Museu da Pessoa

Traços cheios de humor

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ziraldo Alves Pinto

Memória da Literatura infanto-juvenil
Depoimento de Ziraldo Alves Pinto
Entrevistado por José Santos e Thiago Majolo
São Paulo, 24/11/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MLIJ_HV034


Transcrito por Patrícia Fonseca
Revisado por Luiza Gallo Favareto


P/1 - Então, Ziraldo, boa noite.


R - Boa.


P/1 - Queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.


R - Ziraldo Alves Pinto. Caratinga, Minas Gerais. Zona da Mata na época, Vale do Rio Doce, 24 de outubro de 1932. Ou seja, eu nasci mais perto do século XIX do que do século XXI (risos).


P/1 - Ziraldo, você podia falar o nome dos seus pais e atividade deles?


R - Meu pai chamava Geraldo Alves Moreira Pinto, era guarda-livro, e a minha mãe chamava Zizinha Alves Pinto, e daí vira Zi, de Zizinha e Raldo de Geraldo. Meu pai era muito imaginoso, e aí inventou o meu nome. Mamãe era costureira, aliás uma costureira de mão cheia, famosa na cidade, muito habilidosa. Ela e as irmãs todas eram muito habilidosas. Foram dois pais muito interessados mesmo, minha mãe era muito companheira, muito divertida, muito brincalhona. Casou muito novinha, meio que brincava com a gente igual criança sabe? Rolava na grama brincando, era uma festa.


P/1 - E você tem quantos irmãos?


R - Eu sou o mais velho de sete. Ziraldo, Zizélio, Maria Elisa, Maria Helena, Maria Elisabete e o Geraldinho. Parece que quebra o verso aí, o temporão, né? Minha mãe botou o nome do pai, Geraldo Alves Moreira Filho, que também é artista, ele é designer. Ele é um designer de mão cheia, trabalhou anos na Warner e desenha capa de disco... Ele consegue ser minigráfico porque fazer essas capinhas de cd, transformar isso em arte, para mim isso é completamente impossível, e ele faz o diabo com esse formato.


P/1 - E Ziraldo como é que era a sua casa de infância?


R - Eu nasci em Caratinga, às margens... Às margens nada não! Tinha um"corregozinho" lá que passava, rio Caratinga, onde passava todo o esgoto da cidade e onde eu peguei esquistossomose, como todo mundo na minha infância inteira. Quando eu era menino teve um censo esquistossomático no grupo escolar. O governo de Minas mandou milhares de latinhas para o grupo escolar para a gente botar o cocô dentro da latinha. E foi uma coisa altamente constrangedora, e a professora: "Olha, vocês vão fazer e tal...” Que coisa mais complicada (risos). E aí fizemos o nosso cocozinho lá, dentro da latinha, e eu fiz a minha primeira piada. Eu falei: “Papai! Essa é a primeira vez que nós vamos mandar o governo à merda!” (risos) fez o maior sucesso, eu acho que foi aí que eu descobri que eu ia ser humorista.


P/1 - E você tinha quantos anos?


R - Era no segundo ano do primário, eu devia ter nove para dez anos (risos). E aí deu 90% das crianças que tinham esquistossomose. Você imagina, quase 90%! Em Itambacuri é que deu quase 95%. Mas todo mundo tinha esquistossomose e foi um problema curar. E meu avô tinha onze, doze filhos, e ele mandava na família toda. E aí o meu pai era muito dócil às vantagens desse avô, desse sogro dele. E a minha terra não tinha muita possibilidade de emprego, então o meu pai trabalhava num banco lá de Caratinga mesmo, Banco Comercial de Caratinga. Eu acho que o banco quebrou e papai ficou desempregado e o meu avô pediu um emprego para o meu pai num arraial chamado Lajão, e levou a família toda pra lá. Meu pai ia ser guarda-livro de um cara chamado Carlomagno, um italiano, eu não sei como esse cara foi para lá, num armazém daqueles de arraial que tinha tudo, desde arreio, sal, enxada, foice e tudo. E meu pai era guarda-livro desse Carlomagno. E nós fomos para Lajão, eu e o Geraldinho, só éramos dois irmãos, meu pai, a minha mãe e meu avô. Fomos para lá. Lá nasceu o Zélio. E eu me lembro quando chegou a eletricidade e a instalaram na cidade, e o meu pai que era muito cívico fez um hino para as crianças cantarem, eu me lembro. É assim: “Chegou à luz, aí novidade no Lajão. Que ilumina a minha vida... lá-lá-lá... do coração.” Isso ficou na minha memória para sempre. E ficamos no Lajão parece que... Eu nasci em 32, eu fui com três anos pro Lajão. E é a memória mais antiga da minha vida, que eu fui na cabeça do arreio do meu avô, e a mamãe e o papai todo mundo no cavalo, e as mulas com a mudança. Assim, eu não me lembro de nada, eu só lembro... Eu nunca vou ter certeza se eu lembro ou se a mamãe contava tanto... Mas de qualquer maneira, toda vez que eu ouvia o tamborilar da chuva lá no telhado, eu sentia aquela coisa que depois foi descrita como proustiana, de sentir uma felicidade, um bem estar, uma sensação de proteção. E eu acho que eu arrumei na minha cabeça, mas deve ser lembrança, que sou eu debaixo da capa gaúcha do meu avô, como a minha mãe me contou, a capa gaúcha cobria o sujeito e cobria a bunda do cavalo, cobria tudo. Você ficava, o sujeito com a capa gaúcha em cima do cavalo era uma peça só, né? E aí eu ficava dentro, na cabeça do arreio, com a capa gaúcha por cima. E a chuva tamborilava na capa gaúcha e eu estava muito protegido, quentinho, com o meu avô. E como eu era o primeiro neto, então imagine a paixão. Eu depois compreendi isso quando eu tive a minha neta Nina, eu fiz até um livro chamado O Menino e seu Amigo que é a paixão de avô por... A vida inteira eu, até ele morrer... Eu tinha 45 anos, eu tinha esse avô. Eu era o único sujeito da minha geração que ainda tinha avô, e eu ainda era o xodó dele. Uma figura fantástica, o seu Hortêncio. E eu me lembro de momentos em que eu ia conversando com ele, e ele me contando as coisas. Na chuva e aquele pessoal todo no cavalo, debaixo da chuva, minha mãe sentava de lado. Agora você imagina que coisa fantástica, como é que uma mulher poderia viajar naquele arreio, sentada de lado no cavalo, horas e horas sentado no cavalo de lado, porque não podia montar de perna aberta, que coisa impressionante. E a mamãe diz que, na chuva... O meu avô sem parar de falar, conversando com o neto de três anos. E daí então eu acho que eu me lembro disso, mas eu acho que eu inventei isso. Mas a sensação de chuva até hoje me dá felicidade, que é o negócio da rosquinha do Proust. A Madeleine. Rosca não, nós é que traduzimos para rosca, mas Madeleine não é rosca (risos). Voltei do Lajão em quarenta, em 1939, para Caratinga. E eu lembro que tenho vagas lembranças do Lajão que passou a se chamar de Conselheiro Pena...


P/1 - Ah, é Conselheiro Pena?


R - É, eu me lembro da festa quando ele passou a ser cidade, eu me lembro dos prefeitos chegando, autoridades, o trem chegando cheio de autoridades de Belo Horizonte. Eu acho que o Benedito Valadares só chegou a Governador Valadares, ele não chegou a ir até o Lajão, não. Eu não me lembro, mas eu me lembro dessa coisa assim da solenidade. Aí eu já estava com seis anos. E foi de 38 que ele passou a cidade e passou a chamar Conselheiro Pena. E eu me lembro de uma anta, que toda a tarde ela atravessava a rua da cidade, eu me lembro da sombra da anta passando: “É 5h40, a anta já passou e tal...” (risos).


P/1 - Ela me marcava também...




R - Muito. Eu me lembro do jacaré na beira do rio, eu me lembro de muita paca na praia, muita paca mesmo, chegava assim a olhar da janela de casa, o Rio de Janeiro lá embaixo, e um monte de pacas esquentando. Eu quero voltar ao Lajão, a Conselheiro Pena, porque no quintal da minha casa seguramente tinha um sambaqui. Porque eu me lembro que meu pai foi fazer uma horta no fundo do quintal e ele dizia assim: “Não dá para cavar canteiro lá, isso aí parece que é um cemitério de índio. Está cheio de vaso de barro enterrado aí, não vou mexer com isso não, tem osso de índio aí dentro desse negócio. Eu não vou mexer com esse negócio não.” Eu me lembro com a maior nitidez isso, então eu quero saber se alguém tem notícia do sambaqui aí em figueira, no Lajão. Todas das minhas memórias são meio difusas até aí. Eu tenho uma tese de que antes dos seis, sete anos, sua memória é uma máquina fotográfica sem filme, você só bota filme na máquina a partir dos sete anos, e aí você registra tudo. Aí fui para Caratinga em quarenta e sai de Caratinga em 46, 47. Não, 48! Eu fiz dezoito anos em Caratinga e eu posso escrever quase um diário de Caratinga. Por exemplo, eu sou capaz de desenhar as casas da rua principal da minha cidade uma por uma, de um lado e do outro, e dizer quem morava nelas...


P/1 - É mesmo?


R - E não consigo saber o nome de nenhum vizinho da minha rua, que eu moro há trinta e tantos anos aqui no Rio de Janeiro. Eu me lembro de tudo. Então a cidade ficou muito marcada na minha vida. Muito, muito, muito. Eu agora ainda volto lá muito emocionado. Eu sempre me emociono profundamente quando eu volto lá, muito mesmo, é impressionante. O Rui Castro acha que não é verdade, que é demagogia gostar assim da cidade da sua infância, mas eu gosto mesmo, sabe? Eu fico muito emocionado. E agora eu recebi umas fotos da cidade, ela virou uma cidade do século XXI do interior, então o Brasil mudou muito. Eu viajo esse Brasil desde oitenta. Não, de oitenta nada, quando o Luciano Carneiro morreu, aquele repórter do O Cruzeiro, morreu em um desastre de avião, eu saí pelo Brasil, eu era relações públicas da revista O Cruzeiro, eu tinha acabado de casar, com 26, 27 anos. Eu viajei pelo o Brasil todo. E eu me lembro das cidades, das capitais do nordeste todas, eu chegava no bar mais chique de Salvador e de Fortaleza, e a toalha do bar era de plástico, o copo aquele copo que parece de... Os garçons sem uniformes. Baiano de tênis em Salvador, e os famosíssimos clubes de Fortaleza. E os sofás do hotel eram forrados de plástico, aquele plástico branco sobre o estampado. Não tinha ar refrigerado, nada, nem pensar, nada... Não existia. Você morria de calor mesmo. Eu me lembro que quando o avião de Terezinha abriu a porta, a minha roupa colou toda no corpo. Colou! Vlupt.


P/1 - Nossa!


R - Como quando se entra na sauna. Então eu conheço o Brasil desde essa época. Mas eu estava falando de quê?


P/1 - De Caratinga.


R - De como cresceu Caratinga...


P/1 - Nos anos trinta e quarenta.


R - A cidade já tem até edifício, tem supermercado.


P/1 - Tem, tem.


R - Agora tem presídio. A cadeia de lá era uma pocilga, fedorenta, agora tem presídio, parece presídio americano. Tem aterro sanitário, com plástico preto, com trator (risos). É impressionante. Mas no Brasil todo, é impressionante! Essa coisa de supermercados então. O supermercado de Natal, do Maranhão. O Maranhão um estado miserável, mas em São Luiz tem um supermercado que é a coisa mais fantástica do mundo. Mudou muito a vida desse país.


P/1 - Ziraldo, conta para gente, como é que era a Caratinga então da sua infância?


R - Caratinga era uma praça muito bonita, porque ela tinha palmeiras imperiais, estão lá as palmeiras ainda, era famosa por essa praça. E tinha um jardim que o jardineiro era um escultor, então, como tudo era de ficos, ele esculpia passarinhos, flores com as plantas. Muitas flores no jardim. Mas era sem calçamento uma lamaçal incrível. Eu morava numa rua sem calçamento, e o nosso negócio era voltar para casa e pegar faca e tirar o barro do sapato, depois botar o sapato assim na frente do fogão para poder secar. Naquele rio onde a gente nadava, brincava, eu tinha uma brincadeira ótima: lá vem o marinheiro. Era um "cagalhão" descendo o rio, você abaixava a cabeça e ficava olhando ele passar. E aí um dia o chapelão saiu com uma "badalhoca" de merda na testa “Ah, está com merda na testa! Lavo a testa’’ (risos) e todo mundo achava uma graça. Ele morreu de esquistossomose.


P/1 - Morreu de esquistossomose?


R - A minha infância foi enterrar amigos de infância, eu tinha um enterro por semana. Virou Amarcord.


P/1 - É mesmo?


R - Era um enterro por semana. Eu perdi uns dez amigos de infância de esquistossomose, entre amigos e conhecidos: Adãozinho, Jorginda(?), Mariquinha, João Permanente... Esses são os quatros agora que eu me lembro assim de repente. Menina... Mas era barriguinha inchada, é uma Amarcord de pobreza, entendeu? Mas quando eu vejo uma Amarcord do [Federico] Fellini, eu fico vendo que mais ou menos o Fellini, aquela história dele é um pouco o começo do fascismo, um pouco antes da guerra. Então, quer dizer, a gente já tinha fascista lá em Caratinga também, já tinha integralista, já tinha pessoal de camisa verde. É impressionante, a gente não registra as transformações. Eu vivi, a minha geração atravessou transformações seculares nesses cinquenta anos, porque o homem com um machado de pedra lascada pra um machado de pedra polida, demorou dez mil anos para polir a pedra. E eu sai do DC3, no avião que eu fui com a exposição do ________ para o Brasil, você dá uma "manicola" no avião "uh, rum-rum-rum" para o avião pegar, para o homem na lua, em trinta e poucos anos.

