Museu da Pessoa

Só vou ser plena se incluir o outro

autoria: Museu da Pessoa personagem: Walderez de Mathias Martins de Barros

Projeto: Cotidianos Invisíveis da Ditadura
Entrevista de Walderez de Barros
Entrevistada por Lucas Torigoe (P/1)
São Paulo, 12 de abril de 2022
Código da entrevista: COIND_HV010
Revisado por: Nataniel Torres

P/1 - Qual que é seu nome completo, onde você nasceu e que data que foi, por favor?

R - Meu nome completinho é Walderez, sempre lembrando que meu nome é com w, z de zebra no final, Walderez de Mathias Martins de Barros, eu fiquei com esse nome grande porque antes não tinha de Barros quando era solteira e quando eu fui casar o juiz, sei lá o que, falou que eu tinha que mudar o meu nome para pôr o nome do marido, falei: não, mas eu não vou tirar nada meu, aí ficou Walderez de Mathias Martins que era meu nome mesmo, e de Barros que era o do marido. Eu falei “eu não vou tirar um pedaço de mim para pôr outro”, ficou assim. Eu nasci em 31 de outubro de 1940, eu tenho portanto, 81 gloriosos anos. Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo.

P/1 -

Seus pais contaram para você como é que foi o dia que você nasceu? Você nasceu em hospital ou em casa?

R -

Não, primeiro, eu sou de uma família pobre, então naquela época principalmente ninguém ia para o hospital para parir, para ter um filho, existia as parteiras que iam em casa e que ajudavam a mulher no trabalho de parto, então eu nasci assim, em casa com a parteira. O que eu sei é que já estava no prazo certo de eu nascer, mas aí minha mãe teve um tombo, ela caiu em casa e isso parece que apressou o parto, meu pai correu para chamar a parteira e tudo correu bem, foi um parto normal e em decorrência desse tombo da minha mãe que apressou um pouquinho, eu estava com muita pressa de sair para o mundo, e aí foi assim.

P/1 - E como foi a escolha do seu nome?

R -

Ninguém chama Walderez, né? A minha mãe diz que ela viu esse nome num romance, daqueles romances que a gente chamava de água com açúcar, a maioria escrito por uma mulher, chamada M. Delly, madame Delly. Eram esses romances que circulavam entre as moças. E ela achou esse nome nesse romance chamado “Entre duas almas”. E a personagem era uma princesa húngara, mas passava-se na Espanha, então a primeira vez que eu fui para Espanha eu fiquei perguntando, “já ouviu falar de Walderez, tem alguém conhecido seu chamado Walderez?”. Aí teria que ser com v, não com w, como é meu nome. Mas enfim, não achei nenhuma. Mas a partir de mim, do meu nome, da minha pessoa, muita gente começou a usar. E tem um fato pitoresco, de um amigo maravilhoso, praticamente um irmão, Umberto Magnani, grande ator também, que tá lá não sei onde, e ele me tiravam um sarro todo domingo, porque tinha um um beck de um time do Rio Grande do Sul, chamado Valderez, então ele me ligava: “Ontem foi bom, fez um gol”. Ele me encheu o saco. Aí fiquei sabendo que é um nome que também é usado para homens. Na minha família, tinha umas duas ou três Walderez, quer dizer, por ser estranho, por não ter muito, acho que muita gente resolve usar, mas eu gosto do meu nome, adoro, não tenho problema nenhum, é esquisito e eu gosto de coisas esquisitas, então tá tudo bem.

P/1 - E qual é o nome da sua mãe inteiro e como é a família dela, de onde eles vieram?

R -

A minha mãe já morreu também, assim como meu pai. Mas a minha mãe é o lado italiano da família, ela era filha de uma Teresa italiana, não era imigrante, o pai dela, chamava Nicola, é do norte da Itália, a mãe de Nápoles, era Napolitana, e o Nicola era do norte da Espanha. Aí ele morreu de gripe espanhola, então a minha avó Teresa ficou com a minha mãe, minha mãe devia ter uns dois, três anos, era bem novinha quando ele morreu. Porque não eram de família rica também, quem era rico era o Nicola que morreu, e só tinha uma tia, uma irmã dele, que ajudava a minha vó, fora isso ela era costureira, então ela ia na casa dos ricos da cidade, costureira que vai em casa e fica lá o dia inteiro fazendo as coisas. E minha avó era muito bem recebida por recomendação dessa tia, Raquel que era rica, não sei o que. Enfim, tô dando o panorama, porque aí depois de pouco tempo que ela estava viúva, ela conheceu o que eu considero meu avô mesmo, meu maravilhoso avô, que era o vô Gouveia, que era português, filho de português, também nasceu aqui, o seu Antônio Gouveia. Ele teve uma importância muito grande na minha vida, meu avô, esse avô. A minha família é cheia de histórias dramáticas, não é à toa que eu sou atriz, adoro um melodrama, é comigo mesmo. Quando a minha avó casou com ele, com o seu Antônio, o Gouveia, a minha mãe não aceitava de jeito nenhum, porque antes era só as duas, e aí veio um intruso no meio, ela conta que ele foi amansando ela, e o dia que ela realmente aceitou e ela chamou ele de pai pela primeira vez, foi aquela choradeira, aí ficou tudo bem. E o meu avô, se ele contava essa história, ele chorava. Eu aprendi tudo que tem de emoção, de sentimento, que um homem possa ter tudo isso, foi o vô Gouveia que me ensinou. Eu conto uma historinha, porque eu gosto muito dele ainda, apesar dele não estar comigo, ele foi muito, muito importante. Ele era um sapateiro filósofo. A minha avó que tomava conta do dinheiro e controlava quem pagava e quem não pagava, porque para ele era bom um bom papo, falar sobre a vida. Na sapataria dele, era uma salinha assim pequena, ele tinha aquele banquinho que todo sapateiro tem e ao lado ele tinha uns caixotes, então quem ia lá falar com ele sentava nos caixotes. E eu era bem pequena, não sei que idade que eu tinha, mas eu era pequenininha e adorava conversar com ele. Entendi posteriormente o acontecimento é importante, ele me tratava como adulta, ele não me tratava como criança, sabe? Eu já me irrito muito com criança, quando “aí a perninha”, o diminutivo, “a cabecinha, bateu, o pezinho”, pra que diminutivo? O grave é que a gente envelhece, e aí começa a tratar no diminutivo como se eu fosse uma débil mental, entendeu? Então quando começa, “e o pezinho?” Vamos parar, aqui não tem diminutivo. Mas eu aprendi isso com meu avô, entendeu? Ele era espírita, dizem, o folclore familiar em relação a ele é que ele era muito teimoso, qualquer atitude de teimosia na família, “ah, tá sendo vovô Gouveia”. Enfim, mas ele tinha, na parede de trás da sapataria, uma estante, metade eram livros espíritas, que acho que ele tinha todos, a outra metade era poesia, então com quem eu aprendi a declamação, com o vô Gouveia. Eu sempre falo que a minha técnica de interpretação é o método vô Gouveia, porque ele fazia assim, ele pega uma poesia e vai até onde o fôlego aguenta, ele vai falando, falando, falando, quando chega no ponto ele respira e vai. Então você não tem a cantilena do verso, sabe? “Batatinha quando nasce espalha ramas pelo chão”, não, ele vai, vai, vai, preciso respirar, para, respira e continua, é maravilhoso, então me deu uma noção de ritmo, porque isso ficava… sem contar que eu era pequenininha desse jeito, ele dizia para mim Guerra Junqueira, que era contra os padres, igreja católica, ele também. Enfim, ele me dava, Castro Alves, eu adorava, ele dizendo O Navio Negreiro, era maravilhoso. Essa foi a minha formação, do meu maravilhoso, querido, amado, vô Gouveia, que me ensinou a arte de representar.

P/1 -

E como que era o vô Gouveia, para quem não conheceu ele, como que ele se vestia, um cheiro dele, como que ele andava?

R - Eu acho que eu não tenho muito bom olfato, o cheiro nunca foi marcante, raramente, mas o vô, era uma coisa meio simples da época, classe média baixa, bem baixa, sapateiro. E a Vó Teresa era costureira, então sempre a gente viveu apertado de grana, essas coisas. Então o vô puxava um pouco para a roça, a mãe dele, a minha bisa morava em Jardinópolis, que é uma cidade do lado de Ribeirão, agora já até juntou com Ribeirão, e eles tinham uma chácara lá, e todo final de semana, o vô ia para lá e trazia verduras, frutas, não sei o que, que ele colhia. Mas então, a roupa que ele usava, tinha ainda um lado muito forte dessa parte rural, porque criança e tudo ele viveu lá, é a formação dele. Mas agora que você falou, eu me lembrei também que ele tinha um paletó, devia ser Brim, ou alguma coisa assim meio lustrosa, era bege mais escuro, não era preto não, e que ele usava sempre para sair. Claro, naquela época o homem tinha que ter um paletó e chapéu, não se saia de casa sem chapéu, mesmo os pobres arrumava alguma coisa para pôr na cabeça. E o vô tinha esse paletó, eu me lembrei disso porque eu tinha um terno, um conjunto vai, mais ou menos desse bege meio escuro e eu lembro que quando eu comprei eu me lembrei… sabe a textura do tecido, me lembrava muito esse paletó do meu avô. Não havia ainda o império da calça jeans, não existia, nem na roça, nem na cidade, não havia isso, isso foi mais para o final da década de 50, sei lá quando, por aí. Mas então tudo era brim, era algodão, era coisa mais rústica, uma coisa também que eu me lembro, porque se usou por muito tempo e depois voltou a moda, era o colarinho sem a gola, sabe? Aquele colarinho que a gente chama de Padre, sabe? E o vô usava muito, porque tinha facilidade sempre de lavar, passar, tudo era com ferro de carvão, eu peguei isso. A vó, por exemplo, a minha mãe, iam passar roupas, tinha sempre dois ferros, então enquanto um carvão estava lá esquentando, sei lá o quê, ela tava usando um, à medida que esse ia esfriando, ela pegava o outro, ela trocava e ia passando. E muita roupa engomada, difícil para caramba, ainda não havia o movimento feminista, então os homens achavam que as mulheres tinham obrigação de fazer alguma coisa e quando muito ajudavam, como se a tarefa fosse só das mulheres, mas enfim, isso é outro livro, outra história.

P/1 - E o seu pai, qual que o nome inteiro dele, como que era a família dele?

