Museu da Pessoa

Surgimento do comércio

autoria: Museu da Pessoa personagem: Dirce Saloni Pires

P1 – Dona Dirce, boa tarde?

R – Boa tarde.

P1 – Eu queria que a senhora começasse essa entrevista dizendo o seu nome o local e a sua data de nascimento.

R – Sim. Meu nome é Dirce Saloni Pires. Nasci em São José dos Campos no dia 16 de novembro de 1924.

P1 – E qual é o nome do seu pai?

R – O nome do meu pai era Carlos Salone e minha mãe era Benedita Cursino Salone.

P1 – A Senhora lembra o nome dos avós, D. Dirce?

R – Meus avós, me lembro. Do lado do meu pai, italianos, era Constantini Salone e Maria Tereza Salone e da minha mãe era Teodoro Cursino e ela,a minha avó, era Maria Gertrudes Cursino.

P1 – E o seu pai era farmacêutico?

R – Meu pai era farmacêutico por vocação, porque ele adorava a profissão dele, então ele era farmacêutico, mas ele foi um farmacêutico muito atuante aqui em São José dos Campos e ele adorava o que fazia. Era uma característica da vida dele.

P1 – E sua mãe?

R – Minha mãe era aquela eterna companheira do meu pai. Ela não só ajudava no lar como era oficial de farmácia, a pessoa da confiança do meu pai. Porque meu pai era farmacêutico e naquela ocasião, farmacêutico formulava. Meu pai então formulava e mamãe era que fazia as formulas dele. Mas os médicos, por exemplo, Dr. Rezende, era um medico, aqui, que perdeu as pernas e ele dava sempre as consultas numa cadeira de rodas. Ele tinha tanta confiança em meu pai e papai estava tão acostumado com as receitas dele que ele dava o receituário para o papai todo assinado, confiava muito nele e papai era que dava aquelas formulas para crianças, aquelas mais conhecidas, em nome do Dr. Rezende.

P2 – E os seus avós, o que eles faziam, a Sra. lembra, D. Dirce?

R – Meus avós? Meu avô, esse italiano, era um eterno boêmio. Ele veio da Itália solteiro ainda e por coincidência, ele e minha avó vieram no mesmo navio, mas não se conheciam. Depois, foram se conhecer em terra firme. E daí, foram para Taubaté e fizeram a sua família. Meu pai nasceu em Bragança Paulista mas ele dizia que nasceu em Bragança por acaso. Foi num dos passeios lá de meu pai com minha avó e ele nasceu lá , mas depois morou sempre em Taubaté e estudou em Pindamonhangaba e veio morar em São José, que dizer que era do vale mesmo. Meu marido também era de Pindamonhangaba e então nós somos o vale unido: Taubaté, Pinda e São José dos Campos.



P2 – A senhora tem irmãos, D. Dirce?

R – Eu tenho. Tenho três irmãos; um é farmacêutico, outro é juiz e outro é dentista.

P2 – E a Senhora então nasceu aqui em São José?

R – Sim.

P1 – Eu queria que a Senhora contasse um pouquinho da sua infância para a gente. O bairro, a rua...

R – Meu pai se formou, 1923, e veio para São José dos Campos. Então aqui ele foi morar com um cunhado dele, ainda solteiro, eles dois e foi a primeira faculdade de Farmácia que surgiu, que hoje é onde é a Farmácia São Paulo e ali ele conheceu a minha mãe que estava junto com o meu tio e logo depois se casaram e quando chegou no final do ano de 1924, eu nasci aqui em São José e aqui vivi sempre e fiz toda a minha vida aqui.

P1 - Porque ele veio para São José, D. Dirce?

R – Meu pai? Pelo seguinte: São José dos Campos era uma estância climatérica e, ele formadinho de novo, ele tinha que procurar um lugar onde a farmácia fosse assim, lucrativa. Onde tivesse freguesia e aqui em São José a população daqui tinha mais doentes do que sãos. Então, era a época da tuberculose, tanto que papai tratou e atendia... até os médicos que vinha para cá eram tuberculosos: Dr. Nelson D'Ávila, o Dr. Ivan de Souza Lopes... Os dois foram compadres de papai. Papai batizou os filhos desses médicos e o Dr.... lá na Praça Afonso Pena, onde nós morávamos, tinha também um juiz de direito aqui, famoso, muito conhecido que vive até hoje, tem 96 anos, Dr. Pedro Barbosa Pereira e então a farmácia de papai (papai era assim muito sociável) era o ponto de reunião dos políticos e dessas pessoas todas que tem nome de rua como o Francisco Zé Longo... Monteiro Lobato estava sempre lá em casa, lá na farmácia, Paulo Setúbal... e eu sempre, mesmo menina, com nove ou dez anos, como vocês viram naquela foto, eu sempre gostei muito de política. Talvez influencia de meu pai. E porque? Naquela ocasião, não se reunião nos bares porque a tuberculose era uma moléstia muito contagiosa, então a pessoa fugia da moléstia. Nós tínhamos aqui em São José os sãos e os doentes completamente separados porque era contagioso. Ninguém queria tomar uma cerveja ou uma água num bar. Então, esses políticos, sadios ainda, eles se reunião na farmácia do papai, eles chamavam botica. Naquela ocasião, farmácia era botica. Boticário, botica. Então, eles se reunião lá e eu menina, como vocês viram naquela fotografia, sempre gostando de política eu pedia ao meu pai: "Ah, deixa eu ouvir a conversa de vocês?" – "Eu deixo, desde que você fique bem

quietinha." Isso que vocês vão estranhar no meu depoimento: que eu tão nova, como naquela fotografia, mas conheço bem a cidade, a vida da cidade porque o coração de São José pulsava lá na farmácia de meu pai e eu então, sempre acompanhei aquilo, gostei e também via o papai preparar os remédios tanto que agora... sempre quis ser médica, não que era possível porque mulher, naquela ocasião, não saia para estudar. Os homens sim, a mulher não. Então eu vim me tornar terapeuta, terapeuta floral aos 70 anos de idade que eu realizei meu sonho. Então eu fiz aqui oito cursos, fiz um curso também em Buenos Aires e tive meu consultório de terapia floral e me senti ali, parece que uma continuadora de papai. Sempre ouvi falar também de homeopatia, em remédio e tudo, então, a minha paixão era remédio, política e educação e assim eu fui. Você falou da minha infância, foi uma delícia porque naquela rua da farmácia que vocês viram, era a Rua XV, que era a principal rua daqui, que era a Praça Afonso Pena e ao lado era a rua... esqueci o nome...

P1 – Rubião Junior.

R – Rubião Junior. Ta vendo como a minha memória às vezes da uma falhadinha? Na rua Rubião Junior, não tinha carro, não tinha nada, então ali nós formamos um time de futebol.
Os meus vizinhos eram homens de lado a lado e tudo e eu a única mulher que brincava no meio deles.

Interrupção, alguém bate na porta.

P1 – Continua falando para a gente então da sua infância... formavam um time de futebol.

R – Nós formávamos um time de futebol e eu jogava no gol e eu jogava com essa rapaziada toda. Era uma rapaziada: Neno Campoi, que hoje é aviador, faleceu e aqueles filhos dos médicos todos que nós tínhamos relacionamento e eram meus vizinhos. Era até o Dr. Otto Malthus, o pai dele que também morava na Rua XV, meu vizinho, tinha sete homens. Sete filhos, sete homens; Paulo Becker, que hoje é nome de rua até, Av. Paulo Becker, ele tinha sete homens. E do outro meu lado, D. Maria Luiza Medeiros uma

professora famosa aqui em São José dos Campos, também tinha três homens e eu no meio desses homens todos eu tinha que jogar pião, bolinha de Gude, jogar figurinha de futebol. Não brincava com boneca, mas nem por isso deixei de ser bem feminina. Gostava de vaidade, de dançar e tudo e a minha infância foi assim no meio dessa rapaziada toda. Talvez por isso que, com a mesma naturalidade que eu estou conversando com você eu converso com os rapazes, com os homens... é tudo igual. Falo com muita naturalidade tanto com as mulheres quanto com os homens.

P1 – E o que a senhora lembra de São José dos Campos nessa época? Qual era as lojas, a onde a senhora ia?

