazer o vestibular, você prestou algo além de Contabilidade ou você resolveu se concentrar em Contabilidade, pra passar?
R - A minha jornada foi um tanto meio maluca. Eu estava no terceiro ano e aí eu estava focada em fazer Contabilidade, porque meus pais queriam e aí, beleza. Só que chegou o momento, faltava alguns meses pro vestibular e aí a minha mãe falou: “Pode fazer o que você quiser”. Aí eu falei: “Quê? Como assim fazer o que eu quiser agora, nessa hora?” Na verdade, acho que não eram dois meses, porque não ia dar tempo de me inscrever. Acho que foi no comecinho, na época das inscrições, que ela falou. Aí eu falei: “Tá bom, vou fazer Arquitetura então.” Porque Moda, zero chance, eles não iam deixar de jeito nenhum. Arquitetura eles pensaram: “Ah, acho que dá, vai”. Aí, beleza, eu fui fazer Arquitetura. Inclusive eu falei que eu continuei na mesma escola, porque eu fiz Mackenzie, né? Mackenzie tinha ensino médio e faculdade.
Eu fiz um semestre e aí fiquei pensando, bateu uma crise. Terminou o semestre, bateu a crise, eu falei: “É isso que eu quero pra vida?” Eu pensei: “Eu vou decepcionar meus pais mesmo?” Tem umas coisas assim, né? (risos) Aí, do nada, bateu assim: “Não, eu vou cancelar aqui. Eu também não quero mais depender financeiramente dos meus pais”, porque tinha que pagar faculdade e eu não conseguia trabalhar porque era meio que integral. Eu falei: “Não, eu vou cancelar isso e vou focar em prestar vestibular numa faculdade pública, pra Contabilidade”. Aí foi isso, o segundo semestre foi estudar, estudar, pra passar no vestibular de novo, em Contabilidade.
Passei na USP em Contabilidade e eu fiquei: “Meu Deus, agora vai!” (risos) E aí eu pensei: “Mas calma.” Por que eu decidi fazer isso? Porque na época eu queria fazer Moda, só que os meus pais não iam me apoiar, então pensei: “Vou fazer Contabilidade, vou trabalhar nisso e guardar uma graninha, pra poder investir na minha faculdade de Moda depois”. Foi isso que eu pensei e aí, agora, mudou tudo. (risos)

(15:19) P/1 - E como é que foi essa experiência, na hora que você começou a fazer o curso de Contabilidade na USP? De repente você entrou e pensou: “Bom, eu já tô aqui, agora eu vou fazer essa faculdade.” Como é que você se sentiu na adaptação de começar a fazer esse curso?
R - Foi uma experiência muito nova, porque o pessoal era diferente e o ambiente era diferente, né? E é uma área que eu completamente não queria fazer, eu só queria fazer pra chegar a um outro objetivo. Eu pensei: “Eu vou focar aqui nesses quatro anos, vou fazer a minha faculdade em quatro anos, pra terminar e poder chegar aonde eu quero”. E aí foi isso, né? Mas foi bom, conheci muita gente legal na faculdade, que eu levo pra vida inteira e mudou a minha vida totalmente, depois disso.
(16:24) P/1 - E, durante a faculdade, você chegou a começar a trabalhar ou fazer estágio em Contabilidade, em algum local? Ou você aguardou finalizar a faculdade, pra começar a entrar na área?
R - Desde o primeiro dia que eu entrei na faculdade, eu já comecei a trabalhar também em contabilidade. Foi justamente com o meu irmão, ele já tinha uma empresa de contabilidade. Então, eu falei: “Você me dá uma vaga aí, (risos) pra eu trabalhar com você?” E aí ele falou: “Não, bora lá, só vem.” Desde o primeiro dia que eu comecei a aula, eu comecei a trabalhar também, integralmente, no escritório do meu irmão.
(17:15) P/1- E uma pergunta que a gente costuma a fazer pros entrevistados: quando você começou a trabalhar, qual foi a primeira coisa que você fez com o seu dinheiro, que você pensou assim: “Olha, esse dinheiro é meu e eu vou comprar isso aqui, que eu queria muito comprar e agora o dinheiro é meu, eu vou fazer”? Você se lembra de algo assim?
R- Lembro bastante porque recebi o meu primeiro salário, aí eu falei: “Essa parte eu vou dar pra minha mãe, essa parte eu vou poder gastar do jeito que eu quiser.” Eu pensei: “Antigamente tinha que receber uma mesada.” Às vezes eu também ficava com dó de pedir dinheiro pros meus pais, eu queria muito ser independente deles, aí às vezes eu guardava e gastava o dinheiro que eu tinha guardado de aniversário que, sei lá, alguém me deu. Eu gastava tudo aquilo e ficava com dó de falar: “Ai, gente, não posso comprar o que eu quero”, essas coisas.
Quando eu recebi o meu salário, eu falei: “Nossa, eu achava que, na medida que eu tivesse o meu trabalho e eu tivesse o meu dinheiro, eu ia ficar com mais dó de usar”, só que pra mim foi ao contrário, eu falei: “Não, agora é o meu dinheiro, eu recebi com o meu suor, agora eu posso usar do meu jeito”. (risos) Aí eu fiquei feliz, já comecei a comprar um monte de coisa que eu queria, comer o que eu queria e aí fiz a festa. (risos)