R - O meu pai e a minha mãe… eu cresci nesse lar com muito amor entre eles, sabe? Assim como a história romântica da minha vó com o vô Gouveia, ele casou apaixonado e viveu apaixonado pela minha avó a vida inteira. Aliás, eu tenho um episódio, acho que é bom contar, explica bem uma série de coisas minhas, inclusive. Assim, de casado, já com os netos, eu devia ter já uns 12, 13 por aí, a vó ficou doente, ela tinha um problema no coração, um problema grave, que ela tinha que ficar em repouso, e aí ela tinha casado com vô só no cartório, ela não tinha casado na igreja, acontece que ele era espírita, mas ela era beata, ela era católica de ir na missa todo dia. E ela rezava, chorava, porque eles não tinham se casado na igreja, então ela dizia que vivia em pecado, porque não era um casamento abençoado por Deus, pelos padres. E ele sempre ficou embromando a minha avó e nunca casou, mas aí ela ficou doente, o médico disse que ela podia morrer a qualquer momento, ficar de repouso sempre, não sei o quê. E aí ela implorou para o vô casar com ela, porque ela não queria morrer em pecado e ele concordou. Então essa cena eu me lembro, foi para o resto da vida, assim, a cama deles que era bem grandona, a vó sentada, muito bem arrumadinha, sentada não, deitada, encostada na cama, os netos, os filhos, tudo aos pés da cama, em volta da cama e o vô sentado ao lado dela na cama e aquilo que ele abominava, um padre… Porque naquela época os padres andavam de batina preta, aquele calor de Ribeirão, quando ele chegava o vô falava, “lá vem urubu”, eram os padres chegando. E ele teve um urubu aos pés da cama dele, fazendo o casamento dos dois. Foi uma choradeira geral, ninguém aguentava, até os menores, assim como eu, meu irmão, todo mundo assim, porque era comovente, você sabe um cara que é radicalmente contra essa religião, contra os padres, não sei o que, ele aceitou a presença dele casando com a minha avó por amor a ela. Só por amor a ela. E ficou depois, quando ela morreu de fato, ficava aquela coisa, vamos chamar o padre para benzer, iam falar com ele, “faça tudo que ela queria que fizesse, a missa de sétimo dia”, “avisa ele? Será que ele vai?” Ele falou: “façam a missa!” E disse que não ia. Eu cheguei atrasada na missa e entrei na catedral pela porta dos fundos, de repente, eu vejo assim, do lado direito, ele ajoelhado assim ó, soluçando, soluçando, eu fico emocionada até hoje quando eu conto essa história. Isso me marcou, isso é amor, tem que ser assim e eu sou assim, é comovente. Isso transpõe para o meu pai e para minha mãe, sabe? Eles eram tidos como casal moderno, porque eles se faziam carinho em público, andavam de braços dados, ou o meu pai punha a mão no ombro da minha mãe, coisa que os casais não faziam, aquele absurdo de não poder fazer carinho, e eles faziam, nas festas. Eu cresci achando que isso era normal, o casal se amar, fazer carinho, isso é normal, não é estranho como a sociedade acha que é, e assim que eu vivi, uma besta mesmo.

P/1 - E o seu pai vem de uma família portuguesa, espanhola?

R -

Espanhola! E até um dado bem sociológico, vamos dizer assim, meu pai nasceu no Brasil, mas metade dos irmãos mais velhos nasceram na Espanha, eles eram espanhóis, e o meu avô, o pai dele, veio meio fugido, mas não era a guerra civil ainda, eram outras questões, ele era meio aventureiro e bebia muito, veio para cá porque.. Agora imagina, minha vó era filha de um fazendeiro riquíssimo, ela foi criada dentro de casa com as mordomias todas, e aí o meu avô começa a se interessar por ela, e o pai dela proíbe, não quer nem que ele chegue perto. Ele simplesmente rapta a minha vó, você vê, eu estou condenada, porque todos os lados essa loucura de romantismo, rouba a mulher, como é que pode? E veio para o Brasil, agora essa mulher que tinha tudo lá na Espanha, ela vai parar aonde? Numa fazenda de café, numa casa de colono, e ela tendo que fazer… ela não sabia fazer nada, assim ela enlouqueceu, naquela época ainda não existia o Alzheimer, mas com certeza deve ter sido isso, porque aí o vô voltava às vezes para Espanha, só ele, demorava uns meses lá, voltava dizia, “eu vendi umas terras, comprei outras, agora eu aumentei a propriedade, não sei o quê”. De um jeito, que quando ele morreu, virou folclore familiar também as terras que nós temos na Espanha, sabe por que? Nós somos assim, donos de metade da Espanha, pelo o que o vô contava, não era verdade. Enfim, vou contar o sociológico, esse vô acabou morrendo de cirrose hepática, bebia demais, até deve realmente ter pedido metade das terras da Espanha, mas é um dado, o seguinte, a minha mãe então era descendente, ascendência italiana, do vô Nicola que morreu, então ela era italianinha, todo o resto da família do meu pai, e ele era o caçula, queridinho por todas as tias mais velhas, todo mundo, era muito assim almofadinha da época também, então ele muito bem vestido, sempre, muito galã. E ele começou a namorar, imagina só o escândalo que foi na família espanhola inteira, a italianinha, entendeu? A minha mãe sofreu para caramba na mão da família espanhola inteira, porque ninguém aceitava, eu pelo menos não sabia antes desse fato familiar, não sabia que havia uma luta entre os italianos, especificamente esses dois. Logo que a minha mãe casou, porque antes o meu pai morava com a mãe dele, com a minha vó, então ele casou, ele trouxe a mulher para morar, era uma dessas casas populares, mas grande, cheia de cômodos e tal, esquisito porque constrói um cômodo aqui para aumentar a casa, depois um cômodo lá e fica aquele… arquiteto nenhum consegue decifrar aquilo, mas aí ele levou minha mãe para morar lá, só que a vó era inferno, o que ela fez com a minha mãe que ela contava. Até que um dia minha mãe não aguentou mais, pegou a mala dela e falou, “eu vou embora, só volto se ela sair daqui”. Porque a minha mãe também era fogo. E foi embora para casa da mãe dela, da vó Teresa, aí o meu pai ficou desesperado, porque ele estava acreditando nas histórias da vó, era assim, porque minha mãe ganhou muitos presentes, dizem que ela tinha ganho muitos presentes finos, porque as freguesias da minha vó eram tudo milionárias, adoravam a minha mãe, então deram presentes bons.

A vó pegava todas as coisas de cristal e jogava no chão, quebrava, aí o meu pai chegava, “ela não tem jeito, quebrou as coisas tudo”. Aí um dia minha mãe foi embora, aí ela falou, “não volto para lá”. Aí arrumaram uma outra tia que ia lá ficar com a minha vó e o meu pai não voltou, ficou com a vó Teresa um tempo. Ele trabalhava na companhia Mogiana de estradas de ferro, ele era Ferroviário, mas só que ele sempre trabalhou no escritório, e aí num desses acontecimentos ele foi convidado, um tempo depois, para ser chefe de estação, chefe de estaçãozinha pequena, então primeiro ele foi para um lugar chamado Anil, que é uma estação entre Uberaba e Uberlândia em Minas, depois de um tempo era Tatuca, que era perto já de Ribeirão. Tatuca, por exemplo, Anil também, mas eu era bem pequena, quer dizer, mais pequena do que eu já era, aí, em Tatuca, só tinha a estação e perto uma casinha que era do manobrista que liberava os trens. Tatuca, esse nome, é nome de um fazendeiro da região, ali é uma região de café, mas quando meu pai foi já estava em decadência. Então é assim, Tatuca tinha um monte de fazenda naquela região e por isso havia aquela estação, estrada de ferro, que era para levar o café que se colhia nas fazendas, com a diminuição, aquilo passou de ter importância, então só tinha um trem de manhã outro à noite, acabou. Ali também, é uma história, havia um bandido chamado Dioguinho, que era um pouco o Lampião do estado de São Paulo e que era “acoitado” por esse Tatuca, esse fazendeiro, então ele fazia os crimes e voltava lá. Tinha até um casebre caindo aos pedaços que seria a casa desse Dioguinho, isso é besteira, só para lembrar. Enfim, onde nós estávamos?

P/1 - Tinha perguntado do seu pai, da vida dele?

R - Eu contei a história da família inteira menos dele (risos). Meu pai tinha uma coisa também, que eu me lembrei há pouco tempo desse fato, meu pai adorava dançar também, então as festas populares, não sei o quê, ou as festas aguardadas, casamento, quem está para casar, como é que vai ser a festa, onde vai ser o batizado? Eram sempre festas familiares, onde sempre havia alguém tocando, geralmente o acordeom, ou alguma coisa de ritmo e havia o bailinho, o bailinho da roça mesmo. Eu me lembro vagamente, mas tenho lembranças, em Tatuca, porque tinha um galpão imenso para pôr o café, na época que tinha café para preencher aquele espaço todo, e ali era onde a gente fazia as festas, por exemplo, festas caipiras, São João, Santo Antônio, todas eram festejadas mesmo, qualquer casinha no sertão bravo lá, tinha alguma festa. E o meu pai adorava essas festas, organizar, fazer e dançar a noite inteira. E quem me ensinou a dançar foi o meu pai, porque a gente saía, valsa então, eu danço, agora nem tanto, mas eu dançava valsa e ele adorava, isso é uma coisa que ele passou para mim, de festejar. E ao mesmo tempo ele era muito tímido, como eu sou, até hoje, e ele também, mas ele tinha esse lado da festa, sabe? Ele gostava da festa, bebia, tomava a cerveja dele, mas não com exagero, porque ele tinha o exemplo do pai dele, que morreu daquele jeito. Enfim, ele era almofadinha, se vestia bem, gostava de festa, gostava de dançar, é ele.

P/1 - E eles contaram para você como eles se conheceram, a sua mãe e o seu pai?

R - A minha mãe tinha me falado que na época, a minha avó morava numa rua que era meio uma rua central de Ribeirão, a rua da catedral, e tinha uma sala na frente, onde ela costurava e quando ela tinha muito serviço, sempre tinha alguém ajudando, então era um lugar que ficava… muita gente passava, parava para conversar. E era o caminho do meu pai quando ele saia, ou ia, saia do emprego, normalmente ele não passaria por aquela rua, mas como ele passou alguma vezes e viu, porque ele também era muito namorador, essas coisas, viu a minha mãe, aí ele passou a fazer esse caminho todos os dias. E ela percebeu o horário que ele passava também, dele ir para o trabalho e voltar do trabalho, e aí ela já ficava na janela esperando ele passar. E aí ficou não sei que tempo namorando assim, até que ele criou coragem e falou com ela. E um detalhe, inicialmente ele não foi bem aceito, porque ele era muito mais velho que a minha mãe, tinha uma diferença de 10 anos, a minha mãe tinha 18 anos quando casou e ele 28, e era um escândalo. Mas como ele era muito baixinho, magrinho, então não aparentava tanto, mas era um escândalo a minha mãe estar casando com um homem muito mais velho, dava a impressão que era, sei lá, um velhinho, mas não era.

P/1 - E você tem irmão, irmã?

R - Sim!

