Museu da Pessoa

Sucos e histórias

autoria: Museu da Pessoa personagem: Edvaldo Farias Torres

Memórias do Comércio do Rio de Janeiro
Depoimento de Edvaldo Farias Torres
Entrevistado por Fernanda Monteiro e Claudia Leonor
Rio de Janeiro, 30/05/2003
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MCRJ_HV005
Transcrito por Cristina Eira Velha
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho

P/1 - Então vamos lá, Edvaldo. Vou perguntar de novo o seu nome completo, local e a data de nascimento.

R - Edvaldo Farias Torres. Local e data de nascimento? Data de nascimento: quatorze de outubro de 1961.

P/1 - Em que cidade?

R - Ipu, Ceará.

P/1 - E me fala uma coisa: o nome dos seus pais?

R - Geraldo Farias Torres e Tereza Linhares de Farias.

P/1 - O que o seu pai fazia? A sua mãe, trabalhava?

R - Meu pai sempre trabalhou na roça, agricultor. E a minha mãe, sempre do lar.

P/1 - Vocês tinham um sítio lá? Como era?

R - Não, a gente não tinha sítio. A gente morava em propriedade dos outros.

P/1 - E em quantos irmãos vocês eram?
R - Nós éramos não, nós somos.

P/1 - (risos) Quando eram crianças?

R - Quando crianças, são quatro mulheres e cinco homens. Seriam seis homens, porque faleceu um. Era mais novo do que eu, esse que faleceu.

P/2 - Você é o mais velho?

R - Não, eu não sou o mais velho, eu sou o terceiro. Mais velha é uma irmã minha, em segundo meu irmão e eu sou o terceiro.

P/1 - E como era a infância de vocês no sítio? Vocês ajudavam o seu pai?

R - Olha, a infância no sítio, lá na roça, para mim… Nunca escondi isso e jamais vou esconder: foi muito difícil. A minha vida sempre foi difícil, porque eu sempre trabalhei ali, direto. Com sete anos de idade, eu ajudava o meu pai na roça. Eu trabalhava com o meu pai na roça. Eu nunca escondi isso. E não tem porque eu esconder, eu não tenho vergonha. Eu acho que vergonha é você roubar, mas você falar que trabalhou e que sempre foi trabalhador, isso não é vergonha. Eu acho que tem, pelo contrário, que se orgulhar disso.
Graças a Deus, até hoje… Não vou dizer que eu tive uma vida fácil, eu nunca tive uma vida fácil, mas graças a Deus eu nunca pedi nada a ninguém, nunca dependi de ninguém. Sempre eu faço as minhas coisas todas certas. Eu não gosto nem de fazer, por exemplo, crediário. Eu gosto de juntar o dinheiro e, quando eu posso, eu vou lá e compro. Eu nunca gostei disso, porque é uma coisa que me preocupa. Eu não consigo... Se eu fizer um crediário, quando for dormir eu vou ficar preocupado, me preocupo com isso, com aquilo. Então eu prefiro... Junto o dinheiro. Depois, quando eu juntar aquele dinheiro certo, eu vou lá e compro. Sempre tive isso comigo.

P/1 - Certeza das coisas?
R - É, certeza, para não se embananar depois.

P/2 - E todos os seus irmãos trabalhavam?

R - Graças a Deus, todos os meus irmãos são trabalhadores, inclusive as minhas irmãs. Eu até me orgulho das irmãs que eu tenho, porque nunca vi minhas irmãs fumarem, eu nunca vi minhas irmãs beberem; elas são donas de casa excelentes, graças a Deus. Eu falo isso no meu trabalho, para os meus amigos, as pessoas que trabalham lá: eu me orgulho das irmãs que tenho. Minhas irmãs, você chega na casa delas, a casa delas parece assim… O chão... É uma maravilha, são muito bacanas. Nunca beberam, nunca foram de fumar, sempre trabalhadeiras, sempre ajudando ali o marido delas.

P/1 - Olha!

R - São de uma família pobre, mas graças a Deus, de uma família pobre honrada.

P/1 - (risos)

R - Eu acho minha família honrada, porque nunca aconteceu nada. É difícil você criar uma família grande, como a dos meus pais. Porque a pessoa que não pode criar dois, três, de repente quer criar doze, quinze, vinte. Eu sempre achei isso um absurdo. Eu cheguei a pregar isso para o meu pai. Eu ficava com pena, mas quando cheguei à idade de doze, treze anos, eu cheguei a pregar isso. Eu sei que ele não tinha culpa… Sei lá, achava que não tinha, mas ao mesmo tempo eu achava que tinha. Porque você não pode, você é a mãe, ele é o pai, você está vendo que não pode, você não tem condições. [A] cada ano vem um filho. Para que botar esse filho no mundo?
[Eu dizia:] "Eu não quero mais do que dois filhos.” “Não fale com soberba, para Deus não castigar." Meu pai dizia: "Eu ainda vou ver sua casa cheia de filho." Eu falei: "Pô, só se for de outro, porque meu eu não quero, não. Dois está bom."

P/1 - (risos) E Edvaldo, como era... Todos os irmãos iam ajudar na roça? Vocês iam juntos com o seu pai?

R - Era assim: o meu pai ia trabalhar fora, aí a minha irmã, o meu irmão e eu, que eram os três mais velhos, a gente ia trabalhar na roça da gente. Ele ia trabalhar fora para arrumar o dinheiro para comprar alguma coisa para manter a casa. E a gente cuidava da roça da gente.

P/1 - Vocês tinham uma roça perto da casa de vocês?

R - Perto, em termos. Tinha que andar para chegar perto da roça.

P/1 - E o que vocês plantavam?

R - A gente plantava milho, feijão, arroz. Essa área da gente não é boa de dar arroz, mas a gente plantava. Plantava algodão também.

P/1 - E vendia para quem? Vocês consumiam, né?

R - O feijão, o arroz e o milho, a gente consumia a maior parte e deixava uma reserva para... Porque no Ceará tem esses problemas, você não sabe... Tem inverno hoje, você não sabe se vai ter o ano que vem, dois ou três anos depois. Vocês sabem disso. No Norte e Nordeste, principalmente no Piauí e no Ceará, é assim: tem um bom inverno, no ano que vem não tem inverno nenhum, então você tem que estar preparado. Tem que ter alguma reserva, senão já viu.

P/1 - Um bom inverno é a época da colheita? O que é um bom inverno?

R - O bom inverno é aquele inverno que você planta e colhe bem. Em 74 foi um bom inverno, só que não deu em nada. Foi uma seca verde, porque choveu demais, a água levou tudo. O que você plantou, a água veio... Água não faltou, foi até demais. Porque [a gente] estava esperando: "Poxa, esse ano vai ser... No invernão a gente vai colher muita coisa." Que nada, a água veio e levou tudo.

P/2 - O inverno, então, era chuva, muita chuva.

R - Muita chuva. Você lembra, em 74?

P/1 - Lembro.

R - Nossa, no Nordeste, lá no Ceará. Quase acabou com... Em 74, eu nunca posso esquecer essa data. A gente morava perto de um rio - nem chegava a ser tão perto, mas nesse dia choveu tanto, que a minha irmã de 74... Ela nasceu em 74, então era novinha, nesse tempo ela ficava mamando. À noite, começou a chover... Ficou sexta-feira o dia, à noite, aí sábado o dia, sábado à noite. Quando foi à noite, a água já estava perto da casa da gente. Chegou uma certa hora [que] a água começou a bater na parede, aí a gente começou a levar as coisas, botou numa parte mais alta que tinha. Botamos uma lona, um plástico, e levamos as coisas. O mantimento que tinha. Era feijão, era arroz, farinha, essas coisas.
E minha mãe lá, deitada. Meu pai: "Embora, Tereza." Minha mãe: "Que nada! Eu só vou quando a água começar a entrar dentro de casa. Não entrou dentro de casa ainda, eu vou sair para que?" A gente até ria. Era uma coisa difícil, mas a gente, criança, a gente ria. "Embora, Tereza." Ela: "Que nada? Cadê a água? Onde está? Está longe ainda!"
A água subiu, mais ou menos, acho que um metro, um metro e tal, mas não chegou a entrar dentro de casa. De repente, ela começou a baixar, a chuva parou. A gente volta com as coisas, tudo de novo. Aí ela [disse]: "Não falei para vocês que a água não ia entrar aqui?"

P/1 - (risos)

R - Esse lance foi engraçado, muito engraçado.

P/1 - E você não teve medo?

R - Não, acho que… Sei lá, não tinha medo. Eu tinha era vontade de entrar naquela água, só que era noite.

P/1 - Para nadar?

R - É, para nadar. A gente, na verdade, nunca... Apesar do pessoal falar que no Ceará não tinha muita água, a gente nunca teve medo de água, porque eu não sei se você já ouviu falar que tem um açude que foi... Coisa do governo federal, o Açude do Araras, na montanha. Ele é muito grande. Era pertinho, a gente sempre frequentou essas águas, então a gente não tinha problema com água. O medo que a gente tinha mesmo era da água vir de uma vez, derrubar a casa e levar o pouco que tinha. O medo era esse. Mas medo da água mesmo, não. Não era medo de se afogar ou da água levar, porque a gente era acostumado a isso. Era acostumado a pescar, a brincar nos rios, até na canoa, no açude. Esse medo a gente não tinha, não.

P/1 - E quais eram as brincadeiras? Você falou brincar no rio. Quais eram as brincadeiras que vocês tinham?

R - As brincadeiras?

P/1 - É, de criança.

R - Ah, a gente improvisava na hora, a gente... Às vezes tinha uma árvore que o galho caía para dentro do rio. A gente pulava, subia nas barreiras e ficava pulando. Ficava brincando de imitar um peixe. O peixe vai e se joga para um lado, joga para o outro. A gente fazia com as pernas, imitava um peixe.

P/1 - E as meninas? Elas tinham obrigações diferentes? As suas irmãs mais novas? Era mais ajudar na casa?
R - As minhas irmãs mais novas não chegaram a trabalhar em roça. Quem trabalhou na roça foram as minhas duas irmãs mais velhas, mas as outras mais novas não chegaram a trabalhar. Ficaram com a minha mãe trabalhando em casa. Porque aí, depois… Eu acho que eu teria que falar a verdade, porque eu tenho que fazer uma coisa que estou para fazer e não fiz ainda. Vou ter que fazer isso. Na verdade, quando eu vim para cá, aumentei a minha idade, então tenho que acertar os meus documentos. Eu não tenho vergonha de falar isso, mas sei que não é certo.

P/1 - Você veio sozinho?

R - Eu vim só, mas eu já tinha uma irmã que ainda estava aqui. Eu tenho que acertar essa coisa ainda. Na verdade, eu dei a idade que consta no meu documento, mas na realidade eu sou de 63. Para eu comprovar isso, eu tenho que pegar meu batistério lá na igreja, aí vai constar. A não ser que a minha mãe...

P/1 - (risos)

R - A minha mãe não sabe, então eu tenho que acertar isso ainda. Você vai deixando para lá e não acerta, mas eu vou ter que acertar.

P/1 - Edvaldo, vocês estudavam? Tinha alguma escola perto de onde vocês moravam?

R - A escola era bastante difícil, porque ficava longe, mais ou menos como daqui no Copacabana Palace, você ir a pé. Fica difícil. E depois você precisa trabalhar, tem que ajudar o pai, e a professora tinha que trabalhar também. Era uma coisa complicada.
Foi uma vida dura. Eu posso falar isso. Eu nunca encontrei moleza, sempre para mim foi duro, porque o trabalho ali, no batente, [era] direto. Mas uma coisa que eu quero fazer, pelo menos, é dar estudo para os meus filhos. Eu falo para eles todo dia: "Olha, vocês se interessem, estudem. Vocês estão estudando para vocês, não estão estudando para mim. Se amanhã ou depois, com o estudo que conseguiram, vocês conseguirem alguma coisa, e puderem me ajudar, eu aceito com todo o coração. Não me dando nenhum problema, vocês já estão me ajudando bastante." Eu prego isso para eles. "Ou vocês querem amanhã depois ficar com a barriga no pé do balcão igual a mim? Vocês [é] que sabem." Eu falo para eles: "Estudem, porque na época eu tinha que trabalhar para ajudar os meus irmãos. Vocês não. Eu exijo que vocês estudem, vocês estão estudando para vocês. Porque o que a gente aprende ninguém tira." Eu prego isso para eles, para eles se interessarem mais. "Ah, estamos nos interessando." "Eu quero ver." Sempre falo isso para eles.

P/1 - Edvaldo, vocês iam à igreja?

R - Igreja?

P/1 - A sua mãe era religiosa?

R - A minha mãe sempre foi religiosa, os meus pais sempre foram religiosos. Minhas irmãs também, meus irmãos. Eu sempre frequentava a igreja, mas eu ainda era muito garoto... Esse padre ainda está lá, ainda existe.
É uma coisa que, contando, você não acredita. Eu não sei como posso eu ser um padre, uma pessoa vem se confessar e a pessoa não sabe... Porque tem o confessionário, o padre fica aqui, igual um paxá. É isso que ele queria ser. A pessoa vem se confessar, se ajoelha, vai se confessar; a pessoa erra uma parte da reza, o que ele tem que fazer? "Você volta para casa, está errado. Outro dia você volta e se confessa." "Se levanta, seu burro, você não sabe rezar." Isso é padre?

P/1 - O padre falava isso?

