Museu da Pessoa

Trabalhamos para que a criança possa ser só criança

autoria: Museu da Pessoa personagem: Samuel Henrique Mandelbaum

Programa Conte Sua História
Depoimento de Samuel Henrique Mandelbaum
Entrevistado por Denise Cooke
São José dos Campos, 2 de outubro de 2018
Entrevista número PCSH_HV661
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho

P/1 - Boa tarde doutor, muito obrigada por estar aqui contando a sua história para a gente. Fala para a gente o seu nome.

R -

Boa tarde, é um prazer enorme estar com vocês. O meu nome é Samuel Henrique Mandelbaum.

P/1 - Em que ano e onde o senhor nasceu?

R -

Eu nasci em 1950, 21 de outubro, na cidade de Assis, interior do estado de São Paulo, na região da antiga Sorocabana.

P/1 - Conta um pouco para a gente a história dos seus pais. Como eles se chamavam?

R -

O meu pai se chamava Summer Mandelbaum, ele nasceu na Polônia, numa cidade pequena, chamada Sandomierz, ele nasceu em 1917. Ele veio para o Brasil muito novo, com 19 anos. A família da minha mãe, minha mãe nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Quatá, também na região da Sorocabana, e a família dela é de origem portuguesa, a mãe e o pai vieram para o Brasil de navio em 1896. O meu pai nasceu na Polônia, nessa cidade pequena, e veio para o Brasil antes de começar a segunda guerra mundial, quando ele percebeu que a situação política da Europa estava extremamente complicada, ele resolveu vir para o Brasil, onde já estava morando o irmão dele, e o restante da família não quis sair da Polônia. O papai veio para o Brasil numa viajem bastante interessante, e se isso não tivesse acontecido, provavelmente ele não teria sobrevivido à segunda guerra mundial.

P/1 - O que aconteceu com a família dele que ficou lá?

R -

A família dele que ficou lá, a cidade da Polônia, que foi o primeiro país invadido na segunda guerra, foi invadida pelos alemães e a família toda foi assassinada na segunda guerra, com exceção de uma irmã dele, que foi para o campo de concentração de Auschwitz, e sobreviveu, em condições terríveis, e ao final, ela também acabou vindo morar no Brasil, e reencontrou a família dela. O restante da família toda, que era uma família muito grande, eram oito irmãos, pais, tios, sobrinhos, mais de 30 pessoas, todos foram mortos na segunda guerra.

P/1 - E como ele conheceu a sua mãe?

R -

O papai veio, numa aventura terrível, saiu da Polônia e só sabia que o irmão dele estava no Brasil, no Rio de Janeiro, e ele saiu sem dinheiro, chegou até a Inglaterra, até Londres, e em Londres ele se alistou, se inscreveu, vamos dizer assim, para vir ao Brasil trabalhando num navio que era um misto de navio cargueiro e navio de passageiros, então o que ele ganhava era a comida e a viajem, aí ele veio em 1936, com amigos da Polônia. O plano era que o navio pararia primeiro em Salvador e depois no Rio de Janeiro, onde estava o irmão dele. O navio chegou a Salvador, eles desceram as cargas do navio e funcionava assim, onde o navio cargueiro parava, quem trabalhava descia as cargas e ficava esperando ter novo trabalho para continuar a viajem. Eles pararam em Salvador e um dia o capitão do navio chamou a turma e disse que o navio tinha sido requisitado pela marinha real inglesa para se transformar em navio de guerra, e que ele tinha ordens de voltar imediatamente para a Inglaterra sem ninguém, só com a tripulação, e voltou e deixou a turma em Salvador. Se viraram, conseguiu trabalhar de garçom, de carregador no porto, juntar algum dinheiro e pegar um outro navio e vir ao Rio de Janeiro. Quando ele chegou no Rio de Janeiro ele só tinha o nome do irmão dele e sabia que o irmão dele estava no Rio de Janeiro, nem ele sabia direito como ele encontrou o irmão na cidade do Rio de Janeiro, claro que deveria ser muito menor do que é hoje. Ele encontrou o irmão que estava trabalhando numa fábrica de roupas como passador e o papai começou a trabalhar vendendo roupas. Na verdade quando ele começou, ele vendia gravatas, e uma vez eu perguntei para ele porque ele vendia gravatas, e ele falou: “filho, gravata a gente pegava uma mala pequena, cabe um monte de gravatas, e é barato para vender”, então ele começou assim, como um caixeiro viajante, depois mudou para São Paulo e em São Paulo ele continuou fazendo isso, mas passou a vender roupas, camisas, ternos e calças, isso era década de 40, a segunda guerra já estava acontecendo, ele passou a ser caixeiro viajante no interior, e ele andava de trem, então ele pegava o trem na estrada de ferro Sorocabana, na praça Júlio Prestes, onde é a Sala São Paulo hoje, toda vez que eu vou à Sala São Paulo eu fico muito emocionado, porque lembro dele, eu também andei muito por lá, e ele pegava o trem com a mala cheia de coisas e ia descendo em cada cidade, ele parava em uma cidade e saía com a malinha vendendo coisas, volta, pegava o próximo trem e por aí vai, até que ele foi parar na cidade de Quatá, no interior, aí ele conheceu a minha mãe, em Quatá, só que ele continuava na estrada, ia até o final, daí voltava, durante alguns anos, acho que namorava só uma vez por mês, aí depois ele resolveu comprar uma loja, montou uma loja na cidade de Quatá, e aí ficou noivo. Como Assis era maior, era perto, se casou em Assis e teve várias lojas em Assis, e a minha mãe tinha vindo, na verdade, a família tinha vindo de Portugal, minha vó veio com quatro anos de idade, e teve vários filhos muito jovem, eles moraram no interior, em Ribeirão Preto, e depois em Salto Grande, que é na mesma estrada, Sorocabana, e depois foram para Quatá, a família toda morava lá, a aí o destino fez um polonês vindo de nove mil quilômetros encontrar uma filha de portugueses em Quatá.

P/1 - E como foi esse casamento entre duas pessoas de religiões diferentes? O seu pai era judeu e a sua mãe era católica.

R -

A família da minha mãe era de cristão novos, na verdade era judeus que foram convertidos a força em Portugal, e sempre foi o maior respeito entre as duas religiões, as duas famílias, o meu pai dizia que a pessoa que ele mais gostava, depois da minha mãe, era a mãe dela, a minha avó, e ela também, eles adoravam conversar sobre religião, sobre conhecimentos gerais, é muito interessante, duas pessoas que não tiveram a chance de seguir escola formal, o meu pai conseguiu, ele estudou até o colegial, com toda a dificuldade, numa cidade católica, onde moravam poucos judeus, ele tinha que estudar em escola católica, e mesmo assim seguiu, e a minha avó, a família dela, não pode ter estudo formal, a minha mãe já estudou mais, já chegou a se formar professora, o curso normal.