Quando eu era menino, meu pai era muito exigente com os filhos, penteava o cabelo, arrumava a camisa da gente, limpava o sapato para a gente sair bonitinho, botava meia para a gente ir para a missa. Papai de tarde arrumando a gente para ir para a casa do patrão dele, do Carlomagno, “assistir rádio”. O Carlomagno botava um rádio na janela, botava aquele fio lá em cima da antena, botava o fio terra, botava aquelas cadeiras em frente à casa dele, botava o lampião... Ah, já tinha eletricidade! Botava aquelas lâmpadas acesas do lado de fora da casa, e ficava todo mundo ouvindo a Rádio Mayrink Veiga. E eu sei exatamente que ano é isso e o mês, porque o que tocava eram as músicas de carnaval. E a música é: “Será você a tal Susana? A casta Susana do posto seis. Coitada, como está mudada...” e aí era o carnaval de 38. E eu me lembro o meu irmão chorando e o cara falou: “Eu conheço essa Susana e ela não chora feito uns e outros aí, não...” E eu achei impressionante que o cara conhecia a Susana, cara! Eu acreditei que ele conhecia. Trinta e oito. Eu tenho um livro de um estudioso brasileiro de samba, chama Edgar... Um crime esquecer o nome dele. E ele tem todas as principais músicas de carnaval, desde que começa o carnaval, a gravar músicas de carnaval, e a história de como é que foi, quais fizeram sucesso... E tinha concurso, música que ganhava, música que perdia, até 1950 e tantos, que eu uso para poder saber em que anos certas coisas da minha vida aconteceram. Então eu digo assim: Isso foi... A música que estava tocando naquela época é: “eu sou o pirata da perna de pau...”, eu vou lá e vejo o ano (risos). É um jeito de eu gravar, por isso é que eu posso escrever a minha biografia com data, por causa dessa música, né?


P/1 - Então, o grande programa era ouvir o rádio?


R - Ah, o rádio era... Eu tinha duas janelas para o mundo: uma visual e a outra auditiva, que era o rádio e o gibi. Quer dizer, o quadrinho é uma grande janela para o mundo, foi o quadrinho que abriu a minha cabeça para o mundo. Mas eu era muito atento, acompanhei a segunda guerra toda, eu ouvia. Eu tinha um tio chamado Luis Carvalho que era inteiramente, digamos, paranóico. Ele achava que começaram a bombardear os navios brasileiros, na costa brasileira, que dava notícia... Ficava meu pai, meu avô, eu e o tio Luis ouvindo o noticiário. Eu me lembro direitinho do... Como ele chamava? O grande locutor da rádio Tupi dizendo: “Estalingrado não caiu!” Como é que eu esqueci o nome desse locutor? Não tem cabimento, eu sempre soube o nome dele, ele fazia um comentário político e depois dava a notícia, empolgado. Eu me lembro dele também dizendo: “Teeeerminou a guerra!” Eu me lembro quando ele anunciou que Paris tinha caído. E meu pai, meu pai era um mulato bonito, assim, do lado do rádio, olhou para o meu avô e começou a chorar. Ele falou: “É o fim da civilização!” Aí meu tio Luis Carvalho ficava assim: “Oh, a guerra está chegando aqui, Geraldo, nós estamos perdidos!” e o meu avô: “Oh Luis, olha o menino, pô!” e meu tio: “Ele tem que saber, ele tem que entender a realidade!” Eu fazia versos, né? "Dou meu peito a própria morte, aquela pátria defendendo", doido para ir para a guerra. E eu ainda tinha um hino assim. “Amo tanto, estremeço essa terra, amo tanto meu vasto país que se um dia eu partir para a guerra, eu irei bem contente e feliz.” (risos) Então eu queria partir para a guerra de qualquer maneira. Eu me lembro dos pracinhas, mas isso eu já era rapazinho.


P/1 - Ziraldo, desde pequeno você já começou a desenhar? Como é que foi isso?


R - Desde os três anos, isso eu me lembro com nitidez. Pela a posição que eu estava, eu devia ser muito novinho, porque eu estava deitado no chão desenhando. Eu devia estar com cinco anos, deve ter sido em 1936, 37. Estava desenhando no chão. Cinco anos você é bem infantil, é muito difícil ter memória de cinco anos, mas eu devia ter isso. Aí eu me lembro de uma porção de pés envolta de mim, isso aí eu não criei não, e uma voz dizendo: “Ele está dizendo que isso é um tatu.” E eu dizendo: “Eu estou dizendo é o cacete, isso é um tatu!” Eu me lembro direitinho eu falando isso: “Eu estou dizendo que isso é um tatu, você não está vendo que isso é um tatu, pô!” minha mãe tinha me ensinado a desenhar um tatu. Minha mãe me ensinava a desenhar, ela me ensinou as letras todas transformando as letras em coisas vivas. Por isso é que eu virei cartunista. “O A sobe, desce e corta. O B é uma letra que sobe e é barrigudinha. O C é um comilão. O E perdeu o umbiguinho dele... O E tinha um cordão umbilical, é tão novinho que...”, mas essa eu acho que fui eu que inventei. O L vivia ajoelhado, o D também era barrigudo. Que mais que eu lembro? O S era uma cobrinha, claro! E aí eu aprendi as letras antes de aprender... Por isso que eu acho que esse negócio do Concretismo é uma babaquice, porque a nossa língua é silábica, e se você ensina sílabas para a criança, a tendência dela é organizar. E eu ensinei os meus filhos a ler assim. Eu jogava uma porção de sílabas em um monte de quadradinhos, tenho até hoje lá em casa as sílabas: “Ah! Vai buscar sapato para mim.” ele colocava lá “Sa-pa-to”; “Vai buscar pato só”. Eles iam e ficavam procurando: “Vai buscar casa!”. Agora ficam com essa coisa de aquisição de conhecimento, essas coisas aí. O que acontece? Alenta os processos. Se nós falássemos como os ingleses, quer dizer, o som da letra é convencional, não é uma lógica. Nossa grafia é lógica, a inglesa não é. Você pega a E pode ser A, pode ser I, pode ser EI, pode ser EA. Seattle. S, E, A é Seattle, né? G, R, E, A, T é great. Você pega H, E, A, T é heat. Quer dizer, aí é convencional, né? Você bota ____: G, H, R, O, U pô! Então aí não, você tem que ensinar a imagem para a criança. Mas vai ensinar por imagem aqui? Então eu aprendi a ler muito depressa...


P/1 - Você aprendeu a ler em casa?


R - Claro! Eu já fui para o grupo sabendo ler. Minha mãe dizia: “Que letra é essa aqui?” eu digo “B”; “E essa aqui?”; “A”; “E essa junta aqui?” Eu falei: “Não sei”; “Ah, não sabe. Abre a boca e fale B. Tem o A na frente? Então você não fala B, você fala A.” Ela disse:

“Abre a boca para falar B e fale A” e eu falei: “BA”; “É isso!”; “Ler é isso?”, ela disse: “É.”; “Então eu sei ler” Aí eu saí lendo. E, claro, quando veio o Q,U,E, quando veio o N,H,O, veio o til, isso depois eu fui arrumando e fui re-arrumando na escola. Mas acontece que no meu tempo de criança a escola tinha uma lógica científica que os reformadores do currículo brasileiro não entenderam. Quando o século XIX determinou que você tinha quatro anos primários, e quatro anos ginasiais eles diziam: "Esses quatros são formativos e esses quatros são informativos". Está subentendido: "Aqui é preciso aprender os fundamentos: escrever, ler e contar." A escola não se preocupava com outra coisa. Tudo era... Você brincava, tinha dramatização, você cantava os hinos da escola, você aprendia as datas nacionais, você cantava a tabuada. Não precisava de máquina de somar e nem dividir, até dez você sabia por que estava lá “Tã, nã, nã, dois, dois e um, três...” todo mundo cantando. Tem até aquela anedota do menino que foi para escola e a mãe perguntou: “O que você aprendeu hoje?”, “Aprendi tabuada de cinco” “Ah é? Como é que é?” “Parara...lá-lá...” (música) “O moleque, você não está falando os números”; “O mãe, eu já aprendi a música, você quer que eu saiba a letra também?” (risos). Então, quando você chegava no exame de admissão, você era capaz de escrever uma carta para sua mãe, você era capaz de escrever o que você quisesse. Você lia uma história e entendia, você fazia versinho, você lia poesia. Eu já tinha lido todo o Reinações de Narizinho, eu já tinha lido Cazuza, e vivia com a cabeça enterrada no gibi. Papai comprava gibi para mim toda semana, todo mês. Eu lia gibi semanal, suplemento juvenil, tudo, Tico-Tico, Almanaque Tico-Tico, Tesouro da Juventude.


P/1 - Calma Ziraldo, não fala rápido não. Como é que é? Você falou muito rápido. Quais são os gibis que chegavam lá em Caratinga?


R - O gibi mensal, o Globo Juvenil Mensal, gibi semanal é o Globo Juvenil Semanal, Mirim, Lobinho, Tico-Tico, e chegavam os álbuns de Tarzan, Almanaque do Globo Juvenil, Almanaque do Gibi todo o final de ano. Eu ficava desesperado quando o jornaleiro atrasava. Eu quase enlouqueci o jornaleiro, porque eu já sabia que dia quinze tinha que chegar os gibizinhos, né? E aí, quando eu fui para o ginásio aí o rito de passagem, quer dizer, calça comprida, dolmã, uma professora para Álgebra, para Matemática, outro para História Geral, outro para História Nacional, outro para Ciências, para Português, Espanhol, Francês, Inglês, Latim. Quer dizer, então você sentia o famoso rito de passagem necessário para o seu crescimento. Qualquer civilização do mundo tem esse rito de passagem. O Kwarup é isso, você deixa de ser menino para ser homem. Os judeus fazem o Bar-Mitzvá: "Toma a chave da casa, é a responsabilidade. Você agora é o homenzinho da casa." Por isso que eles são danados. E aí o papa João XXIII, quando chegou, passou a crisma para treze anos, para ficar em cima do Bar-Mitzvá, mas não pegou. É mais uma coisa da igreja que não pegou. A igreja não dá importância à crisma na liturgia de hoje, mas a crisma era para ser o Bar-Mitzvá dos cristãos, o Bar-Mitzvá da gente era o exame de admissão, entendeu? Aí botaram oito anos seguidos, o menino não tem rito de passagem, passam sem aprender a ler. Não dividiram assim: "Enquanto você não sabe ler e escrever, você não pode avançar." Então não tem negócio de promoção automática, isso é besteira. O menino não está fazendo carreira militar, não vai ser soldado, sargento, cabo. Atenção professores, cadê a câmera? (risos) Faz o seguinte: assim que o seu menino estiver alfabetizado - a alfabetizadora é uma professora muito especializada - assim que o menino tiver descoberto a mecânica da leitura e da escrita, você passa esses trinta meninos, trinta crianças, para outra professora, ela fica com essas crianças até que todas saibam ler, escrever e contar. Porque ela vai gastar, em média, como o pessoal do século XIX descobriu, quatro anos. Não foi arbitrário que fizeram isso, é que calcularam por aí. Mas acontece que você vai ter criança que com dois anos já sabe ler, escrever e contar, e outras vão demorar seis anos, mas não é pior nem melhor, é o tempo daqueles que é diferente. Você fica com ela. Não troca de professora todo ano na formação, porque a criança precisa não só de orientação como de afeto. Você com uma criança, você vai se afeiçoando a ela, você vai conhecer a mãe dela, o pai dela, a casa dela, as crises dela, então você não abandona essa criança enquanto ela está sendo formada. Então termina o final de ano, o menino está apaixonado por ela e vai encontrar uma outra que nem sabe quem é. É igual trocar de governo, com outro método, com outro jeito, com outro approach, não conhece a família da criança, não conhece os problemas dela, não sabe quando ela fica doente, não sabe quando ela está fingindo. Pô, qualquer mãe cria trinta filhos se é "part-time", e assim que a criança dominar o código, você passa ela para o ginásio, um professor para cada matéria. Ela vai ficar feliz e aí ela já está preparada para receber a informação, e você já informa, diz: “Essa menina é boa para ciências exatas...” já vai na fichinha “essa aqui gosta mais disso...” E se os trinta não puderem fazer o exame de admissão, pelo menos vinte. Aliás, não tem nem que fazer o exame de admissão, a professora diz: “Esse aqui já pode.” Ela só vai entregar para o ginásio quem ela sabe que pode ir para o ginásio, não precisa atormentar a criança. A criança não tem que provar nada, cara. Eu fico aflito com esse negócio. Agora inventaram passar para nove anos, para quê? Pra quê? E esse negócio de fazer oito anos seguidos é para poder evitar evasão escolar, porque você não tem que se preocupar com evasão escolar, você tem que se preocupar se a criança sabe o que está falando, sabe o que está escrevendo. O que é evasão escolar? "O grande problema das escolas brasileiras é repetência", e não é. É o problema do erro do método. Repetência... Criança não tem que passar de ano, sô! Quem passa de ano é a humanidade toda, quem passa de ano é o milico, que tem que começar como soldado, fazer curso, passa para cabo, faz curso e passa para sargento. O menino tem que ser avaliado, avaliado, avaliado... E acompanhado, com afeto. As professoras passam os alunos para outra como se perdessem os filhos. E o menino vai trocar de mãe? Todo o ano ele troca de mãe? Não, é muito burro o ensino nosso. E nessas viagens que eu tenho feito pelo Brasil, dá para compreender isso. E outra coisa, o Brasil precisa parar de mentir, dizer que nós temos 30% de analfabetos funcionais, pô! Os Estados Unidos tem 60%, a França tem 40% e nós temos 90%, rapaz! E 90% dos brasileiros é analfabeto funcional, não entende o que está lendo, é incapaz de se manifestar pela escrita e não gosta de ler. É analfabeto funcional. Sabe escrever o nome, sabe ler uma manchete de um jornal, não atravessa uma notícia. São Paulo tem 21 milhões de habitantes e não vende quinhentos mil jornais por dia, como é que...