R - O pior não foi isso. No dia que a minha irmã, essa que casou e veio embora para o Rio, na igreja que tem lá no Ipu, a gente entrou lá para acertar o negócio do batistério, porque na hora que vai casar na igreja precisa disso. Aí ela e o marido, eu achei até engraçado, foram se confessar. O nome dele era padre Morais - eu nunca me esqueci o nome dele, padre Morais. Foram se confessar, os dois. Eles ficam um de um lado, o outro do outro, a minha irmã e o noivo.
Eu estou lá, olhando as imagens no altar; daqui a pouco eu olhei, estavam só os dois lá. Eu falei: "Cadê o padre? Como eles vão se confessar desse jeito? Vem cá, cadê o padre?" Eles falaram: "Ah, o padre saiu e não falou nada." Como eu já lembrava desse lance dele, eu falei: "Como aquele padre é muito grosso, ele é capaz de não ter falado nada para eles."
[Disse:] "Eu sei onde é a casa do padre", que ficava perto. Fui lá na casa do padre, que é uma área assim, tinha umas cadeiras, uma rede. Cheguei lá, o padre estava assim... Aí eu olhei, falei: "Ué?" Fiquei um tempo lá, olhando para o padre; nada. Voltei lá e falei: "Olha, levantem daí, porque esse padre não vai voltar para confessar vocês, não. Vocês vão lá e perguntam a ele. Falem com ele, qualquer coisa."
Está bom, tudo bem, fomos lá. Chamavam ele de Monsenhor: "Monsenhor, o senhor não vai confessar a gente?" "Vocês não sabem rezar! Como eu vou confessar vocês?" Eu falei: "Eu não falei para vocês que esse padre é grosso?" Ele é muito grosso.
Foi isso que eu falei para ela. Eu sou católico, mas não sou muito de frequentar a igreja. Você imagina um padre, para chegar a ser padre ele estuda muito. Como é que uma pessoa pode ser grossa desse jeito? Não dá certo.

P/1 - (risos)

R - Para mim, eu não iria me confessar com um padre desse nunca. Para que?

P/1 - Edvaldo, me fala uma coisa: o tempo que você morou lá em Ipu, tinha festa na cidade? Vocês iam a festas, quermesse, festa de algum padroeiro?

R - Ah, lá tem uma festa muito famosa. O padroeiro é São Sebastião, o mesmo padroeiro daqui. Começa dia quinze, [vai] até o dia vinte. [No] dia vinte mesmo, que é o dia de São Sebastião, aí eles falam as novenas. O padre diz as novenas: começa [no] dia quinze, novena tal, e [no] dia vinte mesmo [é] que saem com o São Sebastião pela rua.
É muito conhecido, vai muita gente das regiões ali, do Piauí, de Fortaleza, de Sobral, daquela região toda. É bem conhecida essa festa lá, é bem famosa.

P/1 - E tem barraquinha?

R - Tem barraca, tem... Acho que ainda hoje eu tenho uma foto; numa festa lá, uma vez eu tirei uma foto numa barraca. Está com a minha mãe essa foto. Agora, no final do ano, quando ela veio, ela falou comigo: "Aquela sua foto ainda está lá." Foi no circo lá, tirei no cavalinho. Provavelmente ainda esteja com ela.
São muito legais as festas lá de final de ano.



P/2 - Tem música, forró?

R - Forró, é de muitos anos atrás. Na época dos meus avós, eles já eram acostumados a dançar forró. Forró é, no Norte e Nordeste, todo mundo... Não existe nordestino que possa dizer: "Não conheço música de forró." Se dizer, para mim, é uma fresca ou fresco, porque isso aí é coisa típica de lá. Não tem como você dizer…
Existem pessoas que são assim, às vezes vão para a cidade grande, não querem mais ser daquela cidade ou então negam a sua origem. Eu não, jamais eu iria negar. Eu poderia ficar até milionário, jamais eu iria negar minha origem, negar as dificuldades que eu passei, o que eu passei durante esse tempo todo. Por que? Eu acho que vergonha é a pessoa roubar, isso sim é vergonha você falar, mas você falar a verdade eu acho que não faz mal a ninguém.

P/1 - Edvaldo, você dança forró?

R - Se eu danço? Danço.

P/1 - Com quem você aprendeu? Desde criança?

R - Eu aprendi... Olha, vou falar um negócio para vocês, vocês vão até rir. Em 70, quando o Brasil ganhou a Copa no México, a gente não tinha um rádio para saber, um rádio de pilha, na casa do meu pai não tinha. A gente morava distante da cidade. Aí eu escutei…
Eu sabia que o Brasil ia jogar a final com a Itália, em 70, no México... Acho que foi com a Itália? Brasil e Itália em 70, no México. Eu sabia que o Brasil estava na final: "Poxa, o Brasil já ganhou duas Copas do Mundo..." Acho que eram duas, era a terceira. 54, 62 e 70, terceira Copa do Mundo, Brasil e Itália na final. Falei: "Poxa, legal. Como eu vou ouvir esse jogo? Não tenho rádio." Aí eu escutei os fogos. Falei: "Ih, o Brasil ganhou." O Brasil foi tricampeão - a gente escutava falar, a gente gravava.
Eu saí na rua para saber. Cheguei lá, estava a maior festa, o pessoal com negócio de zabumba, essas coisas; um com uma lata, o outro com uma coisa, uma cachaça. Eu nunca fui de beber, mas caía para dentro lá, dançando.
Dançamos quase a noite toda, aí meu pai [ficou] preocupado comigo. Chegaram umas dez, onze horas da noite, ele atrás de mim. Eu estava lá, dançando forró no meio da rua. O pessoal fazia a festa lá.

P/1 - Você tinha o que? Sete anos?

R - É, sete anos. Em 63, sete anos de idade. Nessa época eu já trabalhava, já ajudava o meu pai na roça.

P/1 - E não tinha perigo andar sozinho à noite? Não tinha ladrão, assalto?

R - Não, essas coisas não tinha, não. A gente com cinco, nove anos de idade, fazia lá umas armadilhas no mato, para pegar alguma coisa. Porque a pessoa da roça sempre caça, pesca.
Eu ia longe, às vezes, à noite, com uma lanterna só, naqueles matos, naquelas varedas. Ia, voltava e não tinha problema nenhum. Ia com o cachorro, minha companhia era o cachorro e um facãozinho. Ia lá, descarregava os peixes, a gente fazia armadilha para pegar alguma coisa - preá, cotia, essas coisas. Ia lá na armadilha; se tivesse algum, você catava e trazia. Ou então ia lá no rio, tirava os peixes da linha. Ou a gente fazia uma espécie de... De um jiqui, que a gente fazia, umas camas, para pegar peixe. Às vezes a gente ia, descarregava cedo, e de manhã ia e descarregava de novo.
Era uma coisa que no Norte e Nordeste ajudava muito a pessoa. Já era uma comida que você arranjou para dentro de casa. Durante aquela semana você não vai estar preocupado com carne, essas coisas, porque você arruma uma coisa daqui, outra dali. Então é difícil você... E a pessoa sempre cria galinha, porcos. Só não pode criar animal como gado, porque você tem que ter terra e nessa época o meu pai não tinha. Ele morava no que era dos outros, então a gente não podia...

P/1 - E tinha alguma história de assombração, lenda?

R - Olha, sei lá. Eu juro para você que nunca fui uma pessoa de ter medo das coisas. Eu acho, pelo que eu vejo, que todo mundo deveria aceitar isso: que a pessoa, quando morre, não faz mais medo a ninguém. Ele faz medo sim, quando está vivo, mas depois que morre não faz medo a ninguém.
Tinha um cemitério lá. Muitas pessoas têm ou guardam isso na cabeça, ou então que vão pôr a sentinela numa pessoa e ficam com medo. Eu nunca tive esse problema comigo. Quando eu estava com dez anos de idade, eu estava com o meu bisavô e a gente estava nessa época apanhando coco lá nas palmeiras, eu, ele e meu tio. O meu tio já tinha idade, mas meu bisavô [era] bem idoso.
Eu morava no sertão e essa parte era na serra. O meu bisavô, que era avô da minha mãe, ia muito para a serra, porque na serra tinha muitas frutas. Sempre gostei das frutas - eu vim parar num lugar que tem fruta - e na serra tinha muitas frutas, então ele trabalhava com café, com coco. E as casas lá…Ele tinha bastante terra, então nessa época ele trabalhava com castanha, que é a castanha do caju - era só a castanha mesmo nessa época, o café, e o coco, que não sei se vocês conhecem. Lá é coco de macaco, que é um coco pequeno. Você o corta no meio, tem quatro, cinco ou seis favos, desse tamanho assim, de coco. Aquilo serve para muita coisa.
Eu [estava] na roça com ele e uma senhora bem de idade, que morava perto… Eu escutei, vi aquele fogo e escutei aquela pessoa chamando. Aí ele falou assim: "Ih! É na casa da Dona Chiquinha?" Porque ela já era bem velhinha, [a] casa [era] de palha. A casa estava pegando fogo.
Eu saí descendo, só que era longe, era complicado para você descer a serra - os cocos geralmente ficam numa serra. Saí descendo, até escorregar naquelas folhas da palmeira e sair cortando caminho. Quando eu cheguei lá, eu entrei direto; a casa estava terminando de pegar fogo, mas não teve mais como. Eu saí, a arrastei para fora. Quando eu a botei ali, ela ainda quis falar qualquer coisa, mas não deu mais, porque a pele dela já chegou a soltar - alguma parte que eu peguei, por causa do fogo.

P/1 - Nossa!

R - A gente a embrulhou em uns panos, mas ela morreu. E eu nunca... Aí meu avô falou assim: "Poxa, você é muito corajoso, muito disposto." Porque tem muita pessoa aí que, se vê uma pessoa morrendo, faz é correr. Eu falei: "O que é isso?" Por que? Eu acho que a pessoa tem mais é que fazer isso. Está no ponto, na hora de ajudar o outro que está precisando. Porque a pessoa não sabe, amanhã pode ser você. A vida é muito imprevisível.
Eu acho que, nesse ponto, eu sempre fui uma pessoa muito disposta. Outro dia desse, de frente ao Polis Sucos, no domingo, vinha passando uma velhinha. A velhinha caiu no meio da pista. Eu fui lá, peguei a velhinha; perguntei a ela porque ela andava só, onde ela morava. "Eu moro aqui perto." "E a sua filha, o seu filho?" "Ah, minha filha saiu, está só a empregada lá comigo." "Por que a senhora não veio com a empregada?" Ela ia para a missa. Ela disse assim: "A minha filha não liga muito para mim." "A senhora tem telefone para eu ligar para lá, o número que a senhora mora?" "Eu tenho o telefone sim." Daqui a pouco a filha dela chegou, foi dando um esporro na velha. O que é isso? É um absurdo uma coisa dessa.
Essa parte de mim, eu sempre... Eu trabalhei [por] doze anos à noite, ali. Uma vez teve uma batida ali muito... Foi violenta a batida. As pessoas ficaram... Porque às vezes, quando acontece uma coisa assim, as pessoas correm para cima. Eu não. Quando eu vi que a batida foi muito forte, bastante violenta, o pessoal correu tudo para ir olhar. Eu não, eu corri direto para o telefone e liguei. Aí foi rapidinho. As pessoas vieram.
Teve umas três batidas ali que foram violentas. Teve uma vez uma batida num Fusca e o outro carro era uma Elba. Um casal que ia passando na escada ali, em frente ao Polis Sucos, na calçada… O Fusca pegou a garota e o cara e saiu arrastando até de frente para o prédio. Foi uma coisa muito feia. O osso da perna da garota ficou para fora.

P/1 - Aflição, né?

R - É, você fica assim… Não é medo. Você fica, poxa, com pena. Você sente pena das pessoas, acontecer uma coisa dessas. Você imaginou? Está passando na calçada, não tem nada a ver com os idiotas que estão lá bebendo [às] três, duas horas da manhã, e sai na rua avançando o sinal, para fazer uma coisa dessas. É muito triste, isso.

P/1 - Aí não dá, né? E Edvaldo, até quando você ficou em Ipu?

R - Eu saí de lá com dezesseis, ia fazer dezessete.

P/1 - E aí veio direto para o Rio?

R - Direto para o Rio.

P/1 - E veio a família? Você veio sozinho?

P/2 - Sua irmã já estava aqui?

R - Eu já tinha uma irmã que estava aqui. E tinha uns amigos meus que trabalhavam e moravam aqui também. Eu vim [para] o endereço deles, depois eu fui à casa da minha irmã.

P/1 - E o que lhe atraía em vir para o Rio de Janeiro? O que você queria?

R - Na verdade, o que me atraiu mesmo a vir para o Rio de Janeiro foi procurar melhoria e ajudar os meus pais. Essa foi a realidade de eu fazer isso.

P/2 - Os seus pais ficaram lá?

R - Os meus pais ficaram lá. Primeiro, eu fui em Fortaleza. Aqui chamam [de] picolé, lá [se] chama dindim. Você sabe o que é? Eu vendia dindim na praia. E depois eu achava que... As pessoas que vinham para cá diziam: "No Rio é melhor para você trabalhar, você ganha mais." Eu falei: "Eu vou tentar." Aí eu vim tentar.

P/1 - Então você saiu de Ipu, foi para Fortaleza. Lá você arrumou esse emprego.

R - Eu na verdade não morava mesmo em Ipu, morava num município. Ipu é uma cidade, eu morava num município de Ipu. Por exemplo, a pessoa é do município de Ipu, às vezes nunca andou nem no Ipu, vem direto para cá e fala: "Eu sou do Ipu." Eu não. Eu falo a realidade: do município de Ipu.
A minha tia morava em Fortaleza. Fui para Fortaleza, fiquei uns tempos lá. Mesmo assim eu achava que assim eu não... Ficava um mês, quinze, vinte dias; quando voltava, pagava a passagem de volta ou muitas vezes não pagava. E muitas vezes eu enrolei o guarda no trem, não paguei. Para levar aquele dinheiro, eu levava o dinheiro para ajudar os meus pais. Aí voltava de novo e ficava lá.
Falei: "Eu vou aumentar a minha idade. Vou embora, vou trabalhar no Rio." Aumentei a idade e fui lá. Essa mulher é juíza hoje, essa mulher que aumentou a minha idade.