P/1 - E o senhor sabe alguma cosia sobre o dia do seu nascimento?

R -

Exatamente o dia, não, eu sei a hora que eu nasci, era meia noite e 40, quer dizer, 40 minutos do dia, mas eu não sei.

P/1 - E o que o senhor lembra da sua infância em Assis, na casa onde o senhor cresceu?

R -

Eu tenho ótimas lembranças, foi uma ocasião que ficou muito marcada, a cidade era uma cidade pequena, a gente tinha uma loja inicialmente, depois, eu acho que, três lojas e era uma vida muito tranquila, porque era tudo pertinho, década de 50, não tinha nem tanto carro na cidade, a gente conhecia todo mundo, a escola era próxima, a família era próxima, a família da minha mãe estava toda na cidade, o papai não, porque só tinha um irmão que morava em São Paulo, na ocasião, e a irmã dele, que ele achou que tinha desaparecido, na guerra, ela tinha sumido, entre 39 e 58, por aí, que ele foi reencontrá-la, depois de ela viajar pelo mundo, e aí que alguma conjunção astral fez como que eles se reencontrassem. Então a gente tinha uma família pequena, toda perto, era uma vida muito gostosa, muito agradável, a gente brincava na rua, jogava bola na rua, andava de bicicleta, andava de carrinho, de velocípede.

P/1 - O senhor tinha irmãos?

R -

Eu tenho duas irmãs mais novas. A cada cinco anos eu tenho mais uma irmã, chamam-se Ester e Maria Raquel.

P/1 - E como era a rotina em casa? Vocês seguiam algumas tradições judaicas? Como que eram as refeições?

R -

Era interessante, porque nós seguíamos a religião católica, porque não existia nada de sinagoga na cidade, existia uma pequena comunidade judaica, mas de poucas pessoas, três ou quatro famílias, que se reuniam nas grandes comemorações, mas na verdade a gente seguia o calendário e as festas católicas mesmo. Era muito interessante, porque na loja, por exemplo, o maior movimento da loja era na véspera do natal, véspera do dia das mães, então no natal todo mundo trabalhava, ao invés de festejar.

P/1 - E o que o senhor lembra dos seus avós maternos? Como eles se chamavam?

R -

O meu avô materno se chamava Antônio Gabriel e a minha avó materna se chamava Felismina Gonçalves de Oliveira, o meu avô materno eu não tive a felicidade de conhecer, quando eu nasci ele já era falecido, eu tenho histórias interessantes que, inclusive tem a ver com isso aqui, que eu tenho do lado, e a minha avó era uma portuguesa tradicional, o jeitão de portuguesa, ela gostava de roupas cinza e roupa preta, com chales, extremamente rigorosa com a família, a família cresceu por conta dela, sem o esposo, que morreu muito cedo, ela era uma pessoa bastante simples, ela trabalhava em escola, tomava conta de crianças, servente, que chamava, só que eles se viravam, era uma família bastante humilde, todo mundo trabalhava, o meu avô era carpinteiro, carpinteiro é quem faz telhado das casas, que faz a parte pesada, e ele também tinha uma padaria, aí vem uma coisa interessante, porque a família do meu pai, na Polônia, também tinha uma padaria, eu tive a sorte de poder visitar o local onde os meus avós moravam na Polônia, descobri a casa deles e fui, a casa deles está igualzinha, na época foi reconstruída na cidade, e meu avô tinha uma padaria, quer dizer, no final, meus dois avós eram padeiros, um coincidência enorme, e a vovó, eu vim a saber isso depois, porque não encontrei meu avô vivo, fazia pães deliciosos, e depois que eu fiquei sabendo, que ela fazia pão porque ela tinha uma padaria, e ela, embora não tivesse tido escola formal, ela presava muito pela leitura, então ela tinha uma biblioteca dos clássicos brasileiros e portugueses, e eu sempre via a minha avó sentada em uma cadeira de balanço na sala com um livro no colo, e ao lado de uma prateleira, então eu acho que veio dela essa minha vontade de ler. Eu sou um leitor ávido, eu leio muito, sempre dois ou três livros ao mesmo tempo, e a minha avó mostrava para a gente, ela colocava a gente no colo e abria um livro, mostrava Eça de Queiroz, Machado de Assis, Fernando Pessoa, fazia ler Os Lusíadas, de Camões.

P/1 - E teve algum livro em particular que marcou o senhor? Alguma história que ela tenha contado?

R -

Ela gostava muito das histórias de aventura, as aventuras de Marco Polo, de Júlio Verne, os netos sentavam ao pé da cadeira, e ela lendo as histórias, a gente viajava, era um tempo bom, existia o rádio, a gente gostava bastante de rádio, ela gostava de ouvir rádio, as novelas da rádio nacional do Rio de Janeiro, os programas musicais com as orquestras, então era uma festa a gente ir no final da tarde, depois da escola, na casa da vó, sentar lá e ficar ouvindo ela lendo histórias, ou ouvindo música no rádio.

P/1 - Fala um pouco mais sobre os pães maravilhosos que ela fazia.

R -

Ela fazia pães maravilhosos. Um, eu nunca me esqueço, ela e a minha tia, que morava com ela, faziam uma broa de fubá que era um negócio, no forno a lenha no quintal, era um negócio espetacular, e com a manteiga que elas faziam, porque não tinha geladeira na casa, a manteiga era batida a mão e ficava fora de geladeira num tigela com água com sal, e não estragava, parecia um milagre, e eu nunca me esqueço, eu sinto o cheiro da broa de fubá saindo do forninho e passando a manteiga, derretendo aquele amarelinho, nossa, enche a boca.

P/1 - Conta para a gente dessas cadeiras do seu avô.

R -

Isso aqui é uma paixão mais ou menos recente, que eu descobri que deve ter um fundo antigo. Porque o meu avô era carpinteiro, só que em casa, acho que ele cansava de fazer coisas brutas, ele fazia alguns móveis, então ele fez um tipo de guarda comida, aqueles armarinhos de prateleira com vidros muito bonitos, e fazia cadeiras, então, ele fazia uma cadeira bem rústica, eu acabei herdando duas poltronas, bem rústicas também, mas que eu adoro, que ele fez. Eu sempre tive em casa, quando eu era pequeno, minha mãe, quando eu era pequeno, minha mãe me dava “de mamar” em uma cadeira de balanço, aquela que é toda de madeira, em círculos, e palha, chama cadeira Thonet, ela me amamentava nessa cadeira, essa cadeira eu ganhei, ainda tenho em casa, essa cadeira tem quase 70 anos, e eu sempre gostei de desenho, de design, e de repente eu ganhei uma cadeira, uma miniatura, eu viajei, comprei algumas, e de repente eu tinha uma porção de cadeirinhas, e à partir daí eu comecei a olhar, elas precisavam ter uma organização, e eu passei a procurar cadeiras, amigos passaram a me dar de presente, pessoas passaram a indicar, e hoje eu tenho uma coleção razoável de cadeirinhas, eu gosto de cadeiras, desde as mais simples, essa aqui, por exemplo, é uma cadeira portuguesa, cadeira do além Tejo, a menorzinha que eu tenho, essa cadeira deu origem à cadeira caipira brasileira e mineira, que é essa aqui, originalmente ela é feita em madeira e palha de milho, essa aqui é em barbante, muito linda, foi um amigo querido que me fez de presente e me deu essa aqui. Então eu gosto, eu procuro, eu tenho uma coleção interessante. Tem as cadeiras tradicionais, as clássicas, como essa Marcel Breuer, essa Mies Van Der Rohe, essa aqui, talvez uma das mais famosas do mundo, modelo Barcelona, de 1929, você vê, tem 90 anos, essa aqui tem 100 anos, e continuam muito bonitas, até, algumas delas, eu tenho em tamanho natural, eu tenho a chance de sentar nelas, e eu acho que foi o vovô Gabriel que inspirou essa coleçãozinha que está crescendo.