P/1 - É, tem algo aí.


R - Então quem não lê jornal é analfabeto funcional. Não tem interesse nem para poder saber a notícia, pô! Com tanta televisão, vai ver quantos jornais o Japão vende por dia. Até hoje eles continuam com edições de manhã, de tarde e de noite, saem três vezes por dia ainda, os "subarus" deles lá (risos).


P/1 - Ziraldo. Voltando para o menino Ziraldo, lá em Caratinga...


R - Eu não aguento falar... (risos) Eu estou sempre querendo explicar as coisas.


P/1 - Mas é assim que é bom né? A entrevista é nesse vai e vem. Mas olha, você estava desenhando o tatu, e aí você conhece o gibi, e aí o seu desenho muda né?


R - Não. Mas eu vivi em função de desenhar, quer dizer, a minha vida era em função de desenhar. Agora uma coisa curiosa Zé, é que eu sempre fiz desenho narrativo. Todos os meus desenhos contavam uma história, então eu era um narrador gráfico. Eu já comecei a desenhar história em quadrinho. Eu me lembro que uma vez tinha em Caratinga um pintor italiano chamado Mário Andena... Eu não sei o que esse cara, pintando daquele jeito, foi fazer lá em Caratinga, não consigo imaginar, foi morar lá no raio... Pintando paisagens. E eram bonitas as pinturas dele, fazia esse senhor uma bonita pintura. Ele devia ter sido um aluno de pintura lá na Itália e foi para lá fazer não sei o que. E o Mário Andena, um dia meu pai chegou lá: "O Mário Andena passou no armazém", meu pai estava lá no outro armazém lá em Caratinga como contador... Guarda-livros. E aí a Dona Glorinha, que era diretora do grupo escolar e que me sacava, falou com ele que tinha um aluno que desenhava muito e tal, e ele tinha visto os desenhos meus, ele falou para papai: “Manda ele lá, que eu vou ensinar pintura para ele. Eu vi os desenhos dele, ele é fora dos padrões e tal.” E aí papai falou comigo: “Mário Andena quer te ensinar pintura.” Eu falei: “Como é que eu vou explicar para papai que eu não quero ser pintor? Ele não vai entender.”; “Você foi lá?” Eu falei: “Não fui.” “Porque você não foi?”; “Não é isso o que eu quero não papai.”; “E o que você quer?”; “Não é isso. Eu quero desenhar história em quadrinho, entendeu?”. E aí um dia, foi 45, eu já tinha doze anos, eu vi no Diário de Notícias uma caricatura do Dutra, da eleição. Eu olhei e falei: “É o Dutra, mas não é o Dutra! Papai que coisa impressionante, olha! Esse daqui é o Dutra!” Ele falou: “Pois é meu filho, isso é caricatura.” E aí papai conhecia Raul Pederneiras, papai conhecia J. Carlos e tal, e me explicou o que era caricatura. E aí me apareceu com O Malho, aquele jornal de caricatura, e eu só tinha Tico-Tico e tal. E eu comecei adoidado a desenhar caricatura de Artur Bernardes, Getúlio Vagas, Dutra, aprender a fazer o meu Dutra mesmo e tal. E aí eu comecei também a imaginar como é que se podia fazer uma piada. Contar uma história dá para fazer, mas fazer num quadrinho só uma narração era muito difícil, mas não era impossível. E aí eu comecei a acompanhar as caricaturas no jornal, isso eu devia ter uns doze, treze anos. Mas antes eu já desenhava adoidado super herói.


P/1 - Super herói?


R - Já. Eu já tinha meus capitães Tex, eu fiz muitos. E desenhava histórias em quadrinhos. Tinha a turma do Tubi, que era um pessoal que ganhou uma lancha, e de noite eles foram dormir e deixaram a lancha ligada, e aí quando acordaram já estavam na África (risos). Atravessaram o atlântico com um litro de gasolina. Eu fazia muitas histórias em quadrinho, sobraram poucas, eu tenho uma só. Só sobrou uma que eu tenho até hoje.


P/1 - Então Ziraldo, quais foram os primeiros livros que você começou a ler?


R - Meu negócio era mais desenhar do que ler, mas eu lia muito. Meu pai era assinante do jornal chamado Lar Católico e ele tinha muito anúncio de livrinhos, papai pedia pelo reembolso, então tinha o O que li e ouvi, João bolinha no rio, porque eram histórinhas religiosas, de bons exemplos, essas coisas assim. E me lembro de um livro chamado O mágico, de um autor chamado Clemente Luz, e aí o Monteiro Lobato, Viriato Correia, Ofélia e Narbal Fontes, Brasileirinho e tal. Lembro do Patinho Feio também, da Melhoramentos. E o Tesouro da Juventude era uma coleção de livros que se vendia à prestação e tinha tudo o que a juventude precisava aprender. Por exemplo, "Provas das redondezas da terra", entendeu? "O que é vulcão?" É um Google para crianças, assim. E tinha todos os contos infantis mais famosos, os contos de Grimm, os contos de Anderson, Pinóquio, do Collodi, Lewis Carroll, da Alice. Tudo em resumo. Ou eu lia ou a minha mãe lia para mim. Eu me lembro da mamãe lendo para mim uma história, eu já tinha uns dez anos, uns meninos perdidos num balão, e aí eu comecei a chorar, minha mãe disse: “Que isso?” Eu disse: “Os meninos sozinhos, longe de casa e...”; “Porque isso?” Ela disse: “Eu não vou ler mais histórias para você, não.” Eu me lembro que quando eu vim para o Rio de Janeiro, com quinze anos, eu comecei a ficar muito preocupado porque eu estava perdendo os gibis. Às vezes passava três, quatro meses: "Falta comprar o gibi de..." Eu tinha que ir à banca comprar, porque eu comecei a me preocupar. E aí eu conheci um cartunista, Fortuna, que era um ano mais velho do que eu, mas o Fortuna já era um intelectual, já lia Pitigrilli, lia Vargas Vila e tudo mais, Jorge Amado... Eu já estava lendo Jorge Amado quando eu cheguei ao Rio, mas o Fortuna só falava essas coisas, e eu fiquei meio envergonhado em falar com ele que eu lia gibi. E aí eu comecei a ler Pitigrilli também, Vargas Vila, comecei a ler mais intensamente Jorge Amado e tal. Mas a gente lia muito, muito, muito... É por isso que eu falo que estudar é muito importante, mas ler é muito mais importante do que estudar, porque eu estudei muito pouco. Formei em Direito, mas estudei muito pouco. Eu me lembro que no vestibular a parte de textos que você tem que fazer depois do exame oral, os examinadores diziam assim: “Você vai ser um advogado enganador da humanidade, né?”. Eu falei: "Por quê?"; “Porque você não sabe nada, né? Agora, o que você enrola, o que você enrola...” (risos) “Você vai advogar?” Eu digo: “Não pretendo, não. Meu pai quer que eu me forme em Direito...”;

“Você vai advogar?” Esse é o pai do Amilcar de Castro, esse escultor. “Você me promete que não vai advogar? Se você me promete eu vou passar você, se você não me promete eu não vou passar não, eu vou dá um pau em você.” (risos) Eu me formei em Direito só escrevendo. Colocava na questão: “Eu não estudei isso, não estou muito certo, mas pela lógica me parecer o seguinte: bá-bá-bá...” Eu frequentava muito pouco a aula. Aí o diretor: “Ziraldo, rapaz, vem cá, vamos conversar. Dá uma estudadinha cara, porque você está...”. Eu lia desde menino, então eu tinha uma lógica, um raciocínio, formava as frases direito, entendia o que eu estava lendo, lia uma coisa um vez só e fazia provas, você entende? Quer dizer, tem que ensinar para as crianças que se ele ler e escrever como quem respira, tem muito mais tempo para brincar pô! (risos) Não é verdade? Porque você lê, entende logo e não fica: “Mamãe, lê para mim que eu não entendi.” Não tem esse negócio de ler para mim que eu não entendi.


P/1 - Ziraldo, antes de a gente passar para a sua época do Rio de Janeiro, só queria que você contasse um pouco do que vocês brincavam nessa época que não tinha TV?


R - Eu brincava pouco. Sempre joguei muito mal futebol, era o pior. Eu era goleiro porque não conseguia jogar na linha e aí eu ia pro gol, mesmo sendo o dono da bola. Eu era muito ruim de bola de gude, nunca aprendi a rodar pião, nunca aprendi a soltar pipa, papagaio. Eu brincava de brinquedos que eu inventava. Por exemplo, brincar de pique. Em vez de um se esconder, vários se esconderem e outro ir procurar os que estavam escondidos, um se esconde e vocês vão achar, brincar de caça. Então eu brincava de quartel, de soldados, de comandos, de guerra, uma turma contra outra, guerra de mamona. Eu fiz muita guerra de mamona, você botava os cachos de mamona aqui, e saía arrancando as mamonas e... (risos) Esse negócio de mamona é terrível porque pegou no olho... A crueldade infantil é muito grande. A gente jogou uma mamona no olho do menino e ele perdeu o olho, e além de perder o olho ficou com o apelido de Zé mamona (risos)... Que maldade, né? Eu brincava de guerra de mamonas, que mais? Brincava de estradinha, como tinha muito terreno baldio, muita beirada de morro, de pasto, a gente tinha uns matinhos chamados vassourinha que parecia árvore, parecia bonsai. Então eu ficava procurando matinho que parecia bonsai, fincava na terra... Porque estavam fazendo a Rio-Bahia. A gente fazia um barranco, fazia estrada, fazia aterro, fazia ponte, tudo com pedaço de bateria de automóvel cortada. Brincava de pegar besouro, botar besouro na mão, para que o besouro ficasse fazendo cosquinhas na sua mão, era muito gostoso isso (risos). E depois amarrar a caixinha no besouro para ele puxar, e botando peso dentro para ver se ele conseguia puxar. O besouro tem uma força incrível. E até conto a história do menino moreno, nós arranjamos um besouro com chifrinhos assim, e fomos botando birosca, bola de gude era biroscas, dentro da caixinha de fósforo. Ele puxou a caixa de sapato esse besouro. Então eu dei o meu goleiro para ele, goleiro era uma caixa de fósforo beija-flor, que era mais alta do que a outra, cheia de chumbo.


P/1 - Ah, do jogo de botão?




R - Do jogo de botão. E aí o diabo do besouro puxou a caixinha. Que mais? Brincava de circo. Ah, nós tínhamos um circo! Eu era o palhaço do circo, fazia coisa no trapézio. Eu estou vendo que eu brinquei pouco nos brinquedos convencionais, eu nunca peguei passarinho, fui sempre ruim de atiradeira, a primeira vez que eu peguei um peixe na vida, eu levei tanto susto que eu nunca mais pesquei na minha vida, que ele começou a saltar na minha frente assim, e eu segurando a vara ali. Prender passarinho no alçapão também. Botava o alçapão, colocava milho, botar e puxar. E nós tínhamos um circo, e nós pegamos um gambá, demos uma pedrada no gambá e ele ficou meio cego, e aí a gente botou o gambá no circo todo ferido, coitado, e o negócio era o gambá subi no pau, que fazia um picadeiro e o circo era cercado de folha de piteira. Tinha cortado aquelas piteiras... Você sabe o que é piteira? Você não é da roça, né? Piteira é aquela coisa que faz sabão de xampu, aquela planta grande que dá aquelas folhas fortes, que sobe um tendão, dá muito na beira de pastos. A gente cortava aquelas folhas de piteira e fazia a cerca do circo, fazia um trapézio em geral no galho da mangueira. Ah! Subir em árvores também, eu era um monstro! Eu subia numa mangueira numa velocidade espantosa. Até pouco tempo...


P/1 - É mesmo?


R - Até pouco tempo. A última vez que eu fui tentar subir eu quase cai, mas eu era bom nisso, impressionante. Porque subir em árvores é uma lógica, você experimenta o galho e bota o pé, porque você tem que estar todo ligado para poder subir bem em árvores. É muito interessante, até os cinquenta anos eu subi em árvores bem para danar, depois parei de querer provar que eu era o bom (risos). Olha quanta coisa eu brinquei na minha vida. Nunca consegui soltar pipa, birosca, bola de gude não teve jeito, eu brincava de precipício também, um jogo muito perigoso. Você conhece precipício?


P/1 - Chama finca ali, né?


R - Chama finca em alguns lugares, também furou o olho de um dos nossos lá. Brincava de brincadeira de salão também, passa anel, gata-parida, você conhece? Você senta uma porção de meninos aqui, assim, e começa a espremer, a espremer até que você seja expelido do banco e até que fiquem os dois mais fortes.


P/1 - Ah ta!


R - Passa revista, essa do soldado: "Passei em revista no batalhão, faltou cabo? Cabo não falta. Quem falta? Sargento não falta. Quem falta?" Tem que ser rápido! Engraçado é que tinha um posto chamado Anspeçada: "Passei em revista no batalhão, faltou anspeçada. Anspeçada não falta." Até hoje eu sei o que é anspeçada. Um dia o Cony me explicou o que era. Eu lia anspeçada em uma crônica do Cony, eu liguei para ele. Era assim: soldado, anspeçada... Soldado, cabo, anspeçada, sargento.” Eu não sei se anspeçada era antes do cabo ou depois do cabo, mas era um posto, e o Cony me explicou o que era anspeçada. Então você ia, aí ficava um menino... Também: “Mamãe eu posso ir?”, “Pode”, “Quantos passam?” brincava de roda, né? Brincar de "minha mãe mandou eu bater nesse daqui..." As canções de roda. Eu lembro que as letras eram todas mal compreendidas, todas canções francesas mal traduzidas. "Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré... Você até hoje... Descobrir que é: "Je suis pauvre, pauvre, pauvre, de marais”, do bairro de Marais em Paris.