R – Olha, São José dos Campos tinha 10.000 habitantes só. Predominava aqui sanatórios e pensões de tuberculosos e alguns bares, o bar da Rua XV e loja, algumas lojas de tecido. Poucas. A do Said, a do Fuad Curi e algumas lojas. Todos eles ligados à tuberculose. Tinha alguém na família que era tuberculoso. E a freguesia de papai era, muitos também fazendeiros, tanto que naquela Praça ali da Afonso Pena, onde tem a igreja de São Benedito que foi erguida, foi levantada por escravos, tanto que é uma igreja de taipa. A parede tem mais ou menos um metro e dez, um metro e 15 de espessura e eles levantaram aquela igreja, os prédios da igreja. A procissão de São Benedito aqui era a mais bonita que tinha, porque lembrava os escravos. Então, tinha umas paineiras enormes e os fregueses de papai que eram fazendeiros, que tinham então as suas casas mais distantes, que não queriam ver os filhos muito misturados com a tuberculose amarravam os animais naquelas árvores e lá iam, na Farmácia Salone. Então eu conheci toda essa gente. Monteiro Lobato tinha uma filha doente e todas vezes que ele passava, ela estava em tratamento aqui em São José, ele passava para dar uma prozinha com papai e assim eu conheci Monteiro Lobato e convivi com ele. Paulo Setúbal também, um grande escritor. O filho dele também, Olavo Setúbal. E o Paulo Setúbal escreveu "Confitior", foi quando ele... foi por causa da filha doente que ele se converteu ao catolicismo e ele escreveu "Confitior", aqui em São José dos Campos e eu também conheci o Paulo Setúbal e convivi. Um São José dos Campos muito boa, muito interessante. Um pessoal assim inteligente, de gabarito que era uma pena ser tuberculoso.
Até que, com o advento da penicilina, mudou porque a tuberculose não era só tratada a onde tinha o clima bom, que aqui o clima bom era só Campos do Jordão e São José dos Campos. Dizia-se que Campos do Jordão era tratamento de rico porque tinha aqueles hotéis suntuosos e São José dos Campos não. Era o Esras, e depois oVicente----------------------.em 1924, quando eu nasci foi inaugurado o Vicentino Aranha. Depois as irmãs do Coração Maria Imaculada, porque a Irmã Dulce, que foi a fundadora do sanatório, que é Madre Tereza o nome dela depois que ela recebeu o hábito e ela também morava naquela Praça a onde nós morávamos e eu, ela mocinha tinha 17, 18 anos, tuberculosa e papai, então, ia aplicar injeções nela. Todas as noites ela tomava as injeções, os antibióticos, tudo. Depois ela curou-se e ela fundou o sanatório Maria Imaculada das Pequenas Missionárias; Maria Imaculada apareceu com ela.

P1 – E essas pensões D. Dirce, como é que eram essas pensões, a senhora lembra?

R - Que eram, em que sentido você quer dizer?

P1 – Quem ficava nessas pensões? Tinha bastante gente que ficava nessas pensões? Porque ia para a pensão quem não tinha vaga no sanatório, é isso?

R – E os outros como o Dr. Dória, Dr. Ivan de Souza Lopes, Dr. Rosenberg. Todos esses médicos eram doentes. Dr. Dória. Eles então, tinham casas, mansões. O Dr. Nelson









tinha uma mansão onde hoje é o cine... esse cine da Praça Afonso Pena. Não é Para Todos ali, é? Não. É. Não me lembro bem se era o Para Todos e era a casa dele. Uma casa muito bonita, ele cheio de filhos, uma porção de filhos. E aí o Dr. Faustino D'Ávila, que foi o filho dele, que foi que trabalhou muito no sanatório e tudo então, ele tinha essas casas bonitas. Você tinha as duas coisas aqui em São José: os pobres que ficavam nos sanatórios do Estado, de tudo, como foi por exemplo o sanatório Ademar de Barros que surgiu aqui em São José, o Esras que era o sanatório dos judeus onde hoje é o Parque Santos Dumont e depois o Vicentino Aranha. Então, quem podia ficava nesses sanatórios, quem não podia, os bem ricos em mansões e os pobres ficavam nas pensões; Pensão---------. A Rua Vilaça era cheinha de pensões. Depois o Dr. Rui Dória fundou o sanatório Rui Dória lá e ele foi um pioneiro. E foi quando ele estudou bem a tuberculose. O tuberculoso sarava também com uma operação das costelas que comprimia o pulmão, tanto que a esposa dele, ele casou-se com a esposa dele, foi um fruto do tratamento dele. Ele tratou a Telma mocinha, lida, maravilhosa lá e se a pessoa ficasse grávida, ou tirasse algumas costelas... Porque a gravidez? A costela comprimia o pulmão e a gravidez servia de fazer uma força contraria. Então, o Dr. Rui Dória era tão encantado com a profissão dele que, casou-se com a Telma ainda doente do pulmão e assim ela se curou com o processo dele. Os filhos nasciam, imediatamente iam na mão de baba, porque era uma moléstia contagiosa. Até que a Telma se curou e os filhos dele são saudáveis, bons e tudo. Eu acho que Telma vive até hoje.

P1 – E a escola, voltando um pouquinho para a sua história, como é que era a escola quando a senhora começou a estudar?

R – Bom, quando eu comecei a estudar, ali onde é museu... museu não, Centro Cultural ali. Né?

Do lado. Foi Câmara Municipal e agora é Centro Cultural, mas sempre foi a Câmara. Vejam aquelas fotografias do álbum que eu dei para vocês que na época, 1924, 1930 já era aquela, tanto que aquele relógio, ele foi acertado, vinha uma pessoa da França para acertar aquele relógio e toda a cidade se guiava pelo relógio da Câmara Municipal que era então. João Cursino fundou a Escola Normal João Cursino, Escola Normal Livre João Cursino, foi onde eu estudei e que depois se transformou no Instituto de Educação João Cursino. Então, o que é que aconteceu? Eu fiz o ginásio no João Cursino. Fiz Escola Normal, fui da segunda turma da Escola Normal Livre João Cursino e depois então quando eu me formei, recebi cadeira prémio como professora e daí eu me casei. Eu já era diretora do Instituto de Educação João Cursino. Então, naquele João Cursino fui tudo, Fui professora, fui coordenadora, fui diretora do Instituto João Cursino até me casar. Me casei com 21 anos e fui para São Paulo. Depois de dois anos casada, dois, três anos casada, queria voltar para São José. Então eu prestei o concurso de educação e voltei para São José como professora de Educação. Então de João Cursino, como aluna e professora, eu tenho 45 anos de João Cursino e como professora, diretora etc... 35 de João Cursino. Quer dizer que a minha vida era ligada lá. Você vê como eu sou conservadora? (riso) Por isso que eu digo que sou patrimônio histórico. Daqui a pouco vai ter uma estátua lá e eu me vou e eu continuo (riso) porque...

P1 – Como é que era o comércio D. Dirce?

R – O comércio?

P1 – É, nessa época? Onde a senhora comprava os seus cadernos, seus livros?

R – O comércio todo era: na Rua XV de novembro que daí já tinha uma livraria lá, porque o comércio foi surgindo de acordo com a população porque antes eram sanatórios, pensão e farmácias.

P1 – Estava tudo ligado a isso?

R – Tava. Ligado a isso.

P1 – Tava tudo ligado a essa coisa da tuberculose?

R – E bar, que precisava ter. Pelo menos as pessoas sadias se reunião também no bar. Não é? E tinha aqui o teatro, onde hoje é a Prefeitura, na Rua XV de Novembro, era o cinema mudo. Então tinha aqui um fulano que tocava piano lá. Isso eu me lembro. Eu era menina, menina. E era bonito aquele cinema que o carnaval era lá, mas engraçado que as pessoas sãs não se misturavam com os tuberculosos. A gente tinha o lugar reservado lá.

P1 – Os tuberculosos também brincavam carnaval lá?

R – Não. O Dr. Dória tinha tanta pena dos tuberculosos que ele fazia o carnavalzinho dele lá no Sanatório Rui Dória, mas é que o doente só podia brincar até dez horas da noite porque tinha que dormir cedo, fazer repouso, aquela coisa toda. Então, o comércio depois foi surgindo: as primeiras casas de tecido, tudo. Mas o comercio todo se reunia na Rua XV, na Rua VII de Setembro e ali na Praça da Matriz. Ali é que era o comércio. Só nestas três ruas. Depois foi surgindo, né, nas outras ruas também, mas o comércio se centralizava ali. Depois São José deixou de ser estância climatérica. Veio a vinda do ITA aqui. Da escola e passou a ser uma escola aonde os americanos vinham, todos os professores eram pagos em dólares. Foram surgindo as primeiras escolas, veio a faculdade. Né? Daí São José tornou-se assim, uma cidade universitária até que foi fundada a primeira faculdade que era a faculdade de direito. Tudo ali na praça Cândido Castillon e eu acompanhei e vi a evolução de São José dos Campos desde 1924 até agora. Aí deixou de ser estância climatérica.