P/1 e P/2 - (risos)

R - Gente muito fina, ela. Uma pessoa muito bacana, muito legal.

P/2 - As pessoas faziam isso, era normal? Para arrumar emprego?

R - As pessoas faziam isso.
P/1 - Para ajudar, né?

R - Por isso que eu fiz. Aumentei a idade e vim embora para cá.

P/2 - Como foi a sua viagem?

R - Foi três dias dentro do ônibus. Muito complicado. Quando você vem, você vem imaginando uma coisa. Quando chega aqui é outra, bem diferente. Porque as pessoas falam... As pessoas vinham aqui, ficavam um ano, dois anos, três anos - ou meses só, e chegavam lá falando, aí você vem com aquilo na cabeça.
[Quando] você chega aqui, tem que trabalhar mesmo e sério, senão já viu. Mas eu, graças a Deus, não reclamo da minha vida, porque eu vim com um objetivo e, graças a Deus, eu consegui. Quando eu saí de lá, os meus pais moravam em casa dos outros e o meu objetivo… A minha mãe sempre fala isso e quando ela fala isso ela chora. Quando eu saí de lá eu falei: "Olha, mãe, a primeira coisa que eu vou fazer é comprar uma casa para vocês." E foi mesmo a primeira coisa que eu fiz. Deus me ouviu, a primeira coisa que eu fiz foi comprar a casa para ela. Eu comprei uma casa para ela e ela se mudou para essa casa. Eu falei: "Eu vou comprar uma casa para vocês numa rua com luz e com água." Só não tinha água, mas tinha luz, porque nesse tempo ainda não tinha água nessa cidade.
Depois, com o tempo, eu comprei outra casa, bem melhor para ela, e graças a Deus é nessa casa que ela está até hoje. Eu cheguei até a montar um comerciozinho para ela lá. Essa casa seria assim, essa outra casa que eu comprei... Eu pensei: "Eu vou embora, vou me casar lá e vou morar nessa casa." Mas aí não deu certo, a minha mãe se mudou para lá e está lá até hoje. Uma casa boa, graças a Deus. À vista do que era antes... Minha mãe, quase todos os anos ela vem [pra cá]. Ela fala: "Meu filho, graças a Deus, agora eu posso respirar um pouco."
Não é dizer… Eu tenho as coisas. À vista do que era, porque você imaginou, como eu falei para você, em 70, não tinha um rádio. Hoje tem televisão a cores, tem vídeocassete, tem antena parabólica. Poxa, para quem veio lá de baixo, vendo os avôs, avós, ninguém nunca teve acesso a isso, para ela é muita coisa. Ela considera muita coisa, não é verdade? Eu acho que é verdade, então isso me faz bem.
Meus pais estão bem, hoje estão aposentados. É uma mixaria, mas quando a gente pode a gente ajuda, um ajuda, o outro ajuda. E às vezes eu fico pensando assim: tudo bem, os políticos chegaram a fazer alguma coisa, mas muita coisa no Nordeste que mudou são as pessoas também que vêm para cá. Por exemplo, eu vim, como muitas pessoas vieram, eu ajudei meu pai e minha mãe. Meu pai e minha mãe moram numa casa boa, que você olha a casa e depois diz assim: "Fulano ali não precisa de nada." Aquele outro... Mas não foi ele que fez, ele não fez nada. Quem fez foram as pessoas que vieram e voltaram para lá e fizeram isso. E muita gente ganha com isso também.
Dizem assim: “Ah, o Norte, Nordeste mudou." As pessoas acham que foram os políticos - não foram os políticos. Alguma coisa eles fizeram, mas a maioria é isso aí. Pelo que eu conheço, das pessoas que eu conheço, eles conseguiram alguma coisa na vida, mas através dos filhos que vêm para cá. Quando a pessoa tem um filho e é um bom filho, ele vai... A pessoa que tem um caráter mesmo, que tem um coração, ele sabe que o seu pai depende, e ele pode, ele vai fazer aquilo por ele. Quando é um bicho solto - eu já conheci vários também na minha terra, que não deram para nada, e muitos também já se foram. Foram para o lado errado e já se foram.

P/1 - Aí não tem jeito.

R - A pessoa não pode fazer nada. Você até aconselha: "É problema seu. A vida tem dois caminhos, um certo e um errado, você escolheu o errado..." Eu dou conselho, se é meu amigo: "Poxa, não faz isso, não está certo." Fica sem comer hoje, deixa para comer amanhã. "Não faz isso, vai trabalhar."

P/2 - E aqui no Rio você foi morar onde, quando você chegou?

R - Quando eu cheguei... Eu fui um privilegiado, porque quando eu cheguei fui morar na Vieira Souto, na Casa de Cultura Laura Alvim. Morei lá dois anos e cinco meses.

P/1 - Mas o que era lá? Não era Casa de Cultura ainda?

R - A casa sempre foi Casa Laura Alvim. Fica na Vieira Souto, 176. “Casa de Cultura” não sei por que, se é por causa do teatro, mas aquele teatro sempre existiu lá. Sempre trabalhei em Ipanema e morei na Casa de Cultura.
Eu trabalhava ali perto, ia para lá, e o pessoal sempre ficava lá no teatro, ficava vendo lá o pessoal no teatro. Só que depois foi tombado pela prefeitura; foi um negócio lá na prefeitura, a prefeitura tomou aquilo, eu acho. Porque eu cheguei a conhecer a Dona Laura.

P/1 - Ah, é?

R - Eu cheguei a conhecer a Dona Laura.

P/1 - Então conta um pouquinho para a gente, Edvaldo. Como você conseguiu essa casa para morar, e fala um pouquinho da Dona Laura.

R - A Dona Laura é o seguinte: eu vim no endereço do meu amigo, que já estava aqui no Rio, ele morava lá. Tinha uma senhora, o nome dela era Lezita, e o marido dela, nessa época, trabalhava de motorista para o João Soares. A Dona Lezita tomava conta da Dona Laura, então, a Lezita fazia o seguinte: a Casa de Cultura é grande para caramba, não sei se vocês conhecem, se vocês já andaram lá, já entraram lá. Lá é uma casa bem grande, se eu não me engano acho que são três... Acho que é triplex lá.
A Dona Lezita tomava conta da Dona Laura, então ela alugava aquilo para as pessoas do Norte também, do Nordeste; ela alugava aquelas partes para as pessoas morar e ia arrecadando dinheiro.
A Dona Laura ficava na parte dela. Nessa época, ela ficava muito intocada, tinha uma parte lá... Ela falava: "A Dona Laura vai sair hoje, vocês..." Aí todo mundo ficava atento: "A Dona Laura vai sair hoje." Ninguém ficava lá fumando, essas coisas assim, ou então de bagunça ou com o som ligado. Aí ela saía.
Eu cheguei a vê-la várias vezes ali. Ela saía para passear ou então ia um pouco lá no teatro. O teatro estava desativado. Tinha alguém que vinha fazer alguma coisa, mas era difícil também. Ela andava, olhava aquilo lá, depois voltava para o lugar dela de novo. E era sempre assim. A gente sempre foi avisado e a gente ficava comportado. Sabe como é rapaz solteiro, né? Era rapaz e muita mulher solteira que trabalhava por ali também. Quando era à noite, a gente sempre fazia alguma coisa ali, no palco do teatro mesmo; comprava umas cervejas, tomava lá. No calor mesmo, que estava legal, dormia todo mundo naquele teatro.

P/1 - (risos)

R - Chegava um com lençol, o outro com lençol, travesseiro, botava lá. Se você fosse lá à meia-noite, uma hora, via aquele palco lotado. Eu dormi lá várias vezes, na época do calor mesmo, que estava calor legal.

P/1 - É aberto o teatro, não?

R - Nessa época era aberto. Depois que fizeram a obra, depois que eu saí nunca mais voltei lá. Não sei como é agora, mas na época era assim.

P/1 - E Edvaldo, a Dona Laura era brava? Será que ela era brava, por isso que o pessoal falava?

R - Eu acredito que a Dona Laura não seria uma pessoa brava. Eu acredito que a mulher falava isso, pressionava a gente para não perceber que tinha muita gente ali, demais. Por que tanta gente mora aqui? Porque ela sabia que ela morava lá e tomava conta dela. O marido dela nessa época trabalhava como motorista para o João Soares.
Eu acho que deveria ser por causa disso, não é porque a velha fosse brava, não. Eu acredito que não. O que me passava pela cabeça era isso: "Acho que essa Dona Laura deve ser uma pessoa boa, não deve ser isso que você prega." Eu pensando comigo, jamais eu iria falar uma coisa dessa. Pelo contrário, eu achava era bom morar ali, pertinho. E pagava coisinha pouca. Mas era bastante gente que morava, então ela arrecadava bem.

P/1 - E como era? Era um quarto por pessoa? Um quarto para três, quatro? Como era? Tinha beliche?

R - A gente dividia um quarto muito grande. Tinha uma porrada de beliche. A gente morava era [em] oito. Era assim, por exemplo: moramos eu, ela... As mulheres não, moravam separado. Morava sempre só homem e sempre só mulher. Digamos, assim, que nós somos aqui cinco pessoas. A gente morava aqui assim. Aí, de repente, um tirava umas férias, ia lá no Norte, aí trazia mais um: "Vamos morar comigo lá." Quanto mais gente chegasse, melhor. "Dona Lezita, chegou um amigo meu." "É gente boa?" "É gente boa." "Vê lá quem você está trazendo para cá." "Não, é gente boa." "Então tá. Arruma ele por lá." Comprava um colchãozinho, quando podia comprar uma beliche, comprava, aí botava lá. Era assim que funcionava.

P/1 - E o banheiro era no corredor? Como era a convivência?

R - Ah, tinha, acho que eram três banheiros lá. Embaixo, logo que a pessoa entra, tinha três banheiros. Mas tinha umas partes lá que tinha banheiro dentro, também. Além de ter... Acho que seria... Aqueles banheiros seriam os banheiros do teatro, então eram aqueles que a gente usava. Mas tinha pessoas que moravam lá que tinham banheiro, faziam. Pessoas que moravam lá e faziam banheiro lá dentro. Assim, onde morava só cara solteiro, a gente [dizia]: "Ah, vai usando aquele mesmo." Mas umas pessoas que chegaram, dois ou três casais, que tinham família - mulher, marido e dois filhos, nessa época.

P/1 - Você morou lá quanto tempo?

R - Eu morei dois anos e cinco meses, quase seis meses. Foi bastante tempo que eu fiquei lá. Pagava coisa pouca. Quando eu comecei a trabalhar no Polis Sucos, eu morava lá ainda. Porque eu trabalhei um ano na [Rua] Teixeira de Melo, 31, aí depois eu fui trabalhar na [Rua] Maria Quitéria.

P/1 - E me fala uma coisa, Edvaldo: quando você chegou aqui no Rio de Janeiro, qual foi a primeira impressão da cidade? Teve algum impacto?

R - Quando você chega... Eu cheguei na rodoviária, o meu amigo estava lá; a gente pegou um ônibus que passava lá perto, desceu lá na Prudente de Morais e seguiu pela [Avenida] Vieira Souto. Ele falou assim para mim: "Olha, esse aqui é o melhor lugar do mundo." Aí eu olhei: "Vieira Souto". Ele falou: "Você está na Vieira Souto. Isso aqui é o melhor lugar do mundo."
Eu estava acostumado com aquelas praias. Eu falei, até brinquei com ele: "Por que? Por causa da praia?" Aí ele falou assim: "Não, você vê e observa bem." Fiquei observando no calçadão, na Vieira Souto. Passou um monte de garotas, mais ou menos umas cinco ou seis, mas todas essas garotas de Ipanema. Não estou dizendo que é só de Ipanema - em todo canto tem mulher bonita -, mas ali em Ipanema, naquela área ali, então eu falei: "Realmente você tem razão, aqui deve ser o melhor lugar do mundo mesmo. Amanhã eu vou dar logo uma volta nessa praia."
A gente entrou lá para o casarão, a Casa de Cultura Laura Alvim. Ele me mostrou lá, eu disse: "Está legal. Eu já morei em casa de palha, já morei em casa de estuque..." Estuque são aquelas casas que as paredes não são de tijolos, são feitas de barro. Eles improvisam com as madeiras, vai colocando barro: [isso se] chama casa de estuque. Falei: "Está bom demais." Ele falou: "E amanhã você já vai trabalhar comigo." Era no Stop 31, que é uma casa que tem... Teve, não tem mais, na [Rua] Teixeira de Melo, lanchonete.
O nome da casa era Stop 31 - eu tenho na minha carteira, foi a primeira assinatura da minha carteira. Era uma casinha bonita, ali na Teixeira de Melo. Eu virava, estava no casarão, na Casa de Cultura. A gente chamava sempre ”o casarão”, todo mundo só chamava de casarão. Eu achei legal, poxa, graças a Deus eu dei sorte. E o patrão foi um cara legal comigo. Eu trabalhei um ano com ele, uma pessoa... Carioca, ele. Esse meu patrão casou com a neta do... Naquela época, qual era o governador mesmo? Em 80, 81? Chagas Freitas? Acho que era. É neta do Chagas Freitas. Eu lembro até o nome dela: era Silvana, loura, bonita. Eu sei que ela era neta do Chagas Freitas. Eu acho que era Chagas Freitas, se eu procurar bem, eu acho que era.

P/1 - Edvaldo, vamos voltar um pouquinho no seu primeiro emprego na praia. É sorvete dindim, é isso? O que era, picolé? Como você arrumou esse emprego lá?