P/1 - Ah, é do bairro de Marais?


R - É, uai! "Je suis pauvre, pauvre, pauvre du marais, marais, marais. Je suis pauvre, pauvre, pauvre du marais d'ici". Brincar de quadrilha. A maioria das canções de roda são francesas. O que mais que a gente cantava? “Senhora dona Condensa, com língua de pato ou dá ou desça". Ou dá ou desça. Era isso (risos). "O Dom Rei mandou buscar uma das filhas para casar...” Aí o outro responde: “Eu não dou das minhas filhas nem por olho e nem por prata, nem por olho e nem por prata, nem por sangue da lagarta...” Da "largata", né? Para rimar com prata. “Tão alegre que eu 'envinha', tão tristonho eu vou voltar, tão alegre que eu 'envinha', tão tristonho eu vou voltar...” E a outra fala: “Volte, volte cavalheiro, vem escolher destas montanhas...” Eu digo: “Essa é uma mulher de montanhas?" Só depois de velho é que vi que: "Vem escolher nestas montanhas, a que lá lhe agradar, que essa já não quero, quero essa do meu gosto. Porque essa come pão da cesta e bebe vinho da garrafa, come queijo, requeijão, venha cá, meu coração...” e escolhe uma. Até ficar a última lá, que a gente dá uma vaia nela (risos). Minha mãe comandava essas brincadeiras, mamãe é que ensinava isso. Essa letra a gente cantava sem saber o que estava cantando, igual a gente canta muita coisa sem saber o que está cantando. Por exemplo: “Hoje é domingo, pé de cachimbo...” Hoje é domingo, pé de cachimbo, está a pedir cachimbo? “Fui ao tororó, beber água e não achei, achei bela morena que no tororó deixei...” E tem outra que é muito engraçada, que é... Ah! Uma outra recordação também encantadora, são as canções, os jingles da Rádio Nacional e as canções da missa da igreja. Eu sei todas, da coroação... Inclusive o Lino... Nós tínhamos um padre que voltou de Roma e ele inventou um hino que a gente cantava na igreja, é o hino do fascismo. “Brasileiros, brasileiros, o país que nosso é, defendamos fortemente nossa igreja e nossa fé!” Esse hino é o hino do Mussolini (risos). A gente cantava na igreja. Depois a gente cantava... Como é que eu vou lembrar o outro hino... É que agora eu não estou de porre, porque de porre eu canto hino até o dia amanhecer.


P/1 - É mesmo? A gente traz aqui, você quer um vinho? Um uísque?...


R - Para cantar (risos) “Silêncio, silêncio, se a porta se abrir. Se a porta se abrir.” E aí ele vem: “Já saiu o senhor. Oremos, oremos...” Isso é na hora do ofertório. Eu fui coroinha.


P/1 - Você foi coroinha?


R - Coroinha de reza, de missa não. Botava a ____ e ficava com o turíbulo ali, "pim-pim-pam-pam..." E abanando o sininho ali "tri-ri-ri-ri-trim..." Isso na missa do mês de maio, com _____ vermelha. Era a glória.


P/1 - E você decorou os jingles de rádio também na época?


R - É. “Eu vou formar um batalhão, um batalhão de crianças bonitas, sempre marchando, sempre cantando, p-a-l-m-o-l-i-v-e... Palmolive...” (risos) O sabonete das estrelas. Tinha o vingador Palmolive, era uma série que passava de tarde na rádio. Mas é muito... Que mais daquela época? "Mousse fit, xampu perfumado, deixa o cabelo sedoso, para o melhor penteado. Mousse fit xampu perfumado!"; "Ela é linda! Hum! Usa Pond´s! Ah!” (risos) Era lindo, rapaz. A gente era feliz e sabia (risos).


P/1 - E vocês brincavam São João em Caratinga?


R - Muito, muito, muito. Ah, tinha outra coisa também que é tascar balão e brincar com tanajura. Enfiar um palito na bunda da tanajura e sair: "Zuuumm!" Correndo com a tanajura, porque ela continuava batendo as asas, e eu saía com ela. E estourar a bunda da tanajura na gordura, igual pipoca, e dar para o seu Levine comer com cachaça.


P/1 - Quem é seu o Levine?


R - Seu Levine era um magrinho que trabalhava numa venda lá em frente de casa, era um cachaceiro danado, e comia a bunda de tanajura. Eu me lembro que eu botei uma tanajura na boca - mas eu não estou muito certo se eu botei a tanajura na boca - porque fica igual à pipoca, quando estoura a bundinha da tanajura. Deve ter gosto de formiga, fórmica, mas ele comia. Eu vi a velha passar no braseiro também e não queimar o pé. Mas o pé dela era dessa grossura assim (risos) passou "tá-tá-tá". Todo mundo espalhou a brasa, falou: “Vamos passar, quem é que passa? Não, não tem milagre!” E aí chegou uma velha, tirou o chinelo e "Huuuumm. Tchu-tchu-tchu" [passos]. Voltou, botou o chinelo e foi embora. E todo mundo dizendo: “É o capeta! É o capeta!” Nunca tínhamos visto à velha, ela passou no meio do braseiro e tal. Uma coisa emocionante também era a missa do galo. Missa do galo era muito... “Com a roupa de padre o grande galo, um bicho que para mim nunca falou, falando direitinho como eu falo, e cantando também cócórócó!” Eu acho que é uma música de Assis Valente, era uma música que a gente cantava. Mas eu ia para missa do galo e dormia, voltava carregado pelo meu pai. Mas todo o natal em minha terra chovia… Todos os natais da minha vida e os meus aniversários de infância foram com chuva. Em Caratinga começava em outubro e chovia até março, sem parar. Igual Macondo, igualzinho Macondo de García Márquez. Chovia sem parar outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro. Só parava nas águas de março. Treze de março tinha a enchente de São José e aí parava de chover. Enchente de São José. E quando a chuva seguia, eu me lembro da minha empregada, ela dizia: “Ah, Meu Deus! Meu feijão vai nascer todo na lama, vou perder tudo.” Porque a chuva se estendia, você plantava numa data certinha porque dia treze de março parava de chover mesmo. Tinha muita enchente na minha infância, muita enchente. Umas das coisas divertidas era ver as cobras descendo no rio, "zzzzzz", passando voando. Descendo com a enchente. Porque "ô", cidade para ter cobra, rapaz, passei minha vida no meio de cobra.

Eu tenho uma casa na Ilha Grande que é mato puro, há muitos anos. Eu só matei uma cobra lá. Olha aqui, o que a gente matou de cobra quando era menino, era uma loucura. A gente brincava de "mãos ao alto", brincava muito de bandido e mocinho também. Chama-se brincar de faroeste, "mãos ao alto". "Mãos ao alto por causa de faroeste. Eu me lembro, era craque, e eu peguei o "Jarinho" lá: “Mãos ao alto!” Eu falei: “Está muito longe, está muito longe e não vale!” (risos). "Pô, assim não é possível!" (risos). E aí tinha outro que brincava de “paradinha” também. Se você fizesse um contrato com o sujeito de paradinha aí ou capadinha meia... O capadinha meia era assim: se você estivesse comendo um sanduíche ou uma bala, você falava: “Capadinha meia!” e você tinha que dar a metade pro outro, ou o contrário. E paradinha, aí você falava: “Paradinha aí” e o cara só saía quando você o mandava parar. Então você podia colocar o cara de paradinha e ele ficava ali parado: “Sai daí menino!”, “Ele sumiu, ele mandou eu ficar em paradinha meia aqui e eu não posso sair, tenho que esperar ele voltar.” Eles obedeciam mesmo a paradinha. Eram umas brincadeiras muito engraçadas. Mas eu estava contando uma outra história da...


P/2 - Das cobras?


P/1 - Você falou que tinha muita cobra, né?


R - É, eu me lembro. Aí: “Onofre, fica quieto! Não mexe!" Já sabia. "Tem uma cobra passando atrás de você, não mexe!” “Pronto, agora pode vir! Vamos brincar.” E aí eu continuava brincando. Não me lembro de ninguém ter sido mordido por cobra, não me lembro.


P/1 - Você não foi mordido?


R - Não, eu não me lembro. E tinha muita cobra mesmo. Você ouvia... Tinha uma coisa que eu não sei se é verdade ou se é mentira, que é piado de cobra, que elas piavam. De noite eu ouvia uns piados, parecia de coruja. Aliás, eu precisava ver no Google se cobra pia mesmo. Outra coisa também é caçar piriá, que é preá.


P/1 - Preá?


R - Era piriá que chamava lá. E veja que é essa minha história, também uma infância cheia de esquistossomose (risos). É isso. Ainda vou escrever essas memórias mais detalhadamente verificadas. No O Menino Moreno tem muitas histórias que eu resgatei assim. Odeio a palavra resgatar...


P/1 - Vai dar um belo livro, ein? Se você juntar mais...


R - Mas juntar e escrever mesmo tudo assim é muito interessante. Porque se eu for contar a minha vida, eu vou gastar 70% da página nisso e mais trinta [por cento] para contar os outros setenta anos, porque a minha memória não tem essa intensidade. Os tipos que eu conheci, as músicas que a gente cantava e tal. Por isso que Caratinga é tão forte. Outro dia eu recebi umas fotos de Caratinga, eu fiquei tão emocionado, rapaz, mas tão emocionado. Eu achava que toda a cidade tinha o seu Pão de Açúcar, tinha seu Corcovado, eu achava. Porque eu tinha morado em Caratinga e, depois, eu não tinha memória muito poderosa de Conselheiro Pena, mas do outro lado do Rio Doce tinha um pouco de Serra. Agora, em frente ao Rio Doce em Governador Valadares tinha Ibituruna, que é uma pedra muito bonita, de onde a turma salta de...


P/1 - Asa Delta?


R - Asa Delta. Inclusive o recorde brasileiro de distância, é um cara que saltou de Ibituruna e foi parar lá em Caratinga.


P/1 - É mesmo?


R - É, é um recorde brasileiro. E lá em Caratinga também os caras que saltam de parapentes. Se você chegar lá, vai estar cheio de parapentes. Agora acabou asa delta, é todo mundo de parapentes, porque nós também temos o nosso pão de açúcar, chamado Pedra do Silva ou Itaúna. Bem na praça, a praça está aqui com as palmeiras, atrás da catedral, é muito bonita a catedral de Caratinga, muito bonita com essa praça de palmeiras, e atrás tem a Itaúna. Lá em cima tem a antena da TV, aquele negócio todo, e a rampa de parapentes. E no meio da pedra tem um quadrado com uma janela quadradinha, branca, que é a coisa que mais me intrigou a vida toda, mas é no meio da pedra. Eu falei: "Eu vou _______ só para ver o que é que tem. Eu cheguei a fazer uma história em quadrinho, que eu perdi, saiu naquela revista Era uma Vez. Aquilo era uma janela para uma imensa caverna, e lá dentro tinha uma dessas coisas de 007, um cara fabricando um foguete para dominar o mundo, e na noite aquela coisa se abre, o foguete sai. Eu tenho isso desenhando, mas eu não consegui guardar essa história. Cheguei a publicar na Era uma Vez essa. E aí eu contei isso para o menino da minha terra, e contando para ele que eu gostava de subir na pedra, para ver a cidade lá embaixo, era bonitinho, lá longe, pequenininho e tal. E não é que o moleque foi lá, subiu e fez uma porção de fotos para mim, e fez uma foto da janela, e disse: “Todo mundo sobe lá agora. Está cheio de alpinista, é cheio de rapel. Você não sobe, você desce até ela de rapel e senta lá e fica olhando a cidade e tal.” E o cara fez uma porção de fotos para mim da janela, tem lá um cacto, tem umas orquídeas, tem muitas orquídeas na pedra, muitas. Ele mandou para mim e eu fiquei tão emocionado, porque a cidade me "carinha" muito. Tem uma estátua do menino maluquinho de doze metros de altura...


P/1 - Doze metros? Onde?


R - Doze metros, no cristo redentor, em Caratinga.


P/1 - Eu sei, mas em que lugar da cidade?




R - A Rio Bahia dividiu a cidade em duas cidades. Uma cidade nova que nasceu a direita de quem vem do Rio, tem uma estrada tão grande quanto à de cá, que era a única que existia. E essa avenida não foi possível fazer o contorno, fora que já tem rua por baixo, rua cima e tudo mais, e a avenida continua. Fizeram uma bela praça ali, e botaram a estátua ali. Então todo mundo que passa, para ir ou para voltar para Caratinga, tem que ver a estátua, então para ônibus para tirar retrato e o prefeito fez umas lojinhas assim que vendem souvenir da cidade, souvenir do menino maluquinho, aquele negócio todo. Na cidade deram uma rua com o nome do meu pai, uma biblioteca com o meu nome. A cidade me "carinha" muito, mas eu também sou um puxa-saco da cidade. Mas é impressionante, todo mundo tem uma casa de campo, né? Eu tenho uma cidade. Por exemplo, quando eu fui nomeado presidente da FUNARTE, na minha posse vieram três ônibus de Caratinga, com uma banda de músicos...


P/1 - É mesmo? Que barato!


R - E 450 quilômetros (risos). É impressionante. E quando o meu pai fez setenta anos, eu falei: “Olha! Eu quero fazer uma festa para o meu pai dos setenta anos aí, não dá para você organizar?”; “Dá, tal!” E aí eu baixei com a minha família lá, os amigos. Foi um dia inteiro de festa na cidade: alvorada, com banda de música, futebol de salão, jogo de vôlei, cabritada... Porque lá não tem churrasco, lá tem cabritada na fazenda. Depois, de tarde, uma grande partida de futebol, meu pai deu o kick-off, de noite um show do Agnaldo Timóteo e depois um baile. Setenta anos. A cidade inteira parada. Eu me lembro que foram uns amigos do meu irmão, uns menininhos comunistas, e aí disseram: “Seu irmão não tem direito de fazer isso. Isso não se faz com um povo ingênuo dessa maneira.” Eu falei: “Manda esse cara para puta que o pariu. Ah, vai tomar banho! Não tem direito?” Né? (risos) É porque ele não consegue um carinho nesse nível, não é verdade? Eu vivo lá, sempre que posso eu vou lá.