P/1 - Quantas o senhor tem, no momento?

R -

Acho que mais de 150. E é interessante, porque eu gosto muito, eu gosto até mais dessas assim, que são artesanais, essa aqui foi feita em Curitiba, é aquela cadeira de boteco, cadeira de praia, mas ela é tão bem-feita, de madeira, é perfeita, acho que é uma obra de arte, que eu reverencio tanto quanto, ou até mais, do que uma dessas, que tem todo um trabalho de design, eu acho que esses artistas são excepcionais, gosto muito.

P/1 - E me fala uma coisa, quais são as suas primeiras lembranças da escola?

R -

Eu não esqueço da professora, dona Penha, minha primeira professora primária, ela era lindíssima, e assim, eu lembro até hoje das aulas que a gente tinha, da cartilha, que era daquela antiga, em que a gente aprendia assim: “a pata nada, pata, pá, nada na...”, era por sílabas, diferente de hoje, e foi uma época muito boa, parece que os professores trabalhavam de uma maneira diferente, o incentivo, eu acho, era maior, e os professores eram os ídolos da gente. Uma professora andando na rua, daqui a pouco fazia um cortejo de alunos atrás, porque ela era uma deusa, a professora e o professor também, e numa cidade pequena, onde a gente morava, todo mundo conhecia todo mundo, todo mundo era amigo, era muito bacana, a escola era o centro das atenções. Eu tive a honra de estudar em escola pública, sempre, e foi muito bom.

P/1 - E quais eram as matérias que o senhor gostava de estudar?

R -

Eu era um ótimo aluno, eu era o melhor aluno da cidade, e eu gostava de estudar tudo. Mas eu gostava muito de matemática, gostava muito de física, e gostava demais de português e literatura, e vim a ser outra coisa diferente, eu uso tudo o que eu aprendi na medicina, acabei fazendo medicina.

P/1 - Mas naquela época, o que o Samuel queria ser quando crescesse?

R -

O Samuelzinho, que era eu, porque o meu pai era Samuel também, então eu sou o Samuelzinho, quando eu vou para a minha, fui agora em julho, encontrei amigos do meu pai, sempre quis fazer medicina, meus pais me davam de presente, brinquedos, tipo estetoscópio de brinquedo, maletinha de médico, eu tenho um boneco, que é um menininho médico, com aquele refletor na testa. Eu não sei exatamente o porquê eu quis fazer medicina. Eu lembro bem, que na cidade eu adorava os médicos, e meu pai era amigo de todos eles, e vários deles ficaram muito amigos, e mesmo depois que eu me formei, tive a oportunidade de estar junto, de aprender com eles, de trabalhar e até de operar junto, não tem muita explicação não. Acho que talvez tenha sido o desafio, medicina, na ocasião, era a faculdade mais difícil de entrar, e eu estudei no interior até o segundo cientifico e daí eu fui para São Paulo fazer o terceiro cientifico e o cursinho juntos, e fiz vestibular e entrei direto na medicina da USP, em Pinheiros, e em várias outras escolas, entrei em todas as que eu queria e fiz a escola que eu queria.

P/1 - E, voltando um pouco, como foi a sua adolescência em Assis?

R -

Foi uma adolescência maravilhosa, porque a minha geração foi absolutamente privilegiada, nós acompanhamos a mudança do mundo, nó mudamos junto com o mundo, na verdade. Eu nasci em 1950, quer dizer, chegou, só para falar em música, em 58, 60, a gente começou a ouvir Bossa Nova, em 62, 63, 64, a gente começou a ouvir Jovem Guarda, com Roberto Carlos, Erasmo Carlos, e os conjuntos musicais. Aí veio a revolução de 64, mudou tudo, e a gente começou a acompanhar a música de protesto no Brasil, os festivais, os grandes músicos e os nossos grandes artistas, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, e se for falar nomes aqui, a gente vai ficar o dia inteiro, e aí, quando veio a repressão terrível mesmo, de 68 em diante, apareceu o samba também, Paulinho da Viola, Cartola, então, isso para falar em música, e sem contar o que veio de fora, a gente está esquecendo de Rolling Stones e Beatles, que fizeram uma revolução na nossa cabeça. Festival de Woodstock nos Estados Unidos, que a gente acompanhava, sem falar na mudança de costumes, então, a cidade vivia muito em função de música, porque era pouca gente, existiam dois clubes onde a gente se reunia, os adolescentes, e era uma época boa, por exemplo, a gente não falava de drogas, não via correr droga, o que a gente fazia, no máximo, quando tomava, era um fogo de Cuba Libre, que é Coca-Cola com rum, ou então Fanta, ou cerveja, e a gente vivia assim, os amigos todos juntos, conjuntos musicais da cidade, era bem interessante, e eu gostava muito de música, tentei aprender a tocar piano, foi uma frustração terrível, porque eu estudei piano por sete anos seguidos com uma professora que ensinava música clássica, só que ela só admitia música clássica, e o método de ensino era um método que a gente tinha que colocar uma borracha em cima da mão e tocar sem olhar, e a borracha não podia cair, se a borracha caísse, a professora tinha uma régua de um metro, ela dava uma palmada com a régua na mão, e aí eu aprendi a tocar Beethoven, Chopin, e o meu pai viajava todo mês para São Paulo, vinha fazer compras de mercadoria para a loja, e quando ele vinha para São Paulo, ele sempre tinha uma encomenda minha, de duas coisas, de discos e de partituras musicais. Naquela época não tinha internet, televisão chegou na cidade em 1963, branco em preto, retransmissão da TV Excelsior, de São Paulo, para a TV Coroados de Londrina, imagina, era terrível, a imagem toda chuviscada, então o papai trazia partituras e trazia discos e, em 64, eu acho, eu pedi para o papai trazer partituras de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, “Eu sei que vou te amar”, “Garota de Ipanema”, e eu peguei a partitura, levei à minha professora de piano, acabou a aula, eu mostrei para ela, pedi: “professora, será que a senhora podia me ensinar a tocar?”, ela olhou, jogou e falou: “você só vai mexer nisso a hora que você estiver sabendo tudo dessas coisas que eu estou te ensinando, e enquanto isso nada”, claro que a próxima aula eu nunca mais fui ao piano, deixei, é uma pena. Hoje eu não consigo tocar nada, antigamente eu tocava, abria uma partitura e sabia tocar, mas em compensação eu me tornei um ouvinte bom, um audiófilo, eu gosto muito de música, eu tenho uma coleção enorme de discos, desde aqueles de 78, disco de vinil, eu tenho uns três mil discos, tenho muito CD e sou um ouvinte ótimo, eu gosto de música, já mexi com rádio, já fiz programa de rádio, eu sou um ser eclético, eu gosto de muitas coisas. Eu acho que o profissional de medicina não pode ser só voltado à medicina, porque tem gente que fala assim: “o que eu mais gosto na vida é medicina”, eu falo que não, eu gosto muito de medicina, só que eu gosto muito também de muitas outras coisas, e eu uso tudo o que eu aprendo na medicina, eu gosto muito de música, eu gosto de ouvir música, eu gosto de fazer música, não fazer porque eu não consigo, mas eu gosto de tentar ajudar, já fiz produção musical de shows, shows grandes em São Paulo, foi assim que eu conheci a minha esposa. Durante a faculdade, e logo depois, produzi shows de Gonzaguinha, João Bosco, Ivan Lins, Milton Nascimento, Paulinho da Vila, Paulinho Nogueira, centros acadêmicos, na ocasião, eram o centro de resistência cultural da cidade, então esses artistas, nessa época, entre 69 e 80, eles não tinham penetração fora do meio universitário, tanto que existia o circuito universitário, as faculdades promoviam shows onde os artistas podiam se mostrar com uma certa liberdade, e eu promovi vários shows na minha faculdade e depois na faculdade de enfermagem da USP, onde a Maria Helena era diretora do centro acadêmico, foi aí que a gente se conheceu.