P1 – Mas nesse período que tinha essa divisão entre pessoas doentes e pessoas sadias, no comércio isso fazia diferença, D. Dulce? Quer dizer, tinha lojas em que só os tuberculosos...

R – Não, não. Eles compravam e iam embora, né? Mas daí já começou, quando eu disse para você que deixou de ser estância climatérica, daí apareceu a penicilina, a tuberculose já era tratada com a penicilina. A pessoa já não era mais condenada à morte como antigamente. Porque quem passava por São José de trem, que era a única comunicação que tinha, botava o lenço no nariz para não respirar aquele ar contaminado. Né? Como se fosse. Então o que aconteceu? A tuberculose já não se tratava mais com o clima só. Já se tratava em São Paulo, Tremembé, Taubaté, então aj foi deixando de ser uma estância climatérica e foi se transformando depois em cidade universitária.

P1 – E essas pessoas todas chegavam aqui de trem?

R – Chegavam de trem. Expressinho. Levava cinco horas de São Paulo até aqui. Então, o Expresso era conhecido porque as estradas eram de terra, muito ruins, de buraco. Era trem ou de carro. Não tinha a Dutra, era a estrada velha Rio/São Paulo que funcionava. Estrada essa toda sinuosa que passa São José/Jacareí, São José/Caçapava, Taubaté, Pinda. Toda sinuosa, que por sinal é uma estrada linda, paisagem maravilhosa. Né?

P2 – Quer dizer que os comerciantes não deixavam de vender para quem era tuberculoso?

R – Não, não, senão eles iam ficar na miséria porque era o tuberculoso que mais comprava. Mas foi uma época, assim, 24, tenho a impressão que 34 já não se tratava mais a tuberculose só com o clima. Porque antes era: clima, vasectomia aquela operação do pulmão que se tirava o ar do pulmão, tudo, água do pulmão. Daí não houve mais isso. Então, ou punham no sanatório onde as pessoas não se misturavam com os outros ou iam para Campos do Jordão que era um lugar melhor, cujo clima era melhor que São José dos Campos, não era melhor que São José, os Hospitais eram melhores, tinham mais dinheiro que São José dos Campos e São José dos Campos passou a ser uma cidade de estudantes. Foi quando eu comecei a estudar; dez, onze anos. Não tinha quase tuberculose aqui não, já estava diminuindo bastante. Com 15 anos, na minha mocidade já não tinha quase tuberculoso ou então eram tuberculosos curados que depois se fixaram na cidade, como foi o Dr. Altino Boudesin, que escreveu, o livro dele conta bem essa história, se fixou a São José por amor e todos eles, o Dr. Nelson D'Àvila, que o filho dele o Nelsinho D'Avila ficou, Faustino D'Avila ficou em São José, o Dr. Ivan de Souza Lopes criou os filhos dele aqui em São José, aí já era uma nova geração. Já eram filhos de ex- tuberculosos.

P1 – Então e a sua juventude de, D. Dirce? Como é que foi a sua juventude?

R – Ah, mas foi linda.

P2 – Tinha baile, a senhora ia no baile?

R – Nossa Senhora! Fui rainha dos estudantes, desfilei, eram carros alegóricos e os carros alegóricos eram puxados pelos moços, pela mocidade de São José. Sabe? Eram em cima de... não é bem caminhão, era uma... como se fosse um caminhão sem aqueles lados laterais. E tinha aqui em São José uma pessoa que era um artista, tanto que ele que fez o jardim também lá da Praça Afonso Pena, e ele então fazia o carnaval de rua de São José. E eu me lembro que com 12 anos eu desfilei e meu carro alegórico era uma lua e eu em cima da lua. 12 ou 13 anos. E era puxado pelos rapazes, todos bem vestidos e tudo. E era um carnaval com lança perfume, com confete, com serpentina, tudo. Né? E eu assim lá, ---------------------sabendo se defender, mas não se dá beijinho--------------- e nem a mão. Então papai já ensinava, não se cumprimenta dando a mão, mas com uma leve inflexão da cabeça. O beijinho foi aparecendo depois, o aperto mão foi aparecendo depois. Então, o Dr. Rui Dória dizia muito bem: "São José dos Campos era uma cidade fria em relacionamento." Entende? O pessoal se queixava, mas que é isso...Mas é lógico que é fria. Entre duas grandes capitais, Rio de Janeiro e São Paulo ninguém precisava ir até o comércio daqui para fazer compras. Ia até São Paulo ou ao Rio de Janeiro. Então, entre duas grandes capitais a gente fazia compra lá, em São Paulo e com isso era uma cidade pequena, São José dos Campos, com as características de uma capital, de uma cidade grande porque tinha de tudo. Né? E assim foi indo.Hoje tem 700.000 habitantes ou mais. Isso aqui cresceu demais, cresceu muito, muito.

P1 – Mas que época

a senhora fazia compras em São Paulo ou no Rio, quando a senhora era jovem?

R – Não, eu era pobre, não fazia compras em São Paulo. Eu fazia compra aqui. Nós encomendávamos para o Fuad ou para Said as roupas e ele trazia. Mas era assim, mamãe comprava peça de roupa. Essa mesma roupa ela fazia vestido para mim, fazia camisas para os meus irmãos, entende? Se vestia tudo igual. Mas então eram peças de roupa. Isso no meu tempo de menina, mas menina mesmo, sete ou oito anos. Depois mocinha já era diferente.

P2 – Como é que era?

R – Tinha aqui uma casa, a Casa Diamante, era famosa. A Casa Diamante só tinha importado e tinha a louça que você quisesse, o presente que você quisesse dar tinha. A casa tinha quase um quarteirão de tamanho.

P2 – A senhora lembra bem como era essa Casa Diamante?

R – Muito, muito.

P2 - Conta para a gente como era essa Casa Diamante?

R – A Casa Diamante era em frente a praça... não é Afonso Pena. era a praça que se chamava Praça da Preguiça, Cônego Lima ali. Né? Aquela com umas árvores grandes. A Praça da Preguiça porque tinha uma preguiça naquelas árvores, eram muitas seringueiras e tudo. Olha! A Casa Diamante era um verdadeiro shopping de moda porque tinha tudo. Tinha louça, louça importada. Tanto que o meu colar de noivado era de cristal checo. Não que o meu marido fosse rico. Ele como noivo, ele gastou o ordenado dele inteirinho nesse colar que eu tenho até hoje. Né? Então, veio da Tcheco-------------era legitimo o colar. Era uma maravilha o colar.

P2 – E ele comprou na Casa Diamante?

R – Na Casa Diamante.

P2 – Vendiam de tudo, D. Dirce?

R – De tudo assim, tipo armarinho, presentes, tudo. Né? Eu disse shopping mas não tinha farmácia, não tinha bar. Essa parte dada a alimentação, não.

P2 – Eletrodomésticos também não?

R – Ah, tinha. Tinha eletrodoméstico. Tudo que você possa imaginar tinha liquidificador, tinha fogão, tudo o que você possa imaginar.

P2 – E ela era em mais de um andar ou ela era térrea?

R – Não, tudo era térreo. Só tinha aqui um de mais de um andar: era o Hotel Santa Helena. Ficou muito tempo o hotel Santa Helena, Hotel Rio Branco. Era um sobrado, mais de um andar mas era um sobrado. Então esses tinham mais de um andar.

P2 – E como é que era a Casa Diamante, tinha vendedores...?

R – Eram os filhos dele que trabalhavam. Era o Guedes Diamante, que viveu até pouco tempo, o Eibide Diamante e Marcos Diamante, que era um grande político, foi deputado e tudo. Marcos Diamante. Eram três Diamante e mais uma moça. Eram quatro.

P2 – Eles é que atendiam?

R – Mas depois eles foram melhorando, tiveram seus empregados, mas ele é que atendiam pessoalmente. E depois era uma casa muito bonita, uma casa grande, precisava ver o que é ali. Tem uma casa de esquina. Nossa! Foi tanta coisa aquela casa, Casa Diamante.

P2 – Tinha uma vitrine grande?

R – Tinha. Linda, linda, linda.

P2 – Eles enfeitavam essa vitrine?

R – Era uma maravilha. Sabe? Era um segundo Mappim. Não era um shopping mas era o Mappim aqui de São José. A gente não precisava sair daqui para comprar coisa boa porque o que você comprava lá era de qualidade. Tinha muita gente rica aqui. Né?

P2 – Aqui em São José?