P/1 - E quando você saiu de lá, você tinha quinze anos?


R - Quinze anos.


P/1 - E aí você foi para o Rio?


R - Fui para o Rio, e fui para MABE, Moderna Associação Brasileira de Ensino, eu fiz dois anos científicos lá e ia ser paraquedista. Paraquedista era coisa de você ser cheio de bat boot e tal, voando. E aí o meu o pai chegou lá e: “Você vai servir o exercito, meu filho?”; “Vou, pai. Vou para o batalhão de paraquedista.” E ele falou para minha mãe assim: “Mas vai, mas custa!” (risos) “Não, eu já arrumei com o sargento, é só fazer tiro de guerra lá em Caratinga.” E aí eu tinha ido passar as férias lá em Caratinga, e eu tinha saído com 1.20m e cheguei lá com 1.75m em Caratinga, com um topete desse tamanho, "pah!" e o topete caía assim, e camisa colorida, ninguém usava em Caratinga, camisa colorida de rayon e calça mescla assim, meia escocesa e sapato mocassim. Eu cheguei e fechei lá. Ah, cheguei falando carioca: “Maiss tarde eu falarei contigo!” (risos) E aí eu fiz tanto sucesso com as meninas, eu falei: “Ah! Eu vou voltar para Caratinga, está muito difícil arrumar uma namorada aqui no Rio.” E aí eu fui para lá, fiz o terceiro científico, o tiro de guerra, e fundei o Centro de cidade de Caratinga. Então foi o ano mais feliz de Caratinga, porque foi um ano de festa, uma coisa espantosa. Tinha piquenique, tinha baile, tinha festa, tinha um diabo. Uma das meninas bonitinhas de lá era Marizinha. Outro dia eu a chamei de Marizinha: “Oh, Marizinha você está tão bem!” Ela falou: “Marizinha, Ziraldo?”; “Ah, desculpa Dona Marisa. Que antipatia dona Marisa, parece que bebe, eu te conheço desde que você nasceu, vou te chamar de Dona Marisa?” Ela falou: “Olha..."; "Eu não chamei você na frente de ninguém, eu chamei quando você estava só o seu marido e você, entendeu? Eu não vou fazer um íntimo com você no meio dos outros.” Eu falei: “José de Alencar, Marizinha está enchendo o saco aqui.” Ela é mulher do José Alencar, pô! (risos) Eu sou calouro do tiro de guerra do José de Alencar, e eu conheço a Marizinha desde que ela nasceu. E chamei ela de Marizinha, ela ficou besta (risos), quase que ela fala: “Eu não te dou essa intimidade!” E se ela falasse eu iria mandar ela tomar no rabo (risos). Mas ela era muito linda, só que não era tão bonita como a irmã dela, a Isabel, que era deslumbrante de bonita. E era a menina mais fina de Caratinga. Repara nas fotos como é que ela senta. Você nunca viu a Marizinha, a Dona Marisa?

Ela senta assim, ela parece uma rainha, a mulher de José Alencar. O José Alencar eu conheço desde que ele era rapazinho, ele chegou lá já com dezesseis anos e viveu lá, casou com a Marisa e virou esse milionário aí, essa figura extraordinária que é o José Alencar. Essa maneira com que ele vem enfrentando esse câncer é de uma grandeza espantosa, né? Que grandeza do Zé! Nunca vi uma coisa assim, nunca vi aquela coisa de rei da morte, e está aguentando, essa coisa ajuda o cara viver, essa coragem de enfrentar a morte ajuda o cara a viver.


P/1 - Sem dúvida.


R - E ele passa uma imagem de um bom senso. Nunca ele diz uma coisa que parece besteira, parece que é uma coisa pensada. Eu gosto muito dele, mas é isso. O que mais você quer saber?


P/1 - E aí você arrumou esse monte de namorada, ficou lá, mas teve que voltar pro Rio?


R - Não, eu namorei umas moças bonitas lá e tal, agora elas são tudo senhoras de setenta anos (risos), uma coisa triste. Mas há uns dez, quinze anos atrás, uma dessas moças me ligou, era das mais metidas, ela nunca deu muita confiança para mim: “Ziraldo, aqui é fulana.” Eu falei: “Oh, mas que prazer!”; “Ah, eu estou não sei o que... Um filho...” ela queira um negócio comigo, eu falei: “Você ainda continua linda?” ela falou: “Ah, a mesma coisa, eu não mudei nada”, “Maravilha! Mais que prazer, que ótimo”, “Você podia se encontrar comigo? Eu queria te mostrar umas coisas que eu estou pensando aqui, e não sei o que. Eu estou morando no sul e tal.” Eu falei: “Olha, eu gosto muito de um bar chamado Fox que tem aqui no Rio, hoje é terça feira é bom porque hoje tem pouca gente, você me espera lá que vou almoçar com você e a gente conversa e tal.” E aí cheguei ao bar, o restaurante estava vazio, eu cheguei meio atrasado, eu virei para o garçom, eu falei: “Pô, não chegou uma moça me procurando aí? Uma mulher bonita?” Ele falou: “Não, a única pessoa nova que eu vi é aquela velhinha ali.” (risos) “Tem aquela velhinha que chegou aqui, sentou e não falou nada e tal”. Era ela cara (risos). Mas ela falava aquela coisa: “Eu não mudei nada, estou à mesma coisa” (risos). Maldade, né? Rapaz... E já tem uns quinze anos isso, ela deve estar um caco agora, né? (risos). Pois é, é uma sacanagem. Uma mulher com 76 anos é uma mulher com 76 anos. E um homem com 76 anos é um homem, né? Uma sacanagem pô!


P/1 - As mulheres perdem nisso, né?


R - Mas elas são tão velhinhas, rapaz. Ah, quando eu fiz 45 anos de formado também, fizeram uma festa lá em Ouro Preto, num resort lá. Foi sábado e eu só podia ir no domingo, então todos os colegas de faculdade de Direto lá... Isso é muito engraçado (risos). E aí eu cheguei lá, quando eu entrei um ermo, aquele resort, a volta de Ouro Preto, aquela paisagem é a descrição do ermo, o tempo é parado, não venta. Tem um poema do Drummond que descreve muito bem o negócio da máquina do mundo, ele descreve esse clima, você ouve o seu passo na pedra, na terra assim. E aí entrei, era um casarão bonito, arrumado assim, debruçado assim na montanha, e eu entrei, tinha um monte de velhinhas fazendo crochê e tal, eu falei: “Pô, isso é um asilo, essa merda aqui.” (risos) Não pode, né? E aí eu falei: “Escuta aqui, não é aqui que está tendo uma festa da turma de Direito?", "É aqui! As mulheres deles ali” (risos). Minha turma, rapaz! E eu reconheci alguns colegas: “Oh, Ziraldo! Não sei o que...” Eu olhei aquelas minhas amigas do DCE, “puts grilo"! Até que algumas colegas minhas estavam bonitinhas ainda, mas as mulheres dos meus amigos... E aí eu desci lá na piscina e estava todo mundo lá: “Oh, Ziraldo!” Eu olhei, voltei pra cá e falei para Vilma, que era a minha mulher, eu falei: “Vilma, mas puta que pariu! Como o meu pessoal acabou Vilma...” O cara mais jovem que tinha lá era eu, pô! Eu fiquei tão besta de ver. E aí, uma semana depois, eu recebi a foto da turma sentada: o cara que tinha mais cara de velho da turma era eu (risos). A gente nunca acha que está com a cara dos outros. Por isso que a minha mãe dizia: “Eu odeio amigo de infância, eu não quero ver amigo de infância, não quero! Eu não gosto nem de espelho e nem de amigo de infância. Amigo de infância é só para revelar o quanto eu estou acabada, eu não quero ver, porque que ela vai está mais acabada do que eu. Ela deve está achando o que eu estou achando dela, né? Não quero ver amigo de infância". Mas é isso.


P/1 - Ziraldo, para gente dá uma terminada na entrevista, eu queria dá uma passada um pouco na sua obra infanto-juvenil, porque se não a gente vai ficar três dias seguidos aqui...


R - Mas não é infanto-juvenil, né?


P/1 - Isso em 69, né?


R - Aí eu fui para o Rio com as minhas histórias em quadrinhos debaixo do braço, para ser desenhista de história em quadrinho. Cheguei lá e descobri que não havia essa profissão, que tinha só um cara chamado José Geraldo que fazia o Charlie Chan, é meu amigo até hoje e está vivo; um outro chamado Joselito, que eu não sei o que foi feito dele, que fazia o Laureline Romendado(?) numa revistinha chamada Vida Infantil e Vida Juvenil, que era da Editora da Vida Doméstica. Eu cheguei a fazer umas histórias em quadrinhos para essa revista, e aí desenhei o Teleco e Tim para uma revista chamada Sesinho que era uma revista do SESI, feita pelo Vicente Guimarães que era um escritor infantil mineiro, criador do João Bolinha, que foi editor da Era uma Vez, uma revista infantil minera de circulação nacional. Você tinha duas revistas brasileiras de circulação nacional naquela época que não eram do Rio de Janeiro. Nem São Paulo tinha uma revista... Você tinha a revista do O Globo, de Porto Alegre, que circulava no Brasil inteiro, e você tinha a Era uma Vez e a Alterosa, em Minas, que circulava o Brasil inteiro. Eu não me lembro de uma revista nacional paulista, não me lembro. Será que tinha? Ah, tinha O Governador, o jornal de humor chamado O Governador, mas São Paulo não tinha muita presença na minha região, muita pouca presença. A gente só sabia de São Paulo quando tinha o torneio Rio - São Paulo,

que os paulistas ganhavam sempre dos cariocas, e eles ficavam danados da vida. Então, eu fui desenhar o Teleco e Tim no Sesinho e fazia umas historinhas para a Vida Infantil. E depois comecei a desenhar caricatura no O Malho, ainda existia O Malho, que era concorrente da A Careta, eram as duas revistas políticas brasileiras de grande circulação nacional e grande êxito, onde estava J. Carlos, Aquarone, Raul Pederneira, Alvarus, Oswaldo Storni, o Téo, uma porção de gente que desenhava caricatura e charges políticas, o Nássara. E publiquei também na revista A Cigarra, que era a revista mensal da Editora O Cruzeiro. E aí eu voltei para Caratinga, eu fiz o tiro de guerra, em vez de voltar para o Rio eu fui para Belo Horizonte e comecei a publicar as minhas coisas na Folha de Minas, coloquei as minhas charges na Folha de Minas, e a fazer história em quadrinho do Vigapepezi, éramos nós mesmo, cinco amigos de infância, era o Alan Viggiano, Galileu, Pedrinho, o Pimentel e eu. Nós cinco éramos colegas de tiro de guerra e amigos desde a infância, quando eu voltei para Belo Horizonte eu inventei uma história em que nós éramos heróis...


P/1 - O Alan Viggiano era de Caratinga?


R - De Caratinga. O Alan é o Vi, o Ga e o Galileu, o Pe o Pedrinho, o Pe Pimentel, O Zi... Vigapepezi era um time de basquete que circulava pelo mundo e tal, e acaba indo para o pólo sul, descobre uma civilização no pólo sul, aquele negócio todo. E éramos nós mesmos! A caricatura minha, eu como herói e a turma toda. Tem essa série publicada na Era uma Vez, e a Globo está pretendendo colorir essa história e publicar de novo agora. Eu queria ver se eu achava essa do foguete saindo dentro da pedreira de Itaúna lá de Caratinga (risos) dessa janelinha. Bom... E aí eu queria fazer história em quadrinho e desisti de fazer história em quadrinhos, fui para Belo Horizonte e comecei a fazer cartoon na Folha de Minas. Eu já tinha feito alguns cartoons na A Cigarra. E aí eu já tinha conhecido Millôr Fernandes, eu já tinha conhecido Fortuna, e fiquei em Belo Horizonte até formar em Direito. Casei e aí mudei para o Rio, fui trabalhar na revista O Cruzeiro, e publicava as minhas coisas na A Cigarra e no O Cruzeiro como caricaturista. Ah, eu trabalhei em agência em Belo Horizonte, ilustrando propaganda, e aí desenvolvi muito o meu desenho. Quando eu cheguei no Rio de Janeiro com os meus desenhos feitos em Belo Horizonte, o pessoal do O Cruzeiro ficou impressionadíssimo com o nível de formação que eu tinha, e a qualidade do acabamento, porque eu trabalhava em agência. Ninguém saía da agência para ir para a imprensa, porque a imprensa pagava dez vezes menos do que a agência de publicidade, e o que estava havendo era um êxodo do pessoal mais criativo para agência, como o Orígenes Lessa, Ivan Lessa, Emílio Farah, todos saíram da imprensa e foram para a agência de publicidade: McCann-Erickson, Thompson, Standard. Porque pagava dez, vinte vezes mais do que o jornal. E pagava! O jornal pagava com vale, entendeu? Então eu larguei a agência para ir trabalhar no O Cruzeiro, para ganhar dez vezes menos do que eu ganhava e tal. Eu queria publicar as minhas coisas na imprensa. Até que em 1964, em sessenta, o Brasil estava ameaçado de virar uma república sindicalista. Então era a época das reformas de base, que era a descoberta do Brasil, CPC, da UNE, poesia concreta. A linguagem brasileira de música, de teatro, de tudo. E aí o diretor da revista O Cruzeiro disse: “No Brasil, eu vou estudar chinês ou russo, porque esse século vai acabar socialista”. Ele era catastrófico, igual meu tio.


P/1 - Quem era o diretor?