R - Esse emprego eu arrumei através do meu primo. Minha tia morava em Fortaleza e meu primo às vezes ia para lá para o interior. Aí: "Vai, Edvaldo, vamos trabalhar lá em Fortaleza! Eu arrumo para você trabalhar vendendo dindim lá comigo." Eu falei: "Está bom."

P/2 - Qual praia?

R - A gente ficava mais na praia de Iracema, porque ficava mais próxima. A gente ficava muito lá. "Vamos trabalhar comigo lá?" "Ah, não sei não. Vou falar com a minha mãe, com o meu pai." Aí falei com a minha mãe e com o meu pai.
O nome do meu primo é Cícero. "Ah, Cícero, isso vai dar certo?" "Por que não? Eu já trabalhei lá uns cinco ou seis meses, vai dar certo sim." Aí eu fui com ele; chegou lá, ele falou com o patrão dele. O patrão: "Não tem problema. Dá um isopor para ele." Fazia assim: colocava duzentos picolés. E ele era uma pessoa até legal, que ele dizia assim: "Esses cinco, ou seis, ou sete aqui, são para vocês." Se ele colocasse duzentos, mas era 205, 206 ou 207, aqueles [eram] para você.
Os primeiros que eu vendia... "Eu já vendi o meu. Agora vou vender o dele." Eu tinha que comer alguma coisa, eu ia ficar o dia inteiro, então, por exemplo, se fosse seis: "Eu vou vender quatro e vou consumir dois", porque eu vou ter que comprar alguma coisa para comer.
Eu levava a vida assim. Se eu vendesse tudo, tudo bem, mas se eu não vendesse tudo, ele falava assim: "Sobrou quantos?" "Sobrou tantos." "Inclusive os seus." Eu falava: "Não, os meus foram os primeiros a serem vendidos." Aí ele ria. O patrão até falava assim: "Pô, esse aqui é bom, esse é esperto."

P/1 - Garantia o seu primeiro. (risos)

R - Primeiro eu garantia o meu. Eu falava: "Os meus foram os primeiros que eu vendi." Ele falava: "Mas como você sabe?" "Porque eu marquei!" Brincava com ele. Mas ele aceitava, ele aceitava isso numa boa. Eu achava essa parte dele legal, generosa. Ele dizia assim: "Mas você não vendeu tudo." Então eu dizia: "Eu consumi. Eu não tinha direito...?" Por exemplo, você me deu seis, sete ou dez, não interessa se eu vendi ou se eu comi. Sobrou os dele, não os meus.

P/1 - (risos) E Edvaldo, lá na praia você chamava, você anunciava? Você tinha que gritar alguma coisa para anunciar o sorvete?

R - Anunciava.

P/1 - Como era?

R - "Olha o dindim, olha o dindim, olha o dindim!" Às vezes eu falava picolé também. Às vezes a gente falava brincadeira, brincadeira que pessoas sempre...

P/1 - E era de frutas? Quais eram os sabores?

R - Era de frutas. Tinha de abacate, de manga - o que saía mais era abacate, manga, essas coisas. Tem uma fruta lá que chama siriguela, não sei se vocês conhecem. Muito boa. As pessoas aqui não conhecem, mas é muito boa a seriguela. Quando eu falo nela, eu fico até com a boca cheia de água. A minha mãe, quando ela vem, ela traz. E é muito bom.
Eu vendia mais de abacate, manga, morango. Mas morango, naquela época, eram aqueles morangos que tem num sachezinho, que vende para fazer refresco. Era aqueles refrescos - dizia que era de morango, mas eu não gostava muito. Eu gostava mais da fruta, porque naquela época fazia da fruta mesmo, do abacate;

você chupava um sorvete daquele, você sentia mesmo o gosto do abacate. Você pegava um daquele de leite, você sentia mesmo o gosto, que era de abacate mesmo. Então esses que eram de morango, sachê… A gente, que tinha direito a seis ou sete, escolhia só os bons: de manga, abacate, de leite. A gente dizia assim: "Poxa, eu vou ter que carregar essa caixa aí no ombro, então eu vou consumir aqui uns três abacates, para fortalecer." Era assim que a gente tocava.

P/1 - E nessa primeira, aqui no Rio como chamava, a primeira loja que você trabalhou? Stop 31?

R - Stop 31C.

P/1 - E já foi uma casa de sucos?

R - Não, lá não era uma casa de sucos.

P/1 - O que era?

R - Era uma casa… A especialidade da casa, do Stop 31, não sei se vocês conhecem, era waffles. Era uma coisa muito boa, eu gostava muito. Aprendi a fazer aquilo rapidinho. Fazia a massa mesmo, fazia waffles e uns biscoitinhos também. Muito bom, muito legal.
Mas servia almoço também, de onze horas até duas e meia, três horas da tarde. Quando dava quinze para as três, vinte para as três, o patrão falava assim: "Vamos ligar a máquina." Ligava a máquina, aí chegavam aquelas senhoras para tomar chá e comer waffles. Todo dia era aquilo, todo dia.
Tinha pizza, tinha cheeseburguer, tinha misto, tinha milkshake, essas coisas assim. Tinha algumas qualidades de suco, mas eram poucas. Tinha suco de melão, de laranja, de limão, suco de abacaxi, laranja com cenoura.

P/1 - E quem te ensinou a fazer os waffles, fazer os sucos? Tinha alguém? O dono?

R - Quem me ensinou foi esse rapaz que trabalhava lá, que arrumou a vaga para mim e me ensinou.

P/1 - E foi fácil aprender?
R - Olha, para mim foi fácil. Eu comecei a trabalhar numa segunda-feira e quando foi domingo o rapaz faltou, aí o patrão virou para mim e falou: "Edvaldo, você se vira,

vai ter que fazer tudo." Eu falei: "Eu vou fazer o que eu posso. O que eu puder fazer, eu vou fazer." Aí ficou.
Eu sei que a gente trabalhou… Pegava às onze horas, ia até [as] dez, nove horas. Às vezes esticava mais, ficava até mais tarde, dependia do movimento. Eu trabalhei o tempo todo, ninguém reclamou nada, não voltou nada, e o que pediu, saiu. Aí ele falou assim: "Amanhã, eu sinto muito, mas eu vou despedir o seu amigo." Eu falei: "Poxa, não faz isso, não. Eu gosto tanto dele. E depois eu nem sei andar aqui no Rio ainda. Ele que anda comigo para todo canto." Foi engraçado.

P/1 - (risos)

R - Falei isso para ele, ele riu. Ele falou: "Poxa, mas você tem que aprender a andar. Você vai ficar dependendo do Raimundo para andar para todo canto aí? Daqui a pouco, esperto assim como você é, você já fez tudo aí que tinha que fazer, você já sabe fazer. Você vai aprender rápido.” Mas não tive dificuldade, mesmo. Foi rapidinho, eu aprendi.

P/1 - E você lembra do seu salário? Como você combinou de pagamento, essas coisas? Era fixo? Tinha caixinha?

R - Tinha caixinha. E a caixinha lá era boa, porque trabalhava o primo dele e o patrão. Então a caixinha era assim, para mim e o Raimundo, esse rapaz que trabalhava comigo. A cozinheira trabalhava lá, servia o almoço dela e ia embora. A gente ficava lá, ralando. E nesse domingo que ele não veio, a caixinha estava lá. Depois, quando eu peguei, eu falei: "Hoje é só para mim!" A caixinha estava legal. Eu tinha um armário lá, ia botando dentro do armário. E ele também, ia botando dentro do armário e deixava lá. Quando a gente precisava de algum, ia lá, pegava. Ia deixando lá, não levava para a Casa de Cultura. Só depois, quando a gente se organizou, comprou ______, passou a levar. Aí depois, logo em seguida, abriu uma conta, foi até no Bamerindus. Eu juntava numa semana e botava lá. Mas com aquilo na cabeça, porque eu falava: "Eu vou ter que ir juntando isso aqui para comprar a casa dos meus pais." Fui juntando aquilo, antes de um ano eu comprei.

P/1 - Antes de um ano?

R - É. Eu dei sorte também, porque o meu tio... Eu tenho uma tia que mora há muitos anos nos Estados Unidos. Ele foi viajar para lá -

não sei se ele ficou um ano ou três, acho que foi dois anos. Ele tinha uma casa na rua. Aí ele falou: "Olha, Edvaldo..." Ele trabalhava na [Avenida] Presidente Vargas naquele tempo. "Eu vou vender aquela casa. Eu vou viajar..." Ele tinha separado da mulher. Eu falei: "Poxa, eu poderia até comprar aquela casa, só que eu não tenho dinheiro para comprar agora." Eu falei para ele: "O senhor vende a casa por quanto?" Ele falou: "Olha, eu estou pedindo tanto, mas como é para você, você falou que vai dar para os seus pais, eu vendo por tanto."
Faltava como se fosse hoje uns duzentos ou trezentos reais. Eu falei: "Olha, eu não tenho esse dinheiro, não, mas eu vou falar com o meu cunhado. De repente, ele me empresta." Aí eu falei com o meu cunhado. Ele falou: "Olha, Edvaldo, eu não tenho. Só tenho tanto." Eu falei: "Quer saber de uma coisa? Se ele me arrumar, arrumou; se não me arrumar, também não posso fazer nada. Vou falar é com meu patrão."
Eu falei com ele, ele me arrumou o dinheiro. Voltei no trabalho do meu tio, todo animado. Falei: "Olha, tio, eu posso comprar a sua casa. Eu posso lhe pagar tal dia." "É mesmo?" "Posso sim." Ele falou: "Então está legal." Peguei o dinheiro com o meu cunhado; ele morava em Nova Iguaçu, apanhei com o meu patrão, assinei o vale, aí comprei, entreguei o dinheiro para ele. Eu só fiz escrever para lá, falei para eles que eu tinha comprado a casa, que a casa era deles. Não tinha água ainda, mas com o tempo ia ter. Tinha luz, já. Foi assim.

P/1 - E a sua mãe?

R - Ah, minha mãe ficou toda feliz. A minha mãe, ainda hoje, quando ela fala isso, ela chora. Porque eu sempre falei para ela: "Olha, quando eu crescer..." Porque era uma coisa…. Eu ficava com raiva, porque o cara do lado tinha muita terra. Meu pai tinha... Era dele e não era. Ele tinha herdado um pedaço de terra lá e fez essa casa, mas o cara estava sempre implicando por causa daquela casa. Você vê: o cara tem um mundo de terra, mas ele está implicando com o cara que está ali do lado. Eu ficava pensando assim: "Meu Deus, para que esse cara quer esse pedaço de terra?" Eu ficava pensando comigo: "Para que esse idiota quer esse pedaço de terra? Se ele já tem tanta? Poxa, ele tem espaço até demais, dá que sobra para os animais dele. O que ele vai fazer aqui, com esse pedacinho de terra, meu Deus? Será que as pessoas..."
Isso não é nem o pior. O pior foram outros. Quando eu era garoto eu assisti, com a minha mãe… O cara sempre foi muito rico, de família rica; já veio de muita, mas muita coisa mesmo. Gado, passava assim na pista - pista não, era de barro. Passava uma hora, só gado mesmo. Eu lembro como se fosse hoje. Eu talvez tivesse uns oito ou nove anos.
A gente apanhava água nesse tempo no rio; faz uma cacimba, depois você vai esgotando até aquela água assentar. Fica uma água clarinha, tipo querosene. Aí você pega aquela água, leva para casa e bota em uns potes, para beber. Na época do inverno. Mas [a gente achou]: “Poxa, aqui não está legal, vamos fazer..." Pulamos a cerca desse coroa que tinha… Muito rico mesmo, ele, aí a gente fez uma cacimba lá. A gente começou a apanhar água, eu e a minha mãe. Na terceira viagem que a gente deu, escutamos o cavalo, era o coroa com o cavalo atrás. O coroa chegou e falou assim, até foi educado: "Dona Tereza, por favor." "Oi." Agora não estou conseguindo lembrar o nome dele. Ele falou assim para a minha mãe: "De quem é aquela cacimba que está ali?" Ele tinha uma cuia para encher os potes. já vinha com a cuia na mão. A minha mãe: "É minha." "Essa cuia é sua?" "É." “Então tome sua cuia e leve para casa. Não bote mais os pés na minha terra, senão eu mando lhe prender.“ Aí eu fiquei assim, eu me arrepiei.
Eu quis entender por quê. Perguntei à minha mãe, ela me explicou o porquê: a gente tinha feito a cacimba lá e estava apanhando a água. Eu falei: "Poxa, mas ele é o dono da água?" "Não, filho, ele não é o dono da água, ele é o dono da terra. A água está na terra dele, ele é o dono também." Eu falei: "Mas a água está toda descendo aí no rio. Ele não pode segurar nada. Só porque a gente apanhou essas cabaças de água lá ele vai prender a senhora?" "Não, é porque ele não quer que pisem na terra dele." Eu falei: "Poxa, o que é isso?" Eu fiquei pensando comigo: "Meu Deus do céu! Como a pessoa pode ser tão ruim de uma maneira dessa? Como a pessoa chega num ponto desse?" Às vezes... Eu não voltei mais no Norte, [tem] certas coisas que eu fiquei revoltado. Uma vez aconteceu um lance comigo que, se eu contar, você até chora. Eu nunca falei para o meu pai e nunca tinha falado para a minha mãe, falei depois que eu estava aqui no Rio. Eu saí entalado de raiva, porque eu não conseguia nem falar.

(pausa)

P/1 - Então, você quer contar para a gente aquela história, que você acabou contando lá fora?