Eu tenho também, tá lá no sei onde, eu acho que deve ser um lugar muito elevado. Eu tenho um irmão, Carlinhos, é assim, eu nunca vi duas pessoas tão diferentes, eu e ele, e no entanto, a gente se amava, eu seria capaz de qualquer coisa por ele, ele é mais velho que eu, tinha 4 anos a mais, ele desenvolveu um sentido de proteção em relação a mim. Então ele sempre, em várias situações, várias ocasiões, interferiu, me defendeu, só que ele era uma pessoa conservadora, a coisa muito bem regrada e organizada e eu nunca fui assim, completamente diferente, a minha vida eu não organizei assim, eu sempre falo, a diferença… E dou ele como exemplo de uma postura geral da sociedade burguesa, capitalista. Bom, enfim, ele desde pequeno, quando era moleque, ele fez uma tabuleta assim, como que fala, ele esculpiu, não é essa palavra, enfim, serve, “hei de vencer”. Que é o correspondente da época, dos empreendedores, “vou vencer na vida sem fazer esforço, sei lá”. E aquilo acompanhou meu irmão várias fases, a gente mudava não sei o que, lá ia ele com a tabuletinha dele. E eu achava aquilo maravilhoso, porque ele seguiu uma regra. Ele organizou a vida dele assim, “hei de vencer”. Mas assim, eu não critico, eu me orgulho e fico fascinada pela maneira como ele agia. Nós não tínhamos dinheiro, então em Ribeirão ele fez o grupo escolar e parou, como todo mundo. Fazer o grupo escolar já era uma vitória, não foi trabalhar na roça, não sei o que. E também uma coisa que tem muito nas famílias italianas, “tem o Carlinhos, o filho da Carmem tá precisando de um emprego”. Então alguém, todo mundo se mexe, encaixa o menino em alguma profissão, em algum lugar, e ele vai. E ele fez isso, em Ribeirão não havia curso noturno para fazer o ginásio na época, segundo grau agora, sei lá o nome. Então ele não pode, ele terminou o grupo escolar, foi trabalhar com o seu Juca, para consertar rádio, na época só havia o rádio, não havia televisão, internet era coisa de doido. Então ele foi trabalhar e não tinha como continuar os estudos, desde pequeno ele queria ser engenheiro, aí ele junto com tio, que era também não muito mais velho que ele, compraram um terreno, os dois, pagando à prestação. Aí teve o curso noturno, ele fez e continuou pagando o terreninho. Resumindo bem a história, quando ele se formou, fez o terceiro científico, meu tio também, eles venderam o terreno, cada um pegou a sua parte e foi com esse dinheiro que ele veio para São Paulo fazer o vestibular. Ele fez o ITA, na Poli, o curso de física e passou com louvor, era um gênio. Meu tio também conseguiu se formar, beleza tudo. Aí ele escolheu a Politécnica, inclusive dando aula no cursinho da Poli, e foi com isso que ele se sustentou. Meus pais, como insistiam muito que eu queria também fazer faculdade, porque Ribeirão não havia, eu tinha que vir para São Paulo, só que eu não comprei um terreno, eu não fiz nada, eu só fiquei gritando, “eu quero ir, eu quero ir”. Meus pais colocaram a mala nas costas e vieram para São Paulo. Na época eu não vi, eu não percebi a dimensão do ato de amor que eles fizeram. Meu pai saiu da casa onde ele tinha nascido, na rua onde ele tinha os amigos de infância dele, meu pai como uma pessoa tímida, ali era o lugar que abraçava ele, ele veio para o desconhecido, ele não queria que eu saísse na rua, porque ele falou, “tem bandido na rua, eles vão te pegar”. Era uma coisa absurda dele. Agora, ele saiu de lá por quê? Porque ele percebeu que os dois filhos dele eram muito inteligentes e queria estudar, e o que ele podia dar era isso, era vir junto. Pensa? Não sou para ser uma pessoa meio romântica demais da conta, é o pai que abandona tudo por causa da filha, é o máximo, só hoje com 80 anos que eu entendo a beleza que foi a minha vida, esses gestos de amor, eu posso não entender plenamente tudo isso e não ter aproveitado na época, pra dizer inclusive para eles, mas eu fui aprendendo com a vida, por tudo isso que me aconteceu, os ensinamentos amorosos da minha família, foram caindo na minha vida e eu fui usando esse ensinamento que eles me deram. Eles não me deram herança financeira, porque não tinham, se tivessem, tinham dado mesmo, e uma herança amorosa, sabe? Isso formou o meu ser imensuravelmente, eu diria. Eu só agradeço, porque é isso que eu quero para a minha vida, uma vivência amorosa com todas as pessoas, eu herdei deles isso, não fui eu que fabriquei, eu simplesmente aceitei. Do que que nós estávamos falando?

P/1 - Não, a gente está falando do que você for falar. Era uma época no interior muito conservadora, e uma mulher querer estudar e os pais fazerem isso. As pessoas falavam alguma coisa da senhora, “ah, que estudar, quer ir pra São Paulo, imagina”, como é que era?

R - Eu era tida como a metidinha da rua, eles me esnobavam, não era eu que esnobava eles, eles em geral que fofocavam, minha mãe me defendia, meu pai também. O exemplo deles, porque mesmo na rua, tinha muitos pais que não deixavam continuar estudando. O fato, por exemplo, depois de eu ter ido continuar meus estudos, normalmente nessa sociedade, era escolher o marido, o que está fazendo? Acabou o primário vai aprender lavar, passar, costurar com a mãe que a costureira, então vai aprender a costurar muito bem, vai fazer como a mãe e avó fazem, ajuda os maridos, costurando, ganhando um dinheirinho. Agora, eu não quis isso, mesmo porque eu era mulher, já foi difícil para o meu irmão, meu irmão teve que se virar sozinho com o terreninho, com as coisas todas, enfrentou muita dificuldade também, com tudo. Mas eu era mulher, eu lembro que o meu irmão, quando ele veio a São Paulo fazer o vestibular, ele me chamou, falou, “olha”... eu tava terminando o clássico também, como todas as minhas amigas de Ribeirão estavam vindo para fazer vestibular na faculdade. E ele falou, “olha, esse ano eu vou e eu prometo para você que o ano que vem é seu, aí eu levo você, a gente faz tudo, mas você tem que fazer esse sacrifício agora, não tem como”. Não tinha, e eu sabia disso, “tudo bem, eu fico esperando”. Aí foi indo, porque ele tinha prometido que desde o começo do ano ele já ia ver como é que fazia, podia ficar na casa de uma tia aqui em São Paulo, enfim tinha um esquema lá. Mas foi passando e ele não tomava providência nenhuma. Aí ele vinha na Páscoa, e eu falei: “olha, é o seguinte, você voltar para São Paulo, se você não tiver uma solução já, eu vou fugir de casa, eu vou lá para casa da minha tia, vou arrumar um emprego e vou ficar sozinha”. Porque tinha uma menina, uma tal de Creuza, morava numa rua em frente assim, tinha realmente fugido de casa, e eu achei aquilo maravilhoso, graças a Deus ela encontrou um caminhoneiro, que ela parou na estrada, e o caminhoneiro trouxe ela de volta para casa, aí não gostei. Nessa época eu tinha um namorado que eu gostava muito e a família inteira se reuniu, “e aí, vai casar com ele?” Porque pelo menos se livraram do estorvo. “Não, mas ele gosta dela, porque não casa?”. E eu percebendo tudo isso, falei, “não quero, não vou casar, eu vou para São Paulo, posso casar depois, mas agora não”. A única solução encontrada foi essa, meus pais mudarem… “temos um casal de filhos, os 2 vão para São Paulo e nós vamos ficar aqui? Não, a gente vai junto, onde estão os filhos nós vamos”, e vieram. É extraordinária essa história. Eu não casei com ele.

P/1 - Vocês ouviam muito rádio? O que você e a sua família ouvia na época?

R - Olha, assim como a televisão atualmente, o rádio também era colocado assim, no centro da casa, era aquilo que todo mundo, estivesse onde estivesse na casa, estava ouvindo. Que eu me lembre, a gente levantava de manhã e já ligava o rádio, tinha notícias que você ouvia toda manhã, tinha programas específicos, detalhe, nós ouvimos a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em Ribeirão Preto. Tinha aqui em São Paulo, a Rádio Difusora, eu acho, que também tinha audiência, mas a audiência maior e absoluta era da Rádio Nacional que era do Rio de Janeiro, então havia meio que uma divisão, como agora em relação à televisão, os artistas que eram contratados de uma rádio e de outra, que se enfrentavam, sabe, os fãs juntos. Então tinha um programa de auditório do César de Alencar, era do Rio de Janeiro, um filho da puta que dedurou muitos artistas na época da ditadura, é bom que a gente não esqueça, César de Alencar, acho até que já morreu, que Deus o tenha, tudo bem! Um era no sábado, o Manoel, como era que chamava outro, o outro programa concorrente do César de Alencar, um era sábado, outro era domingo, era uma coisa assim. Havia o programa humorístico, “Balança, mas Não Cai”, que era à noite, não sei que noite, que tinha uma audiência, você vê que a rua inteira estava sintonizado naquele programa, ninguém ia visitar ninguém nesse horário, porque a gente tinha o ótimo hábito de visitar as pessoas, não havia televisão, então a gente ia para fofocar, contar, “quem casou com quem”, enfim, era muito bom, e tinha dias marcados para visitas também, minha avó tinha um calendário, quem vem hoje, quem vem amanhã, era divertido. Mas enfim, rádio era assim, era como é a televisão hoje, também todas as pessoas assistem a novela, lá também havia rádio novela, havia programa de curiosidades, enfim, a gente ouvia rádio o dia inteiro, nesses programas de auditório, César de Alencar, Manoel, como que era, daqui a pouco eu lembro .

P/1 - Manoel Celestino, por acaso?

R - Não, não!