R - Manoel Lopes de Oliveira. Era o diretor comercial da revista O Cruzeiro, muito parecido com o meu tio Luiz Gonzaga: “Preparam-se para o mundo socialista e tal.” Então a gente começou a comandar no Rio uma atividade reivindicatória de nacionalização das histórias em quadrinhos, então uma série de leis que ia reduzindo a importação das histórias em quadrinhos, substituindo por histórias em quadrinhos brasileiras. Então ele, para se adiantar isso, ele publicava Luluzinha e Bolinha, vendia 150 mil exemplares. As revistas paulistas, Tio Patinhas, não vendiam tanto quanto Luluzinha e Bolinha. E aí ele encomenda ao Carlos Estevão uma revista, encomenda ao Péricles, que fazia O amigo da onça, outra revista, e encomenda a mim uma revista do Saci-Pererê, porque eu fazia uns cartoons do Pererê no O Cruzeiro. Ele encomendou isso numa sexta-feira, na segunda eu já cheguei com o primeiro número prontinho para ele, para ele aprovar. Ele aprovou e eu comecei a fazer o Pererê. O Carlos Estevão começou a fazer o Dr. Macarra, e o Péricles não conseguiu entregar o primeiro número do Oliveira Trapalhão, que era um quadrinho que ele ia fazer. Suicidou-se logo depois também. Só ficou eu e o Carlos Estevão fazendo. O Carlos Estevão fez sete meses, e eu fiz quatro anos o Pererê. Em janeiro de 64 o Manuel Lopes já estava conspirando, compreendeu que o Jango iria dançar, e eu saí do O Cruzeiro porque eu recebia pouquinho pela revista, eu recebia uma coisa simbólica, porque os filmes chegavam tão baratos dos Estados Unidos, que o filme da Luluzinha e Bolinha custava mais barato do que o filme virgem para poder fazer o Pererê. Então o Pererê custava uma fortuna, mas ele bancava aquilo não por amor ao Brasil, mas porque ele achava que tinha que ter a revista brasileira assim que a história virasse. Quando ele percebeu, em janeiro, que não ia acontecer nada, que a conspiração estava mandando, eu fui pedir aumento, eu saí do O Cruzeiro, briguei lá dentro da revista. No dia que eu fui nomeado editor do O Cruzeiro, eu briguei e sai. Essa é uma outra história. E aí eu fui pedir: “Esse salário que você me dá aqui no O Cruzeiro, você pode me pagar para fazer a revista?” Ele disse: “Eu não tenho menor interesse. Pode parar com a revista.” Eu fazia quatro meses adiantados, o que aconteceu? Em abril de 64 o Pererê acabou. Ficou uma coisa emblemática. Inclusive o Pererê vendia 150 mil exemplares por mês, eu podia acertar com ele um pagamento que dava para eu viver, mas por causa do golpe que estava em andamento... Por isso que quando eu entrei na lista dos indenizados, dos anistiados, não foi eu que solicitei, foi o sindicato dos analistas, e a imprensa só faltou me matar, eu falei: “Não, O Cruzeiro me deve o fim do Pererê, o que é isso? O Cruzeiro me deve o fim do cartoon JS. O governo me deve às dezoito apreensões do O Pasquim, ao incêndio na banca do O Pasquim, as quatro prisões que eu tive. O que há?" Muito indenizado aí pediu o seu dinheiro de volta, porque deixou de ganhar dinheiro. Eu não deixei de ganhar porque eu trabalho feito um desgraçado. Eles me deram uma porrada aqui, e eu ia fazer livros lá, me deram uma porrada lá e eu ia fazer lá. Mas eu não vou devolver o dinheiro para o tesouro nacional.


P/1 - Mas Ziraldo, 150 mil é muito! Era muito Pererê, 150 mil!


R - É, era igual à Luluzinha e Bolinha, vendia 150 mil. Mas Luluzinha e Bolinha não custava nada, custava o filme, custava dez mil réis a página. O Pererê custava cento e tantos a página.


P/1 - E você produzia isso com quantas pessoas?


R - Eu, um tal de Elci Miranda, tá vivo até hoje, meu amigo, o João Barbosa que fazia a letra, nós três. Eu desenhava o lápis, o Paulo Abreu passava nanquim no desenho, o Elci coloria e o João Barbosa fazia a letrinha. E aí depois eu fui fazer o Pererê na Abril, mas em 69 eu fiz o Flicts, e aí o Flicts foi traduzido para vários países do mundo.


P/1 - Não, vamos falar mais do Flicts, porque eu assisti o desfile da Feliz Lembrança, do Flicts, em Juiz de Fora.


R - Ah, você lembra?


P/1 - É, eu morei lá na época.


R - Que maravilha! Nossa senhora! Foi emocionante!


P/1 - E como é que surgiu essa idéia do Flicts? Não no desfile, mas do livro?


R - Ah! Bom... Juiz de Fora foi à primeira cidade do Brasil a ter escola de samba, depois do Rio, porque Juiz de Fora se acha um bairro do Rio de Janeiro. Tanto que quando eu falo com a turma de Juiz de Fora, quando eu fazia um programa de televisão, eu digo: “Em Juiz de Fora o ônibus é Juiz de Fora Leblon, Juiz de Fora Tijuca...” (risos). Carioca do brejo que os belo horizontinos chamavam eles. E durante algum tempo ela virou cidade mictório, só parava para mijar.


P/1 - Pronto! Esse povo agora vai lembrar disso tudo.


R - Lá teve um renascimento espantoso. Ela teve uma decadência muito grande durante uma época, muito grande mesmo. Depois, quem salvou Juiz de Fora foi o Itamar Franco. Juiz de Fora deve muito ao Itamar, é impressionante. Como Curitiba deve muito ao Jaime Lerner. Quer dizer, são caras que marcam uma cidade profundamente. Mas onde é que eu estava?


P/1 - Você ia contar para a gente a história do Flicts. Você teve um insight ou isso foi uma idéia muito pensada?


R - Não, eu já contei isso tanto que eu não aguento mais. Enfim, é o seguinte: nós todos, Fortuna, eu, o Jaguar e tudo mais éramos muito ligados aos grandes cartunistas do mundo. E alguns franceses como um cara chamado Très(?), o André François que é outro francês, outro cartunista que também atuava na França, o Ronald Searle da Inglaterra e o Tomi Ungerer nos Estados Unidos, todos tinham feito o seu livro infantil, ilustrado, aquela coisa toda. E o Fortuna tinha um na cabeça chamado Dababu: “Eu já fiz o meu, é Dababu...”, mas o Fortuna era muito enrolado que passou a vida toda, até morrer e não fez o Dababu, porque ele era perfeccionista: "Não, ainda não!". O Jaguar também acabou fazendo um com a Ruth, chamado Dois Imbecis Cada um no seu Barril, que é um título acho que da Ruth Rocha, que ele ilustrou, mas ele também não se animou a fazer um livro infantil dele, não. E aí eu fui levar o Jeremias, o Bom para uma editora chamada Expressão e Cultura, uma editora que estava fazendo uma revolução no meio editorial do Rio. Eu queria até publicar

Jeremias, o Bom. Eu levei pro cara, ele falou: “Eu vou publicar, pode paginar que eu vou publicar Jeremias, o Bom, mas eu quero um livro infantil tipo álbum, capa dura. Eu vou começar a fazer livros europeus no Brasil, para crianças. Você tem livro infantil?” Eu falei: “Pô, claro, evidente”, “Então traz aí”. Eu falei: “Então está bom. Daqui o quê? Uns quinze dias? Um mês você me dá?” Ele falou: “Não! Você não tem?” Eu falei: “Eu tenho, mas tenho que passar a limpo”, “Não, não, traz o mais rápido que você puder. Eu quero publicar esse mês ainda.” Eu fui para casa e falei: “Como é que eu vou fazer um livro infantil em quinze dias? Desenhar coelhinho, desenhar céuzinho, desenhar paisagens, desenhar fada...” Eu tinha que bolar uma história tipo Dababu, do Fortuna. Era um livro em que o menino, tudo que olhava, dizia: "Dababu! Dababu!" O final era um achado, que eu não me lembro mais qual achado que era. E aí eu falei “Eu tenho que fazer um livro infantil para crianças, mas um livro infantil sem ilustração não dá. Tem que ter ilustração ou cor. Mas tendo cor não precisa ter ilustração. Eu posso fazer um livro só com cor. E se eu inventasse uma história em que o personagem vai ser uma cor? Pronto! O personagem vai ser uma cor. E aí eu faço uma página amarela, uma azul, uma vermelha... E aí eu vou fazendo até contar. Mas agora, como é que eu vou inventar uma história de uma cor?” E aí eu estava passando num aterro, assim, e vi um cartaz da Manchete que era a lua em primeiro plano, uma foto do Apolo 11 que era tirado da lua com a terra azul no céu, e aquela curva da lua bege. Eu falei: “Pô, a lua não é azul, a lua não é amarela. A lua é bege... Ah! Então eu vou inventar um nome para essa lua, vou contar a história da cor da lua.” Quando eu cheguei em casa o livro já estava pronto. Aí eu sentei, bati o texto à máquina, guardei o texto, e aí eu fui na papelaria e comprei aquele contact, aquele papel de...


P/1 - Adesivo?


R - É, aquele de forrar prateleira, vermelho, amarela, azul e tudo mais, e vim para casa e comecei arrumar: "Era uma vez uma cor muito rara e muito triste, chamada Flicts..." E aí não tinha...

Aí peguei a manchete, olhei, e fiz aquela tinta. Eu peguei um papel desse tamanho, assim, e pintei com a tinta toda e fui recortando para colar, e fiz aquela coisa colada. E segunda-feira eu levei para o cara, e aí, quando ele acabou de ler, ele estava aos prantos. Levantou e me deu um abraço, assim: “Não posso acreditar, espera aí!” E foi falar com o editor que estava vivo até hoje. Esse editor chamava Fernando Ferro, um português inteligentíssimo, um homem de uma cultura fora do comum, casado com uma francesa linda e tudo. E foi levar para o Ferdinando, que era o editor geral: “E fica aqui que eu já volto.” E aí o Ferdinando falou: “Quem é o cara? Quem é o cara?” Abriu e disse: “Cara, eu quero o melhor papel. Esse é o livro do século” Eu falei: “Puta que o pariu. Acho que eu dei uma acertada” (risos). E aí não tinha computador, não tinha... Para fazer aquilo lá no fotolito foi uma África! E aí nós ficamos uns quinze dias virando madrugada para poder fazer aquele arco-íris. Como é que a você ia fazer aquele arco-íris cara? Um cara veio com um filme, pegava betume, passava assim para selecionar cor. E até você conseguir fazer aquelas coisas com aquelas cores... O negócio da primavera, aquilo foi fácil, mas o arco-íris deu um trabalho filho da mãe. E aí, como ele queria gastar muito dinheiro, mandou rodar as quatro cores da _____, e mais o Flicts rodou uma cor. Mandamos fazer a tinta para fazer o Flicts. E aí o livro foi saudado, o Drummond fez uma crônica emocionadíssima, e não teve nenhum cronista da imprensa brasileira que não fizesse uma crônica sobre o Flicts. Foi uma coisa impressionante. O Flicts também chegou numa hora, porque também como você não tinha liberdade de expressão, ele pareceu também um livro político, porque não tinha bandeira do Brasil, porque era proibido usar a bandeira do Brasil. As sete cores falam coisas bem ditatoriais e fascistas: "Não quebre a ordem natural das coisas; não tem lugar para você; você quer mudar o mundo". Então o livro fez um sucesso danado. Eu fui embora com ele para Frankfurt e também aconteceu exatamente a mesma coisa. E aí vendemos ele para Inglaterra, para Itália, para Dinamarca. E eu voltei para virar autor para criança, mas aí veio o AI5, não deu. Só deu para fazer O Pasquim. Eu fui fazer O Pasquim. Deixei o Flicts para baixo e fui fazer O Pasquim, fiquei dez anos fazendo e aí não mexi com ele. O Pasquim não dava para viver, eu vivia de artes gráficas, então eu fazia capa de revista, capa de caderno, pôster de cinema... Ah, aí passei os dez anos fazendo pôster de cinema, todos os cinemas "sexy" brasileiro. Eu fiz todos os cartazes desse menino que está fazendo agora, esse que apareceu aí... Como é boa a nossa empregada, Assim nem a cama aguenta, esses filmes eróticos. Não foi pornochanchada não, pornochanchada é posterior. Na pornochanchada eu não fiz nada, fiz tudo para o cinema sexy, que também é confundindo com pornochanchada. E fiz o cartaz, o enredo, os diálogos da última Chanchada, e a única colorida, que chamava Rio, Verão e Amor do Watson Macedo, um grande diretor. E aí isso tudo enquanto estava fazendo O Pasquim, mas não mexi com livro infantil. Quando começou a falar em anistia, aquele negócio todo, eu estava fazendo cadernos para a Melhoramentos, e aí a gente fazia muitas palestras nessa época, porque principalmente as organizações femininas estavam querendo entender o que estava acontecendo. E a turma do O Pasquim ia fazendo palestra em colégio. Depois, quando o sindicato pediu para gente ir buscar o relatório da gente feito pelo DOPS, em várias dessas palestras eles tinham descrito o que eu falava. Eu me lembro deles todos, olhava: “Tá lá o babaca que vai me...” e ainda falava: “Bom, é claro que tem agente da ditadura aqui e tudo mais, mas vocês não vão reconhecer, só eu. E eu não vou apontar ele porque ele pode ficar constrangido.” Mas enfim, as mulheres ficavam todas procurando o agente (risos). A gente fazia muita sacanagem. Uma vez no O Pasquim a gente estava na casa de um amigo nosso, num sábado, a gente mandava o negócio para ser censurado em Brasília. Então o Sérgio Augusto fez assim: “Estávamos nós na piscina do Alberto Reis, com Dina Sfat, as mulheres mais lindas da época, tomando o nosso uisquinho no domingo, quando perguntamos: Qual pode ser o sujeito mais infeliz do mundo? E aí descobrimos que é um sujeito sentado em um escritório em Brasília, censurando o pensamento de nós que estamos aqui tão felizes, pensando só coisas boas.”