R - Conto. Essa história é a seguinte: eu estava na roça com o meu pai. As pessoas da roça almoçam cedo, [às] onze horas, onze e meia, esse horário. Quando era mais ou menos umas dez horas, o meu pai falou assim: "Edvaldo, você tem que passar no armazém do Seu Manuel e pegar farinha; sua mãe falou que não tem farinha. Senão daqui a pouco a gente vai almoçar e não tem farinha." Eu falei: "Está bom."
Eu, da roça, cortei caminho e fui para o armazém, que seria na rua, na cidade. A gente estava na colheita do algodão. Eu saí mais cedo para ir apanhar farinha. O algodão seria exatamente para vender no armazém dele. Aí eu cheguei lá: "Seu Manuel, o meu pai..." Tinha uma conta lá; lá eles anotavam o que queriam, fazia o queriam, depois cobrava. [Quando] ele levava o algodão para vender, eles cobravam lá o que queriam também. "Seu Manuel, meu pai mandou apanhar..." Chama-se uma terça de farinha - cinco litros, seis litros. A gente falava muito isso: terça, medida, uma quarta. "Uma terça de farinha." "Está bom." Colocou a terça de farinha no saco." O saco, que lá chama surrão de palha, ficou… Do lado tinha uma pilha de lata de querosene, que é o gás que a gente usava para botar nas lamparinas.
Levei a farinha. Quando eu cheguei em casa, meu pai já tinha chegado, estava esperando para almoçar. Ele experimentou a farinha, falou: "Edvaldo, você vai ter que trocar a farinha, porque ela está com gosto de gás." Eu falei: "Poxa, pai, eu já andei para lá, já vim para cá, eu vou ter que voltar de novo lá? Vamos comer assim mesmo." "Não, você vai trocar." Para não contradizer o pai, eu fui. Fui com raiva, mas voltei fervendo. Cheguei lá, falei: "Seu Manuel, meu pai mandou trocar a farinha, que está com gosto de gás." Aí ele experimentou a farinha, botou aquele saco para lá, aí me deu outro. "Realmente, está perto do gás mesmo. O surrão de farinha está perto do gás. De repente está passando o cheiro do gás na farinha, a farinha está ficando com gosto." Aí ele veio com o saco de farinha. Falou: "Toma aqui. Vê se quando chegar lá essa está com gosto de merda." Eu olhei para ele e falei: "O senhor deveria falar isso para um homem, não para uma criança."
Botei o saco nas costas e vim embora. Cheguei em casa e falei: "Olha, não por morte... Nem o senhor, nem minha mãe… O que vocês me pediram para fazer no armazém do Seu Manuel, se vocês quiserem qualquer coisa vocês vão lá e peçam, vocês vão lá e compram. Nem com dinheiro, nem sem dinheiro, eu não quero mais ir lá. Se for possível, eu não queria nem mais olhar na cara dele." "Mas o que foi que aconteceu?" "Nada." Eu não quis falar nada, porque o meu pai podia se aborrecer, ir lá, fazer alguma coisa e gerar até uma briga. Eu vim embora e não falei nada para ele. Só que ele sentiu, eu senti que ele mesmo sentiu, porque depois, nas vezes que eu encontrava com ele, eu abaixava a cabeça e não olhava para ele. Ele parava e ficava me olhando. Por exemplo, ele estava vindo, eu estava indo, a gente ia se encontrar. Quando eu o via eu abaixava a cabeça, não olhava para ele.

P/1 - Para o Seu Manuel?

R - É, o Seu Manuel. Eu não olhava mais para ele. Ele vinha me olhando, eu passava e não olhava para ele. E conforme eu passava ele ficava me olhando. Isso ele sentiu, com certeza ele deve ter sentido. Como eu não esqueci, eu acho que ainda hoje ele não esqueceu. Porque eu lembro que... Eu não estou lembrado quando foi. Eu sei que a época desse lugar lá, que botaram a energia, foi em 70. E depois veio a televisão, essas coisas.
Eu lembro que um dia eu estava assistindo televisão na praça pública. Ele estava lá, estava me olhando, mas eu estava desapercebido. Quando eu notei que ele estava ali, eu saí fora e ele continuou me olhando.
Eu vim embora e não falei mais com ele, porque eu acho que ele foi muito grosso. Para ele ser o que ele era, a pessoa tinha um respeito por ele. "Ah, Seu Manuel..." Qualquer coisa era Seu Manuel para cá, Seu Manuel para lá; ele não precisava tratar uma criança da maneira que ele tratou. Se ele não gostasse, falaria para a pessoa que era responsável, que estava comprando aquilo dele, que depois ia pagá-lo.
Acho que as pessoas têm que respeitar todo mundo, mas [com] criança e pessoas de idade, a pessoa tem que ter mais respeito ainda. Eu sou dessa teoria.

P/1 - E esse estabelecimento do Seu Manuel era o que? Era uma venda?

R - Lá ele vendia de tudo. Tinha farinha, feijão, arroz, sabão, querosene. Tinha de quase tudo, vendia de tudo.

P/1 - E vocês vendiam para ele o algodão?

R - E ele vendia para outro. Ele vendia para lá para o lado de Sobral, Itapajé, essas coisas assim. Eram carradas e mais carradas, que todo mundo juntava... Naquela época todo mundo seria sujeito a duas ou três pessoas. Porque você trabalha na terra dele, você só pode vender se for para ele. Se você vender para outro, você vai expulso daquela terra, você não vai mais ficar morando na terra dele. Quer dizer, a gente trabalhava na terra dele e morava na terra dele.

P/1 - Ah, ele era o dono das terras também?

R - Dono das terras. Daqueles coronéis que tem no Norte, Nordeste aí. Aquilo é um atraso, infelizmente é. Aquele negócio que eu falei da cacimba, sempre foram coronéis. Os avôs, os pais, que só veem a parte deles. A teoria deles eu acho que é assim: quanto mais burro, para eles melhor, porque fica mais fácil para dominar. Então é isso que eles pensam. Eu tenho certeza que é isso que se passa na cabeça deles.

P/1 - E aí anotava numa caderneta que vocês pegavam...?

R - Anotava o que a gente pegava...

P/1 - Depois abatia quando entregava o algodão.

R - Depois a pessoa ia lá, vendia o algodão, o feijão, o milho, o arroz, acertava tudo. Às vezes ficava até devendo ainda. Não tinha nem como pagar, ficava devendo para eles. Mas sabendo que era esperteza deles.
Você vê, em 79, teve o negócio do governo lá. Então, lá tinha... Tem um cara que se chama Enoque Mororó, já foi prefeito. O pai dele foi que fez essa grosseria com a minha mãe. Agora que eu lembrei, eles eram da família do Mororó.
Eu lembrei dessa história porque foi ruim, não teve inverno. Naquela época, era o Figueiredo que era o presidente, então ele botou trabalho lá. Por exemplo: "Eu sou dono das terras. Eu tenho tantos hectares de terra, então eu vou juntar o pessoal que trabalha, que mora na minha terra, e arrumar com o governo, para fazer benfeitoria na terra deles." Nesse dia foi fazer a reunião que ele arrumou, através do prefeito ele arrumava. E trazia para botar o pessoal para trabalhar, fazer benfeitoria na terra dele.
Quando começasse a chover, aquele terreno que a gente teria preparado para ele dar para as pessoas trabalharem seria pra gente, que era sujeito a ele. Ele era o dono da terra, ele arrumava o serviço; a gente ia fazer benfeitoria na terra dele, fazer o que interessava para ele. Depois ia fazer o que interessava para a gente, que era trabalhar a terra para, quando começar a chover, a gente trabalhar.
Nesse dia, a gente foi lá, ele tinha arrumado para a gente trabalhar. Ele morava na cidade, isso ficava no campo. "Eu preciso de uma pessoa para apontar os dias de serviço das pessoas. Quem quer ser? Quem quer apontar?" Aí eu olhei assim, falei: "Eu." Eu levantei, ele falou: "Então vem cá. Você sabe ler o nome de todo mundo aqui?" "Sei." Li o nome de todo mundo. "Você sabe como faz? Eu vou lhe explicar." O mês é de trinta [dias], tinha trinta quadriculadozinhos para você fazer um x. Nome de fulano, nome de sicrano. Aí ele me explicou. Ele disse assim: "A pessoa vem trabalhar, você faz um x; a pessoa não veio trabalhar, você não marca um x, porque eu já sei que a pessoa não veio. Não está marcado, é porque não veio, é uma falta." Eu falei: "Está bom." Aí eu pensei: "O meu, eu vou marcar todo dia." (risos) Eu pensei comigo, mas brincando. No início, [durante] uns três ou quatro meses, [quando] as pessoas não vinham eu deixava em branco. As pessoas ainda chegaram a falar: "Ah, por que, Edvaldo? Marca lá para mim." A folha ficava comigo. "Não, vai vir descontado." Eu falei: "Eu não posso, porque senão o cara vai me botar no pesado aí, eu vou perder o meu emprego." Eu ficava marcando, mas ficava mais era assando milho, cozinhando batata, essas coisas; o pessoal é que estava trabalhando, aí muitas vezes a pessoa faltava e eu não marcava.
Uma vez eu tive que ir com ele, porque ele falou assim: "Edvaldo, você vai comigo. Eu vou apanhar o dinheiro no banco, aí amanhã você vem no carro de..." Era amigo dele, eu esqueço o nome... "E já vai vir o pagamento de todo mundo." Eu falei: "Está bom." Aí ele falou que... Aquele ali já vinha tudo descontado do banco, aquela falta não recebia no banco. Quando a gente ia para o banco, ele ia receber; a folha do ponto estava lá em cima, ele ficou conversando com o amigo dele. Eu fui olhar para a folha do ponto - as faltas que tinha, ele tinha preenchido tudinho. Aí eu fiquei com aquilo na cabeça, eu falei: "Eu quero ver se ele vai descontar o pagamento do pessoal." Mas estava tudo preenchido, então quanto mais a pessoa faltasse, para ele era melhor. Porque eu levava lá, deixava a limpo, ele preenchia. Fulano de tal faltou quatro vezes; ele preenchia, mas recebia o dinheiro e embolsava. Aí eu: "Ué, o cara não tem que levar isso aqui faltando? Eu quero ver se ele vai descontar do pessoal." Certo, ele descontava. Descontava e ficava com o dinheiro para ele.
Eu trouxe o pagamento para o pessoal. Depois eu perguntei para o pessoal, eu sabia que fulano de tal tinha tantas faltas, tudo descontado. Na hora, ele não descontou nada, mas ficou o dinheiro com ele. Eu falei: "Ah, então, aqui ninguém mais vai ter falta."

P/1 - (risos)

R - (risos) No primeiro mês, ele falou assim: "Ninguém faltou?" "Ninguém faltou. Todo mundo veio." Aí o segundo mês, ele: "Não é possível." Eu falei: "Não, eu não vou botar falta não, para que? Porque quando chega lá o senhor preenche isso aqui tudinho." Ele falou: "Como é que tu sabe?" Eu falei: "Naquele dia que eu fui no banco com o senhor, o papel estava lá na _______ do carro e eu vi. O senhor recebe lá e fica com o dinheiro e não dá para o pessoal. Isso aqui é do governo, isso não é seu." Ele falou: "Você não está mais, você não vai mais ficar lá." Eu falei: "Eu vou lá na prefeitura. E falo com fulano de tal, peço, vou fazer um escândalo. Vou chamar o pessoal, todo mundo, e vamos lá."
Ainda fiquei até o final, mas ele me tirou e passou para outro. Mas eu falei: "Eu vou faltar. Se vier falta no meu, eu vou lá na prefeitura, vou chamar todo mundo e vou fazer um escândalo." Eu acho que as pessoas deveriam ser assim, mais ‘ditadoras’. Porque se as pessoas fossem assim, não tivessem dado tanto mole para eles... Eles são dessa teoria que eu falei: quanto mais burro, melhor.
Isso para ele foi uma derrota. Eu deveria ter feito aquilo, ter botado alguém da família dele para fazer aquilo. Ele jamais imaginou ou passou pela cabeça dele que eu fosse descobrir aquilo, mas eu descobri, até mesmo sem querer. Peguei o papel, de repente, aí me passou pela cabeça: "Ué, tinha tantas faltas, como é que agora não tem nenhuma?" Preencheu tudo. Aí me veio na ideia: "Então ele recebe, desconta do pessoal e fica com o dinheiro." Foi certo. Não poderia ser outra coisa. Esperto como eles sempre foram.

P/1 - (risos) E aqui, Edvaldo? Depois da Stop 31 você foi trabalhar...?

R - Na [Rua] Maria Quitéria, na Polis Sucos.

P/2 - Aí já foi para a Polis Sucos?

R - Eu saí da Teixeira de Melo, que fica na Praça General Osório, e saí para a Praça Nossa Senhora da Paz. Fica tudo em Ipanema.

P/1 - Já na Polis Sucos?

R - Eu sempre trabalhei em Ipanema. Isso já na Polis Sucos.

P/1 - E porque você saiu de um e foi para o outro?

R - Porque esse rapaz que eu trabalhava com ele comprou uma casa na cidade e estava fazendo obra. Achei que a obra estava demorando, que ia demorar bastante. Logo no início, quando ele comprou essa casa na cidade, ele vendeu para outro. Outro pediu para ficar com ele até enquanto terminasse a obra da cidade, aí depois eu resolvia se ficava com ele ou se voltava a trabalhar com ele na cidade.
Eu fiquei com esse outro lá, mas eu trabalhei com ele só quinze dias, com esse outro que comprou. Porque eu sempre fui um cara ditador, eu gosto da verdade e falo a verdade. Se eu tiver que falar, eu falo. Aí não deu certo para eu ficar com ele. E depois, também, o cara demorou com a obra dele. Eu já tinha arrumado no Polis Sucos, preferi ficar lá, porque é Ipanema.