Mas eu vou lembrar. Bom, mas enfim, apresentavam os artistas, cantores e cantoras, não só, instrumentistas também, a Rádio Nacional, a outra também, tinha uma orquestra própria. Eu acostumei a ouvir música desde criança, sabia de cor, sei até hoje, porque bobagem, a gente guarda na memória, memória é uma desgraça, só guarda besteira. Eu costumo brincar, eu digo que eu fiz doutorado de cultura inútil, cultura inútil eu sei tudo, coisa séria não guardo. Então os grandes sucessos, nasciam nesses programas de auditório. Na Rádio Nacional, tinha a rivalidade, competição entre as duas cantoras: Emilinha Borba e Marlene. Marlene era uma mulher adiantada para época, mas eu torcia pela Emilinha, fazer o que? Marlene é aquela que canta, “lata d'água na cabeça”. Que dizer, já denunciava o humor. Bom, era isso, rádio, televisão de agora, inclusive notícia, existia o Repórter Esso, 8, 7 horas, tinha o “Repórter Esso, tam, tam”. Lembro até da música. E o meu pai, como que eu vou dizer, não tinha o conhecimento, politicamente do que estava acontecendo, mas ele e a família inteira, eram Getulistas roxos, porque “pai dos pobres”, era como chamavam o Getúlio, era uma coisa que o meu pai acreditava mesmo e ele tinha uma listinha que ele falava tudo aquilo que o Getúlio tinha conseguido para eles, para os pobres, para os trabalhadores. O dia que o Getúlio morreu, para você ter uma ideia, eu estava no ginásio, tava tendo aula, a diretora do colégio entrou na sala, aos prantos, dizendo que o Getúlio tinha morrido, explicando, dizendo que a gente estava liberado para ir para casa. Saímos assim, chorando, eu fui direto para casa da minha avó, porque a casa da minha avó é que nem a minha casa hoje, é o centro, acontece alguma coisa, vem todo mundo para o centro, e a gente ia direto para a casa da vó, chegamos lá estavam todos, meu pai, inclusive, tinha sido liberado, todo mundo aos prantos, como se tivesse morrido alguém da família, uma perda insuportável, e quando vazou a notícia que ele tinha se matado, aí então foi loucura, loucura. Eu mais ou menos consegui juntar na minha cabeça, essas duas partes do Getúlio, ditador, que tinha aquela política que matava, que torturava, que perseguia, que acabou com a vida de muita gente, enfim, esse cara eu só fui agregar ao “pai dos pobres” que eu conhecia. Eu juntei, não combinava uma coisa com a outra, mas claro que eu sabia que não podia apoiar um cara que era ditador, mas esse era, como eu vou dizer, era aquilo que meu pai acreditava. Por exemplo, a gente era pobre, não sei o quê, mas o meu pai comprava “Última Hora”, todos os dias. Politicamente, eu também cresci lendo “A Última Hora”, de vez em quando se comprava “O Cruzeiro”, a revista do Chateaubriand, mas isso era de vez em quando, porque a revista era meio cara. Tem assim, outras coisas boas ainda da minha família que eu só vejo isso agora, burra também, demorei 80 anos para entender. A minha vó, a Teresa, casada com o vô Gouveia, era analfabeta, mas sabia fazer contas com ninguém, e a minha tia, que morava com ela, uma tia solteira ainda, comprava uma revista chamada “Grande Hotel” e que era foto história, tinha um nome específico, esqueci, não era desenho, não era história em quadrinho, era foto mesmo. E contava uma história de romance, e minha tia comprava toda semana com uma história. E a minha tia lia para a vó Tereza as histórias, por que ela não conseguia ler, então gostava, lia o diálogo, até que minha tia falou, “agora eu que sou obrigada a ler? Você vai aprender a ler.” E ensinou ela a ler com a revista Grande Hotel, inclusive ela custou para conseguir, por exemplo, uma letra cursiva, ela tinha dificuldade de ler, porque ela estava acostumada com aquele tipo da revista, mas ela conseguiu aprender a ler, não sei nem que idade ela tinha, ela morreu com 54 anos, isso foi antes dela morrer, óbvio. Mas enfim, mas um fato romântico da minha família.

51:28 - Você falou dessa presença muito forte do Getúlio, significa que vocês não gostavam do Lacerda, da UDN, tudo que representava, politicamente era meio assim na sua casa?

R - Não, era terrível, nossa, meu pai odiava, porque a cabeça dele era feita pela Última Hora. Então tava falando da UDN, Lacerda, não. É até engraçado. Não é engraçado, é trágico, mas eu agora, não sei quanto tempo atrás, fui com uma neta, acho que um neto também, no Rio de Janeiro, no Museu da República, onde tem toda a exposição, o pijama que o Getúlio tava usando quando se matou, o revólver, toda a trajetória daquele dia, a perseguição, a morte. E eu levei a minha neta, para eles conhecerem a história, você acredita que eu ainda me emocionei com aquela merda, eu falei assim, “não acredito”. Depois de tanto tempo, olhar o pijama do Getúlio morto eu vou ficar emocionada, ditador, torturador, filho da puta. Bom, enfim.

P/1 - Como era São Paulo para vocês nessa época, o que vocês pensavam sobre essa cidade? Você já tinha vindo antes de mudar?

R - Eu tinha, porque anos antes, teve uma leva de gente da família do vô Gouveia, pessoal de Portugal, que não era exatamente parente de sangue, todos tinham vindo para Mauá, não aquele Mauá chique lá do Rio de Janeiro, Mauá aqui, do lado de Santo André, São Caetano. Uma tia casou, veio para cá e acabou puxando algumas outras irmãs, porque tinha fábrica de porcelana em Mauá, tinha a Real e a outra não lembro, mas também não importa. Então tinha muito emprego, Mauá ainda era bem pequena, aumentou muito agora, mas na época era, não era uma aldeia, tinha estação e emprego, então muita gente veio, as filhas, todo mundo foi trabalhar na fábrica de louça e ganhavam bem e trabalhava, tudo bem. Então foi assim que eu vim a primeira vez que eu vim para São Paulo, na verdade eu passei por aqui, fiquei mais em Mauá do que aqui, depois, eu não sei se foi na mesma vez, mas acho que não, quando eu vim uma outra vez, aí tinha os parentes italianos, da vó Teresa e que aí era uma farra, eles moravam no Brás, era uma espécie de cortiço, mas não era exatamente, porque todos tinha saída para rua, mas era casinha, para mim era uma coisa que não combinava muito com aquilo que eu conhecia em Ribeirão, mesmo onde eu morava, que era um bairro pobre e tudo, as casas tinham sol, eram diferentes. Aqui era aquele chuvisco de São Paulo e uma casinha apertada e tudo meio amontoado, eu fiquei uma coisa meio sufocante para mim. Mas eu tinha esses parentes, então eu vim antes. Eu me lembro dessas duas vezes, acho até que o Brás foi anterior, e depois eu tinha um irmão da minha avó, que morava no Ipiranga, foi ele que arrumou a casa para gente morar, no Alto do Ipiranga, uma casinha lá, quando vem todo mundo para São Paulo, a gente foi para o Alto do Ipiranga. Mas eu conheci assim São Paulo, quando eu comecei a andar sozinha em São Paulo, levou um tempo, mas porque o meu pai ficava… e eu ficava com medo também..

P/1 - Mas quando você veio para cá vocês foram morar no Alto do Ipiranga, você fez vestibular também, qual foi a carreira que você escolheu? Onde ia ser as aulas?

R -

Como eu não sabia o que eu ia fazer da vida, porque só pode ser isso, eu escolhi… família pobre, essas circunstâncias que eu estou descrevendo, eu escolhi filosofia pura, estudar Kant, tem cabimento? Não dá liga! Eu não sei onde eu estava com a cabeça? Eu sou muito honesta, eu não fiz a faculdade, eu fiquei lá 2 anos, mas eu fiz mesmo o bar do Zé, que era ali na esquina. Porque veja bem, eu entrei na faculdade em 1960, tava no auge de todos os acontecimentos políticos, então ali a rua Maria Antônia era assim, o mundo estava ali na rua, então eu não consegui ficar trancada dentro de uma sala de aula, estudando filosofia, que eu amava, porque eu também sempre fui rata de biblioteca, mesmo em Ribeirão, a biblioteca do colégio, às vezes eu sacrificava recreio para ir lá ficar lendo, a biblioteca municipal de Ribeirão eu também ia ler muito, onde havia livro, pegava, e não podia comprar, não tinha o hábito, na minha casa não tinha isso que eu tenho agora. Maria Antônia, então, a rua era muito mais fascinante, porque ali que eu discutia política, porque para mim era uma novidade, poder falar tanto quanto eu falava, ouvi, toda hora tinha palestra de alguém importante lá, e a gente ia ver, depois discutir, ficar a noite inteira falando. Era uma coisa muito… Você imagina uma menina virgem, pura, só com ideal, romantismo na cabeça, primeiro eu caí na biblioteca municipal, onde tinha as pessoas mais difíceis, já usando droga, uma coisa que em 1960, falar de maconha, era um escândalo. Então eu caí nesse antro, felizmente o anjo da guarda era muito grande, umas asas assim. Tinha dois grupos que se dividiam, os mais punks mesmos e os mais estudiosos, bonitinho, igual eu, do interior, ingênuo, bobinhos, tolinhos, éramos nós, mas em compensação… eu entrei em primeiro lugar, quer dizer, todos eles também, nós entramos na faculdade e pelo menos alguns que seguiram, amigos e tal. Nem todos com a minha vocação para rua. Depois tinha passeata toda hora, eu não via a possibilidade, não via não, eu sabia no fundo a possibilidade de união desses dois mundos, é que a rua era mais fascinante, muito mais fascinante, imagina para quem vinha do interior e não tinha esse conhecimento, foi aí que eu fiz as minhas universidades, sou chique.

P/1 - Como é que você ia da sua casa para Maria Antônia ou para o centro, como é que era esse deslocamento? Como era o centro de São Paulo nessa época?

R - Olha, tinha outras formas, mas a principal, de ônibus que saía lá do Alto do Ipiranga, na Rua Vergueiro, até tinha um cinema, um Cine Soberano na esquina, eu morava ali perto, então o ônibus que ia até a Praça Clóvis Beviláqua, já não existe mais, que é ao lado da Praça da Sé, eu descia e ia a pé até a faculdade, eu pegava o Viaduto Maria Paula até a Biblioteca Municipal, durante o dia, e ia para lá, e aí eu subia a Rua da Consolação e entrava na Maria Antônia, a pé, isso eu fazia. E voltava, veja só, dava para ir com certo receio, da Maria Antônia até a Praça Clóvis para pegar meu ônibus, hoje você é louco de fazer esse trajeto, não, nem eu, eu fazia, para ir ainda tudo bem, agora voltar por esse trajeto, eu voltava, pegava o ônibus e ia embora, então era possível você andar em São Paulo.

P/1 - E nessa época você começou a se politizar mais, é isso?

R - Assim, eu não sei quando foi, posso até estabelecer mais ou menos um dado que foi importante para mim. Em Ribeirão, eu tinha uma amiga, a Maria Helena, que tinha um pai que era um poeta, e a casa dela era assim, cheia de livros, o seu Mário, pai dela, foi o primeiro que me direcionou um pouco nas leituras, ele pegava um livro e falava assim, “lê isso, veja aqui”. E um dia ele me deu “O Cavaleiro da Esperança”, do Jorge Amado, que era biografia do Luiz Carlos Prestes, que no fundo, bem no fundo do quintal da minha casa, tinha uma mangueira imensa, e era ali o meu lugar predileto para ler. Eu lembro que eu peguei esse livro, devorei, eu não conseguia parar, evidentemente, o cavaleiro da esperança, o Prestes, virou o meu herói. Então tudo que se relacionava ao Prestes, a luta dele, a mulher, tudo me interessava. Agora você imagina, essa menina, com esse monte de coisas na cabeça, com esse romantismo todo, a própria formação política pegando um caminho romântico também, não foi objetivo, hoje eu tentei, hoje? Atualmente eu tentei reler o Cavaleiro da Esperança, e não dá, porque objetividade passou longe, e ele tem como ser objetivo, mas a escrita é assim, amorosa demais. E foi aí que eu me formei também, politicamente. Agora você imagina, já na faculdade, já me enturmando com o pessoal, principalmente do partidão, por causa do Cavaleiro da Esperança,

e aí, como sempre acontecia com o partidão, de vez em quando tinha bailinho, tinha alguma coisa para arrecadar fundos, “compra o ingresso que o Prestes vai estar lá”. Comprei correndo e fomos. “O baile vai ser hoje em Santana, o bailinho”. E o Prestes estava lá e eu fui cumprimentar, e ele me abraçou, você pode imaginar o que significa isso? Eu não queria que ninguém me tocasse, não pega na minha mão não, ele me abraçou, como se fosse a grande paixão da minha vida, mas era, ele ficava lá, e eu ainda fiquei perto, fiquei ouvindo, ele tava conversando com não sei quem. Eu falei assim, eu não acredito que isso aconteceu. Para mim, de repente, ter visto o Prestes ali, significava assim, se o Prestes veio, tudo pode acontecer. E eu acreditei nisso, mentira, mas eu acreditei.