P/1 - Conta para a gente como foi quando vocês se conheceram.

R -

Foi muito interessante, porque eu tinha feito um curso de música, na verdade era um curso sobre música popular brasileira, num instituto em São Paulo, na rua Estados Unidos, chamava INDAC, instituto nacional de arte e cultura, um nome pomposo para uma coisa simples. Uma vez por semana a gente ia lá e ia ouvir e conversar sobre música brasileira, com uma grande diferença, na maioria das vezes, se a gente fosse falar sobre samba paulistano, provavelmente ia ter um dos sambistas de São Paulo ali presente, ao vivo, lá eu conheci esses músicos, compositores, cantores, artistas, Ivan Lins, Paulinho Nogueira, o grande violonista, João Bosco, e, a partira daí, pelo contato da faculdade, eu tive a chance de levá-los para a faculdade de medicina e para a faculdade de enfermagem para fazer shows, e a Maria Helena era do centro acadêmico da faculdade dela, eu era do meu, da medicina, e eles pediram, como eu tinha esse contato, seu eu podia ajudar para fazer os shows, e a faculdade de enfermagem tinha um espaço físico muito interessante. aí eu comecei a trazer os artistas, e uma parte muito linda, que eu sempre lembro, é uma história com o Gonzaguinha, Luiz Gonzaga Júnior, hoje todo mundo escuta ele só cantando Lindo Lago Azul, na verdade o Gonzaguinha foi a nossa voz de repúdio àquele regime militar opressivo, à censura, então o Gonzaguinha não podia gravar, porque cada palavra que ele cantava e falava era interpretada como se fosse uma coisa de revolta, de briga, então ele tinha que falar com metáforas e chegou uma época que ele ficou doente, pegou uma tuberculose, quase morreu, teve grande dificuldade e nós fizemos um show do Luiz Gonzaga Junior numa época em que ele não tinha mais acesso a meios de divulgação, e ele foi fazer o show, foi combinado que ele iria receber um valor “x” pelo show, eu não sei exatamente o nome do dinheiro daquela época, foi em 1976, mas digamos que tenha sido alguma coisa tipo 500 reais. Em 76 o Vladimir Herzog tinha morrido, existia uma repressão terrível, e onde ia o Gonzaguinha, todo mundo tinha medo de ir, porque eles falavam que era perigoso a polícia dar batida e prender quem estava assistindo, enfim, o Gonzaguinha fez o show, só que a plateia foi mínima, e o que se pagava era uma coisa irrisória, e o dinheiro não deu para pagar o show, e a Maria Helena e a turma dela, da diretoria do centro acadêmico, eu era o empresário, vamos dizer assim, acabou o show, as meninas vieram conversar comigo, e falaram: “e agora, nós combinamos que íamos pagar 500 reais para o Gonzaguinha, e o que entrou de ingresso acho que dá 300 reais, como que a gente faz?'', eu falei: “o que tem que fazer é chegar e falar com ele”, elas chegaram e eu falei: “ Gonzaguinha, vem cá, elas querem falar uma coisa para você”, e elas com aquela vergonha, aquele medo, elas falaram: “nós combinamos um valor tal, só que veja, não veio quase ninguém, não deixaram fazer propaganda, a gente não tem o dinheiro para te pagar, como a gente faz?”, ele olhou para ela e falou: “menina, quanto deu de ingresso para vocês?”, ela olhou e falou: “deu 320”, ele falou: “quantas trabalharam?”, ela falou: “umas quatro”, ele me chamou e falou: “Samuca, é o seguinte, são as quatro meninas, eu e você, cabe no seu carro?”, eu falei: “é apertado mas cabe”, ele falou: “bota tudo no carro, vamos para o bar, nós vamos tomar isso em cerveja”, e aí nós fomos para a Avenida São João, ele estava hospedado lá na Rua Aurora, na boca do lixo, e nós fomos em uma churrascaria que fica ao lado do Filé do Moraes, aí fomos lá, os seis, paramos o carro, descemos, sentamos em uma mesa grande, ele chamou o, que ele já conhecia, e falou: “olha, batatinha frita e vai trazendo cerveja, quando estiver perto dos 300 você me avisa”, e aí começamos, ele estava do meu lado, Maria Helena aqui, uma mesa redonda, uma hora ele me cutucou e falou: “olha aquelas meninas lá, olhando para a gente”, tinham duas moças, isso era três horas da manhã de sábado para domingo, eram duas moças que estavam do outro lado, duas prostitutas, que tinham trabalhado, e estavam lá comendo um sanduíche e viram de longe, estava uma falando com a outra, e ele percebeu, aí ele levantou e foi lá e falou: “o que vocês estão olhando?”, uma falou assim: “você por acaso é aquele cantor?”, ele falou: “sou sim, porque?”, “ah, a gente gosta de você”, ele falou: “então vem cá”, chamou as duas moças, sentamos na mesa e tomamos cerveja a noite inteira, até acabar a grana, e pronto, uma história muito bacana. Esse era Luiz Gonzaga Júnior.