P/2 - Em que ano foi isso, você sabe? Que você começou a trabalhar na Polis Sucos?

R - Em 80. Não, eu comecei na Polis Sucos em 81. Eu trabalhava lá em 80. Porque não deu certo para ficar com o cara, e o outro eu achei que a obra ia demorar, eu passei na Polis Sucos, perguntei se tinha vaga, o cara disse que tinha.

P/2 - E lá em Ipanema nessa época tinha outras lojas de suco, lanchonete?

R - Tinha. Na mesma Rua Teixeira de Melo, existia o Le Bonjour, na esquina. Eu sempre tomava um suco de maracujá lá, muito bom. Era deles também, do mesmo dono da Polis Sucos. Foram eles que abriram também.

P/1 - Um ia fazer concorrência para o outro?

R - Não, porque é o mesmo dono, a mesma firma. Não seria tão concorrência.

P/1 - E me fala, Edvaldo, como era o bairro de Ipanema, quando você começou lá na Polis Sucos?

R - Acho que Ipanema não mudou tanto assim, não. Eu não acho que tenha mudado tanto. Por exemplo, quando eu comecei a trabalhar na Polis Sucos… Lá existem dois prédios: um se chama Quartier, o outro se chama Fórum. Eles estavam em construção ainda. O Fórum deveria ter mais ou menos, acho que estava no terceiro ou quarto andar. São prédios de quatorze andares. E o Quartier também, tem quatorze ou quinze. Estava tudo em construção. O Quartier estava um pouco mais alto. Ali em frente, funcionava um monte de... Nessa época eu não estava na Polis Sucos, mas eu trabalhava na General Osório, então eu andava ali, eu sabia. Tinha a Jelly, tinha um cinema, tinha um monte de casarão. Pega de uma esquina para a outra, aí juntaram tudo, compraram e fizeram...

P/2 - Que lojas tinha nessa época? Você lembra?

R - Ah, nessa época... tinha tanta loja ali que ficou bastante tempo. Tinha Dijon, tinha a Dimpus, que ficou muitos anos ali. A Dimpus ainda existe, só que ela era de frente para o Polis Sucos. Ela ficou bastante tempo, mudou agora há pouco tempo. Depois surgiram muitas lojas, a Company. E tinha, na época do Sargentelli…. Ali já foi uma porrada de coisas. Foi oba-oba, depois farmácia, agora é farmácia lá de novo. Já foi várias coisas lá. Mas na época do Sargentelli, daquelas morenas dele, eles iam para o Polis Sucos, aquele monte. Aquela Dona... Eu esqueci o nome dela, aquela que trabalhou no “Clone”... Que ela tinha um bar, ela dizia: "Não é brinquedo, não!" Eu esqueço o nome dela. Era Dona Jura?

P/1 - Na novela era Dona Jura.

R - Eu não sei o nome dela. Ela é do Maranhão, mas eu não sei o nome dela na vida real. E aquelas morenas do Sargentelli, que iam muito lá. Teve aquela boate Hippopotamus, que funcionou muito tempo lá. O Hippopotamus deve ter o que? Uns quatro ou cinco anos que acabou. Era uma boate muito famosa, inclusive teve muitas novelas que eles gravaram lá.
Na época da Fórmula 1, que era aqui no Autódromo de Jacarepaguá, então aquele pessoal das equipes, da Ferrari, da Benneton, muita gente deles ia tomar suco lá. Aí a gente escutava os comentários deles, do pessoal da Ferrari, da Benneton, que estavam lá na Hippopotamus; ficava só carrão bacana ali em volta da Praça Nossa Senhora da Paz.
É uma coisa que… Você trabalha naquela esquina. Se você gosta de observar as coisas e gosta das coisas boas, isso é uma coisa que prende você. Porque ali é uma vitrine: você fica meia hora, vinte minutos ali, tem aquelas academias, aqueles hotéis. Só tem hotel... Tem o Everest, o Ipanema Tower, o Caesar Park, que ficam na mesma rua, ali na esquina. Então ali passam muitas pessoas, muita gente famosa mesmo. Muitas mulheres bonitas, muita gente jovem, muita gente bacana, que passa ali, que você vê. Poxa, você vem assim, do nada, e de repente está no meio daquelas pessoas ali. É interessante, não é? Você ver pela televisão... Eu nunca imaginei que viesse aqui para o Rio e fosse ver essas pessoas, conviver ali com aquelas pessoas, atender.

P/1 - Quem você já atendeu famoso? Teve alguém?

R - Quase toda hora tem gente famosa lá. O Raul Cortez é uma pessoa que vai lá, uma pessoa simples, que conversa, cumprimenta as pessoas. O Taumaturgo Ferreira. São tantas pessoas que se você falar... Por exemplo, aquele pessoal do Paralamas do Sucesso, eles ficavam, ali conversando. O Sérgio Malandro, o Wagner Montes -

o dia [em] que ele quebrou a perna, ele estava ali no Polis Sucos, estava ali comendo cheeseburguer, tomando suco de morango e conversando, falando essas coisas de artista, esses assuntos que eles conversam quando se encontram. Estava conversando ali. De repente, o Wagner pegou a moto dele, saiu, deu a volta, teve uma batida para lá. Daqui a pouco vieram: "Pô, o Wagner Montes quebrou a perna ali!" Tem até o poste lá ainda, sempre que eu passo eu lembro.
O Bruno, aquele rapaz do Biquini Cavadão, morou ali ao lado, o pessoal do Paralamas do Sucesso morava na [Rua] Maria Quitéria, do lado. O Renato Russo morava na Maria Quitéria, 201. Ele vinha muito lá. O Cazuza, o Léo Jaime, até antes dele gravar. O Ritchie, a esposa dele tem uma loja bem em frente - o Ritchie, aquele da “Menina Veneno”.
Eu conheci o Ritchie antes dele gravar. Quando ele gravou, que apareceu na televisão, eu disse: "Ah, eu já conheço esse rapaz faz muito tempo." Parece que surgiu com a “Menina Veneno”, fazendo sucesso. Ainda não tinha essa loja da mulher dele lá, mas ele já vinha. Eu acho que ele fazia faculdade na [Universidade] Cândido Mendes, ali do lado - ou dava aula, acho que ele é professor, uma coisa assim. Então ele vinha muito lá. De manhã ele comia queijo quente, tomava suco sempre, de manhã.
Então tem muita coisa, muito artista que já frequentou lá. Lima Duarte, gente famosa da Globo. Por exemplo, esse cara, o Zeca Camargo, é uma pessoa que vai sempre, vai muito lá. Ele, o Carlos Dornelles, aquele repórter, também. São muitas pessoas da Globo que vão lá.

P/1 - Eles lhe chamam pelo nome? Eles lhe conhecem?

R - Não, pelo nome não. Eles me conhecem, mas não sabem meu nome.

P/1 - Você tem algum apelido?

R - O meu apelido é americano, só os americanos que me chamam por esse apelido. Digamos que a Polis Sucos é uma casa que de novembro, dezembro, janeiro, até o carnaval, é uma casa internacional. É sério. E o meu apelido lá é Snap. Você não viu na caixinha lá aquele dia?

P/1 - É.

R - Na caixinha não fui eu, foram os turistas que pediram para fazer isso.

P/1 - Snap?

R - É, Snap. Aí os gringos me chamam: "Ô, Snap!" No carnaval, eu saí com eles por aí. Eu, às vezes, pego quatro, cinco, e vamos para o Salgueiro, vamos para a Mangueira, vamos para a Beija-Flor de Nilópolis. É legal, são umas pessoas...
Eu acho que a melhor propaganda é aquela de boca a boca. Eu fui com um, aí ele vai indicando: "Olha, você chega lá no Rio, na Maria Quitéria, no Polis Sucos, tem o Snap, uma pessoa assim, assim. Não se preocupe, você vai para onde você quiser, você fala com ele que ele vai lhe levar e vai deixar você no hotel, sem problema." Isso funciona muito.

P/1 - É um serviço que você faz fora do Polis Sucos, é isso?

R - Isso é independente do serviço do Polis Sucos.

P/1 - Olha, você tem um negócio então? Você pega o carro, leva a pessoa?

R - Não, nós vamos de táxi. A gente apanha um táxi e vai.

P/1 - Ah!

P/1 - Você vai de guia, né?

R - Eu vou como um guia. Por exemplo, a primeira vez que eu conheci... Ele é roteirista de filme, de Hollywood esse cara, é um cara importante. Inclusive o pessoal da Buttman o chamou para fazer um trabalho agora. E fui eu que apresentei o Buttman para ele, para esse roteirista. Ele é francês, mas ele é roteirista... As histórias dele são boas. Eu o apresentei para o Buttman, e o Buttman

o chamou para trabalhar com ele, porque ele é bom de história.
[Quando] eu o conheci, na Polis Sucos, conversando com ele... As pessoas não sabem falar português - sabem falar, às vezes, um pouco de espanhol. Às vezes não sabem falar direito, misturam tudo. Só que às vezes as pessoas sabem um pouquinho, aí já ajuda. A primeira vez que eu o levei para o Salgueiro, eu senti que ele foi preocupado, mas depois eu voltei, o deixei lá no hotel de novo, pronto. Aí ele fez a propaganda. Agora, no final do ano, muitos deles já procuraram para ir para o Salgueiro, para a Mangueira, para a Beija-Flor de Nilópolis...

P/1 - Eles querem sempre escola de samba?

R - Eles gostam muito, adoram escola de samba. Salgueiro, então, eu sou salgueirense, todos viram salgueirenses. Sou botafoguense, todos são botafoguenses.

P/1 - (risos) Já levou algum no Maracanã em dia de jogo?

R - Eu não sou muito chegado ao Maracanã, eu não gosto muito de ir ao Maracanã. Duas vezes eu fui ao Maracanã. Eu fico imaginando como seria ver um jogo Flamengo e Vasco, aquilo deve ser uma idiotice total, uma loucura. Porque Botafogo e outro time aí, até lá de fora, Juventude… O outro foi Botafogo e Vasco. Poxa, o que eles fazem, não dá para você frequentar. Para mim não dá. Porque eu acho um absurdo, eu acho aquilo um absurdo, as pessoas não têm... Não é porque eu estou no Maracanã que eu vou fazer um monte de besteira. Mijar em saco e jogar na cabeça dos outros, jogar laranja na cabeça dos outros. Isso, para mim… Eu jamais faço uma coisa dessa com uma pessoa. Eu considero pessoas dessas como uns animais. Não é possível. A pessoa tem que ser muito idiota, muito imbecil, para pegar um saco, mijar dentro do saco e atirar para a multidão. Tem que ser muito idiota e muito imbecil para fazer uma coisa dessas. Para mim não dá.

P/1 - Edvaldo, me tira uma dúvida. Nessa época do pessoal da Hippopotamus, era turma da noite, varava a noite trabalhando? A Polis Sucos também?

R - Eu trabalhava até três horas da manhã na Polis Sucos.

P/1 - Ah, então o pessoal saía da Hipppotamus e passava ali?

R - Passava e tomava suco lá. Às vezes as pessoas iam para a festa, voltavam da festa e a gente trabalhando na Polis Sucos. Passavam ali para comer na Polis Sucos. Nessa época funcionava até às três horas da manhã. A gente pegava de quatro às três da manhã.

P/1 - Eram duas turmas?

R - É, dois turnos. Um de manhã, das sete às quatro, outro das quatro... Mas até às três da manhã, só sexta e sábado. Domingos, de quinta e domingo, [até] uma hora da manhã. Eu trabalhei [por] doze anos fazendo esse horário.

P/1 - E agora você mudou o horário?

R - Eu mudei o horário, vai fazer cinco anos que eu mudei.

P/2 - Qual é o que você está?

R - Eu estou de sete... Não, o meu horário mesmo é das oito às quatro.

P/1 - E qual você gosta mais?

R - Trabalhar de dia é bem melhor. À noite é muito desgastante. E na condução também, você vem nessa madrugada. Graças a Deus que comigo... Eu posso ser um cara que pode dizer... Eu só fui assaltado dentro da Polis Sucos, mas na rua mesmo, graças a Deus, comigo não aconteceu nada. Porque na Polis Sucos, quando eu estava lá, uma vez assaltaram, levaram meu relógio. Mas na rua, graças a Deus, nunca aconteceu nada comigo. Já teve até assalto em ônibus, mas não chegaram a mexer comigo. Acho que olharam para mim: "Essa cara de pobre aí, não tem nada mesmo." (risos)

P/1 - Edvaldo, você está lá desde 81, né? Eu não conheço, então explique para mim, a fachada sempre foi a mesma? Descreva para mim como é o interior da loja.
R - A fachada do Polis Sucos...

P/2 - Ela fica numa esquina?

R - É numa esquina. Pega a [Rua] Maria Quitéria, com a

[Rua] Visconde de Pirajá. Ele é mesmo na Maria Quitéria, mas pega mais a Visconde de Pirajá. O Polis Sucos tinha uma fachada assim, coisa pouca, pequena. Só em 85 que fizeram uma reforma geral no Polis Sucos, desmancharam tudo e fizeram tudo novo. Em 85, era a casa mais moderna do Rio de Janeiro, com madeira, que nem você viu lá. Fazia gosto. Todo mundo chegava lá: "Olha, que chique." O Polis Sucos já era famoso.

P/2 - Você sabe que ano ela foi criada?

R - O Polis Sucos?

P/2 - É.