R – É, tinha pessoas que ainda continuavam precisando um pouquinho do clima. Não que o clima fosse a única forma de tratamento, mas pelo menos era uma continuação do tratamento que se fazia antes.Né? Depois foi Santa Casa; papai foi mesário da Santa Casa, um dos fundadores da Santa Casa; um dos fundadores da Associação Comercial Joseense, quer dizer que papai era uma pessoa muito atuante, atuava em todas as áreas. Acho que é por isso que eu sou uma pessoa tão siricutico, porque eu gosto de tudo um pouquinho, mas eu cresci nesse meio.

P2 – E o transporte D. Dirce, como é que se fazia para ir de São José para Taubaté?

R – Expressinho. Expresso. Estrada de ferro Central do Brasil.

P2 – Sempre de trem?

R – Sempre de trem.

P2 – Mas mesmo aqui no vale?

R – Depois foram aparecendo os ônibus. Né? Ônibus para Caraguatatuba. Eu cheguei a ir para Caraguatatuba, com dois anos de idade, a pé. Nós íamos de ônibus até Paraibuna, chegava lá cinco horas da madrugada. Às cinco horas da madrugada começava a cminhada só que não era esse trajeto porque eles estavam abrindo. Era o morro do Bem Fica. Mas saia de lá cinco horas da madrugada e chegava em Caraguatatuba as dez horas da noite.

P2 – Mas muitas pessoas andando?

R – Ah, reunia as famílias de São José dos Campos e ia.

P2 – Era um passeio?

R – Não. Ficava lá um mês. Fazia temporada já. Eu fui na primeira temporada. A minha casa em Caraguatatuba tem mais se 70 anos. Depois papai foi fundador dos bancos lá. Caraguatatuba, São Sebastião, Ilha Bela, Ubatuba. Depois que se aposentou da farmácia ele fez assim. Mas nós íamos e então, se chamava jardineira. Era aquele ônibus aberto. Você entrava, depois tinha uma trava para as pessoas não caírem e depois as pessoas iam a pé. As crianças iam no lombo de um animal. Eram aqueles cestos de vime. Sabe aqueles cestos de vime? E eu passava lá nos ombros dos engenheiros, homens de estrada, famílias de São José se reunião, dez, 15 famílias, descia a família inteirinha ia para Caraguatatuba e lá ficavam um mês.

P2 – E esse transporte, por exemplo, esses animais eram contratados, faziam sempre esse percurso?

R – Eram contratados pelos engenheiros lá da estrada. Tanto que foi engraçado. Quem abriu a estrada foi o engenheiro João Fonseca a onde eu moro. Só que, muita coincidência eu moro na Engenheiro João Fonseca aqui, 123 e lá em Caraguatatuba minha rua é Engenheiro João Fonseca 124. Ele era o engenheiro que abriu a estrada, muito amigo de meu pai. Um dia... papai ia com a maletinha dele de farmacêutico, lá não tinha farmácia e faziam filas. Não só para o papai ceder o remédio como o papai dava as receitinhas dele porque não tinha médico, não tinha farmacêutico, não tinha ninguém. E um dia o João Fonseca chegou em casa com o queixo caído. Sabe? Saiu, deslocou o queixo, dizendo: "Salone, o que é que eu faço?" Não podia nem falar direito, nem comer nem nada. Papai disse: "Isso é fácil, senta aí." Em dez minutos ele "clac", encaixou. Porque só a articulação encaixando. Mais tem que saber bem a anatomia senão você encaixa errado. Nossa! Esse engenheiro foi eternamente grato a papai, tanto que o papai batalhou para que a rua, lá em Caraguatatuba fosse engenheiro João Fonseca.

P2 – Então, e nessa época a senhora tinha quantos anos, mais ou menos?

R – Desde de dois anos de idade.

P2 – Até que idade a senhora tem essa lembrança de estar fazendo esse percurso a pé?

R – Ah, até que eles inauguraram a estrada. Levou uns três ou quatro anos e eles inauguraram a estrada. Né? Aí nós já fazíamos de jardineira. Chico Garganta, o nome do dono da empresa. Ia todo mundo de jardineira para Caraguatatuba.

P1 – E essa jardineira circulava em outras cidades do Vale?

R – Não, não. Só de São José a Caraguatatuba, que era uma empresa dele, que depois, ele começou a explorar mais o litoral.

P1 – Se a senhora estivesse aqui em São José, para ir para o litoral?

R – Ah, não. Ai tinha ônibus.

P1 – Tinha ônibus?

R – Tinha, tinha mas não era Dutra.

P1 – Não.

R – Era a estrada velha Rio São Paulo. Era a estada que existe até hoje, tanto que quando você vai no supermercado Vila Ema, ela é a antiga estrada velha Rio/São Paulo. Você viu aquela rua da Vila Ema? Tem um numero alto. Né? Dois, três mil porque começava aqui em São José e terminava em Jacareí.

P2 – E o que tinha ao longo dessa estrada entre São José e Taubaté D. Dirce? Tinha algum comércio na estrada?

R – São José e Taubaté? Assim, né, porque passava... mais fazendas, muitas fazendas, viu. Fazendas assim uma atrás da outra. O comércio veio depois com as fabricas. Taubaté era a tecelagem...

P1 – O ônibus não parava?

R – Daqui a Taubaté parava. Depois começou Pinda, Aparecida e daí, ele ia parando nessas cidades. Né?

P2 – Mas tinha alguma padaria no meio da estrada, alguma coisa assim?

R – Ah, sempre tem um barzinho. Um barzinho é uma coisa que sempre tem. Tem aquele barzinho de estrada, mas tinha o barzinho onde você tomava o seu café.

P2 – Mas não tinha, assim, algum comercio que todo mundo parava lá para...

R – Tinha essas paradas de ônibus como tem hoje nas rodoviárias só que era coisa simples, casas simples, mas depois São José expandiu muito depressa. Sabe? Foi rápido, rápido. Quanto ele deixou de ser estância climatérica foi crescendo, crescendo, as estradas também e o Vale do Paraíba se tornou um grande pólo comercial, não é mesmo? Taubaté com as fabricas de tecido que tem até hoje. Fábrica de tecido, foi uma maravilha. Depois começaram a surgir as fábricas. Aqui, por exemplo, a fábrica de telhas Paulo Becker. Então foi surgindo. A tecelagem Paraíba, é antiga, meu marido trabalhou 40 anos na tecelagem Paraíba. Era uma fábrica bem antiga a tecelagem. Hoje, aquela maravilha que é o Centro Cultural de São José dos Campos. Não sei quantos

alqueires tem. Ah! A propriedade do Dr. Clemente ia até Jacareí. Foi como surgiu a Urbanova, toda a Urbanova era terra dele. Ia até Eugenio de Melo, tudo terra dele. Ele que deu aquela avenida, Olívio Gomes, porque as terras dele partiam a cidade, então, ele deu para a Prefeitura, ali aquela rua. Do mesmo jeito que meu pai deu ali para a estrada Rio/Santos. Era de papai de um lado e dos... Oh, meu Deus do Céu! A família de Paraibuna. Então eles se uniram e, Nicanor Miranda, papai deu a metade, ele deu a outra metade e aí eles abriram a Rio/Santos, começou a estrada ligando o litoral.

P2 – E a senhora lembra da construção da Dutra, por exemplo?

R – Ah, eu me lembro como se fosse hoje, que tivesse acontecido agora. Me lembro! Não, não era assim uma parte atuante lá, mas eu me lembro de ter passado quando os meus gêmeos nasceram, eu fui para São Paulo de ônibus, levava muitas horas, mais de quatro horas. Fui para São Paulo, fui prestar o meu concurso e eu passei lá. Eu casei fui para lá-----------------A Dutra já estava bem adiantada.

P2 – Eu queria voltar D. Dirce. Eu queria que a senhora descrevesse como era a farmácia Salone, para a gente? Como é que era por dentro?

R – Era uma graça., até que eles ainda conservam, mais ou menos, a arquitetura da farmácia, só que tinha remédio em quantidade e interessante, o móvel era diferente. Eu mostrei até para ela, tem naquele álbum de São José, que eu tenho,tem a farmácia Salone por dentro, para você ver como é que era. Aquele mobiliário, que ia até o teto e já com prateleiras para todos os remédios. E o laboratório era enorme porque se usava muito... o médico receitava, formulava e se fazia o remédio lá no laboratório. Acho que é por isso que até hoje eu sei fazer remédio e tenho mania de fazer floral para os meus filhos,

netos e tudo porque eu cresci nesse meio e conheço bem. E também, Nossa Senhora! Como eu conheço arnica. Desde pequenininha, machucava, punha arnica. Não sei o que, põe arnica. Arnica tem mais de mil anos, como remédio. Então, papai tinha um dicionário homeopático. Aquele dicionário eu sabia de cor e salteado. Até hoje eu tenho o Dicionário Homeopático na farmácia. Quer dizer, tinham os remédios, mas não eram tantos laboratórios como são os de hoje. Né?