(18:54) P/1 - E depois que você terminou a faculdade, Cíntia, você continuou a trabalhar com o seu irmão ou você passou pra outra empresa? Qual foi a experiência profissional na área de contabilidade que você seguiu?
R- Sim, eu continuei trabalhando com o meu irmão, inclusive ainda estou trabalhando, já faz uns seis anos, mais ou menos. Chegou um momento que eu pensei: “Ou eu sigo aqui a carreira ou vou ter que sair e desbravar o mundo”, né? Eu estou nesse impasse agora. (risos)
(19:37) P/2 - Cíntia, você comentou lá no início que você gostava de brincar que estava cozinhando. Como surgiu esse seu interesse por comida [quando] adulta, além desse momento?
R - Acho que no decorrer do meu crescimento tive muito contato com comida. Eu falei dessa coisa quando eu tinha uns três, quatro anos, ficava brincando ali, de plantas. Mas logo em seguida, meus pais tiveram um restaurante lá na Liberdade, de comida chinesa, então teve um tempo que eu estive lá, convivendo com tudo ao redor: clientes vindo comer, eu via também o ambiente da cozinha, que é aquela correria. Toda vez que eu entrava, minha mãe falava: “Sai daqui, menina!”, porque era perigoso. Foi de lá também que eu comecei a ter aquele contato de cozinhar alguma coisa.
Eu lembro que eu voltava da escola e aí eu estava com fome, mas o pessoal estava meio corrido e aí eu entrava lá na geladeira, chegava lá, pegava as coisas que tinha na geladeira. Tinha um fogãozinho ali que eu podia usar e eu fazia alguma coisinha pra comer, um lanchinho ou, sei lá, uma sopinha. Foi lá que eu comecei a mexer com comida, mesmo não fazendo muitas coisas gostosas; [era] só pra comer mesmo, pra matar a fome. Mas eu comecei a sentir essa ligação de gostar de fazer comida, de apreciar até o momento de pegar o ingrediente, ficar cortando-o, eu achava muito legal você estar lá e poder transformar a comida, sabe?
Acho que foi por conta disso que a relação com a comida é uma coisa enorme, praticamente tudo envolve isso. Não só as coisas que eu faço atualmente, mas quando eu vou viajar, o meu intuito é viajar pra comer; quando eu vou pra um lugar, eu já faço o mapeamento de onde eu vou estar, pra saber onde tem lugar legal pra comer, pra conhecer. Eu acho que é muito legal, porque comida e cultura, sabe, é uma porta de entrada.

(22:22) P/2 - E como é que surgiu essa oportunidade de ser uma criadora de conteúdo?