P/1 - Você falou do Bar do Zé, seus primeiros amigos de São Paulo, da faculdade, você fez ali?

R -

Não, na biblioteca. Na biblioteca eu fiz a minha turma, que me seguiu sempre. Mas tinha um detalhe, os filósofos, que faziam filosofia que nem eu, eram os metidos, porque a filosofia está acima de tudo, psicologia era só para menininha, virgenzinha, que resolvi fazer, tinha um preconceito muito grande e tinha Ciências Sociais, que aí o Fernando Henrique de vez em quando aparecia lá para conquistar alguns e fazer uma palestra. Mas Ciências Sociais para o momento que a gente estava vivendo, era a coisa mais viva, mas ativa, porque estava discutindo aquilo que para nós da filosofia, seria extra, para eles não, era currículo, você está falando daquelas coisas que estão acontecendo ali fora. E aí eu comecei a me afastar da turma, “não, tudo bem, não temos no nosso currículo, mas eu quero, se vai ter uma passeata, eu quero ir na passeata”, era uma coisa meio assim, esnobe! Eu curti um pouquinho esnobismo, mas depois, “não é isso que eu quero, eu quero a rua, se é para ser esnobe, então eu vou assistir aula, aí eu vou fazer direitinho aquilo que eu tenho que fazer”, porque pesava na minha consciência o fato de eu ter movido os meus pais de Ribeirão para São Paulo, e cheguei aqui “não vou estudar, não vou fazer aquilo que eu prometi que eu faria, que eu queria tão doidamente”. Inclusive, quando eu cheguei em São Paulo, tomei conhecimento que existe uma escola de arte dramática, em Ribeirão não tinha nem curso de teatro, e aí uma amiga me falou que existia, que tinha o curso, não sei o quê. Era pago ainda, porque era do Alfredo Mesquita, não estava ainda incorporado à USP. E ela falou “eu vou fazer!” Ela ia fazer Direito, depois desistiu. Eu não posso chegar na minha casa, e dizer: “olha, papai e mamãe, eu vou fazer escola de artes dramáticas”. Quer dizer, não tinha cabimento, uma questão ética, não dava. Era uma coisa muito distante para mim fazer teatro, ser atriz. Ser atriz para mim era Hollywood, não existia, eu não conhecia, nunca tinha ido ao teatro, só fui conhecer o teatro realmente quando eu mudei para São Paulo, e era uma coisa meio impossível de atingir, foi por viés também esquisito, mas enfim. O que eu estava falando?

P/1 - Eu perguntei sobre os seus amigos…

R - Basicamente era isso, era a diferença de propósito, daquilo que queria realmente fazer, para mim era muito fascinante ir numa passeata, ir num bailinho que tem o Prestes, era uma coisa inacreditável. E ao mesmo tempo, eu tinha ainda, como tenho até hoje, a vontade de estudar, de aprofundar o meu conhecimento, isso para filosofia, para física, para tudo, mas é uma coisa que eu deixei de lado, realmente várias outras coisas foram acontecendo.

P/1 - E essas passeatas que você e seus amigos iam, era mais ou menos em que, 61, 62, 63, isso? Era o clima do Governo João Goulart?

R - Sim, antes. Eu fiquei na filosofia, eu entrei 60, 61, 62 eu já estava me afastando, já não estava indo tanto lá, a coisa estava apertando mais também, assim politicamente, tudo estava meio difícil, a gente na Maria Antônia… eu até tive uma lembrança, quando começou essa maldita guerra a Rússia que invadiu a Ucrânia, vou chocar, mas esse idiota desse presidente da Ucrânia, que todo mundo tá considerando um herói, é uma pessoa nociva, que não tem noção daquilo que ele está fazendo, ele está ajudando a matar, porra! E aí eu me lembrei daquilo que aconteceu na Maria Antônia com a gente, nós tínhamos pedras, as pessoas, nós lá da filosofia, da faculdade, nós tínhamos pedra, o Mackenzie que era em frente, tinha arma e munição. Aí de repente eu vejo agora na Ucrânia o idiota no começo da guerra mandando a população, o povo todo, fazer coquetel molotov, você vai enfrentar armas nucleares com coquetel molotov? Quer dizer, essa pessoa, não tem a cabeça no lugar e bota a culpa nos outros. Não que o Putin esteja certo, ele é um filho da puta que invadiu uma nação soberana, uma coisa não justifica a outra, agora vê um cara com armamento pesado, quantas pessoas morreram porque esse idiota mandou fazer o coquetel molotov, isso ninguém diz, não interessa para os Estados Unidos, vão mencionar? Vão mencionar todas as outras guerras que estão acontecendo nesse momento, mas que são países da África, negros interessa para alguém? Não! Vamos prestigiar o povo europeu, os outros, deixa para lá. Bom, desculpa! Desviei o assunto. Mas é isso que eu estou pensando agora, toda essa pequena trajetória da minha vida me conduziu a isso que eu sou agora. Eu me irrito, fico indignada de ver injustiça, quando a coisa não é certa, não é justa, não é possível que eu não estejam percebendo isso. Mas ninguém fala, Globo News não dá, não menciona. “É o herói!” Mas como herói, caralho? Desculpa, tô falando palavrão porque eu falo, faz parte também de mim, eu gosto.

P/1 - Você tava comparando com a Mackenzie, com a exposição..

R -

Exatamente, o coquetel molotov e quando a gente ia para luta mesmo, mas no dia a dia, no cotidiano ali da Rua Maria Antônia, o Mackenzie, não sei se você conhece lá, tem um muro altíssimo na Maria Antônia, que tem tipo, vou chamar de varanda, mas não é, enfim, além de tudo os mackenzistas ficavam lá em cima, nós ficávamos ali embaixo, e ainda polícia vinha e cercava nós, deixa eles atirando em quem quisesse. Lembrando também, que muitos alunos do Mackenzie, iam assistir e torturavam também, assistiam sessões de tortura no DOPS e de vez em quando conseguiam também estuprar alguém, fazia parte. Para o meu azar tive uma neta que estudou lá, não é possível, uma trabalhava numa multinacional e outra estudava no Mackenzie. O Mackenzie não é mais aquele, graças a Deus, entendeu. Mas eu falei, estou pagando os meus pecados.

P/1 - Você começou a frequentar peças de teatros antes de fazer escola ou foi tudo ao mesmo tempo?

R - Eu não fiz escola, sonhava em fazer, mas não fiz. Na verdade, comecei a fazer teatro também pela política, porque tinha uma amiga que conhecia o Fauzi Arap, que trabalhava no Oficina, na época tinha o Arena, o Oficina, companhia de teatro, inclusive de esquerda, e tinha o TBC, que não era de direita, que já tava essa coisa, ainda mais depois que o Fábio Rangel estava lá, não tinha mais essa denominação, mas enfim, era um teatro mais elitista, no sentido de não ter sempre uma proposta, uma ideologia. Mas aí essa amiga conhecia o Fauzi. Um dia a gente foi lá ver o “Zé do Parto à Sepultura”, que era o espetáculo que eles estavam fazendo, e ela me apresentou o Fauzi no final. E aí conversando, não sei o que, o Fauzi disse que ia começar na Maria Antônia, lá na USP, o núcleo do CPC, o Centro Popular de Cultura, que era um braço do partidão, que levava teatro, shows, música, enfim, qualquer coisa, para o sindicatos, fábricas, escolas, onde pudesse para gente apresentar, sempre com uma visão política da situação, enfim. E aí ele me convidou para entrar, se eu queria, eu fui. Aí foi a porta de entrada, o meu contato com o teatro, a gente fez uma criação coletiva, o Fauzi harmoniza a coisa, com música, textos, criação do Fauzi basicamente, e a gente dando palpite. Foi aí que eu conheci pessoas de teatro, o fazer teatral, mas eu não achava isso possível, para mim era uma coisa muito distante, uma coisa que eu gostava por causa de Ribeirão, porque eu declamava poesia, eu fui descoberta lá em Ribeirão. Vou contar isso, essa eu já contei tanto, na verdade até que não, a Bibi que popularizou. Porque assim, no grupo escolar ainda, a professora mandou decorar um poema, todo mundo tinha que falar no Dia das Mães, na classe, e eu decorei, fui lá declamei, ela ouviu e chorou, aí chamou o professor, a diretora, todo mundo ouviu, “ai, que linda”.

Aí eu fui para festa geral da escola, declamei, todo mundo chorou, foi convidada para ir no clube, todo mundo chorou. E eu fui descoberta, entendeu? E aí ficou assim, eu fui crescendo e me levavam, realmente, toda a festinha que tinha família, qualquer coisa, lá ia eu declamar, escolhia uma poesia…Tanto que o diretor do grupo escolar, arrumou até uma professora de declamação pra mim, a mulher era louquíssima, era maravilhosa. Mas enfim, chegou um dia, eu já devia ter uns 14 anos, por aí, que era o dia de homenagem ao soldado expedicionário, em Ribeirão tem o Pedro II, teatro antigo, maravilhoso, em frente tem um soldado jogando uma granada, uma homenagem. Então ia ter uma homenagem a ele, às 7 horas da manhã, as autoridades de Ribeirão e o bispo, que naquela época, sempre qualquer comemoração, do que fosse, tinha que ter um Bispo, um Padre, alguém da igreja católica, eles ainda estavam no poder, e eu tinha sido convidada, e o tiro de guerra, sabe todos os rapazes de 17 para 18 anos, aqueles que eu estava assim começando a olhar, namorar, não sei o que, e eu declamando uma poesia, linda, maravilhosa, mas imensa, cada estrofe começava assim, “sangue na neve e o soldado…. sangue na neve…” E aí, nos dias seguintes eu andava por Ribeirão e eu ouvia “sangue na neve”, eu queria morrer de vergonha, imagina, eu tímida feito não sei o que, eu não saia mais de casa, durou um tempo. Porque aí eu tava trabalhando com a Bibi Ferreira e eu contei essa história, quando a gente chegou em Ribeirão ela contou essa história, falei Bibi agora que eu não saio mais de casa mesmo, mas enfim, faz parte. Mas depois eu parei com isso, aí vim para São Paulo. Então, quer dizer, era uma coisa remota, teatro não tinha muito sentido, eu ignorava mesmo, totalmente, eu não tinha noção que era possível existir uma escola, primeiro que era uma coisa para mim estratosférica, e uma escola de teatro.