E mandamos para ver se o cara cortava, e ele não cortou.


P/1 - Não cortou?


R - Não cortou (risos). O cara acho que pensou: "Não vou cortar essa não!" Liberou essa. A gente fazia muita sacanagem com os censores, eles ficavam: “O que eles estão fazendo para gente cortar e não cortar o...” Eu me lembro uma vez que eu fiz uma porção de sombrinha. De ensinar sombra, coelhinho, não sei o que mais. E os desenhos era o cara fazendo assim, o cara fazendo assim (Mostra o dedo do meio, faz gestos). E a sombra era um coelhinho (risos). E aí o censor liberou. Quando saiu o nosso censor, era o pai da garota de Ipanema, era o general Juarez, ele falou: “Você me enganou, seu canalha!”; “Eu ia fazer sombrinha de coelhinho, general?” Ele falou: “Seu filho da puta. Veio me pegando, né?” Mas ele adorava a gente, ele chamava "meus meninos". Quando Brasília cortava um negócio lá, ele ia lá brigar: “Vocês me põe de censura e vão ficar... Se eu aprovei está aprovado”. Quando eu botei na capa "Todo paulista é bicha", ele aprovou e eu fui chamado lá em Brasília. E o ministro era o Buzaid. E ele voltou e disse: “No campo de futebol todo mundo não chama o juiz de bicha? Todo mundo não fala bicha na rua? Na praia não tem bicha? Como é que eu iria imaginar que vocês iriam passar esse constrangimento? A próxima vez que eu passar isso... Porque de mais a mais, eu fui chamado sabe por quem? Pelo Buzaid, aquela bicha nojenta. Eu não aguento conversar com bicha, e ainda mais levar esporro de bicha, pô!” (risos) Que maravilha! Ele era muito engraçado. Um dia a gente botou. Eu peguei o contador de gás: “Gás é para ver!” Ele disse: “contador de gás, né? Tira essa merda daqui. Eu sei, vocês estão insinuando que é o Geisel, né?”, “Não”, “Não, aqui tem coisa. Tira esse contador de gás (risos) “Aqui tem coisa, aqui tem coisa! Vocês estão sempre me enganando!” (risos) Mas aí eu fiz O Menino Maluquinho.


P/1 - Que é oitenta, né?


R - Eu já tinha feito antes um livro chamado O Planeta Lilás, mas não aconteceu nada com o livro. Ele era um livro caprichadíssimo. Eu tinha caprichado muito no livro, porque eu fiquei... Na mesma linha do Flicts, todo gráfico. Mas nessa época já tinha premiação do instituto e já tinha os donos da literatura infantil, então o meu livro não foi levado em consideração. Ele era um álbum lindo, muito bonito, um álbum chiquíssimo, mas não aconteceu nada com o livro. E aí eu falei: “Ah, eu não vou mexer mais com literatura infantil, não.” E aí eu fui fazer uma palestra na Ilha do Governador. Uma grande quantidade de livros meus nasceu de conversas com o professores. Eu fiz uma palestra, essa foi conduzida para negócio de conflitos de geração, que estava muito na época. Os milicos tinham usado muito o negócio de conflito de geração, porque os jovens filhos dos militares começaram a romper com os pais, porque a turma deles não era de direita. Então a gente: “Não tem conflito de geração. Nossos filhos são muitos integrados, a gente se compreende muito.” E aí começaram a conversar sobre criação de filhos e eu falei sobre essa tese. Se você trabalha para o seu filho ser uma criança feliz e realizada como criança, certamente ele será um cara legal. Então não "inferne" a vida do seu filho, não prepare ele para o futuro. O futuro está na cara, o futuro vai acontecer, deixa ele ser feliz hoje, amanhã, depois de amanhã, porque todo dia vai ser hoje. Se ele é feliz hoje, ele vai ser feliz no futuro. Enfim, não angustia o menino. E aí a moça: “Porque você não faz um livro sobre essa tese?” Eu falei: “Porque isso é especulação, eu não posso afirmar.” Mas eu fui para casa com essa idéia, fiz o livro, ilustrei, fiz uma boneca, e quando o editor da Melhoramentos veio buscar as capas de cadernos, eu falei: “Cara, eu estou com um livro infantil aí, o que você acha? Será que a Melhoramentos publica?” E aí eu dei o livro para ele. Isso foi em junho. A Bienal é em agosto. E aí ele ligou para mim dizendo: “Aqui, a Melhoramentos quer publicar esse livro para a Bienal.", "Mas faltam só vinte dias", "Senta aí e desenha tudo. Senta e desenha que nós vamos fazer.”, “Opa, pronto.” E aí eu sentei, fiz o livro em quinze dias. Eu fiquei estudando texto, abanando texto, mandei o livro para lá. Saiu em agosto, e em dezembro já tinha vendido cem mil exemplares. Só uma distribuidora comprou 25 mil exemplares. Esgotaram cinco mil, era capa colada, tinha página de rosto e no meio da Bienal os caras me disseram: “Ziraldo, podemos fazer as próximas edições sem colar as páginas de rosto? Porque não dá tempo, se não a gente não pega a Bienal ainda. Assim que passar a Bienal a gente volta a fazer igual.” Nunca voltaram a fazer, né? (risos) Mas as máquinas não pararam enquanto a Bienal durou, os caras rodaram O Menino Maluquinho. E aí, logo depois eu fiz outro chamado A Bela Borboleta, esse mesmo foi encomenda do Siciliano. Ele comprou mais vinte mil exemplares. Essa eu demorei quatro anos para vender, eu tive que rodar o Brasil. E aí que eu comecei a lançar pelo Brasil, porque ele tinha livraria no Brasil inteiro. Eu chegava, assim, a parede da livraria em vez de tijolo era da A Bela Borboleta pregada as figurinhas (risos). E aí começou o negócio de adoção e foi aí que ela começou a vender. E aí eu fiquei fazendo um livro por ano, dois, três por ano. Já tenho cento e tantos livros na Melhoramentos. E agora eu estou fazendo quadrinhos na Globo também.


P/1 - Ziraldo, qual desses cento e tantos livros que te marcou mais assim?


R - O Flicts e O Menino Maluquinho. Inclusive, outro dia eu estava vendo uma coisa engraçada, eles fizeram uma lista dos cem melhores livros infantis dos últimos tempos, editados aqui no Brasil. Então os dez primeiros... O Menino Maluquinho não é o primeiro, e o Flicts também não é o primeiro, o primeiro eu não sei qual que é, eu não me lembro mais. Mas O Menino Maluquinho e o Flicts estão entre os dez. Parece que Flicts é o segundo ou terceiro e O Menino Maluquinho é o quinto. Acho que um livro da Ruth, um livro do Andersen... Porque botaram misturados, Alice no País das Maravilhas com A Bela Sereia e tal. Eu sei que O Menino Maluquinho e o Flicts

ficaram entre os dez primeiros. E do décimo até o cem não entra mais nenhum livro meu. E aí eu tenho livro mais importante...


P/1 - Que tem O Bichinho da Maçã, né?


R - Tem O Bichinho da Maçã que ganhou o prêmio Jabuti, eu te falei que ganhou o prêmio Jabuti de livro de arte. Tem O Menino e Seu Amigo, os meus meninos todos são bem elaborados no mesmo nível. O Menino Mais Bonito do Mundo, que é um menino que sai da história em quadrinho para ir para a literatura. Menino do Rio Doce...


P/1 - Conta um pouquinho do Menino do Rio Doce.


R - Ele ganhou todos os prêmios de onde saiu, não está na lista dos cem. Engraçado. Mas de qualquer maneira, dos dez livros infantis mais importantes do século, eu tenho dois, enfim. E aí tem As Reinações de Narizinho...


P/1 - Oh Ziraldo, fala um pouquinho do Menino do Rio Doce, que é um livro marcante, né?


R - O Menino do Rio Doce? O mais engraçado é que a ilustração é o menino do rio São Francisco, porque eu escrevo um rio, e o desenho elas são do São Francisco, as irmãs do moço são de São Francisco. Elas são muito talentosas, você tem que entrevistar elas nessa lista aí e tal.


P/1 - Elas são grandes ilustradoras, né?


R - Elas ilustraram todos os grandes autores brasileiros, todos, Ana Maria, Jorge Amado, um monte de gente elas ilustraram. E elas são maravilhosas, são fantásticas, elas me deram esse colete aqui de presente, quando a gente fez. E tem uma coisa misteriosa na nossa vida, que é uma história que vale a pena contar. Ela tinha uma menina, adolescente, que preocupava muito ela, uma das irmãs tinha, e elas ouviram dizer que você ia bordando uma coisa e rezando, e enquanto bordava você ia pedindo aos santos delas lá, que protegessem e resolvessem a vida dessa menina. E um dia eu contei para elas que eu estava preocupado com o meu filho, que era muito desorientado, não estudava, não passava de ano, um menino bem dotado, inteligente, um músico super bem dotado e tal, e complicado, eu estava muito preocupado. Ela pegou e fez uma coisa: “Olha, esse negócio foi bordado fio por fio, para resolver a história da minha vida. Então você leva e dá pro seu filho, manda ele botar no quarto dele.” Esse menino é o Antonio Pinto, que é o maior músico de cinema da história do cinema brasileiro (risos). Fez a música do Colateral, Amor em tempos do cólera, Cidade de Deus, Central do Brasil, Nina, Abril Despedaçado, já teve três vezes com o filme concorrendo ao Oscar, ganhou o Globo de Ouro, foi nomeado para o Globo de Ouro... Mas ele mudou da água para o vinho depois.


P/1 - Quando você botou?


R - Mas coincide em cima. Uma coisa assim... Eu não gosto de falar porque parece que é... Eu falo com elas, por isso que eu botei esse colete, porque elas bordaram carinhosamente, cenas da infância aqui do Rio...


P/1 - Nossa, é maravilhoso.


R - É lindo, né? É uma coisa doida, olha aí. Muito bonito, feito com um carinho danado. Carinho é muito bom.

Então o Menino do Rio Doce, aconteceu comigo uma coisa engraçada, porque a história é uma história da época em que a minha memória era estilhaçada, na época da anta. Quer dizer, eu sou um menino do rio Caratinga, que é um “córgo”. Mineiro não fala córrego. Imagina falar córrego. “Aqui é um ‘córguinho’”. E, no entanto, eu fiz à história de um menino à margem de um grande rio, que eu vivi, e que eu não me lembrava mais. Então enquanto eu fui fazendo o livro, fui renascendo o Rio Doce na minha vida, e eu não tinha o título do livro, por isso que eu coloquei Menino do Rio Doce, mas era a ilustração do São Francisco, e as ilustrações são muito mais do Rio São Francisco do que do Rio Doce, mas ficou bonito. Foi o primeiro grande prêmio que eu ganhei com literatura. Eu não sou muito premiado, quem é premiado na minha família, é a Daniela (risos) ela que é uma colecionadora de prêmios. Daniela Thomas. Eu tenho três filhos muito talentosos, a Fabricia também é uma grande diretora, a do meio, está dirigindo agora essas mini-séries para a Globo, com o Fernando Meirelles. O primeiro filme do Fernando Meirelles, que ele dirigiu de longa-metragem, foi Menino Maluquinho dois. E a Fabricia foi à assistente de direção dele. Foi o grande curso de cinema que ela fez. Então ela dirigia alguns desses capítulos da série Antônia, e agora está fazendo outras mini-séries para a Turma da O2. E ela é uma boa diretora de comercial.


P/1 - Ziraldo, os seus filhos se influenciaram em produzir algum livro?


R - Não, eles não ligam para mim, não (risos).


P/1 - Mas na época, a sua neta... Você falou que fez um para a sua neta.


R - Fiz a Nina para eles. Fiz a Nina quando a Vilma morreu. Eu achei que eu tinha que fazer uma homenagem para Vilma. Não podia fazer um Taj Mahal para ela, né? Eu pensei: “Como é que eu vou fazer?” E como ela era muito apaixonada pela Nina, que eu achei que fosse virar uma intelectual, era muito brilhante assim, e acabou virando jogadora de futebol de salão (risos). Ela adora jogar futebol, ela adora esporte, ela era muito engraçadinha, ela é um amor de pessoa, ela tem aquela inteligência feminina. Não é a neta mais inteligente do mundo, como toda a avó acha, mas tem uma inteligência de Danuza Leão, de Fernanda Montenegro. Inteligência de sagacidade. Você conhece Helena Morley?


P/1 - Sei. Minha vida de Menina.


R - Minha Vida de Menina. A minha neta, se fosse escrever, ela era capaz de fazer aquela observação, o olhinho estava sacando tudo. Mas ela gosta de handebol, e agora descobriu futebol de salão, ela está encantadíssima... Mas todos estão. As meninas de São Paulo estão encantadas com o futebol, encantadas. Em todo colégio de São Paulo tem time de futebol feminino, porque lá nos Estados Unidos futebol de pé é esporte feminino. Só tem menina americana jogando, futebol americano, futebol “soccer”, nos Estados Unidos não têm americanos jogando, têm italiano, cubano, chileno, colombiano, chinês, japonês, mas não tem. No Japão está tudo o que é japonês jogando futebol, na China está tudo o que é chinês jogando futebol. Nos Estados Unidos não, eles não conseguem gostar de um esporte que não seja complicado. Eles nunca sabem, Fórmula Indy eles nunca sabem quem está ganhando (risos), é um negócio inacreditável, eles nunca sabem quem está ganhando: “Em que lugar que ele passou?” O narrador não sabe. Basquete, você faz pontos de três maneiras; futebol americano você faz aquele ponto que você chuta por cima, se você vem com a jarda até aqui é tanto, se você foi até lá é outro. Beisebol, como é difícil marcar beisebol. Eles não conseguem fazer, eles não admitem, eles não conseguem entender um jogo que acaba em zero a zero.