P2 – De onde vinham esses remédios?

R – Vinham de São Paulo e Rio. Um pouco de São Paulo, um pouco do Rio.

P2 – Como é que é? O seu pai, ele ia comprava... ou vinha alguém vender?

R – Não, não.Ele, passava o vendedor de farmácia em farmácia, de cidade em cidade visitando todos eles e tomava nota dos pedidos e depois os pedidos vinham, de ônibus de piruá, tudo. Tomava nota e vinha todo. Então a farmácia de papai era uma farmácia surtida, tinha de tudo, de tudo. E o papai quando ia para Caraguatatuba levava uma maletinha cheia de remédios e servia a população pobre, lá. E porque papai tinha tantos fregueses? Papai era demais caridoso. Ele dava consulta e como ele não era médico, não era cobrado anda. Daí o remedinho, era uma coisinha mínima, insignificante e se a pessoa era muito pobre papai dava o dinheiro para ele voltar. Quem não ia lá? Né?Fazia fila mesmo, lá. Me lembro que era no tempo da Shirley, eu acho que vocês conheceram a Shirley, a artista; então tinha uma senhora grávida que foi consultar meu pai e papai foi muito bom para ela, deu remédio e tudo: "Olha, Seu Salone, esse filho que está aqui na minha barriga há de se chamar Salone." Eu disse: Ih Papai! O senhor está bem arrumado. Heim? "Há de se chamar Salone." Porque o nome Salone é um nome inventado. Sabe?

P2 – Há é!

R – Quando meu avô veio da Itália, ele veio no navio e ele gostava de um vinhosinho, né? E não se usava passaporte, nada. Então, perguntaram para ele: "Como é o seu nome?" Ele disse: "Constantino Scalione." Scalione, existe lá na Europa; tanto que há pouco tempo, quando morreu um Scalione, os parentes de papai disseram: "Olha lá Salone, vai lá na embaixada, porque o Scalione que morreu deixou uma Vila inteirinha e um título de nobreza. E o único Scalione que existe no Brasil é você. Você vai herdar tudo isso. Você vai ficar rico." Porque papai contava que ele deixou na Europa, deixou os Cardeais, uns que eram Cardeais lá, eram de religião e tudo e deixou também um outro irmão que era mafioso. "- Com certeza quem deixou essa vila era mafioso, eu não vou lá. Eles me pegam e eu não volto mais para o Brasil." Entendeu?

P2 – Eles não entenderam o sobrenome...

R – Nós não somos Salone, somos Scalione, mas o homem lá no navio, tomou nota Constantino Salone, então meu avô disse: "Não. É isso mesmo, é isso mesmo." "- Mas porque meu avô foi fazer isso?" "-Ah! Ele saiu da Itália, que ele estava enjoado da Itália e queria aqui no Brasil nascer de novo." Então ele nasceu até com o nome. Então se tiver um Salone por aí, a onde for, seja um criminoso seja um grande homem, é da minha família porque foi inventado pelo meu avô.

P2 – E quando é que o seu avô chegou aqui no Brasil, a senhora sabe D. Dirce?

R – Ele veio, meu pai não tinha nascido. Se meu pai estivesse vivo, meu pai estaria com mais de 90 anos.Quer dizer então, que meu avô veio a 90 anos atráz, nós estamos no ano 2003... se quiser põe 100 anos, então, você vai ver que ano ele veio.

P2 – Em 1900 mais ou menos?

R – É. Então. Meu pai no ultimo ano do ano de 1800, 1899 mas não é o primeiro filho é o segundo. Então foi mais ou menos por volta de 1885, por aí.

P2 – E para Taubaté?

R – Heim?

P2 – Para Taubaté, ele foi?

R – Foi primeiro Bragança, ficou pouquinho tempo lá e depois foi para Taubaté.

P2 – E Taubaté tem uma colônia Italiana grande lá?

R – É, italiano lá. E a minha avó era piemontesa, ele era um boêmio e ela era uma grande professora no Piemonte. Ela falava francês correntemente, italiano correntemente, mas caiu nas mãos de um boêmio, coitada, não pode fazer muita coisa não.

P2 – E como é que as pessoas pagavam ao seu pai na farmácia?

R – Anualmente.

P2 – Anualmente?

R – Parece uma piada. Né? Era assim, no tempo da caderneta: "Salone, tome nota." E papai tomava nota na caderneta. Tanto o freguês confiava no papai, como o papai confiava no freguês. Então era, um freguês do papai eu me lembro muito, o Sr. Paulo Becker, porque quando saia ele vendia aquelas telhas Paulo Becker que foram famosas, ele vinha e pagava a conta do ano todo. Outros menos abastados, pagavam de cada seis meses, de cada dois meses, tudo na base da caderneta. Porque do mesmo jeito que papai fiava para ser pago daqui há um ano, os outros também fiavam. Lojas de tecido, tudo a mamãe mandava tomar nota. Quando o dinheiro entrava, se pagava. Mas isso não durou muito tempo. Quando eu era menina, 10, 12 nos, já não se pagava a conta anualmente.

P1 – E a farmácia vendia outras coisas alem de remédios?

R – Não.

P1 – Só remédios?

R – Só remédio. Só remédio. Ele não dava conta. Tanto remédio, não. nada xampu, sabonete, essas coisas, não. Depois é que começou. Né? Hoje, lá não precisa tanto de um farmacêutico, precisa de um balconista.

P1 – Quando que começou D. Dirce? Quando que mudou isso, a farmácia deixou de vender só remédio?

R – Eu acho que quando eu me casei já vendia. Sabonete, xampu, um pouquinho. Aquelas marcas bem conhecidas: Nívea, né? Talco Johnson, coisas Johnson. Eu tinha 20 anos.Faz as contas aí. Eu tenho 78, 79. Menos 20?

P2 – E ele não vendia para os sanatórios?

R – Não, não, não. Cada doente tinha a sua conta. Só quando era da diretoria, alguém que eles precisavam... aí vendia para o sanatório. Lá do sanatório Reza foi um grande amigo do mau pai.



P1 - E alguém ficava devendo para o seu pai? A senhora lembra se alguém ficou devendo?

R – Ah, não havia calote.

P1 – Não havia?

R – Não. Não havia; Calote, de jeito nenhum. Pois olhe, o seu Saul Vieira que é um grande comerciante aqui, não sei se vocês conhecem a loja Save, ele veio para São José tuberculoso. Numa carrocinha ele vendia santinho, não podia fazer outra coisa. Ele se curou completamente. Depois teve aquela cadeia de lojas de móveis Savilar: Savilar I, Savilar II, Savilar III, tudo. Né! E tinha um outro também Seu Posidônio Freitas. E hoje o Seu Saul Vieira tem nome lá, tem lá o Centro Empresarial Saul Vieira. E tinha um outro que era o Posidônio Freitas. O Posidônio Freitas veio doente para cá, ele nunca mais se esqueceu disso, e ele estava precisando alguém que conhecesse para que ele pudesse comprar fiado, que era como eles diziam, nas outras lojas e papai foi e endossou um cheque dele. O Posidônio foi tão grato a papai que ele guardava aquela carta no bolso e quando se encontrava com alguém, mostrava a carta de papai e dizia: "Esse foi um grande amigo que nem me conhecia e já fez uma carta de apresentação." E o Posidônio depois também ganhou um império aqui. Mobiliários e tudo. E assim foram diversos fregueses de papai. O Dr. Paulo Becker. Paulo Becker, não me lembro de ter gente doente de pulmão, não. Ele, eu acho que já veio para cá para fazer a fábrica. Tinha fazendas e depois foi a fábrica de telhas, famosa.

P2 – E, por exemplo, a alimentação da sua casa, onde a sua mãe comprava, a senhora lembra?

R – No mercado.

P2 – No mercado.

R – Sempre mercado.

P2 – Aqui em São José?

R – Em São José, porque aqui tinha muita agricultura e eles vendiam lá para o mercado. Lógico, com todo cuidado, lavava bem, mas o agricultor, o que tinha fazenda não tinha contaminação nenhuma, não era doente, não. Doente era o consumidor, mas o agricultor não, tanto que você não podia botar a mão nas verduras nem nas frutas. Né! Ninguém queria que pusessem. Quer dizer que São José já nasceu civilizado. Não por civilização. É por contaminação. Não podia.

P2 – Quando o produto estava em exposição no mercado ninguém podia encostar? É isso?

R – Ninguém punha a mão. Contaminava a fruta.

P2 – Então, só escolhia, apontava...