P/1 - E você e a Maria Helena começaram a namorar nessa noite?

R -

A gente começou a namorar um pouco depois, depois de um show do Ivan Lins, daí a gente ficou se conhecendo, mas assim, é uma coisa impossível de acontecer hoje, provavelmente hoje não aconteceria com um artista, eles não conseguem mais fazer isso, um artista popular, muito sobrecarregado pela carga que ele recebeu nas costas de ser o porta-voz de uma nação, e uma história que só vocês estão sabendo, e quem estava junto.

P/1 - Conta para a gente como foi a faculdade de medicina, como você decidiu se especializar em dermatologia?

R -

Eu entrei na faculdade de medicina, e no dia que nós entramos na faculdade, em 69, começou a greve, quase perdemos o ano por causa de greve, foi um ano terrível, em 68 tinha sido o AI 5, aquela movimentação dos estudantes, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, e 69 foi um ano muito complicado, pouca aula, uma radicalização total, durante o curso inteiro, foi muito conturbado, porque era uma briga entre direita e esquerda, até muito chata, porque hoje a gente está vendo isso no país, duas forças que não querem conversar, isso aconteceu naquela época também, e a faculdade foi boa, mas muito sofrida, porque a repressão era muito grande, nós tivemos sete colegas de faculdade que morreram assassinados durante os anos de faculdade, foi muito difícil, mas foi muito boa, a faculdade era excelente, a vida cultural também, como eu estava dizendo, existia dentro da faculdade, e eu gostava, eu sempre fui alguém muito prático, eu gosto de ver as coisas e fazer e poder interferir, e à partir daí, que eu fui conhecendo várias especialidades, eu vi que dermatologia seria uma coisa interessante porque, eu era muito independente, e na dermatologia, um dermatologista bem formado, consegue resolver sozinho 95% dos problemas, não precisa de exame laboratorial, e são coisas diretas, existe a queixa, examina, tanto que a dermatologia, diferente da medicina, se você vai numa consulta normal, o médico pergunta o seu nome, quantos anos tem, o que você sente e daí ele pergunta como é a sua alimentação, e depois vai examinar. Na dermatologia é o contrário, é bom dia, o seu nome, a sua profissão, qual é o seu problema e o exame da pele é a primeira coisa, então, a partir do que a gente vê, a gente vai conversar e perguntar, e isso me atraía muito, porque era muito direto e as doenças de pele são evidentes, e aí eu fui vendo que muitas doenças de pele, embora sejam, teoricamente, muito simples, poderiam impactar demais na qualidade de vida das pessoas. Eu fiz a faculdade de medicina da USP, depois fiz internato na USP, residência também, fiz pós-graduação, tive a oportunidade de sair do país e estudar fora, e sempre gostando muito da dermatologia, pela objetividade. Uma outra coisa que acontecia, é que eu, quando criança, eu tinha tido bronquite e asma, e depois eu vim a descobrir, que isso que era uma “alergia”, na verdade era uma doença, que se desenvolve também na pele, deixa a pele seca, com coceira, que se chama dermatite atópica, isso eu conheci na faculdade, nunca ninguém me falou, nenhum profissional, que eu fui paciente, me falou nada, eu não sei se é porque eles não sabiam, provavelmente não, talvez na época não se conhecesse exatamente o que era isso, então isso me chamou bastante a atenção, a dermatite atópica, acabei tendo muitos pacientes com dermatite atópica, com doenças desfigurantes, incapacitantes, muitas crianças e fiquei muito tempo em São Paulo, depois fui convidado para vir para cá, para São José dos Campos. Vim para cá recém-formado, estou aqui desde 1980 e o que eu observava, nesse tempo a Maria Helena tinha sido enfermeira do hospital Sírio-Libanês, e depois, quando mudamos para cá, ela continuou dando aula na universidade de Taubaté, e trabalhando como enfermeira dermatológica no consultório. A gente está aqui dentro da Santa Casa, tenho o maior orgulho de pertencer ao corpo clínico dela, em 1980, eu não me esqueço, eu ainda estava morando em São Paulo e vinha para cá duas vezes por semana, e estava em um consultório, um colega médico me chamou, pedindo se eu podia vir até a Santa Casa, era um prédio bem menor, porque o filho de um colega estava com uma alergia, uma criança, eu vim e fiz um diagnóstico de uma doença rara e muito grava, que se chama síndrome de Stevens Johnson, que é extremamente grave, a criança começa a ter bolhas, normalmente causada por remédios, e era causada por um remédio anticonvulsivante, aqueles tranquilizantes para epilepsia, e então eu tive a oportunidade de ajudar a cuidar dessa criança, que estava muito grave, mas que felizmente sobreviveu, eu era médico recém formado, novinho, ninguém conhecia, que de repente ganhou a fama de ser um médico que cuida de doenças graves, e passei a ter mais crianças com essas doenças, e o que eu via é que as crianças vinham ao consultório, as vezes com uma receita correta, a medicação estava certa, e a criança não melhorava, então alguma coisa não está certa, e nós passamos a tentar perceber o que acontecia, e o que a gente entendeu é que as crianças não melhoravam porque não sabiam o que tinham, porque com a medicina mecanizada, com o tempo de trabalho curto, o médico não tinha tempo nem paciência, muitas vezes não tinha a formação de conversar com a família, de explicar o que acontecia, então quando a gente parava e explicava para a família de uma criança com dermatite atópica, o que era a doença, o que acontecia, a criança entendia o que estava acontecendo e criava a aderência ao tratamento, passava a entender o que estava fazendo e melhorava. Aí nós passamos a tentar juntar algumas crianças com outras, que tinham a mesma coisa ou coisas parecidas, para tentar fazer alguma atividade conjunta, nesse tempo, o nosso filho, o Rodrigo, também tinha dermatite atópica discreta, tinha bronquite, tinha rinite, tinha que fazer natação para melhorar a capacidade pulmonar. Ele passou a pertencer a um grupo de intercâmbio no mundo inteiro, que fazia convivência entre crianças de várias nacionalidades, crianças que não falavam a mesma língua, mas que viajavam para um país juntas e se entendiam, com todas as diferenças, e a gente viu que se a criança entendia as diferenças, ela podia assimilar muito mais as semelhanças e podia ter uma convivência normal. Aí começamos a pensar se isso não poderia ser trazido para a dermatologia, e tivemos a ideia de fazer um acampamento, da mesma maneira que o meu filho ia, com crianças que tivessem doenças de pele, para que elas se conhecessem. Nessa ocasião eu já estava dando aula na faculdade de medicina de Taubaté e eu pertencia à parte política da sociedade brasileira de dermatologia, fui eleito presidente da sociedade brasileira de dermatologia da regional do estado de São Paulo, estamos falando do ano 2000. Eu tinha sido, coordenador de trabalhos científicos, depois vice-presidente e depois fui eleito presidente da sociedade, fui o primeiro presidente da sociedade