P/1— É difícil para eles, né?


R— É.


P/1— Mas Ziraldo, e o seu ABC? Que vai até Z, né?


R— É ABZ. Isso eu desenvolvia a lição da dona Zizinha, da mamãe. Mas fiz questão de não botar boquinha, nem botar olhinho, usar a forma que a letra te sugere. O K é um cara marchando, o M é um V de muleta. O B é um cara barrigudo, o A é um astronauta que desce, aquela coisa. E fiz uma série que agora ficou só no livro. Eu fiz 26 livros.


P/1— Que você juntou em um volume único?


R— E agora ficou em um volume só, porque o desenhista da Melhoramentos achou de fazer. E ficou bonito, você viu o álbum?


P/1—Vi.


R —Tem as 26 histórias. E acabou sendo o maior livro infantil feito no Brasil, porque ele tem seiscentas ilustrações.


P/1—Tem seiscentas ilustrações?


R— Seiscentas ilustrações no livro. E eu fiz sem ver, quando eu vi já estava pronto (risos).


P/1— Ziraldo e como é que é ter essa quantidade enorme aí de leitores? Você tem muito retorno dos seus eleitores?


R—Nossa senhora, eu tenho demais.


(pausa)





R—Tem várias descobertas que eu fiz ao longo da vida. Primeiro eu descobri que eu não escrevo para crianças, eu escrevo para o núcleo familiar. Nenhum livro meu que uma criança leu, a mãe ou o pai não leram, muito difícil. Quem me fala do livro diz assim: “Ah, você escreveu a biografia do meu filho.” A mãe fala assim: “Eu chorei muito quando eu li Nina.” E nunca uma menina me pediu para fazer um livro da Menina Maluquinha, só quem pede é mãe e professora. A menina leu O Menino Maluquinho: “Isso é comigo, eu também sou maluquinha.” Mas ela aceita essa coisa da instituição que o personagem é, ela aceita o personagem como instituição, tanto que eu não consigo fazer a menina maluquinha. Eu fiz agora Menina das Estrelas, que é uma experiência de definir o eterno feminino na menina, quer dizer, existe o eterno feminino, há uma estrutura feminina de existir, de reagir, de chorar, de sofrer que é muito feminino. Então, aplicando essa coisa que a vida te ensinou numa menina, se acerta a mão, depois você até dá uma lida na Menina das Estrelas, mas ainda não é a Menina Maluquinha. Como a Globo está desenvolvendo a Julieta no quadrinho, com as meninas da Globo e os roteiristas, as histórias em quadrinho são feitas por uma equipe, eu só supervisiono, as histórias da Julieta estão fazendo um sucesso espantoso. Aí eu descobri que quem compra livro é menina, quem lê é menina. É impressionante. Outra coisa que eu descobri. Então eu escrevo para o núcleo familiar e para a casa de gente que lê. Porque é muito emocionante ver a família chegar com as crianças na fila, e eu posso avaliar isso pelas filas da Bienal, as minhas filas são famosas. Eu fico seis horas autografando ali, e eu gosto. Olha, velho urina de três em três horas no máximo, de duas em duas horas no máximo, de noite então é um sofrimento. Eu fico seis horas autografando e nem me lembro de me levantar.


P/1—Ziraldo, e agora a fila tem um adendo no autógrafo que é a foto, né?


R—Agora virou foto-autógrafo, né? Demora mais tempo ainda: “Fotografa enquanto eu autografo, fica bonitinha!”, “Não, não, mas você tem que olhar para câmera” (risos).


P/1— Aí demora mais, né?


R— E eu tenho a maior paciência, não tenho esse negócio, eu gosto. Quando a fila está acabando eu fico triste: “Puta que pariu, está acabando a fila!” (risos). Em alguns colégios, em algumas feiras eu tenho que atravessar com um segurança, é muito engraçado, eu falo: “Tira a mão, me deixa passar.” E os caras todos do meu lado, os caras me segurando aqui: “Eu não sou popstar.” Agora eu fui à Goiânia, não dá para atravessar a multidão. Na Bienal de São Paulo não dá, eu tenho que ir naquele carrinho. Mas eu vibro (risos) eu gosto. Então eu digo, eu dependo muito de professora e de tia, quem compra livro para a criança é tia. Se você ver uma moça com cinco, ou seis livro na mão, você pode saber: “Esse aqui é para o meu sobrinho, esse aqui é para a minha sobrinha.” Elas adoram dar presentes para sobrinhas e para os sobrinhos. Agora eu estou fazendo uma série chamada O Menino da Lua, eu comecei com O Menino da Lua, eu fazia um menino por ano, porque para eu fazer O Menino da Lua eu tive que criar um grupo deles, são os meninos dos planetas, então tem o menino de Mercúrio, o menino de Marte, o menino de Vênus, Terra, Marte, Saturno até chegar o menino de Plutão que ninguém sabe como é que é, porque só via o olhinho dele e tal. E aí era passado no século trinta mil, de forma que os meninos andam pelos planetas como quem diz: “Mamãe, eu vou passar o fim de semana com o meu amigo em Mercúrio”; “Ah, meu filho, cuidado com os asteróides aí e tal.” E lá vai ele lá. Então eu descobri que é um jeito de eu vencer a morte, como eu vou fazer um por ano, eu posso morrer daqui a dez anos, antes não dá para morrer porque senão vai ficar faltando livros. Foi um golpe que eu dei na morte, é esse aí. Eu já fiz O Menino da Lua, eu ia fazer um segundo menino que eu não sabia ainda, quando aconteceu o negócio da A Menina das Estrelas, lá em Vitória, que as meninas estavam trabalhando o livro e me perguntaram: “Porque só tem menino nos seus planetas? Não tem menina?” Eu falei: “Não tem porque eu não...” elas falaram: “Não precisa explicar não, nós sabemos.” A menininha falou: “É que os meninos são dos planetas, mas as meninas são das estrelas.” E aí eu falei: “Ih cacete!” Isso é como diz o outro: “Isso dá samba”, “Opa, isso dá livro.” E aí eu cortei o segundo menino e fiz A Menina da Lua. Eu devia ter feito no mesmo formato da série, mas eu fiz num outro formato, porque o livro ficou com um texto muito longo, porque eu comecei a me divertir. Eu descobri que o Lewis Carroll, naquela coisa onírica dele que eu não gosto, na verdade aquela paixão dele pela menina, ele mais ou menos mergulha na alma feminina. É um cara que intuiu alguns truques da alma feminina: a menina chora até poder nadar na lágrima dela, quer dizer, é um negócio muito feminino. E aí na construção da Menina das Estrelas, eu fui usando alguns dos estereótipos do Lewis Carroll e ficou muito engraçado. E agora eu retomei os meninos esse ano, eu fiz O Menino de Urano, e aí eu ia colocar O Menino de Urano, mas aí eu achei: O Menino do Planeta Urano... Mas como ele acabou namorando a fada, e depois eu descobri que fada não tinha namorado... Eu fiz o menino porque eu tenho um sobrinho chamado Téo que pediu: “Ô tio, quando é que eu vou...” que ele era muito amigo da Nina: “Pô, tem a Nina, quando é que vai ser o meu livro?” Eu falei: “É esse, esse livro é seu.” Porque Téo é Deus, e os nascidos sobre o signo de Urano acham que são Deuses, não tem muita paciência com o resto da humanidade, isso é de acordo com o horóscopo, eu fui fazer pesquisa e descobri essa coisa fantástica, o Urano é um planeta gasoso, ele não tem rocha, então você tem que flutuar na verdade. Então ficou bem adequado para ser namorado da fada, então eu o fiz namorado da fada. E agora o próximo que eu vou fazer é O Menino da Terra, porque há muitos anos eu quero fazer O Ultimo Menino, que é um livro que eu já tenho todo estruturado na cabeça, mas eu não quero fazer porque se eu fizer O Último Menino eu vou ter que morrer. Então eu estou usando os argumentos do Último Menino para O Menino da Terra.


P/1—Mas descobriram quatro planetas agora, né?




R—É, mas eu não vou ligar muito para eles não, porque também o Plutão é uma suposição. E esse outro que é além de Plutão... Evidente que deve ter uma porção de outros pedaços de sóis aí nas trevas, porque a presença de corpo físico não é visto. Você sabe, eu tive a maior decepção do mundo quando eu fui ao observatório aqui no sul de Minas: você não vê planeta, não. Não tem aquele negócio de Galileu não. Não é evidente não. O negócio é: você manda um raio para lá e ele bate numa coisa sólida, e aí você calcula com uma equação matemática, depois você pega outra lunetinha para poder ver o planeta. Mas esse de ver não te dá informação nenhuma, o visual não te dá informação nenhuma.


P/1 — Plutão foi achado no cálculo, né?


R — Tudo é no cálculo, todos foram no cálculo. Toda a informação, o visual é apenas para você ter uma idéia mais ou menos. Agora com esse Hubble voando por aí, o pessoal está tendo mais informação. Agora o que eu acho mais fascinante nesse negócio da astronomia, que eu vejo muito pouco colocado, é o seguinte: se existe vida em outro planeta, quer dizer, forma de vida. Eu não tenho preocupação com isso, o que eu tenho certeza é que existe a consciência do universo, situado em outro local do universo. Porque só nós aqui vamos ter a consciência do universo? Saber que ele existe. Porque só nós estaríamos nessa merdinha aqui, medindo o universo? É evidente que tem uma porrada de gente, porque pelas probabilidades deve ter zilhões de sistemas solares, deve ter zilhões de estrelas de quinta grandeza que ocorreu numa coisa... Pela probabilidade... Porque é infinita. Se um zilhão de vezes, não há hipótese de zilhão de vezes uma história não se repetir. Agora já descobriram uma porrada de sistemas solares aí, uma porção de planetas girando também. Eu não estou preocupado se é essa fantasia, se é verdinho, não sei o que... Mas saber que tem um universo, claro que tem que ter, é lógico. Rapaz, só uma galáxia tem um infinito de corpos celestes. Agora, o número de galáxias é infinito (risos), a via láctea é uma mixuruquinha...


P/1—É mixuruquinha mesmo, comparada com o resto.


R—É, tem cada galáxia aí. É uma coisa fantástica.


P/1—Vamos liberar o Ziraldo. Está faltando alguma pergunta?


R—Eu falei para você que eu falo demais (risos).


P/1— Não. Olha, pela gente fazemos outras rodadas. Mas Ziraldo, eu queria terminar essa entrevista te agradecendo e pedindo para você falar o que você acha de contar a sua história pro Memórias da Literatura infanto-juvenil.



R— Eu acho que esse tipo de trabalho para um entendimento futuro do nosso tempo e do nosso país, é muito importante. Porque se você quer entender o Brasil hoje, você vai ter que começar lendo o Laurentino Gomes, o 1808. Ele fez uma pesquisa bastante profunda sobre a inauguração desse país como nação. O país tem duzentos anos certinho, antes era uma empresa portuguesa mal administrada (risos). É mesmo, não é piada. Você não podia nem vir com o navio aqui, o país não podia comercializar com o mundo. Não era país, porque país é esse que não pode comercializar com o mundo? Não podia fabricar nada, não tinha uma escola feita pelo o governo. Os Estados Unidos já estavam fabricando navios, e já eram os maiores fabricantes de navios do mundo, quando Dom Pedro chegou aqui, já era o maior fabricante de navios do mundo, os Estados Unidos, os estaleiros americanos. Então juntar essa documentação para poder compreender... Eu acho que é uma pena a gente não poder viver até o final do século, vai ser muito divertido.

Agora se vocês quiserem colocar aí que eu tenho uma raiva mortal do Fernando Cardoso, pode botar (risos) muita antipatia, eu não suportava ele... Ele está torcendo pro Brasil se fuder, que é uma coisa impressionante, é inacreditável; Ele vai ficar puto da vida. Eu li nessa revista América, a blindagem dos bancos latinos americanos, eles não vão sofrer solução de continuidade, eles vão ter que se adaptar a nova ordem econômica nacional, mas não vai quebrar banco latino americano nenhum. É impressionante. E nem os que estão aqui. O Santander continua forte, o Itaú vai acabar com o Citibank, não o Citibank... Que está instalado aqui no Brasil. É uma coisa impressionante. O Lula realmente é um iluminado, ele é igual ao Pelé. Como é que Deus ilumina os caras assim. Você olha para a cara do Chirac (Jacques Chirac), daquele

primeiro ministro inglês, eles ficam assim para o Lula (risos). O Chirac só falta carregar o Lula no colo. Fernando Henrique também deve ter uma inveja, porque o Fernando Henrique não pegou a primeira página do jornal uma vez, durante os cinco anos do mandato dele. Só no dia que apedrejaram a embaixada brasileira, porque ele estava lá em Roma, aí ele pegou a primeira página. Ele passou pela Inglaterra várias vezes e não deu uma nota na imprensa inglesa. O Lula é igual ao Fidel Castro, não pode sair daqui, o que tem de biografia do Lula nas livrarias do mundo, é uma loucura. Depois do Mandela, ele é o... Primeira vez no mundo que o Brasil escreve um sujeito... Aliás, outro dia eu vi naquela Livraria da Vila, naquele parquinho, vai lá ver que tem uns livro de oito mil reais, dez mil reais que a imprensa americana está fazendo, tem um sobre o êxodo, agora tem um sobre o Pelé, feito na Europa, desse tamanho assim, oito mil e novecentos cruzeiros.

Mas é um livro assim, é bom para contar para o Maradona, e para os argentinos, para acabar com essa babaquice deles de acharem que o Maradona é o maior ídolo da história.


P/1— Mas Ziraldo, eu queria agradecer pela a paciência, e pelas suas boas histórias.