R – Apontava, a pessoa vendia e pronto. Isso no tempo da estância climatérica. Logo depois mudou. Aí não tinha nada.

P2 – Então, voltando para a juventude, então, a gente estava falando, a senhora falou do carnaval. Mas eu quero saber fora do carnaval tinha baile? Onde namorava?

R – Tinha baile. Eu namorava na porta de casa.

P2 – Na porta de casa.

R -

Ou então naquele jardim lá em frente na praça Afonso Pena.

P2 – E os bailes eram aonde? Tinha clube?

R – Os bailes... Tinha, já. A Associação São José é antiga aqui. A gente dançava na Associação. As mães ficavam em cima no camarote e os filhos em baixo dançando. E assim foi. Assim tive meus namorados.

P2 – A senhora teve muitos namorados D. Dirce?

R – Nossa! Fui tão namoradeira, mas aí se a pessoa tocasse em mim. Eu era namoradeira mas brava.

P2 – E como é que namorava então? Só de ficar olhando, como é que era?

R – Não. Era flerte, não amor. Na Rua XV ficava: os homens assim de um lado e a mulher subia a rua até o fim e voltava. Ah, a gente subia e voltava depressa para ver o mesmo fã e assim era, com o olhar. Ah, gostoso! E ia devagarzinho. Depois você namorava, pegava na mão e tudo. Não tinha nada desse agarra, agarra não.

P2 – E onde a senhora conheceu o seu marido D. Dirce?

R – Ah, o meu marido eu conheci na grande guerra. Foi na minha casa. Isso consta aí e tudo? (riso) Foi na minha casa em Caraguatatuba. Foi convocada para que os oficiais ficassem lá, então, como nós temos um primo general, cuja esposa era prima do meu marido, papai disse assim: "Eu empresto." Porque estava em defesa do litoral. Papai disse: "Eu empresto mas com uma condição. Em julho a minha família não vai deixar de fazer a temporada em Caraguatatuba. A minha família vai. Mistura com a sua, nós somos também parentes." E eu conhecia também a família do Paulo inteirinha menos o Paulo. Eu era muito alegre e eles diziam: "O Paulo, precisa conhecer você. Puxa! Você parece que nasceu para o Paulo. Nunca vi. Que almas gêmeas e isso e aquilo. Aí terminou a guerra... não, não tinha terminado. Ele foi convocado como expedicionário. Eu fui para São Paulo para conhecer, eu já conhecia a família toda, fui passar um tempo em São Paulo, menos o Paulo que eu não conhecia. Quando eu chego lá, o Paulo estava na estação com a irmã esperando eu chegar para levar para a casa deles. Mas foi assim: "A primeira vez. Eu fui descendo as escadas do expressinho, olhei, vi e gostei. Primeira vista. E eu estava namorando um rapaz, cujo nome não vou citar, senão a família dele não vai gostar e ia ficar noiva. Eu ia para São Paulo, ia me encontrar com ele e na volta nós íamos ficar noivos. Mas eu gostei tanto do Paulo, e eu sou tão sincera, tão franca. De lá mesmo eu telefonei: "Fulano, eu não--------------------------
E eu com ele sozinho lá. Quando foi a meia noite o Dr. Clemente larga aquela festa, chegou com um litro de leite e três copos. Um para mim, outro para o Paulo e um para ele e assim, nós fizemos um brinde para o Paulo. Entrada de ano e tudo, lá, com leite. Nunca mais eu me esqueci disso. Foi a maior demonstração de carinho que eu vi na minha vida. Largar aquela família fabulosa, rica e tudo, para ir lá dar assistência a um funcionário dele, foi muito lindo. Lindo mesmo.

P2 – E sobre seus filhos D. Dirce? Quantos filhos a senhora tem?
R – Tenho quatro filhos. Um está morando nos Estados Unidos, é engenheiro formado na ENTEP. Esse é o gêmeo com a segunda que é... ela agora está trabalhando junto com o meu genro que tem uma lavanderia industrial. Ela agora está aposentada mas ela sempre foi professora. Professora de Arte e Educação Artística, fez a FAAP. Meu último filho também é artista, fez a FAAP, foi professor da UNIVAP ano passado e a minha mais velha que é orientadora do Bilaquinho há muitos anos, é aposentada e continua no Bilaquinho e agora é coordenadora da Faculdade Maria Augusta, da parte de pedagogia em Jacareí. Esses, os meus quatro filhos.

P2 – E quando eles eram pequenos, onde a senhora comprava, por exemplo, brinquedos para eles, aqui em São José?

R – Aqui em São José, em São Paulo onde eu já tinha morado.

P2 – Mas a senhora lembra da loja que senhora comprava? Tinha uma loja que era a sua preferência?

R – Aqui? A loja O Diamante, eu comprava sempre porque eu preferia dar um presente bom, mas um brinquedo que durasse bastante tempo. Ainda tinha a loja Diamante. Eu disse a você que meu colar de noivado foi comprado lá. Depois, ainda depois de cinco ou seis anos de casada ainda tinha a loja Diamante, sim.

P1 – Tinha uma loja da Paraíba, mesmo?

R – Ah, tinha. Os secos e molhados nós comprávamos tudo na Paraíba. Não tinha brinquedo na Paraíba, mas tinha aquelas mantas, cobertores e tudo. E tinha o armazém da Paraíba, só que não tinha brinquedo. Lá nós comprávamos.

P2 – Bem lembrado. E como é que era esse armazém, o que vendia lá? De tudo?

R – Tinha de tudo fabricado na tecelagem e o armazém era o produto alimentício dos funcionários, que descontava no ordenado no fim do mês.

P2 – E esses produtos eram aqui da região, eles vinha de São Paulo?

R – Eram, da região. Tinha de tudo.

P2 - Tinha produto importado, por exemplo?

R – Não, não. Não havia luxo. Era para servir os funcionários da tecelagem Paraíba. Importado não tinha. Tinha os cobertores, mantas, tudo. Era produto da terra, feito aqui.

P1 – E a senhora fazia compras mensais ou fazia compras...

R – Eu fazia... Todo funcionário da tecelagem já era descontado em folha no fim do mês. Ainda era o tempo em que a gente comprava assim. Muitos cobertores, mantas, colchas, lençóis.

P1 – Então a senhora não ia muito no supermercado em São José dos Campos?

R – Não. Acho que nessa época não tinha ainda. Foi surgindo supermercado, anos depois, uns dez anos depois. Eu já estava casada. Há uns cinco, seis anos. Nem me lembro qual foi o primeiro. Acho que foi o Pegue-Pague que hoje é Pão de Açúcar que era o primeiro supermercado lá. Por que a tecelagem tinha tudo, nem precisava ir lá no supermercado.

P1 – E não tinha nada parecido com a tecelagem Paraíba na cidade?

R – Não. Ele era um dono de industria, um industrial que ele era uma mãe para os --------O pessoal se aposentava, depois continuava trabalhando lá. Por aí você vê. Acho que é a única fabrica que tinha lá com pessoal de 60 anos de idade, 70 anos de idade. Meu marido trabalhava lá ...

P1 – E era mais barato comprar lá? Era mais barato?

R – Era, bem mais barato. Como eu falei para você, era mais barato por que era paa facilitar a vida do funcionário de lá. Muito bom.

P2 – Agora, essa loja da Paraíba, D. Dirce, ela era uma loja para qualquer pessoa. Uma loja que vendia os produtos da Paraíba, mesmo?

R – Não o armazém.

P2 – Não o armazém. Uma loja que vendia os cobertores e tal. E as pessoas entravam e por conta própria e iam na prateleira porque ela não tinha vendedor. É isso?

R – Iam e compravam. Normal. Iam na prateleira, escolhiam, tudo.

P2 – Passavam na caixa?

R – E aí pagava a vista. Tudo. Não tinha crédito.

P2 – Não tinha crédito?

R – Não, não. Crédito era só os funcionários.

P1 – Mas era aberto, não era dentro da fabrica?

R – È dentro da fabrica.

P1 -

Tinha que entrar na fabrica?

R – Tinha que entrar. Então tinha que mostrar as credenciais para entrar na fabrica. Era a São José dos Campos da confiança mútua, minha filha, que hoje não existe. Entrava lá. E meu marido era relações públicas então, conforme a pessoa que não era conhecida, eles telefonavam lá, então,o Paulo com jeitinho ia, conversava com a pessoa. No armazém não era todo mundo que fazia compra, não. Os cobertores sim. Mas sempre traziam um cartãozinho de apresentação, etc e tal.

P2 – Mas essa loja de cobertores também era dentro da loja?