R - Em 72 ou 71, um negócio assim. O Polis Sucos tem 32 anos, é só fazer as contas. Em 85, o Polis Sucos era mais ou menos, aí em 85 fizeram uma obra. Agora está até precisando fazer de novo. Ele fez uma obra, desmanchou tudo, botou tudo abaixo e fez tudo novo, tudo zerado. Aí todo mundo: "Poxa, o Polis Sucos ficou muito bacana."
O Polis Sucos já... Naquela época, em 85, já começou a surgir muito gringo, muito turista, como eu falei para você. O Polis Sucos, nesse período que eu falei, novembro, dezembro, janeiro, até o carnaval, é uma casa internacional.
Tem uma pessoa - não, duas pessoas que estavam lá na Inglaterra, a BBC da Inglaterra fez um comercial lá no Polis Sucos. E eu servi a pessoa. Era o comercial do guaraná, o guaraná xarope, com água, e o guaraná em pó. Eu esqueci o nome dessa pessoa, e um artista lá, ele é escurinho. Mas foi da BBC da Inglaterra. E ele foi várias vezes, eu já estava até de saco cheio daquilo. Pede o guaraná, serve, não serve, serve, não serve.
Depois, essas duas pessoas que estavam na Inglaterra: "Pô, legal, vi você na televisão lá na Inglaterra, ficou legal." Aí quando eu vi, eu falei: "Olha, esse aqui eu conheço, é amigo meu lá da Polis Sucos. Eu o conheço há bastante tempo.” Ela até falou: "Puxa, às vezes...", porque ela também fica no meio dos artistas... "É normal você ver, por exemplo, uma pessoa de televisão, você conhecer… Você vê uma pessoa, um ator, uma atriz, um artista, um cantor, da televisão, é normal você ver e conhecer. Porque é pessoa de televisão. E você não. Você é bastante conhecido e você não é de televisão." Ela falando comigo. "Pois é, está vendo? Eu já estou até na Inglaterra!" Ela falou: "Pois é, eu achei legal aquilo. Me bateu uma vontade de tomar um suco!" Eu falei: "Por que você não ligou, que eu levava para você lá?"

P/1 - (risos)

R - Então eu vou me destacando assim, fazendo as minhas amizades com o pessoal. Eu procuro tratar as pessoas bem. Na hora de eu falar, eu tenho aquele cuidado para não ter que machucar. Mesmo assim, tem umas pessoas que aparecem ali, que acho que não vai com... Acho que não gosta da pessoa, mas também eu procuro muito… A pessoa fala uma coisa, eu fico na minha.
Hoje teve um cara lá, o cara pediu um suco de laranja. Ele estava com uma senhora, estava conversando. Eu estava falando não sei o que com a freguesa, ele falou assim: "Olha o mamão com laranja lá! Vamos conversar, mas vamos se ligar. Lá na minha loja, só de manhã a gente vende 3.800 cafés. Só na parte da manhã." Eu falei: "É muito pouco. Aqui a gente vende 4 mil sucos de manhã." Aí ele ficou assim, já levou na brincadeira. Eu senti que, quando ele falou, ele falou porque tinha pedido o suco [e] eu estava conversando com outra pessoa, de outra coisa.
Ele falou isso, pensou que eu ia me aborrecer. Ele falou 3.800 cafés. Não existe esse lugar, que só na parte da manhã vende 3.800 cafés. O que é isso? Aí depois ele falou: "Desculpa aí a brincadeira." Eu falei: "Não, tudo bem. A gente leva a vida brincando."

P/1 - (risos)

R - Acho que não tem porque o cara sair dali, né? Se é a primeira vez que ele entrou, nunca tinha visto ele lá.

P/1 - O que você mais gosta de fazer lá na Polis Sucos?

R - Para falar a verdade, na Polis Sucos eu sei fazer de tudo. O que eu for fazer, eu faço. Mas eu sempre fui do balcão, eu sempre trabalhei no balcão.

P/1 - Mas você gosta mais [de fazer] sanduíche, mais [de fazer] suco?

R - Eu gosto mais das frutas, eu acho o maior barato as frutas. Acho legal a pessoa tomar um suco, se alimentar com fruta. Porque eu acho até que a pessoa, numa selva, se você ficar perdido numa mata, na Amazônia, essas coisas, você vive bastante tempo só com fruta. Eu acho frutas muito legal.

P/1 - Tem alguma que você gosta mais?

R - Fruta do conde. Com certeza, é um dos melhores sucos que tem. Principalmente se for na Polis Sucos.

P/1 e P/2 - (risos)

R - Não estou fazendo comercial da Polis Sucos. Outro dia desses, eu estava numa casa de suco no Leblon. A moça pediu pediu suco de fruta do conde. Você fazia assim… Eu não mostrei para você aquele dia que você foi lá, mas se quiser eu mostro para você. Ela fazia assim com o copo, parecia uma água. Aí eu falei: "Se a senhora quiser tomar um suco de conde, vai lá no Polis Sucos e toma o suco de conde para a senhor ver. A senhora não vai tomar um suco, [vai tomar] um creme de conde." Porque realmente é mesmo.
É como eu falei para você: o Polis Sucos mantém esse padrão deles desde que começaram. As frutas deles são selecionadas, são muito boas. Eu mesmo já fiquei bastante tempo comprando fruta no mercado e trazendo para lá. Eu quero fruta boa, não importa o preço. O preço a gente coloca lá na tabela. É coisa boa, então quem quer comer coisa boa tem que pagar o preço. A mercadoria dele, o queijo, o presunto, o filé, são de primeira, você pode comer sem medo. E também porque sai muito. Não tem como chegar lá e pedir: "Eu vou comer esse, assim..." Não tem esse problema, principalmente no verão. Você pode dizer: "Poxa, você deve estragar muita fruta aqui." Não estraga, não. Não sei se vocês... Quem é daqui deve lembrar. Você é do Rio mesmo?

P/2 - Sou.

R - O dia que o Sting fez um show no Maracanã. Você lembra? Nesse dia do show do Sting, ela viu como fica a pilha de fruta. Nós não deixamos uma fruta em cima daquele balcão, usamos tudo. Ainda tiramos aquelas pilhas, aquela decoração que fica assim, aquilo chama muito a atenção.
[Quando] o turista passa, ele é louco por essas frutas aqui do Brasil. Ele passa, vê aqui, já corre. Aquilo chama a atenção, é uma coisa bem bolada. Na época que tem morango mesmo, na época do verão, que tem essas frutas todas legais, pêssego, fica tudo muito bonito. Dá gosto você passar. “Vou tirar uma foto ali”, porque realmente chama a atenção. Naquilo você vai tomar um suco, um suco já chama um sanduíche, uma coisa.

P/1 - São vocês que arrumam as frutas?

R - Quem arruma tudo sou eu. Eu arrumo todo dia. Um dia sim, um dia não. As frutas mais... Morango, pêssego, caqui, à noite o rapaz tira, põe na geladeira. Aí quando eu chego de manhã, eu vejo o que tem ali que dá para ficar para o outro dia, aí deixo, coloco as que chegam. E aquela dá para começar a trabalhar.

P/1 - E essas que não precisam ir para a geladeira, como você sabe qual precisa ser usada antes, vamos dizer assim? Eu sempre fico meio curiosa.

R - As frutas de pele… Tem as frutas de pele - morango, caqui, pêssego -, você vê logo que aquela você precisa usar na frente das outras. E o mamão também, você percebe, à vista você vê… Você percebe que aquele está mais maduro, então aquele tem que ser consumido primeiro. O melão, você aperta o fundo dele assim, você vê que ele está bastante mole, então você vai usar aquele melão primeiro. O outro está duro, pode ficar na exposição ali. O melão aguenta bastantes dias, cinco dias, seis, sete dias, dependendo de como ele vem do mercado. O melão aguenta muito.

P/2 - E tem funcionário da Polis Sucos que fica só lá dentro preparando o suco?

R - Tem dois que ficam só para descascar fruta. A fruta do conde é uma fruta boa, mas dá bastante trabalho. Os caras ficam com a cabeça quente na época do conde, porque tem que separar aqueles caroços, é uma trabalheira danada. Ela compensa sendo muito boa, ela compensa aquele trabalho.
As pessoas falam: "Poxa, eu não consigo fazer suco de fruta do conde." Eu falo: "Ah, você vai ter um trabalho danado, tirar tudo quanto é caroço. Vem no Polis Sucos, que já está tudo tirado."

P/1 - (risos) Edvaldo, você falou aquela hora brincando, né? "Se bobear eu levo para você em Londres." Vocês trabalham com entrega de produto?

R - De suco e sanduíche.

P/2 - Entrega em casa?

R - Entrega em casa, só em Ipanema.

P/2 - E a loja tem propaganda? Vocês fazem promoções, como é?

R - Não, essa loja existe há bastante tempo, mas meus patrões, em matéria de marketing, não estão com nada. Eu acho que eles não entendem. Eu acho até que o Polis Sucos seria um nome que era para mandar em suco aqui no Rio de Janeiro. Se fosse na mão de uma pessoa que entendesse das coisas mesmo, era para mandar no Rio de Janeiro, ter loja para todo... Se bobear, até para fora. Mas eles não, eles são pessoas pacatas.
Esse só resiste porque o ponto é realmente muito bom. Tem comerciante que chega a ser tão bom que ele pode até ficar em cima de uma árvore que ele vai chamar os fregueses. Ali não, ali é o contrário, eles dão sorte porque o ponto é muito bom. Ali, você vê, tem shopping, o Quartier, que eu falei, o Fórum, e vários hotéis ali em volta, que são hotéis chiques: Ipanema Tower, Everest Rio, Caesar Park, Sol Ipanema, Mar Ipanema, tudo ali. Você imaginou no verão, aquilo ali fica lotado de pessoas de fora. As pessoas de fora passam ali e veem aquela exposição de fruta, eles veem lá: "Ah, o Polis Sucos". Alguém já falou. E as pessoas vão falando de uma para outra. Tem muita gente que às vezes passa, aí pega o papel, olha assim, vai lá: "Aqui mesmo." Turista, gringo. Acho que o Polis Sucos já atendeu todo tipo de nação do mundo, eu acho que sim.

P/1 - E tem algum suco, alguma vitamina que é a mais procurada, é famosa?

R - Esse açaí é muito procurado. Açaí, acerola. Suco sai, todos os sucos são muito bons, mas o que arrebenta mesmo é a laranja. É a laranja que manda em tudo.

P/1 - Ah, é?

R - A laranja é o principal, porque ela combina com todas as frutas. Sai mamão com laranja, abacaxi com laranja, melão com laranja, banana com laranja, laranja com cenoura, laranja com beterraba, abacate com laranja. Qualquer coisa que você botar com laranja, ela vai dar um gosto, vai ficar legal. Se você fizer uma salada de fruta e não ter laranja, não está legal. Pode ver isso. Você faz uma salada de fruta, faltou a laranja, não está legal. Ela dá aquele toque que falta, a laranja.
Imagina você chegar numa casa de suco: "Me dá um suco de laranja." "Não tem laranja." Isso não é casa de suco, porque é muita laranja que sai. E a laranja é uma fruta... Às vezes as pessoas falam assim: "Ah, laranja...?" Mas laranja é muito boa. Você vê, quando você vai disputar uma maratona, sempre o cara vai levando uma laranja. Daqui a pouco ele começa a secar, mete a laranja aqui no lábio. É uma fruta muito... Eu considero a laranja a rainha das frutas. Pensando bem, todo mundo conhece laranja. Existem muitas frutas que as pessoas não conhecem. "Que fruta é essa?" Nunca vi ninguém chegar lá e dizer: "Que fruta é essa?" com a laranja. Todo mundo conhece a laranja.

P/1 - É verdade. (risos)

R - Bota uma graviola lá, um cupuaçu, como a gente falou. Bota um cupuaçu lá: "Que fruta é essa?" Aí chega outro daqui a pouco: "Que fruta é essa?" Com a laranja, nesse tempo todo eu nunca ouvi alguém chegar e falar "Que fruta é essa?" A laranja é respeitada. Todo mundo conhece.

P/1 - (risos) E sanduíche? Tem algum que é mais famoso?

R - Sanduíche de filé, de peito de frango. [São] muito bons os sanduíches deles. Filé mignon - desde o início, que eles abriram, sempre trabalharam com filé mignon. E é filé mignon mesmo. Você sabe muito bem o que é filé mignon, vem aquelas peças inteiras. Chega o filé, ele vai afinando para os dois lados. Então aquela parte aqui corta, aquela outra corta, fica aquela parte mesmo, legal, e aquela parte que corta para cá e a outra para cá é para fazer os hambúrgueres, para fazer os hambúrgueres.
As pessoas falam assim: "Poxa, esses hambúrgueres são feitos aqui?" São feitos aqui, porque você compra as peças de filé inteiras. Aí, daquela parte ali, a gente faz ensopado, come também, e faz hambúrgueres também. E os hambúrgueres são muito bem feitos. Quer dizer, hambúrguer de filé. Se você falar para as pessoas, muitas vezes a pessoa come o hambúrguer: "Poxa, muito bom, hein? É feito aqui? Que carne?" "Filé mignon." "Filé mignon?" Aí você vai explicar para a pessoa, ele vai entender porque é de filé mignon. Você vai comprar uma parte de filé inteira. Você corta aqui aquela parte, corta aquela outra; você não vai jogar fora, você tem que fazer alguma coisa, então faz o hambúrguer.
Peito de frango também, a gente compra aquelas peças de peito de frango inteiro. Do peito de frango dá para fazer dois bifes, só que tem aquelas partes que sobra. Aquelas partes a gente tira e usa para fazer a salada de galinha. É uma salada de galinha de primeira. Não é uma salada de galinha, é uma salada de peito de frango. Fica muito bom você comer assim.

P/2 - E tem sanduíche natural?

R - Tem sanduíche natural.

P/2 - Desde o início ou isso foi há pouco tempo?

R - Não. No início, antes de fazer a obra, tinha um natural lá que chamava vegetariano, mas era coisa boba. Era só uma salada de alface e tomate no pão integral.