R- Essa oportunidade foi justamente por eu ter entrado na faculdade de Contabilidade porque, quando eu entrei, eu conheci um amigo que trabalhava em restaurante, na cozinha, e aí a gente conversava muito sobre comida. Sempre antes da aula a gente estava lá, falando de um monte de comida: “Ah, o que é que é bom, onde que é gostoso? Como é que faz isso, aquilo?”
Esse meu amigo, junto com outro amigo nosso, criou um canal. Eles já tinham uma ideia, um sonho de ter um canal pra trazer essa ideia, essa coisa de culinária, principalmente asiática, porque aqui é um mercado que é mais escasso e que o pessoal ainda não conhecia tão bem. É uma forma de desmistificar a nossa cultura, a nossa culinária, porque eles são descendentes de japoneses. O pessoal, quando pensa em comida japonesa, já pensa que é sushi e peixe cru, mas, na verdade, tem infinitas coisas. Tem muita coisa que envolve a culinária, no geral, não é só sushi, sabe?
É bem isso também que eu sentia em relação à culinária chinesa. Eu senti que um pessoal brasileiro tinha bastante um pré-conceito em relação à cultura, à culinária chinesa, então foi nessa oportunidade que eles pensaram: “A gente também precisa trazer mais diversidade em relação à cultura asiática.” Como o meu lado era mais chinês, então eles pensaram: “Não, vamos chamar a Cíntia e aí a gente deixa o nosso grupo mais amplo.” E aí foi isso.

(24:34) P/2 - E o seu blog pessoal? Você tem um blog pessoal de comida no Instagram. Como é que surgiu?
R- Ah, então, o meu blog é pequenininho. Era mais do tipo: meus amigos ficavam vendo as minhas redes sociais, eu postando comida. Eles ficavam pensando: “Nossa, tipo: eu só passo vontade aqui, né?” Eles ficavam perguntando indicações de lugares e aí eu pensei: “Ah, vou criar uma conta só pra falar sobre comida, de vários lugares que eu viajei ou de São Paulo mesmo ou alguma coisa diferente que eu comi.” Eu escrevia no meu outro perfil de comida.
Mas o meu foco atualmente é mais o perfil que eu participo junto com os meus amigos, porque a gente está crescendo mais e já está meio que estruturando-o como empresa. Por isso que eu estava falando que eu já estava meio no momento de transição, de sair de contabilidade pra criadora de conteúdo, né?

(25:49) P/2- Você comentou que eles são descendentes de japoneses e o seus pais são chineses. Vocês costumam fazer alguma mistura entre as comidas?
R- Sim, totalmente porque os meus amigos também tiveram várias experiências em diferentes restaurantes, inclusive um deles já trabalhou em um restaurante taiwanês. Cada um tem esse contato com a cultura asiática, não só a que eles têm origem, mas da Ásia inteira, então a gente sempre faz uma mistureba.
Por conta da pandemia a gente não conseguiu se juntar mesmo pra todo mundo comer junto, mas a gente sempre conversa bastante sobre experiências e de lugares diferentes, então é bem bacana.

(26:47) P/2- E vocês também experimentam com a culinária brasileira?
R- Sim, com certeza, porque a gente cresceu nesse ambiente, no ambiente brasileiro. Tem muito essa coisa de, por exemplo, que a gente fala muito, de comer gohan, que é um arroz japonês mais grudadinho, com feijão; em casa, a gente praticamente não tinha arroz brasileiro, né? Ou sei lá, misturava os dois, então era sempre o arroz mais grudadinho.
Eu lembro que, quando eu era criança… Até falei uma vez que eu gostava bastante de comer arroz brasileiro também, soltinho, bem temperadinho, com alho e tal. Aí eu ficava pensando: “Nossa, por que eu não consigo fazer em casa?” Aí eu lembro que eu estava conversando com uma professora e ela falando, dando umas dicas: “Ah, você tem que jogar água assim, depois, pra fazê-lo ficar mais solto.” Eu tentava e ele sempre ficava grudado. Depois, quando eu cresci, que eu entendi que era o arroz japonês, por isso que ele não ficava soltinho. (risos)
Tem muito de comer uma feijoada, fazer uma feijoada em casa e comer com gohan. Ou sei lá, eles falavam também, né: “O churrasco de família sempre tinha um onigiri, que é aquele bolinho triangularzinho, então sempre [teve] um mix de culturas e aí foi isso, né: criou o que a gente tem de vivência aqui. Eu acho muito bacana isso.