brasileira de dermatologia que veio do interior, e todo mundo anteriormente era só “professorzão” que eram de faculdades grandes, que era Pinheiros, Paulista e Santa Casa, eu fui o primeiro a vir do interior, e na ocasião, eu era professor de uma faculdade pequena lá do interior, como era considerado Taubaté, mudou muito, hoje a faculdade de Taubaté é uma das dez melhores do estado de São Paulo, mas na ocasião não, e eu tive muita gente falando contra, que como podia um cara que nem era professor de uma faculdade grande, que nem era de São Paulo, como ia ser presidente de uma entidade importante, enfim, mesmo com adversários, a gente ganhou, e em 2001 eu assumi a presidência da sociedade, e com a ideia de fazer alguma coisa para unir essas crianças, aí nós Tivemos essa ideia de fazer um acampamento onde a gente levasse crianças, sozinhas, sem as suas famílias, onde elas estivessem juntas com outras crianças que pudessem conhecer pessoas com problemas semelhantes em graus variados, e que, através disso, elas pudessem perceber que se elas se cuidassem, elas poderiam melhorar a sua vida, e a gente chamou isso de Derrmacamp, de acampamento dermatológico.Em 2001 a gente fez o primeiro acampamento, muito pequeno, com oito crianças, 16 pessoas no total, esse bottom aqui é do ano original, ele está até enferrujadinho, mas ele é de 2001, e muita gente não acreditava, dizia que isso não ia dar certo, porque imagina, a gente ia fazer uma redoma de vidro para a criança, mas não era isso, a gente queria mostrar que as crianças, mesmo com doenças de pele muito graves, não só a dermatite atópica, mas existem doenças de pele muito graves, existe uma doença chamada epidermólise bolhosa, é a doença mais complexa da medicina, a criança nasce com deficiência de colágeno, ela não produz colágeno ou produz um colágeno alterado, e o colágeno age na cicatrização, então qualquer batidinha, a pele se desprega, forma bolhas, e a cicatrização é defeituosa, então a bolha forma ferida e depois a ferida, quando cicatriza, junta, então a criança perde as unhas, perde os dedos, tem essas bolhas na garganta, no esôfago, intestino, perde proteína e tem uma vida mais curta, é uma doença altamente incapacitante. Tem gente que não acredita que uma doença de pele possa levar uma criança a ficar pressa em uma cadeira de rodas, e existe isso, existem no Brasil 800 pessoas com essa doença, a gente, no “derma camp”, tem umas 30 e então a gente montou esse projeto social de integração social e de qualidade de vida, para crianças com doenças de pele severas. Ele começou em 2001 e veio se repetindo desde então, todos os anos. Começou como um acampamento, com crianças de oito a 12 anos. O acampamento não é necessariamente com barracas, mas acontece em uma fazenda, onde a gente tem lago, piscina, quadra de esportes, pedalinho, bicicleta, cavalo, lago para pesca. Onde a criança pode ser apenas criança, pode esquecer do problema dela. Vão junto pessoas que ajudam a cuidar, ajudam a fazer com a criança esteja disponível na hora que vai ter uma brincadeira, existem os monitores que fazem essas atividades, que bolam as coisas e as atividades que a gente faz são brincadeiras, atividades lúdicas, sempre voltadas à autoestima, ao autoconhecimento e a aprender a lidar com as diversidades. Isso começou pequenininho, mas agora nós já estamos no décimo oitavo ano, atingindo a maioridade, tivemos no ano passado o acampamento com 60 pessoas, lotado, e como a gente leva crianças de oito a 12 anos, hoje o nosso acampamento anda, com todo mundo que vai, é “ex-criança” que já foi “acampante”, e nada melhor que uma pessoa que começou como criança para sentir o que ela sentiu a necessidade e o bem-estar que ela acabou recebendo. Nós começamos só com o acampamento, vimos que isso não era suficiente, começamos a pesquisar, trabalhar com as famílias e vimos que somente o carinho, o acolhimento que essas crianças recebem, faz com que elas mudem o seu enfoque com a vida, elas eram crianças que não estudavam, e viram que tinha uma outra criança, mais velha que ela, com a mesma doença e que já estava quase entrando na faculdade, então resolveram estudar. Outra que tinha largado, não queria nem saber, viu que tinha uma outra com a mesma patologia e que contou para ela o que fez para conseguir melhorar. Então, o “derma camp” não mexe com o tratamento, a criança, para ir ao “derma camp”, tem que estar em tratamento com médicos dermatologistas da sociedade brasileira de dermatologia, e nós seguimos o tratamento, nós apenas damos as condições para que essa criança consiga ter momentos de felicidade, e a partir de oito anos atrás, a gente passou a ter encontros a cada dois meses entre as famílias e os voluntários, é um ambiente muito agradável. Esse projeto já teve reconhecimento fora do país, no ano de 2004 a academia americana de dermatologia nos deu a honra de receber o prêmio que se chama “Os sócios que fazem a diferença”, o prêmio de voluntariado a academia americana, nós fomos os primeiros estrangeiros a receber esse prêmio, em 2011, em Seul, na Coréia, a liga internacional nos premiou como o maior projeto de integração social e de responsabilidade social em dermatologia e agora em 2018, a international league of dermatology societies, nos premiou com o maior prêmio de dermatologia humanitária do mundo, a gente é muito feliz. A sociedade de dermatologia de São Paulo também nos premiou e a associação comercial de São Paulo, então é um projeto, que hoje já é uma realidade, reconhecido no mundo inteiro, que lida com crianças que têm as doenças de pele mais diferentes, debilitantes ou incapacitantes, desfigurantes, e que lá esquecem que são crianças. O próprio Museu da Pessoa tem depoimentos de participantes do “Derma Camp”, é uma criança que vai a um acampamento, com medo de todo mundo, que chega lá vestida de moletom, puxado em cima da mão, com o gorro na cabeça, no segundo dia ela já está “assim”, no terceiro dia ela tira o moletom, aí, depois de dois meses, quando a gente tem o encontro, chega uma criança que alguém olha e fala: “poxa vida, parece o fulano”, e não é que parece, é, a menina chega de blusinha regata e bermuda, todo mundo fala, toda “emperebada”, toda cheia de lesão, mas não está nem aí, ela aprendeu que ela não é a dermatite, que ela é a fulana de tal, que eventualmente tem a dermatite, assim como outros tem outras coisas, que podem ser piores, que ninguém está enxergando, e elas passam a ter uma vida diferente. Nesses 18 anos, a recompensa que a gente tem é enorme, a gente tem crianças que já são formadas, crianças que não estudavam, crianças que já estão em faculdade de direito, em administração, nós temos uma criança que não saía de casa, hoje a Vini é campeã brasileira de karatê, imagina, uma criança com uma doença altamente desfigurante, campeã brasileira de karatê. O Márcio, que tinha uma dermatite severíssima, hoje está controlado, e trabalha na área de informática, então é um trabalho que vale a pena, e cada vez mais.