R – Ih, até bem pouco tempo ainda existia porque depois quando a fabrica faliu, eu tenho a impressão que os funcionários se cotizaram, compraram. Eu não sei agora como é que está, se funciona. Eu tenho a impressão que eu acho que não ainda. Não sei. Faz tempo que eu não vou lá.

P1 – E os seus netos? Quantos netos a senhora tem?

R – Dez.

P1 – Dez netos.

R – Dez netos, sendo que um é adotivo. É filho da mocinha que trabalha lá, mas é meu neto de coração. Gosto demais porque eu vi nascer. Eu fui aquela que, como não tinha o pai, eu fiquei na sala de espera de um lado para o outro, andando, esperando o menino nascer.
Esperando o chorinho dele. Então, eu criei como se fosse um filho, neto, todo... recordando o meu tempo de pedagoga, de professora, dando muita coisa que eu ensino ele.

P2 – A senhora foi durante muito tempo professora, né? Como era uma aula naquele tempo, por exemplo, como eram as crianças?

R – Olha. Eu fui sempre muito enérgica e eles me apelidaram Duque de Caxias do João Cursino. E eu entrava e não queria barulho. Eu fazia excursão e elas iam. Fora da escola eu era outra pessoa, mas na escola eu era enérgica.

P2 – Eu queria tomar um pouquinho do seu...

R – Claro! Mas posso retornar adiante um pouquinho?

P2 – Mas claro que pode.

R – Ele tocou no Bando da Lua. No Bando da Lua não, nos Demônios da Garoa.

P1 – Ah, é!

R – Ele tocou. Era cavaquinho que ele tocava. Quando eu perdia o sono ele sentava do meu lado e tocava umas músicas tão lindas. Eu Sonhei Que Estavas Tão Linda, aquelas coisas, até eu dormir. Foi muito bonzinho.

P ?- ------------------------------------------------------------------------

R – Foi com as faculdades. O ITA trouxe...








P1 – São José não mudou por causa da Dutra?

R – Não foi por causa da Dutra. Foi o ITA que deu... Aí ele passou a ser uma cidade universitária. Os professores são contratados dos Estados Unidos, da França, da China.

P2 – E eles moravam aqui em São José?

R – Ah, sim.Tinham contrato, recebiam em dólar e moravam lá, tanto que no ITA o pessoal se hospedava lá, tinham os hotéis lá, tinham as casas lá, tudo lá.

P1 – E o que mudou isso no comércio de São José, depois que o ITA veio?

R – Ora! Se transformou em grande shopping e começou com um maior Carrefool, Shopping grandes, ficou com características de uma cidade grande. O pessoal de Taubaté vinha fazer compra aqui, de Pinda vinha fazer compra aqui, até hoje. No Carrefool tem gente de todo o Vale. Vem fazer compra aqui.

P1 – Mas o Carrefool é de onde?

R – Ficou um prédio comercial muito grande. De São José! Nossa Senhora! A renda aqui é fabulosa. Não sei se é a segunda ou terceira renda per capta do estado de

São Paulo. Só tem Campinas a mais e depois já é São José.

P1 – A senhora lembra quando foi inaugurado o primeiro shopping?

R – Não sou muito de shopping, mas deixa eu ver se eu me lembro. Será? Será que o primeiro foi o Carrefool? Não foi. Nem sei qual foi o primeiro shopping aqui em São José.

P2 – Porque a senhora não é muito de shopping, D. Dirce?

R – Eu gosto tanto de fazer compra lá na Rua VII. Aquele comércio assim bem tradicional, antigo. Não sou. Aquele burburinho, aquele corre-corre. Eu gosto até mais de ir, no Colinas que é sossegado, tranqüilo, que no outro, Do Vale. Não gosto muito de ir lá.

P1 – Mas mudou o comércio do centro?

R – Do centro? Não tem grandes lojas. Se concentrou tudo no shopping? A única que continua é a Casa Confiança. Lojas Confiança.

P1 – E a senhora lembra da casa Confiança, desde quando?

R – É a mesma coisa que é hoje desde quando eu era pequenininha.

P1 – A senhora lembra de lá?





















R – Lembro, como não.

P1 – A senhora ia comprar o que lá?

R – Nossa Senhora! A casa Confiança você comprava de tudo. De tudo. (está sendo gravado?) Você comprava de tudo. Tudo, tudo que tinha, que era de qualidade boa, porque eles eram diversos irmãos, os Letaiph. E eles traziam tudo de bom de São Paulo. Quando você queria um tecido bom, você ia na Casa Confiança. É o que a Loja Diamante foi para artigos de presente e tudo, a Casa Confiança foi em tecidos, em armarinhos. É o que havia de melhor, a Casa Confiança. Mas ------ não tem grande loja mais aqui em São José. Eles se reúnem em shopping. Tem o shopping da cidade. Tem o que? O Center Vale e o Colinas. Agora tem uma porção, não é? Tem o Shopping Super Ródia, tem tudo. Têm muitos shoppings. Mas é isso. São José está muito pertinho de São Paulo. Se você quer uma coisa diferente, você vai para São Paulo, tanto que eles fazem tanta propaganda e tudo. Ame São José. Compre São José. Porque as pessoas têm facilidade de ir para São Paulo para ir ao teatro, para ir a escola e já faz a compra por lá. Né? Mas São José tem tudo, tudo o que a gente quer.

P2 – E os primeiros carros que começaram a circular aqui em São José, a senhora lembra?

R – Olha, até nesse álbum que eu trouxe para vocês, tem o primeiro carro que era da família Lebron, que foi aquele Ford de bigode, que eles chamam. Foi o primeiro que apareceu em São José.

P2 – Andava na antiga Rio/São Paulo, ainda?

R – Ah, não. Não me lembro desse carro na estrada, me lembro desse carro na cidade.

P2 – Na cidade.

R – É. Na estrada eu não sei se pegava, não. Aquele Fordão era muito lento. Né? Andava muito devagar, eu tenho a impressão que ninguém ia para São Paulo. Quando ia para São Paulo, ia de Expressinho que era mais rápido.

P1 – Porque que chamava expressinho?

R – Não sei porque. Expressinho, porque andava depressa, mas o depressa deles levava cinco horas para chegar a São Paulo. Então, era a Estrada de Ferro Central do Brasil o nome da estrada, mas o povo começou a -------. O nome geralmente é o que o povo dá. Você não vê, vosmicê? Era vosmicê. Daí ficou ocê, você e hoje é um pronome, você, um pronome próprio. De modo que é o povo que batiza as coisas. O povo muda.

P1 – E como é que era o trem D. Dirce? Era bonito o banco do trem, como é que era?

R – Não. Não era nada luxuoso. É o que é até hoje. Era mais confortável porque tinha o restaurante, você podia comer lá, tinha o dormitório, tinha leito.

P2 – Tinha vendedor dentro do trem?

R – Não. Isso não me lembro, nunca, nunca, nunca. Não sei. Depois eu deixei logo de andar de trem porque agora a gente ia pela Dutra, ia de carro, não precisava mais do trem. Hoje qualquer um tem carro.

P2 – Quer dizer que São José não mudou por causa da Dutra?

R – Não. Você está tão ligada a Dutra, mas a Dutra não representou muito para São José, não. Porque nós tínhamos uma ligação através do expresso que era bom. E tinha uma outra coisa, o povo há muito tempo, que eu me lembro, já não anda de ônibus anda de carro. Vai de carro, faz lotação, tudo. Não anda muito de ônibus, não. Eu mesmo não me lembro quantas vezes eu andei de ônibus agora para São Paulo. Oh, não! É aquela correria. Não, num gosto muito não, mas anda-se.

P2 – E voltando só nos bisnetos. Quantos bisnetos a senhora tem?

R – Eu tenho cinco.

P2 – Fale um pouquinho deles?

R – Falar dos meus netos também, que estão todos... Um é engenheiro, outro fez Administração de Empresas, outro está fazendo Psicologia e a minha neta que é arquiteta, um amor a mais velhinha delas, a mais velha que tem, mais velha mas tem 23 anos. Ela fez Arquitetura aqui em São José e ela levou cinco troféus. Subiu no palco cinco vezes. Foi o melhor TG da escola, foi a melhor da arquitetura dela, foi a nota mais alta da engenharia inteira e assim tudo. Eu sei que quando ela ganhou esses troféus, essas taças todas, daí o ultimo premio, os professores se levantaram e tudo. Sabe qual foi o premio dela? Foi carteira assinada. Ela foi então arquiteta, só que eu me esqueci o nome, que era do Zé Luis. Como é o nome dessa construtora? Ela foi então dessa construtora, era professor dela, ela pegou o primeiro lugar e emprego nessa empresa de construção que é lá na Vila Ema pertinho do Supermercado vila Ema, mas agora eu não me lembro. E agora ela trabalha lá nas empresas do Dr. Ermírio Moraes, Votorantin. Ele tirou ela de lá.