P/1 - Era o método Sr. Antônio Gouveia ainda, não é isso?

R - Ha sim, ainda! Agora introduzi outro, lambeu mingau pelas beiradas, sabe como é? Você faz o mingau quente, você põe no prato fundo, você vai comer, se você começa pelo meio, tá quente demais você queima a boca, então você começa na beirada, porque aí esfria mais rápido. Então assim, quando vou fazer uma peça, com um autor que eu não conheço, então eu vou estudar o autor, vou ler as outras obras deles se eu desconheço, vou ver mais ou menos quem é a turma, o diretor com quem eu vou trabalhar, eu vou colhendo dados, que depois eu vou jogar tudo fora e vou fazer a personagem, mas esse lamber o mingau, não vou cair de boca nele, vou queimar a boca. Ah sim, “ah, tô estudando”, mentira, não tá estudando, tá pensando naquilo que você leu, o que importa mesmo é o texto, mais nada.

P/1 - Nessa época o CPC levava vocês para vários lugares como você falou? Fábrica, galpão, tinha cinema também?

R - Tinha sim, principalmente no Rio, onde eu mais tenho informação, no nosso grupo ali, no Maria Antônia, não tinha. Com certeza devia ter, aqui em São Paulo mesmo, outro núcleo qualquer, mas o forte mesmo do cinema era no Rio.

P/1 - As primeira peças que você atuou foi no âmbito do CPC?

R - Olha, você vai me perguntar coisas difíceis, eu vou ter que abrir o meu currículo, eu não guardo nome. Mas no CPC a gente fez essa criação coletiva, que chama “O Balanço”, eu nem considero… Outro dia eu dei uma entrevista, o jornalista também quis esclarecer uma coisa, ele falou: você faz a contagem? Tá faltando uma peça no seu currículo. Eu falei: “não!”. “Mas você começa ‘Onde canta o sabiá’, que é a primeira e não conta ‘ Balanço’”. Porque o balanço eu considero amadora, é uma coisa que não era ainda, na minha cabeça, não era teatro, eu lá sabia o que era teatro? Mas a primeira peça profissional que eu fiz, foi “Onde canta o sabiá”, é uma peça do Gastão Tojeiro, eu trabalhei na companhia da Cacilda Becker, mas na época era o Walmor só que fazia a peça, que eles tinham se separado, estavam voltando, e a peça escolhida não tinha papel para a Cacilda, mas para o Walmor sim, e era assim, com o Hermilo Borba, eu vou deixar esse suspense para vocês depois descobri, olha como eu sou boazinha. Então, o Walmor e a Cacilda, convidaram o Hermilo Borba para vim dirigir a companhia deles, numa montagem que ele tinha feito lá em Recife que foi famosíssima, então era meio que pegar a forma que ele tinha usado lá e passar aqui para a companhia dela. O Plínio já conhecia bastante a Cacilda, a Cacilda gostava muito dele, isso antes de qualquer coisa, e ela convidou ele para trabalhar na companhia dela também. E aí então eu fiz a peça e foi a primeira profissional. Eu estava lembrando outro dia para minha neta, que foi o Walmor que escolheu um pouco o meu nome, porque Walderez de Mathias Martins de Barros, não! Eu namorava o Plínio, não estava casada com ele ainda, então era Walderez de Mathias Martins, e o Valmor tinha que preencher lá o negócio para assinar a carteira, aí ele falou, “mas Walderez de Mathias não é bom, Walderez Martins, muito pobre, Walderez de Barros”. Eu falei assim: mas “de Barros” não é meu, é dele! “Mas paciência. Vai ser! Ele, o Walmor foi o culpado. E quando a minha mãe descobriu, “Que escândalo é esse? Já está usando o nome do namorado, e por que não a família?” Sei que ficou isso.

P/1 - E você namorou alguém antes do Plínio Marcos? E como era namorar nessa época?

R - Não faça como a minha filha, “mãe na sua época tinha beijo de língua?” Falei: “não filha, foi você que inventou!” Era igual, namoro é uma coisa que todo mundo sabe quando nasceu, já sabe, não tem muita diferença. Mas tem sim uma diferença, naquela época e ainda, agora menos com certeza, a diferença nas classes sociais, naquela época era muito conhecido, eu falo classe social e também como eu vou te dizer, tratos, por exemplo, o pessoal da faculdade era diferente, completamente, de uma menina que trabalha numa loja, nesse sentido sim que a moral é variável, ela é elástica, não é rígida, mas é às vezes para determinados estratos da população, mas na época não. Eu tive namorados quando cheguei, quando eu mudei para São Paulo, eu ainda estava namorando com aquele que todo mundo queria que eu casasse com ele, eu também queria, eu gostava muito dele, era uma pessoa ótima, maravilhosa, mas ele não acompanhava os meus sonhos, ele tinha outro sonhos em relação a mim, então não ornava muito uma coisa com a outra, quando a paixão um pouco diminuiu, aí você vê as diferenças que são irreconciliáveis, mas eu gostei muito dele, e assim como ele, depois outros namorados aqui, até que eu conheci o Plínio e fiquei namorando ele. Outro dia eu tava pensando nisso, eu gosto de pessoas que de repente me leva para outro lugar, então a fantasia com esse rapaz de Ribeirão é porque o pai dele tinha uma fazendinha lá no interior do Paraná, e ele não tava podendo cuidar, então o interesse era que algum dos filhos fosse lá dar andamento na fazendinha, mas os outros filhos, um estava quase formado médico e o outro dentista, e o outro não sei o que era, enfim, o único que não estava se formando de nada, que não queria, era o meu namorado. Então a ideia era “a gente casa, vai lá e fica lá”. Então para mim era o velho oeste americano, e eu lá cuidando, os índios vão atacar, era alguma ideia romântica como essa que eu queria, mas de qualquer forma era alguém que ia me levar para algum lugar. Aqui eu também comecei a namorar um rapaz de quem eu gostei, era muito legal, ele engenheiro do Ita, ele estava terminando a faculdade, já tinha um estágio na Alemanha, em Frankfurt, ele ia para lá e queria casar comigo para que eu fosse. Eu fiquei fascinada, imagina se não, “vou para Alemanha”. Aí, graças a Deus, meu anjo da guarda fica bem atento, “não, desfaz tudo!”. E aí eu fico aqui.

P/1 - E você conheceu o Plínio em que ano, como é que foi?

R - Fui lá em Campinas, no festival do Pascoal, eu já estava na faculdade 61 ou 62, foi lá, porque ele não estava com nenhum espetáculo, mas ele já era muito conhecido no teatro amador, por causa de Barrela, ele já tinha apresentado no festival do Pascoal, durante o governo do Juscelino e foi proibido, então ele já tinha essa fama de autor maldito, enfim, eu não gostava nem um pouco.

P/1 - Não gostava nem um pouco dele ou dessa fama?

R -

Não, dele não! Eu era ainda, apesar de tudo que eu andava fazendo, eu era aquela menina virgem, pura, palavrão, as coisas meio esquisitas, precisava provar que era bom, que tinha valor, porque também não era qualquer pé rapado que chegava, sabe, assim esquisito. Depois eu comecei a gostar de esquisito, só de esquisitos. Mas aí a gente se conheceu lá, ele estava com a Pagu, a Pagu já muito mal, no final da vida, ela era dos jurados, e o Plínio estava acompanhando, levando ela, eles eram muito amigos também. E depois, ele começou a ir lá na Maria Antônia me procurar, aí foi o começo.

P/1 - E nessa época você imaginava que podia ter um golpe militar, previa isso?

R - Eu não e pelo menos assim, a minha turma não. A gente sabia que os militares, as forças armadas, dariam o suporte para um golpe, mas não que eles próprios fossem assumir o poder, isso era uma coisa que a gente ainda não tinha experimentado, como experimentado nesses 20 e tantos anos. Agora nós sabemos que isso pode acontecer. Na época, eu pelo menos, não tinha a percepção de que era possível de repente alguma coisa sair do âmbito político, mesmo que seja apoiado, como foi. Antes de eles assumirem,estavam apoiando todo mundo, desde as eleições anteriores, sempre foi assim, eles tiveram sempre um canhão apontado, eleições não eram tão livres assim, nunca foi. Agora, eu pelo menos, era uma coisa assim, que a gente custou acreditar que a coisa fosse demorar, tudo bem, deram o golpe, estão no poder, mas aí vão consertar do jeito que eles querem, prende um, prende outro, faz a limpeza. Que nem o Getúlio fez, para ele poder governar ele prendeu todo mundo, torturou, fez aquela desgraça. Então eu imaginava que seria uma coisa semelhante, não foi, a surpresa foi eles terem ficado tanto tempo no poder, pra mim, não entendo muito de política, é uma coisa muito emocional, tudo em relação a isso, não é, não sou uma cientista política, nunca fui, a coisa é assim emocional

P/1 - Como é que você sentiu no primeiro de abril, em 64? Você ficou com medo por você, por seus amigos, pela sua família, como é que foi isso?

R - No início não! No início era uma coisa assim que a gente ainda tinha um certo controle, fazia aquilo que a gente sabe que estava na cartilha, some todo mundo, perigo de ser preso, dá suporte para um, para o outro, isso a gente obviamente tem que fazer, mas não acreditava que eles fossem se especializar em tortura, em assassinato e sumir com todo mundo, ignorar totalmente qualquer lei, qualquer ordem, nada, eles podiam ter um poder tão forte como foi, poder na mão de fazer o que quisesse e fingir que estava seguindo as leis. Sem contar as besteiras que se repetem até hoje, as besteiras religiosas, falsas, não de um verdadeiro religioso mesmo, e que se mente até hoje, em relação à moral Cristã que não existe. Na época era “tradição, família e propriedade'', a Marcha das mulheres de Santana. Pra que, caralho? Desculpa, soltei outro.

P/1 - Uma coisa que eu achei interessante que eu vi em outra entrevista com você, não foi nem para esse projeto, mas na TV mesmo, que você fala que sempre teve dúvida em ser atriz, você tinha antes em Ribeirão, ou mesmo quando chegou em São Paulo, alguma outra coisa que você pensava em fazer ou em ser?