(28:24) P/2- Você já chegou a visitar a cidade natal dos seus pais?
R- Sim, sim, eu já visitei várias vezes, inclusive eu adoro a cidade dos meus pais. Eu gosto muito da comida, porque desde pequena eu já tinha esse contato. Quando eu cheguei lá, falei: “Gente, eu amo essa cidade.” (risos) Eu gostava muito de passear assim, sozinha mesmo, pegar ônibus e ir conhecendo os lugares - e comendo em cada esquina, porque lá é muito comum, comida de rua. Nossa, eu achava muito bom. Queria um dia poder morar lá por um tempo, ter aquela vivência. Acho muito legal.
(29:08) P/2- Tem alguma experiência marcante de quando você viajou pra lá?
R- Eu acho que eu tive vários momentos, porque eu fui em um espaço de tempo de dois, três anos, então era minha pré-adolescência, minha adolescência, aí mais pra frente, eu já adulta. Foram vários momentos diferentes.
No começo eu ia com os meus pais. Eu lembro, por exemplo, que na cidade dos meus pais, minha mãe me contava… Eu passava uma ponte e ela falava: “Ah, aqui nesse rio a gente lavava roupa. Naquele outro ali seu pai ficava nadando”, sabe? Ela contava: “Naquele colégio lá, seu irmão estudou”. Eu ficava pensando como é que era, num ambiente agora totalmente urbanizado, diferente; minha mãe contando aquelas histórias e eu achava muito legal isso. Isso foi um momento, quando eu era mais nova.
Depois teve um outro momento que eu fui pra China sozinha e aí foi por causa de um evento que eu fui participar lá em Beijing. E lá eu conheci vários jovens da minha idade, foi em 2017. Tinha vários jovens de cada país, que nem eu, descendentes de chineses, só que em outro país, e aí a gente [ficava] contando sobre as nossas experiências. Teve essa coisa de conhecer pessoas de outros países e também eu achei muito legal também de poder viajar sozinha, foi a primeira vez que eu viajei sozinha num lugar assim que, mesmo que eu entendesse a língua, o idioma e soubesse tipo me virar, ainda era uma coisa, um ambiente desconhecido.
Eu lembro que meus pais ficaram bem preocupados: “Ai, toma cuidado, filha, toma cuidado com isso.” Aí eu falava: “Não, pai, não, mãe, eu já tô grande, sabe? Eu consigo”. E aí eu fui, eu conheci muita gente. Eu lembro que ia tirar foto e estava sozinha, aí eu ia abordar um estranho na rua, uma moça assim que estava ali também, turistando que nem eu; ela falou: “Você está sozinha? Vamos tirar uma foto uma da outra? Vamos passar o dia aqui, juntas?” E aí foi isso, eu lembro que eu fiz várias amizades assim. Achei muito bacana você estar seguro com essas coisas.
(32:05) P/2 - Aproveitando que você falou que entende a língua: quando você começou a aprender português, o processo de alfabetização foi como, pra você?
R- Eu lembro que, na real, acho que eu comecei a falar o chinês primeiro, porque lá em casa os meus pais não falavam tão bem o português. Na minha cabeça, eu falava mais o mandarim ou o dialeto com os meus pais. Lembro que, na escolinha, no começo eu ficava até meio perdida; eu ficava: “Gente, eu não tô entendendo nada” ou tipo... Eu sabia falar, só que escrever, começar aprender a ler… Inclusive, eu aprendi a ler com a minha mãe, a minha mãe que me ensinou a tipo saber que B e A era ‘ba’, sabe? Na escola, eu ficava meio assim: “Hã?” (risos) Em casa que minha mãe sentou e foi explicando, bem paciente mesmo, como formava as palavras. Comecei a ler e falei: “Gente, é bem doido isso, né”?
(33:25) P/2- Em relação às culturas, você sente que tem alguma semelhança entre elas?
R - Bom, eu acho que sempre vai ter algo muito semelhante. Pelo menos pra mim, eu acho que em qualquer lugar onde você esteja, a relação com família, de estar unida, fazer as coisas juntas e ter aquela sensação de que você pode contar com alguém assim. Acho que é uma coisa que em qualquer lugar é importante. E a relação do afeto com a comida, acho que é uma coisa muito legal e eu tô falando de comida de novo, (risos) mas é que acho que tudo pra mim envolve isso, até essa coisa de comida afetiva, de você ter memórias afetivas através de uma comida, eu acho que [tem] isso em qualquer lugar no mundo. É o que temos em comum, porque somos pessoas.
(34:39) P/2 - Você teve contato com os seus avós?
R- Sim, eu tive contato com os meus avós paternos - inclusive quando eu tinha uns quatro anos, eles vieram pra cá ficar um tempo. Eu lembro bastante deles, do meu avô me chamando pra jantar, gritando: “Cíntia, comer!” Ele falava ‘comer’ mesmo, é uma das palavras que ele aprendeu a falar em português, eu lembro muito dessa parte. E também que minha avó era bem brava.
Eu lembro que minha mãe, uma vez, foi sair pra trabalhar. Eu comecei a chorar, sabe aquela criança que ficava no chão e não quer mais levantar? A minha avó chegou; meu Deus, eu apanhei feio da minha avó, eu nunca esqueço desse momento. (risos)
Mas depois eles foram pra China, ficaram só alguns meses e voltaram pra China. Ficaram lá mesmo, até falecerem. Toda vez que eu ia pra China eu os visitava. Na medida do possível, eu ia passear com eles, acompanhar pra comer junto. Mesmo que eu não tivesse, que eu não tenha tido vários momentos com eles, de crescer, de viver, (risos) você sente um carinho assim, sabe? (choro) Inclusive, o meu avô faleceu no começo da pandemia e eu não consegui visitar pela última vez, porque aqui estava bem no começo. E aí, sei lá, pra mim é uma coisa muito... (choro) Desculpa.