P/1 - Alface e tomate?

R - É, só isso. Depois, quando reabriu, aí é que veio o vegetariano com queijo, vegetariano com ricota, essas coisas. E outros sanduíches mais que a gente colocou lá.

P/1 - Aumentou a procura por coisas diet, que não engordam? Tem mais procura agora?

R - Ah, sim, de um certo tempo para cá tem. Antigamente a pessoa... Ninguém chegava procurando coisa de vegetariano, nem diet, com adoçante. Era açúcar mesmo. Agora, o pessoal está mais com esse negócio de diet, light, muita procura disso. Antigamente não, as pessoas não procuravam tanto esse negócio. Procuravam... O pessoal dali, a gente faz o suco lá assim: todos os sucos saem sem açúcar, porque se você quiser açúcar, pode até mandar voltar, bater e colocar açúcar. Se você coloca açúcar [e o freguês disser]: "Ah, não tomo açúcar", não tem como tirar. Assim não, já está sem açúcar; quer açúcar, coloca o açúcar. Já fica mais prático.

P/2 - Antigamente vocês faziam tudo com açúcar?

R - Antigamente, ia botando açúcar, ninguém falava nada. Aí, quando surgiu esse negócio de "eu não tomo açúcar, não quero açúcar", resolvemos fazer os sucos todos sem açúcar, porque não tem esse problema. A pessoa chega lá: "Ah, eu queria sem açúcar." Mas já experimentou o suco. O que você vai fazer? Joga fora, vai para a pia. E assim não. "Está sem açúcar?" Manda colocar açúcar.
Já sai tudo sem açúcar. Se você não toma açúcar, coloca adoçante. Ou você quer açúcar, o que é muito difícil. Tem um cara lá que ele é bom - o cara já tem experiência também -, ele olha e diz assim: "Aquele ali quer açúcar." Já vai no açúcar. Geralmente, as pessoas que trabalham em obras, essas coisas assim, geralmente eles pedem um suco, mas querem açúcar. "Sem açúcar?" O cara já é tão experiente que ele já sabe. Então quando essas pessoas chegam, você dá uma sacada e coloca açúcar logo, porque com certeza eles vão querer açúcar. Ele não erra, é certo. Agora o resto não, o resto pode vir sem açúcar.

P/1 - Edvaldo, e você tem alguma história engraçada com cliente, algum causo para contar para a gente?

R - Eu tenho. (risos) Eu tenho duas histórias engraçadas, que já aconteceram comigo lá no balcão mas, por eu ser uma pessoa pacífica, eu não me estressei, a pessoa também viu que estava errada e reconheceu. Porque burro é aquele que insiste na burrice.
Uma vez aconteceu um lance comigo. Um senhor estava comendo uma salada de fruta e um sanduíche de filé. Ele ainda hoje vai lá na casa. Aí chegou um casal de espanhol, ficou aqui do lado dele e pediu. Nisso ele já auxiliou o casal, pediu.

E eles conversando, o cara pediu um sanduíche e um suco, para ele, a mulher dele. Ele comendo a salada de fruta ali e conversando com o cara. Depois, no final... Ele continuou ali, foi comendo devagar, estava mais conversando com os espanhóis. No final, na hora de pagar, o espanhol pediu a conta. Fiz a conta dele, ele me deu o dinheiro, eu levei lá no caixa e trouxe o troco para ele. Paguei lá no caixa, trouxe o troco e entreguei a ele. "Obrigado."
O espanhol pegou o que fosse hoje cinco reais para me dar de gorjeta, aí o senhor que estava comendo do lado virou para ele e falou que não precisava não, que era muito. Ele botou o dinheiro na carteira e me deu como se fosse um real ou 50 centavos - nessa época não era esse dinheiro de agora. Não falei nada, fiquei na minha.
Os espanhóis foram embora, eu dei tchau para eles. Aí eu fiquei bolando a minha versão. Falei: "Já sei, tudo bem." Ele pediu a conta dele. Fiz a conta dele, levei lá no caixa, paguei, falei "Obrigado, e mais uma vez obrigado pela força que o senhor me deu na gorjeta que o gringo ia me dar.” Ele se aborreceu. "É por isso que o turista não vem para cá. Porque é o garçom, é a puta, é isso, é aquilo. Todo mundo quer roubar o turista." Eu falei: "E o senhor já falou demais, o senhor já falou bastante. Eu não quis roubá-lo. Ele quis me dar porque ele foi bem atendido e gostou. Ele quis me dar, o senhor teve a boa vontade de me atrapalhar. Mas tudo bem, eu não estou brigando com o senhor. O senhor dizer que o garçom e as putas os roubam? O senhor insinuou que eu estava roubando o cara e eu não o roubei. O senhor viu e pode conferir na tabela, o preço que eu cobrei foi x. Pode conferir na tabela, ele comeu isso e isso." Aí ele foi embora.
Nessa hora eu entrei e fui jantar. O rapaz que estava lá trabalhando comigo daqui a pouco me chamou: "Edvaldo!" "O que foi?" "Edvaldo, vem cá." Esse senhor [estava] me chamando. "Edvaldo, vem cá. Ô, rapaz, eu queria que você me perdoasse, me desculpasse. Quanto que o rapaz, o gringo, estava lhe dando?" Eu falei: "Estava me dando..." Era cinco, eu me lembro que era cinco, mas não sei se era cruzeiro, o que era. Era dinheiro de... Faz tempo, deve ter uns dez anos. Aí eu falei: "Não, não precisa." "Se você não aceitar, eu não sei nem como eu vou dormir. Porque você não falou nada comigo. Você me agradeceu." Eu falei: "É verdade." "Então, para eu não ficar com essa consciência, aceita. Bota lá na caixinha." Botou lá na caixinha.
Às vezes, [quando] as pessoas falam alguma coisa, é pior do que você dar uma porrada na pessoa. Porque ele sentiu na pele o que ele tinha feito, que não era certo.
Lá tinha um rapaz, eu esqueci o nome dele… Eu sei que o nome dele é Marcelo. Ele se dava muito com o Sérgio Malandro, ficava conversando com o Sérgio Malandro.
Essa já é outra história. Esses eram americanos. Ele estava lá com a namorada dele, aí o casal chegou: "Do you speak English?" para mim. Aí o cara riu. Disse para eles que eu não falava nem o português correto. Eu não falei nada, fiquei na minha. A namorada dele o cutucou assim, eu fiquei na minha, só observando. O senhor, o americano, escolheu o sanduíche, falando com ele. Perguntou o que era isso: "Filé? Steak and egg, steak and bacon, steak and cheese”, eu na minha, só escutando. Ele pediu dois sanduíches: “steak and cheese, tomato and egg, two”. Aí eu me virei e pedi. Pediu dois sucos de morango, pediu para ele em inglês. Tudo bem, eu me virei e pedi.
Ele conversando aqui com o cara, e o rapaz já estava fazendo lá, eu atendendo os outros fregueses e já tinha pedido. Aí ele: "Vem cá." Eu falei: "O que foi?" "Esse rapaz quer dois sanduíches assim e assim." Eu falei: "Thank you, my friend, já está saindo todo lá. Eu não perguntei nada para você. Muito obrigada pela força aí que você está me dando." Nisso, o rapaz já botou aqui em cima os dois sucos, eu já botei os dois sucos e os dois sanduíches. Ele falou: "Rapaz, eu estou querendo te ajudar." Eu falei: "Para que? Está aqui, olha. Filé com queijo, bacon e salada, que ele pediu, não é isso? E dois sucos de morango. Não está aqui? Você falou para ele que eu não falo nem o português correto. Não foi isso que você falou para ele?" Ele falou: "Como é que tu entendeu?" Eu falei: "Tenho meus macetes. Mas o que você falou para ele é verdade. É verdade, porque eu sou de uma família pobre. Não tive condições de estudar, muito menos de fazer uma faculdade. Se eu tivesse feito, eu não faria esse papel que você fez, não."
Eu o matei de raiva na frente dos outros. Ele ficou branco. Ele não teve mais como falar nada, porque eu cortei logo, o matei de raiva. Mas não falei nada com ele, só falei a verdade. Falei: "Quando a gente fala a verdade, dói." E continuei trabalhando normalmente, alegre, numa boa. O cara perguntou quanto era a conta, eu falei a conta para ele em inglês. O cara me deu a gorjeta, eu agradeci em inglês. "Thank you, my friend. Come back soon.” “Volte sempre." Eu o ele de raiva, ele ficou sem saber o que falar.

P/1 - (risos) E como você aprendeu inglês?

R - Eu aprendi lá no balcão. O básico, algumas coisas. Sobre fruta e sobre o que eu trabalho. Outras coisas, eu entendo pouca coisa. Mas você trabalha com tanto... Eu falo para você, é uma casa internacional, durante esse período. Então é uma coisa normal a pessoa chegar lá, me pedir um suco, um sanduíche. Se falar inglês, eu vou entender.
Eu acho que a pessoa que está do lado, se quiser ajudar, ajuda, mas atrapalhar não. Acho que a pessoa tem que respeitar as pessoas que estão trabalhando, que é o que eu faço, eu respeito. Não importa qual é o tipo de serviço que você está fazendo, eu acho que você merece aquele respeito. As pessoas têm que respeitar, porque você já imaginou se... 50 ou 60% das pessoas do mundo fossem assim, seria bem melhor. Com certeza seria bem diferente.

P/1 - Edvaldo, a gente está finalizando. Deixe eu só fazer umas perguntas. No que você gostaria que os seus filhos trabalhassem? Você falou no começo da entrevista que gostaria que eles estudassem. O que você gostaria que eles... Que profissão você gostaria que eles exercessem?

R - Ah, eu desejo para os meus filhos que eles estudem, que cheguem a um nível de estudo até se formar.

P/2 - Quantos anos eles têm?

R - O mais velho tem quinze, o mais novo tem treze. Eu peço muito a Deus para que consigam chegar até se formar em advogado, médico ou dentista; qualquer coisa que não seja isso que eu faço. Porque eu trabalho todo dia nesse ramo, mas eu sei o quanto custa.

P/1 - É puxado.

R - É puxado. E eu vou falar uma coisa para você. Eu penso assim e eu acredito que seja: lidar com ser humano é mais difícil do que você lidar com os animais. Isso é verdade. Porque cada um tem uma cabeça, um pensa uma coisa, o outro pensa outra. O cara brigou com a mulher, chega aqui, quer desforrar em cima de você. A mulher brigou com o marido, chega lá, lhe trata mal. Quando você está atrás de um balcão você tem que aguentar isso, ficar calado e deixar para lá, senão você vai arrumar confusão e vai acabar brigando com aquelas pessoas. E você, atrás do balcão, você nunca tem razão. Quem tem razão é sempre a pessoa que está ali, pagando.
O patrão não quer saber disso, ele quer saber se o dinheiro está entrando no caixa dele. Ele não quer saber se a pessoa lhe tratou bem. Você está lá para tratar as pessoas bem, não é as pessoas lhe tratarem bem. Você tem que ter um jogo de cintura para poder ficar tanto tempo assim e não ter esse tipo de mau humor.
Eu sempre procuro, eu faço o máximo para atender as pessoas numa boa, para que ele não saia dali tendo uma imagem, um pensamento ruim de mim, dizendo: "Poxa, esse cara é mau humorado." Não, eu faço de tudo para que as pessoas... Olha, eu vou falar para vocês. Em Ipanema, hoje eu fui no banco com um garoto, apanhar um troco lá. Foi mais ou menos umas dez pessoas que passaram e falaram comigo: "Oi, tudo bem?" Não sabem o meu nome, mas "Oi, tudo bem?" Sabem que eu sou dali da casa de suco.

P/1 - E sem falar de trabalho, falando de lazer. O que você gosta de fazer como hobby? O que você gosta de fazer quando não está trabalhando?

R - Eu gosto de... Mesmo o dia da minha folga, eu fico em casa. Muitas vezes eu saio para São Cristóvão, essas coisas assim, ou então para a casa dos meus parentes.

P/1 - Para visitar, conversar?

R - É, para ir na casa dos meus parentes, minhas irmãs. Ou às vezes eu vou para São Cristóvão. Às vezes eu vou dançar, vou para os forrós, dançar.
P/1 - Ah, dançar forró, claro!

R - É, dançar forró.

P/1 - Então a nossa última pergunta, Edvaldo. Eu sei que você já foi super entrevistado, já apareceu lá em Londres, mas o que você achou de ter feito essa entrevista com a gente, ter contado a sua trajetória, desde lá de Ipu, no Ceará, chegando aqui? O que você achou de ter dado essa entrevista para a gente, para esse projeto de Memória do Comércio do Rio de Janeiro?

R - Para mim? Eu achei o maior barato, eu achei legal, porque a gente relembrou de muitas coisas que às vezes eu já tinha até esquecido. Eu ativei a memória agora esses dias que vocês me ligaram, para ficar lembrando. "Eu não sei o que eles vão me perguntar, mas de repente pergunta isso, pergunta aquilo." Eu tentei lembrar. E se isso fosse ao ar, público, para as pessoas ficarem sabendo... E aquelas pessoas que fizeram aquilo que fizeram comigo, que nem eu falei, esse cara, esse outro, para ver que não é nada disso que as pessoas pensam. Para desabafar um pouco também, eu achei bom, achei legal. Foi ótimo.

P/1 - Ficou à vontade, curtiu?

R - Eu fiquei à vontade. Eu acho que…

Posso até ter feito feio, mas sei lá.

P/1 - Tá jóia. Obrigada, Edvaldo. Em nome do Museu da Pessoa, do Sesc, eu agradeço a sua ajuda.

R - Qualquer coisa, estamos aí. Uma mão lava a outra, não é verdade?

P/1 - Com certeza!