R - Pois é! Até uns anos atrás eu dizia isso, que eu não sabia o que ia ser quando eu crescesse, depois eu comecei a ficar com vergonha, porque ninguém entende a piada, aí eu parei de falar, mas eu ainda acho isso. Agora eu criei uma outra versão do mesmo fato, que é assim: eu comecei a dizer que eu me sentia uma impostora, que em qualquer momento ia chegar atriz e dizer, “sai daí, você não é atriz”. E aí de repente, mais ou menos na mesma época, eu descobri numa matéria que existe agora, não é uma doença, é uma síndrome de impostora, então eu falei assim, o meu não é doença, o meu é gozação, eu sei que eu não sou a impostora, mas eu me sinto como se fosse, entendeu? Porque nunca, como eu realmente não sabia o que eu ia ser quando crescesse, eu ficava criando, quero ser filósofa, vai todo mundo para Ribeirão porque eu quero entrar na faculdade, quero fazer faculdade, agora, objetivamente, o que eu ia fazer? Ia dar aula, sei lá o quê. Eu sonhava, eu cheguei a correr atrás de ir para Sorbonne fazer o curso lá, mas a minha mãe ficou com câncer na mesma época e eu cancelei tudo e fiquei cuidando da minha mãe, mas na verdade eu não tenho. Lembra quando eu falei do meu irmão que tinha a tabuletinha, “Ei de vencer”, e ele fez todo aquele projeto, compra o terreno, vende terreno, pega dinheiro, faz isso, aquilo, não sei o quê, enquanto isso eu fiquei em Ribeirão, “quer ir para lá, quero ir para São Paulo”? Eu não fiz nada e até hoje eu não sou uma empreendedora, eu sou da turma da procrastinação, eu sempre deixo para amanhã o que eu posso fazer hoje, eu tenho uma chance mínima de adiar um negócio para amanhã, eu vou deixar. Então eu não sou aquela que faz, mas eu invejo, que nem meu irmão, que desde pequeno falava “eu quero ser engenheiro”, e ele foi ser engenheiro, um excelente engenheiro, enquanto estava trabalhando fez projetos para a ONU, depois que se aposentou ele era Voluntário da ONU, ia para a África construir não sei o quê, isso ele quis desde que nasceu. Agora eu, eu não sabia o que fazia, Ribeirão não tinha teatro, aquilo que eu poderia ter me apaixonado, eu não tive acesso, porque era pobre, porque se eu vinha para São Paulo eu não ia ver o teatro, teatro era Hollywood aquilo que eu digo. Eu não sei o que eu vou ser quando eu crescer até agora. Eu gosto da novidade também, eu gosto que me traga coisas novas para fazer, quando eu sinto umas duas, três vezes fazendo tudo igual, “epa!!! Tá na hora de cair alguma coisa na minha cabeça” e sempre aparece. O mais esquisito, o que vai dar menos publico, que vai dar menos dinheiro, sou eu, eu vou lá. Eu lembro que as conversas com o meu irmão eram muito esquisitas, isso antes, porque sempre a preocupação dele era com o dinheiro, “vou fazer uma peça, um filme, não sei o quê”. “E quanto você vai ganhar?” Eu falava: “eu não sei ainda”, ou então, “vou ganhar porcentagem''. “Mas não vai ninguém, como é que você vai ganhar porcentagem?” Aí quando eu comecei a trabalhar na Globo, ele falou: “agora você está ganhando bem?” Aí eu falei: agora eu estou! Aí ele falou: mas não é tanto? Eu falei: calma, depois vai aumentar! “Mas você já devia estar pedindo agora”. “Ainda não é a hora”. Então era uma coisa esquisita, mas a gente se adorava. Na época da ditadura, inclusive, cheguei a brigar muito com ele, porque ele achava que eu e o Plínio estávamos exagerando. “Se você tem uma ditadura, se está proibindo você fazer, porque você tem que fazer?”. “Porque a gente quer derrubar essa ditadura, caralho. Então eu tenho que forçar a barra, não posso ficar acomodada”. “Você devia cuidar da sua vida”. Que nem ele cuidava da vida dele. Mas nem passava pela cabeça dele ficar contra o governo, contra uma ditadura, e ele ficava puto comigo, porque ele tinha preocupação. Quando o Plínio foi preso, várias vezes que ele foi, ele ficava assim: mas o que que ele fez? Tipo assim, eles tem razão? Os ditadores tem razão? Ele fez alguma coisa errada? Falava, “fez sim, ele quis matar um cara”. Mentira, não era nada! Felizmente, meu anjo da guarda me protege mesmo, porque a gente ficava sempre nessas picuinhas, então a gente se falava pouco, ia um na casa do outro, almoço, jantar, não tinha briga, nenhuma, nenhuma. Mas no final da vida dele, ele pegou uma doença cujo nome eu nunca decorei, não sei, e ele tinha que fazer diálise todos os dias e ele acabou morrendo durante a diálise, mas ele ia fazer, e no começo ele levava livros, para ficar lendo um tempo e depois ele começou a telefonar para as pessoas, e ligava para mim diariamente, a gente nunca conversou tanto na vida, porque aí foi uma coisa muito gostosa, a gente ficou assim, você lembra daquilo que papai fez, não sei o que, lembra daquele cara não sei o quê? Então ficou a coisa das lembranças e eu descobri que todas as coisas que me irritava que ele fazia em relação a mim, meio fiscal, mesmo solteira ainda, se eu chegava atrasada era ele que me dava bronca, e ele não tinha esse direito. Aí eu comecei a entender assim o carinho que ele tinha por mim e a preocupação, mas ele não queria dizer, “não, você não vai lá”. Mas ele queria que eu não fosse pelo meu bem estar, tudo errado! Mas no fundo ainda tinha essa coisa amorosa, e a gente conversava todos os dias na hora da diálise, só se eu tivesse trabalhando e impossibilitada mesmo. Então, mas ele é esse cara, esse cara que programou a vida dele, quando ele começou a ganhar dinheiro, ele comprou uma mansão perto da Cidade Universitária, ele falou: porque os meus filhos vão fazer faculdade aqui e eu quero que eles venham a pé, para não ter que pegar condução. E os dois filhos, um é médico e o outro engenheiro, e eles vão a pé, foram a pé, porque hoje já casaram, mas eles iam a pé para a Cidade Universitária, fazer faculdade. Então até isso ele previu, sabe, ele organizou a vida dele de um jeito, que se fosse a minha, “aí sufoco, quero sair daqui”. Então por isso você me fez uma pergunta, eu estou respondendo com isso. Eu não sei, ainda o que eu vou ser quando eu crescer, não sei se eu vou ter tempo inclusive de ser, tá acabando eu já estou entrando assim, prazo de validade está acabando.

P/1 - Mas na época que você começou a atuar nos palcos e depois nas novelas, os autores, as atrizes, os diretores… a sua atuação não provava para você que você estava nesse caminho, que você atuava perto de pessoas que tinham método de atuação, tinha estudado, como que era essa relação com os companheiros?

R - Eu me lembrei de uma coisa, quando eu falo que eu não sei realmente o que eu vou fazer, é porque para mim importa aquele momento, eu não consigo fazer planos, eu consigo fazer sonhos, só, sabe? Então, eu me lembro, por exemplo, uma coisa que eu estava lembrando, uma outra entrevista que eu dei. Aquela primeira vez que eu disse a poesia das mães para o colégio inteiro, dia das Mães, que fez maior sucesso. Eu era tímida de não conseguir falar com a professora. De repente, eu falei para o colégio inteiro, um monte de gente, mas eu me senti muito bem, toda timidez sumiu, entendeu? E eu olhava e via que as pessoas estavam escutando aquilo que estava falando. Isso eu estou racionalizando agora, mas eu comecei a juntar pedaços dessa memória, pedaços de como eu me sentia bem quando estava fazendo alguma coisa semelhante, e que refletiu nas coisas que eu fiz depois no teatro mesmo. O fato de eu me sentir muito bem quando estou representando, quem lida com arte sente isso, não é sempre, mas acontece de você ter uma plenitude quando você está fazendo qualquer obra de arte. O teatro, às vezes, não é todo dia, toda hora que você sente isso, às vezes você precisa estar plena para você ter a plenitude de um momento de criação artística. Explicando de outra maneira o que eu quero dizer, talento você nasce com ele, então por exemplo, eu nasci com talento para representar papéis, para ser atriz, e eu sou excelente no que eu faço, eu tenho certeza, não é vaidade, não é nada, é simplesmente, eu nasci com isso! Agora vocação é outra coisa, eu não tenho muita, agora talento eu tenho. Então eu não estou inventando nada, eu posso fazer isso muito bem e isso me dá prazer, estou simplesmente aprimorando uma coisa que já é minha. Agora não significa que eu queira exercer esse talento, ao mesmo tempo eu fiz de tudo, eu sempre digo assim, o teatro que me procurou, não fui eu que procurei o teatro, é karma, é uma coisa que você tem que fazer, você tem esse talento e se você não exercer, você vai passar mal, você não vai ser feliz. Agora, ao mesmo tempo, eu quero fugir disso, porque eu quero uma coisa que seja a outra, que me leve para outro lugar e não existe, é só isso mesmo. Mas eu continuo achando, que a qualquer momento… vou dizer uma coisa que não é exatamente a verdade, mas é quase, é muito fácil, eu pegar e fazer um papel para mim agora, é fácil e eu gosto das coisas difíceis, que aí significa uma superação de eu conseguir aprimorar outras partes minhas, enfim. Então a impostora existe, essa síndrome existe, a qualquer momento alguém pode dizer, “ela não gosta de teatro”. Eu gosto, eu piso no palco, eu gosto de vocês todos. A minha vida inteira, não foi a coisa mais importante, foi tão importante quanto outras coisas. Houve uma época que realmente o teatro me salvou, me segurou pela mão, se não eu teria me afundado mais, mas eu não posso dizer assim, “eu não largo os meus filhos pelo teatro”. Larguei no sentido, “tenho ensaio e não vou faltar,” organizo de uma maneira que eles fiquem bem, e vou trabalhar.

P/1 - Você se casou com o Plínio Marcos, vocês tiveram filhos? Qual o nome dos seus filhos, quando eles nasceram?

R - Eu casei com o Plínio em 63, e aí o Léo, meu primeiro filho, Leonardo, nasceu em 64, nasceu em setembro, já havia sido o golpe. Dois anos depois, nasceu o Ricardo, em 66,

depois passaram-se vários anos. Plínio sempre sonhava em ter uma menininha, e aí a gente já tinha os dois moleques, num período difícil inclusive, ditadura, essa coisa. E depois, em 73, nasceu a minha filha, finalmente a menininha. O que você quer que eu fale, me desculpe.

P/1 - Só perguntado o nome deles, por enquanto. Como que era a casa de vocês, como era o dia a dia, criar os filhos na ditadura?