(36:36) P/2 - Não, imagina, se você quiser a gente dá uma pausa.
R- Não. (choro) É que toda vez que eu lembro deles, eu fico meio... (choro) Perdão, gente. (risos)
(36:49) P/2- Não, imagina.
R - Mas eu tenho memórias muito boas com eles e não me arrependo de ter dado o meu tempo pra estar com eles, sabe? (risos) Perdão. (risos)
(37:16) P/2- Imagina! Não quer dar um tempinho, beber uma água?
R- Não, está de boas, só... (risos)
(37:22) P/2 - Tá bom. Cíntia, a gente tem o senso comum que a China é uma cultura milenar. Tem alguma coisa que foi passada de geração a geração, na sua família?
R- Hum, não que eu me lembre, viu? Pelo que eu saiba, alguma coisa de família,

um objeto, alguma coisa assim, né? Que eu me lembre, não.
(37:54) P/2- É, pode ser um costume também.
R - Bom, de costume eu acho que tem bastante aquela coisa. Na hora de comer você não pode deixar o hashi em pé, senão não é bom. Umas coisas assim. Ah, na hora de comer o peixe você tem que comer o corpo inteiro, pra depois comer a cabeça, sabe? Tem umas coisas assim, uns costumes assim, talvez de etiqueta, não sei, mas são coisas que a gente ainda faz bastante em casa, que se eu fizer errado, minha mãe já dá uma bronca. (risos) E aí é isso também, essa coisa de você sempre ser bem respeitoso, principalmente com o pessoal mais velho. Na hora de você brindar com o pessoal mais velho, você tem que levar as duas mãos. São umas coisas assim, uns detalhes, mas acho que isso é muito forte aqui na minha família,

porque meus pais nunca deixaram de ensinar e de passar pra gente ou pros meus sobrinhos - o meu irmão já tem filhos, meus irmãos já têm filhos. É um costume que muitas famílias já perderam, mas aqui em casa meus pais, assim: “Não, tem que ser desse jeito”. (risos)
(39:26) P/2- Na questão de identificação, você se considera chinesa, brasileira ou os dois?
R- Essa é uma questão bem difícil, né? Quando eu era pequena, eu não sentia muito isso, mas depois que eu cresci e eu comecei a ver sobre pautas asiáticas e tudo mais, eu comecei a sentir que a gente se sente meio perdido (risos) nesse mundo, porque nossa aparência é de chinês, mas a gente nasceu aqui no Brasil, então eu sou brasileira. Só que o pessoal, quando te olha, fala: “Você é de onde?” Aí eu falo: “Eu sou de São Paulo”. (risos) Aí o pessoal fala: “Hã”? Aí você fica meio: “É, gente, (risos) a gente nasceu aqui, então a gente é brasileiro”. Tem muito isso, né?
Teve uns momentos da vida que, sei lá, por preguiça, não sei, eu falava: “Ah, sou chinesa.” Mas não sou chinesa (risos) porque, se eu estiver lá, o pessoal também vai falar: “Ah, você veio de onde?” E eu não vou falar que eu sou da China, eu vim do Brasil. (risos) Eu sou brasileira, mas é uma coisa muito doida de pensar, de você construir a sua identidade. Ainda estou em processo, mas assim...