P/1 - E fora do âmbito do acampamento, o senhor continua tratando pacientes diariamente?

R -

Sim.

P/1 - E quais são os grandes desafios de tratar pacientes com dermatite?

R -

Eu continuo em plena atividade, eu sou professor da faculdade de Taubaté, lá a gente tem o serviço de residência, nós temos dez residentes, médicos que estão se especializando na dermatologia, mais sete assistentes, nós damos aula do terceiro ao sexto ano de medicina, num serviço que tem mais de 30 pessoas no total, esse é o terceiro ano, eu abri aqui na Santa Casa de São José, uma nova residência médica em dermatologia, já formamos a primeira turma, aqui nós temos seis residentes, é um serviço, ainda, pequeno, mas a primeira turma já está formada, já fez prova de especialista, todos aprovados e todos trabalhado, e eu continuo. Nós temos uma clínica aqui em São José dos Campos, onde a gente atendo com muita alegria e muitos pacientes, a gente está chegando a um número quase inacreditável.

P/1 - E o que o senhor diria que é o maior desafio na hora de tratar um paciente de dermatite atópica?

R -

O maior desafio é fazer com que essa pessoa entendo o que está acontecendo com ela, e que a família tenha conhecimento do que o problema, no caso. À partir do momento que eles entendem o que está acontecendo, é incrível, porque o tratamento melhora, mesmo sem mexer em remédio, só o fato de entender porque que está passando um creme hidratante, quem já passou um creme hidratante na pele sabe, é muito chato passar hidratante, você passa hidratante e meleca, gruda, a roupa fica manchada, você anda um pouquinho e aquilo sua, mas se você ensina para a criança o que está acontecendo na pele dela, que a pele dela não segura a água, que a água do banho vai embora, evapora, e que você precisa passar um creme, para que esse creme segure a água da pele, se segurar a água da pele, você vai formar uma barreira, um escudo de proteção, aí a gente brinca com super-heróis, que aí não vai deixar a bactéria vir e penetrar, a criança entende e vai fazer o seu banho diferente, vai se hidratar melhor, sem aquela obrigação, sem aquela coisa de “tem que fazer”, não, vai fazer porque é bom para você, é um trabalho difícil, leva tempo, você precisa aprender uma linguagem que seja a linguagem do seu paciente, para cada um a linguagem é diferente, o nosso país é muito diversificado, as vezes você atende uma criança que veio do nordeste, a família nem sabe o que é uma coisa que tem o nome diferente no nordeste, ou no sul, então você tem que ter muito jogo de cintura.

P/1 - E como é lidar com a família, com os pais? Isso também requer um cuidado maior?

R -

Eu acho que requer ainda mais cuidado, porque os pais foram acostumados a ouvir uma frase terrível em medicina, que é “isso não tem cura”, quando alguém ouve essa frase, automaticamente fala: “então porque eu vou fazer? Para que eu estou aqui?”, então a gente evita falar isso. Dermatite atópica é uma doença extremamente comum, uma porcentagem grande, 25% das pessoas, pode ter essa doença, e que a um tempo atrás, não existia nada que conseguisse melhorar. Hoje o avanço da medicina é tão rápido que a gente pode dizer que criança, ou adulto, com dermatite atópica, pode ficar sem nenhuma lesão usando o remédio, mas por exemplo, quem tem diabetes, quem tem pressão alta, vai usar remédio também, a vida inteira, mas vai poder viver com a pressão normal, e a dermatite atópica é isso, então, ultimamente, estão saindo novas pesquisas que estão mudando a vida da pessoa com dermatite atópica, e isso vai acontecer aqui no Brasil agora, nos próximos meses, a gente vai ter aceso a novas medicações que vão mudar completamente, e quem sabe, daqui a um tempo, a gente possa refazer uma entrevista dessas e falar: “olha gente, dermatite atópica já tem cura, assim como a epidermólise bolhosa”, a epidermólise bolhosa é uma doença que não tem cura, e que mata com frequência. Até dois anos a gente falava que não tinha nada, hoje já existe tratamento genético, é uma doença gravíssima, os cientistas num laboratório, tiram um pedacinho de pele da pessoa, de dois centímetros, tamanho de uma unha do dedão, cultivam essa pele, colocam um vírus para trabalhar ali, aquele vírus muda o gene que não deixa fazer o colágeno, ou que faz o colágeno alterado, esse gene passa a produzir o colágeno normal, aquela pele cresce de uma unha, para fazer uma toalha de um metro por um metro, essa pele é enxertada na criança e a pele cicatriza e não forma bolha. É assim como você está fazendo Denise, não dá para acreditar, se fosse cinco anos atrás eu ia falar: “ah”, hoje já existe. Quem sabe quanto tempo vai levar, a medicina é lenta. Ontem acabou de sair o prêmio Nobel de medicina, de um trabalho que o pessoal fez há 30 anos, então a coisa é lenta, mas a ciência anda, e coisas que não existiam a alguns anos, hoje a gente consegue fazer a pessoa viver bem, psoríase, por exemplo, que é outra doença extremamente comum, até dez anos atrás todo mundo falava que psoríase não tem cura, piora o sistema nervoso, então tem que tomar calmante, ir no psiquiatra e passar pomada, hoje se sabe que a doença tem causas inflamatórias e existem remédios que, com uma injeção a cada 15 dias ou uma injeção a cada três meses, conseguem deixar a pessoa sem psoríase. Ainda não curou, mas eu estou falando de dez anos, há dez anos só tinha a pomada para passar e rezar, eu tenho paciente com psoríase que chegava no consultório vestido da cabeça aos pés, hoje chega uma moça de minissaia e vai de biquíni para a praia e não tem mais nenhuma lesão, é medicação, esforço, pesquisa, muito trabalho de muita gente.

P/1 - E tem algum caso marcante de dermatite atópica que ficou com o senhor, que o senhor gostaria de compartilhar com a gente?

R -

Tem vários, no “Derma Camp” mesmo, o próprio caso do Marcio, ele fala que ele foi ao acampamento e a família não queria deixá-lo sozinho, ele tinha medo de tomar banho sozinho, de se vestir sozinho, isso eu estou falando de quando ele tinha oito ou nove anos de idade. Ele tinha medo, não queria que ninguém visse a pele dele, ele trocava de roupa dentro do chuveiro. Ele foi ao acampamento e depois nós fizemos o encontro dois meses depois, na faculdade de saúde pública, de repente a gente vê um casal sorridente com um menininho na mão e o menininho chega com um brinco na orelha, era ele, de bermuda e camiseta, assim como alguns outros. Então, nós fizemos a diferença na vida de várias pessoas, e por isso, eles são tão agradecidos, e percebem tanto, que eles não querem sair do projeto. Eles dão a vida deles, os esforços deles para ajudar outras crianças como eles foram ajudados.