P2 – D. Dirce, o que a senhora faz hoje para se divertir?

R – Eu não me conformei de por um ponto final nas coisas que eu fiz e entrei na Faculdade da Terceira Idade e daí lá na Faculdade da Terceira Idade, sou da turma fundadora e depoi da Faculdade da Terceira Idade nós fizemos SEAT, é aprofundamento de Faculdade da Terceira Idade. Quando terminou o SEAT, nós fundamos um clubezinho de ex-alunos da UNIVAP, mas eu disse : "Gente não basta! Vamos fazer uma outra coisa diferente?" Então eu e mais duas amigas, Mirza e Nilza, fundamos o CATIVA (Centro de Atividade da Terceira Idade) uns dos primeiros que apareceram aqui em São José da terceira idade e lá, eu acho que a gente está em forma ainda por causa disso, eu faço: segunda-feira – Dança Circular – Nós pegamos só bons professores. Os melhores. Dança Circular só tem essa. No estado de São Paulo deve ser a terceira ou quarta pessoa. É conhecida no estado de São Paulo inteirinho. Na terça-feira, eu faço Tai Chi Chuan. Na quarta-feira nós debatemos temas de qualidade de vida. Muito bom. Uma Psicóloga, uma Assistente Social. Maravilha, mas é assim gente de gabarito. Na quinta-feira um grande psicólogo Gino Nardellio, ele faz com a gente ginástica chinesa e aí atravessamos e vamos fazer relaxamento lá na nossa sede que funciona no Ademar de Barros. Esse na quinta-feira. Sexta-feira tem artesanato, tudo isso. Tem também um coral. Um coral muito bonito, já se apresentou numa porção de cidades. Sábado não funciona e nem Domingo. Então esse... Eu tenho a impressão que o CATIVA deve ter quase dez anos que nós fundamos e eu freqüento o CATIVA todos os dia. Faz caminhada as oito horas e as nove horas essas atividades que eu estoucitando para você, mas muito boa. Então, qual é a nossa finalidade? É levantar o astral de todo mundo. A quantidade de viúvas lá é enorme porque ela ou entra em depressão ou ela vai para o CATIVA. Agora eu voltei até de um congresso em São Lourenço. Nós fizemos um bloco com 30 pessoas e fomos para São Lourenço. Muito aplaudido e tudo. Então, no CATIVA não pode ficar triste. É uma alegria só desde a hora que se chega. Nós contamos anedota, nós declamamos, nós debatemos assuntos atuais, tem jornal. Vocês precisam qualquer hora ir até lá para conhecer. Pegado à padaria, ali no Ademar de Barros. Olha! Caubi Peixoto quando veio cantar uma vez aqui e nós estávamos todos ali no SESC, ele olhou assim: "Meu Deus, que energia! Eu nunca cantei para um auditório como esse." A pessoa sente a energia no ar porque ali nós nos damos a mão, uma ajuda a outra. Não deixa ninguém entrar em depressão. Eu não tenho dedos na mão para contar quantas pessoas nós tiramos da depressão, que largaram medico, largaram remédio, largaram tudo só com o CATVA. Então eu acho que essa foi uma realização pessoal minha porque não se trata só de mim, levar essa alegria essa felicidade para os outros que eles merecem. Principalmente a pessoa que está triste porque perdeu o marido. Ora, meu marido morreu de Alzaimer, eu tratei dele cinco anos. Você sabe que Alzaimer vai diminuindo, diminuindo no raciocínio, na memória e chega até a idade fetal. Ele chegou até dois anos de idade.Eu dava comidinha na boca e tudo. Mas com alegria eu tratei dele, mas com tanta alegria. Você diz que não quer falar coisa triste, mas eu procuro sempre da tristeza trazer uma grande alegria. A tristeza me dá forças para fazer alguma coisa boa. Então eu vou dar uma passagensinha sua. Ele estava com equizema em baixo dos braços porque ele apertava o braço e não oxigenava o braço, mas não conseguia fazer o Paulo, meu marido, levantar os braços. Não havia meio. Então, um dia eu vi na televisão os 50 anos dos Demônios da Garoa e ele tocou com os Demônios da Garoa as músicas de Adoniram Barbosa e ele tocava

e solava, porque ele tocava muito bem caquinho. Valdir de Azevedo fez uma oferta para ele, uma coisa e aí ele pediu autógrafo para o meu marido tão bem que ele tocava. Então, ele, coitado, a memória falhava e como ele não sabia solar, acompanhar também ele não queria. Mas sabe o que eu fiz? O que eu vou fazer para ele sarar? Pomada não adiantava, piorava. Todo remédio que dava, piorava. Antiinflamatório ele tinha alergia, piorava. Sabe o que eu fiz? Peguei uma cadeirinha de balanço que eu tinha, comprei um disco dos Demônios da Garoa que ele adorava, não sei como não furou aquele disco de tanto ele ouvir e comprei uma bola de praia dessas bem grandes e pus na mão dele, sabe? Então, quando eu punha o disco que começava os Demônios da Garoa, cham cham cham cham cham cham ( som de música), ele ia batendo o compasso na bola e ao bater o compasso ele suspendia os braços e assim eu curei o equizema do Paulo. E ele tocava, fazia de conta que ele estava tocando, ele fazia assim...
E apontava para um que era aquele que tinha que entrar e continuava. Depois aquele, era a cuíca que tinha que entrar, depois o violão que tinha que entrar e assim foi. É só um exemplo para você, para dizer que a gente pode fazer da tristeza uma alegria. Depende da pessoa, só da pessoa. Daí ele perdeu os dentes e eu tive que tirar a prótese porque às vezes tinha convulsão e eu batia aquela bacalhoada no liquidificador, fazia do jeito que ele queria. e eu tive respeito por ele até o fim pelo bom pai que ele foi. E eu batia aquela bacalhoada no liquidificador, fazia do jeito que ele queria, quer dizer o sabor estava o mesmo e dava as colheradas na mão dele. O sorriso dele chega vinha aqui. Quer dizer que a gente pode fazer. E se eu disser para você que eu tenho mais saudade desses últimos cinco anos. Sabe porque? Eu senti que eu cresci, de ajudar, de servir os outros. Eu só ia na Faculdade da Terceira Idade na hora que ele dormia para carregar a minha bateria. Ele dormia muito bem. Eu saia. Eu ficava na cabeceira da cama dele, ele olhava bem para mim, sorria e, eu fazia cafuné dormia e eu, oh! Plaft. (som feito com a mão) Ia para a faculdade que funcionava das duas às quatro, que era a hora que ele dormia. Daí eu voltava da Faculdade correndo, às quatro horas, porque eu precisava de alegria, de carregar minha bateria para gastar com ele. Eu chegava ele abria os olhos: "Paulo, Paulo está na hora de acordar." Ele abria os olhos e :"Heim, você aí ainda?" Como se eu estivesse em pé, velando o sono dele aquelas duas horas. "Pois é , eu estou aqui ainda." Ele gostava muito do Jô Soares. Sabe o que eu fazia, com o Jô Soares? Era muito tarde para ele dormir. Então, eu gravava todos os dias o programa Jô

Soares, porque ele ria na hora certa, tudo ele entendia. E daí, no dia seguinte, seis e meia, sete horas: "Paulo, está na hora do Jô soares, vamos que eu seis que você gosta do programa." Punha a gravação Jô Soares, terminava e dizia: "Olha, agora bem, é muito tarde! Já terminou o Jô Soares. Termina quase meia noite, é hora de você dormir." Desligava a televisão, punha ele na cama e depois eu voltava para assistir os meus programas. Então, tudo na vida é assim, é ter jogo de cintura. Se você tem jogo de cintura, se você faz as coisas com amor, tudo é bonito para você. Não existe tristeza, de jeito algum.

P2 – Ta, só para encerrar: D. Dirce o que a senhora achou de dar essa entrevista para a gente?

R – Gostei muito. Por que eu acho que se eu posso levar um pouquinho de São José antigo, para as pessoas novas que não conhecem São José, para mim é um prazer enorme, porque tudo que eu faço em beneficio dos outros, eu gosto muito porque parece que Deus dá para a gente em dobro. Então, se vocês estão satisfeitos, não sei. Mas eu estou duplamente satisfeita de poder levar para essa mocidade, para essa juventude em pouquinho de mim, um pouquinho da cidade.

P2 – Então, está bom. Obrigada.

P1 – Obrigada D. Dirce.