(41:18) P/1- Bom, Cíntia, então a gente vai se encaminhando pras perguntas finais: eu gostaria que você falasse um pouquinho sobre as coisas mais importantes pra você, hoje em dia.
R- Tá, as coisas mais importantes pra mim, hoje em dia, eu acho que é família, amigos, a relação que você tem com as pessoas, de você saber valorizar, sabe? Acho isso muito importante, então pra mim acho que tudo que vale é você dar valor às pessoas que estão perto de você. E, de resto, tendo saúde, (risos) podendo fazer o que a gente gosta, podendo comer o que a gente quer, é o que importa, acho que é isso. Acho que, pra mim, nada é mais importante do que estar numa mesa, comendo comidas que eu gosto, que eu fiz pros meus amigos, pra minha família e estar todo mundo feliz e rindo. É isso.
(42:29) P/1 - E, falando em comida, quais são os planos de vocês e dos seus amigos pro GoHanGo?
R - Ah, os nossos planos são desbravar o mundo, dominar o mundo! Brincadeira. (risos) A gente quer muito passar a mensagem que a gente quer, de desmistificar a nossa cultura, a nossa culinária. E não só isso, desmistificar tudo, a cozinha mesmo. Muita gente acaba não cozinhando porque acha que é difícil, mas na verdade não é assim um bicho louco, de sete cabeças. A gente vê muito seguidor falando: “Ai, comecei a cozinhar por causa de vocês.” E é isso, acho que é essa coisa da gente trazer essa energia boa, de incentivar as pessoas a querer fazer as coisas que elas querem, ou que elas têm medo, então tipo: “Gente, vai lá, faz, vai dar certo”. É essa energia boa que a gente quer dar. E conhecer o mundo, a gente quer muito viajar e mostrar outras culturas pra todo mundo também. Então, é isso. (risos)
(43:50) P/1- E agora, falando pessoalmente, pra você, quais são os seus sonhos pro futuro?
R- Ai, o meu sonho é poder viajar, viajar bastante, pra caramba e poder comer (risos), comer as comidas de todos os lugares que eu for viajar porque, pra mim, é o mais importante. (risos)
(44:16) P/1- Então, vamos pra última pergunta, Cíntia: o que você achou de contar a sua história de vida pra gente, hoje?
R- Ai, gente, eu achei muito bom. Várias emoções, né, (risos) literalmente; me fez relembrar muitas coisas, muitos momentos legais da vida, da infância e como todas as coisas pequenas que você fazia sem saber constroem o que você é hoje, né? Que nem eu ficava lá, fazendo as sopas de planta e hoje eu tô trabalhando com isso. Eu nunca imaginava que ia trabalhar com comida assim e gostar de trabalhar com comida. Eu achava que eu ia fazer, sei lá, Contabilidade e depois tentar fazer Moda e era isso, sabe? E aí eu descobri, no meio da faculdade, que era outra coisa. O mundo é uma loucura, a vida dá voltas e aí você começa a perceber: “Caramba, tinha toda essa relação ali e eu não sabia”. Acho que foi muito legal conectar as coisas assim e conectar às minhas origens.
(45:30) P/1 - Então, em nome do Museu da Pessoa, Cíntia, a gente agradece muito você ter aceitado o convite e a sua entrevista de hoje.
R- Ai, gente, eu que agradeço, sério. Eu fiquei muito honrada de estar aqui e de contar um pouquinho da minha história e espero que vocês gostem, (risos) tenham gostado, né? (risos)