P/1 - E hoje em dia os monitores são ex-pacientes?

R -

A grande maioria, praticamente todos eles são ex-pacientes, que querem ajudar outras crianças. No último ano, todos eram ex-pacientes, e é muito bom, porque nada melhor que uma pessoa que já sentiu na própria pele, literalmente, o problema, para lidar com uma criança e orientá-la, acolhê-la, abraçá-la.

P/1 - E o senhor tem algum ritual especial para lidar com esses pacientes e suas famílias?

R -

Sim, nada acontece por acaso, o “Derma Camp” não nasceu do céu, veio de muitos estudos, não só da doença, mas estudos comportamentais, psicológicos, neurológicos, por exemplo, o começo de tudo é o “name game”, o jogo de nomes, a pessoa tem um nome, você é a Denise, ele é o Alef, eu sou o Samuel, não é que aquele é o moleque da dermatite atópica e aquela é a menina do vitiligo e aquele é o EB, que é o nome da epidermólise bolhosa, então nós fazemos à exaustão, jogos de nomes, brincadeiras para fixação do nome, isso é tudo feito como brincadeira, em que cada um vai descobrindo o nome do outro e vai guardando, isso nós fazemos à exaustão no primeiro dia, quatro ou cinco vezes, desde a hora em que entra no ônibus para ir para o acampamento, então existe uma técnica altamente requintada para fazer, todas as brincadeiras são planejadas minuciosamente desde o começo, elas tem que ter começo meio e fim, e uma finalidade, ela tem que servir para alguma coisa. Até um jogo de futebol, por exemplo, tem um campo de futebol, então nós vamos fazer um joguinho de futebol, o que a gente vai fazer, a gente tem criança desse tamanho, tem criança grande, tem criança que corre muito e tem criança que anda de cadeira de rodas. A gente joga com uma bola grande, aquelas bolas tipo de pilates, porque aí o cadeirante chuta a bola, alguém empurra a cadeira e o cadeirante chuta a bola, uma criança pequena que está no gol, consegue pegar a bola, e a gente, sempre ao final, discute o que aconteceu e ninguém ganha e ninguém perde, todo mundo ganha, ganha prêmio de melhor jogador, de maior interesse. Então cada coisa que a gente faz, é minuciosamente pensada, e a gente diz que eu sou daqueles que vai ao cinema e só levanta a hora que a luz acende, eu fico lá vendo quem trabalhou, aparece o nome, geralmente o filme tem cinco personagens, mas tem 300 pessoas que trabalharam para que aquela pessoa pudesse aparecer, e é isso o que a gente faz sempre no “Derma Camp”, eu falo: “vocês vão em um show de fulano, só que é o seguinte, para ele ficar lá cantando, você tem que ter alguém que montou o palco, alguém que trabalhou com a luz, outro que mexeu no som, tem que ter a dona Maria que lavou o banheiro, tem que ter alguém que fez o sanduichinho e alguém que pôs o whisky dele lá, o porteiro...”, quer dizer, para uma pessoa no show, as vezes você tem 500 que trabalharam e ninguém nem sabem que existem, então nós damos a devida importância a cada um, então, em uma atividade que a gente vê uma criança que ficou fora, não brincou, mesmo assim ela ganha um prêmio como melhor observador, ou melhor técnico, e todo mundo sai satisfeito e contente, e isso não é moleza para a criança, ela tem que merecer, e ela mesma percebe que apesar de não se esforçar ela ganhou um prêmio, aí quando tiver o próximo jogo ela é o melhor jogador, com certeza. Então é tudo uma técnica, é complicado fazer isso, não é nada fácil. A gente já conseguiu, com bastante experiência, fazer a coisa um pouco mais rápida e simples, mas é muito bom.

P/1 - E o que o senhor acha dessa iniciativa da SANOFI de fazer essas entrevistas, de falar sobre a dermatite atópica? Tem alguma coisa que o senhor gostaria de ter falado e não falou?

R -

Eu acho que isso é muito interessante, desmistificar a doença, não ficar falando só em remédio. Remédio é uma coisa chata, tomar remédio é chato, injeção é mais chato ainda, passar pomada é chato, agora, é muito interessante mostrar o que acontece, existe um vídeo mapping interessante que mostra como funciona a barreira da pele, a perda da barreira cutânea, mostrando uma parede que perde o reboco, aí a água acaba ou saindo ou entrando demais, então eu acho que é muito importante o incentivo a que atividades, não só ligadas a medicamento, sejam divulgadas. Mostrar a vida dessas pessoas, a vida como ela realmente é, que a criança é uma criança que tem que ir na aula, mas está com uma coceira enorme e não se aguenta, se machuca, mesmo assim ela tem que ir na escola, que na escola ninguém entende, porque ela faltou só por causa de uma coceira de porcaria nenhuma, isso é muito importante desmistificar, mostrar a vida dos pacientes, dos cuidadores. Na dermatite atópica a gente fala: “essa criança não dorme, na família ninguém dorme”, e isso significa que se uma criança não dorme, o pai não pode trabalhar, a mãe não consegue fazer os afazeres de casa, os irmãozinhos também não vão para a escola porque ninguém pode levar, então, as vezes uma coisa bastante simples leva a uma mudança de rotina de vida de todo mundo. Então é uma iniciativa muito interessante, eu fiquei muito feliz em ser convidado, gostei muito de poder conversar um pouquinho com vocês, contar algumas passagens da vida da gente.

P/1 - E me fala uma coisa, o senhor ainda tem algum sonho?

R -

Eu tenho sim, eu tenho muitos projetos de vida, um deles é esse serviço de dermatologia aqui de São José crescer muito mais, outro sonho é fazer com que o “Derma Camp” chegue a outras cidades do Brasil, além do estado de São Paulo. A gente já recebeu pacientezinhos de muitos estados, até da Paraíba a gente já recebeu paciente, mas a gente gostaria muito que esses acampamentos se repetissem no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, no país inteiro, a gente está à disposição, e nós temos uma equipe grande de pessoas que tem interesse em ajudar e levar isso, a gente está aberto. Cresceu bastante, nós começamos uma coisa bem pequena, nunca pensei que fosse chegar a esse nível de reconhecimento no mundo inteiro, como a maior experiência de integração social, responsabilidade social, qualidade de vida, e agora, uma coisa nova, esforço de dermatologia humanitária, nós ficamos extremamente felizes, e que venham mais desafios, nós queremos isso.

P/1 - Muito obrigada Doutor Samuel, foi um privilégio ouvir a sua história, parabéns pelo trabalho incrível que vocês estão fazendo.

R -

Eu que agradeço, de novo, a oportunidade e o convite.

P/1 - Muito obrigada.

R -

Obrigado. Falei muito.