R - Olha, uma historinha assim, eu sempre, quando eu via os relatos do que acontecia, nazismo, Alemanha, Hitler, eu sempre pensava e todo mundo pensa de alguma maneira nisso, como que as pessoas viviam sabendo que estava acontecendo, todo mundo preso, judeus, matando, mesmo que não soubesse exatamente a extensão da coisa, mas sabia o que estava acontecendo. Como é que conseguiam viver, que vida era essa? De repente eu vivia a mesma situação, não em grau tão exagerado, mas aqui também. Então durante 20 anos de ditadura, eu fui ao cinema, ver os filmes que eram liberados, nem todos, a maioria não, eu ia ao teatro ver o que os meus colegas estavam conseguindo fazer com os cortes que havia em todas as peças, eu fui a jantar na casa de amigos, eu fui à festas, eu vivi, eu levei os meus filhos em festinha de aniversário, eu busquei os meus filhos em festinhas de aniversário, fui nas lojas comprar brinquedos para eles, quer dizer, eu vivi uma vida burguesa, como todas as famílias burguesas vivem, com todas as mesmas coisas. No entanto, o meu marido poderia ser preso a qualquer momento. Então tinha todo um processo que tava lá, a gente fingia que não estava, mas estava. Tem uma coisa, isso não é nem parentes, é colchetes, filosofia barata, tem lugar na vida. Mas assim, sempre quando ou morre alguém, tem uma perda muito grande, digamos morreu o marido de alguém, a pessoa vai chorar, vai ter o período de luto, de desespero e depois popularmente se fala, “vida que segue”. E depois de um tempo de luto, você vai viver, ou você se mata, ou a vida se impõe, eu sempre fiquei pensando nessa coisa, a vida se impõe, e de repente é uma verdade, de repente nós estamos numa ditadura, meu marido pode ser preso, pode ser torturado, podem assassinar ele, jogar no oceano, como fizeram com tantas pessoas. E no entanto eu estou vivendo, cuidando dos meus filhos, eu estou cuidando do jantar, eu vou no supermercado, a vida se impõe, eu acho isso terrível, acho trágico, porque se você pensa nisso como a vida em si, é a tragédia da nossa existência, nós não temos o menor controle dessa merda, a gente acha que tem, quando pensa que tá mandando em tudo, é uma merda, desaba a casa na sua cabeça, qualquer coisa assim. Mas a vida se impõe, eu fico espantada de ver que eu vivi isso, que eu achava impossível, difícil os alemães viverem ali, mas eu segui a vida, eu tinha que cuidar dos filhos. Eu acho assim, como que eu vou dizer, tudo que a gente fez naquele período, tinha essa coisa subterrânea, por baixo, porque era impossível, quando você pensava que a coisa tava até se acalmando, ia acabar, não sei o quê, acontece aquilo com o Vlad, de repente colocam aquela foto, matam ele, e dizem que ele se enforcou. Isso tinha anos e anos, de acontecimentos semelhantes. Eu tinha criado a ilusão que a coisa agora ia se acalmar, nunca acalmou. Então, as notícias que a gente tinha, como tem agora, que de repente vem alguém e fez uma coisa tão absurdamente

apavorante, que você não acredita que aquilo foi feito, e foi. Mas eu fiquei pensando muito, em função do que você falou, de fazer uma entrevista comigo, a gente falar da ditadura e tudo. Primeiro lugar, eu acho fundamental que seja feito esse registro, porque a gente não pode esquecer, tem coisas que não pode esquecer, que tem que se martelar, que tem que se falar, que tem que se publicar, não pode esquecer, não pode deixar barato, não pode não falar a respeito. Eu acho que eu sou muito privilegiada, porque eu não perdi o meu corpo, e nem a minha vida para ditadura, não me tiraram isso, não me tiraram o meu marido também, mas há outras pessoas, que perderam o corpo e a vida. Eu lembro sempre da Heleny Guariba, essa sim é uma verdadeira heroína contra a ditadura, contra o regime militar, ela foi foi minha colega na faculdade, ela, o Ulisses, marido dela, a Heleny era uma garota como eu, que amava os Beatles e os Rolling Stones, que de repente foi torturada barbaramente, soltaram só para poder matar em seguida. No final da vida dela, ela lutou porque acreditava naquilo, deu a vida por esse país, ela é uma heroína, ela perdeu muito, perdeu a vida, não teve isso que eu estava falando, da vida que se impõe, quem se impôs mesmo foi a ditadura, que massacrou com Heleny, acabou. Ela sim, motivo que eu reverencio, graças a Deus, ela é lembrada, as pessoas que realmente sabem o que foi a ditadura, sabem quem foi Heleny Guariba. Eu vivi um cotidiano de regime militar, mas o que que eu perdi, eu perdi trabalho, dinheiro, uma situação mais cômoda de vida, mas isso não é nada, isso eu não considero nem perda, não é nada, realmente não é nada, em vista de pessoas que realmente deram a vida por isso. Eu lembrei também agora, puxando mais para o lado do cotidiano mesmo, eu falei muito dos filhos. Então veja bem, eu tenho esses três filhos, o Leonardo, o primeiro, a gente morava ainda na General Jardim e tinha na Marquês de Paranaguá um Casarão que era uma escolinha, que a Marlene França tinha o filho dela e ela comentou comigo, a tia Carminha é uma casa, uma família, as filhas dela são professoras também, o meu filho melhorou indo lá. Enfim, um papo de mãe burguesa, coloquei o meu filho lá, posteriormente, a gente foi muito criticado, porque o Plínio Marcos, revolucionários e os filhos estudam em escola paga e não pública. Mas é aquela coisa, de repente a Carminha, diretora da escola, fundadora, eu aprendi verdadeiramente o que é uma educadora. Eu vou contar um fato que aconteceu que eu só fiquei sabendo muito tempo depois, aí já tinha outro filho lá também, o Léo, a Aninha não, porque é bem depois. Mas os dois meninos estudavam lá, e eu sempre, desde o início, quando eu precisei, que aconteceu muito, sem grana, eu fui falar com a tia Carminha, “quando você puder você acerta, não se preocupe”. Perdoou a dívida, foi maravilhosa na questão financeira. Aí muito tempo depois, eu estava conversando com uma outra mãe, e eu falei: eu acho que eu vou ter que tirar os meninos daqui, porque está muito caro, a gente não está em condições. Ela falou: se eu fosse você, eu não tirava, depois do que ela fez por você. “Ela faz sempre, não me cobra, facilita, pago no ano seguinte”. Ela falou: “não é isso, os seus filhos estão aqui porque tia Carminha exigiu”. Um grupo de mães foi falar com ela, dizendo que não queria que os filhos delas estudassem na mesma escola que os filhos do Plínio Marcos, e que queria que a tia Carminha tirasse, expulsasse os meus filhos de lá. E a tia Carminha falou: não, se você quiser tirar seus filhos é problema seu, mas os meninos vão continuar aqui, estudando. Eu vim saber isso depois, entendeu? Quer dizer, além de toda a facilidade que ela me dava de pagamento, de tudo, ela bancou a escola dos meus filhos, isso é ser educadora. Aí depois, claro, eu fui falar com ela, mas ela brincava, desconversava, não quis tocar no assunto. Mas isso é uma pessoa que não é de esquerda, direita, ali era um fato humano, estavam querendo mexer com crianças que não tem nada a ver com ditadura, não tem nada a ver se o pai fala palavrão, se escreve peça pornográfica, não tem nada a ver com isso, são duas crianças que estão na mão de uma Educadora, e ela não vai jogar essas crianças no lixo, só porque é um grupo de mães burguesas, que tem dinheiro, que pode pagar em dia, e eu não sei nem se eu posso pagar, quanto mais em dia, então isso é um exemplo do cotidiano da ditadura. Essas mães representam todas as marchadeiras lá de Santana, que deram golpe, que ajudaram golpe. Então essa era a mentalidade da burguesia na época, você não pode misturar os filhinhos de papai que tenha uma boa educação, que são todos certinhos, você não pode misturar com filhos de um bandido, que fala palavrão, se veste mal. Isso é uma coisa que a gente vivia. Como o racismo, que infelizmente…. racista, mas era a mesma coisa que a gente enfrentava sempre, em qualquer situação, a gente não era bem visto, a ditadura quer pegar torturar e matar, a burguesia, as madames todas, querem distância, não quer nem ouvir falar daquele ser, não faz parte do clube, isso era o cotidiano, acontecia sempre. Eu fico besta de lembrar, às vezes, algum gesto do zelador do prédio que a gente morava, que de repente um dia vem para mim, muito reservadamente, fala: olha, tem uma pessoa, não sei quem é, que passa sempre para lá, para cá, quando vê o seu Plínio, fica parado, anota umas coisas. Ele me deu a dica, a senhora presta atenção, mas um dia deram um jeito e levaram o Plínio. Mas enfim, você tem assim, o gesto de um de outro, mas que não podem fazer, se descobrem ele vai preso, torturado, morto e jogado no oceano.

P/1 - Você tinha preocupação com o que os seus filhos iam aprender, eu imagino.

R -

Eles tinham aquela matéria, como é que chamava?

P/1 - Educação Moral e Cívica?

R -

Educação Moral e Cívica. Eles ouviam em casa, aliás, uma coisa era o que a gente plantava neles como uma visão de mundo mesmo, como educação que deve ser, e outra coisa é o cuidado… eles reclamaram disso depois que cresceram, mas um cuidado que a gente tinha, de não falar nada na frente deles, porque a gente não podia comentar, prenderam fulano e foi torturado, não sei se vai viver. Isso não posso falar, porque eles podem ir na escola e comentar isso, então jamais a gente comentava na frente deles de prisão, de tortura, de alguém que estivesse situações difíceis, mesmo a nossa vida era uma coisa assim, papai não tem dinheiro, como a maioria não tem dinheiro, porque tá sendo perseguido censura, não pode mostrar nenhuma obra, não pode montar nenhuma obra, então por isso que não temos grana para comprar o brinquedinho que você quer, porque é muito caro agora, a gente não dá essa explicação toda, só diz que papai não tem dinheiro, papai vai ganhar, mas por enquanto não tem, mamãe então… Como eu fazia as peças do Plínio em geral, no início pelo menos, se as peças são proibidas, eu não trabalho. Então também dificultou muito para mim, sem contar as peças que foram proibidas, que nem o Abajur Lilás, que foram proibidas nas vésperas da estreia, e acabou, não tem mais. E as peças do Plínio, eram sistematicamente proibidas. Então era um período difícil. Apesar de tudo… isso está acontecendo agora também, é aquela coisa pode fazer o que quiser, pode matar, torturar, jogar no lixo, vem outro e faz igual. Nós somos artistas, artista lida com criatividade, então não adianta, porque eles não vão acabar com a gente, eles pensam, não, não vão! Como não acabaram na época da ditadura, vê se o Chico deixou de fazer alguma música, porque era sistematicamente proibido também, não! No início, quando iam pegar, como fizeram com Caetano e Gil, mas iam pegar o Chico também, O Chico foi antes para Itália ficou lá trabalhando, e o Gil e o Caetano tiveram que sair na marra. Mas o que fizeram? Foram criar, foram escrever músicas que são cantadas até hoje, até pelos filhos dessas bostas que estão aí. Não matam a gente, não conseguem. Isso deve ser um desespero também. O Chico, para mim, a melhor música dele, “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Quer melhor tapa na cara do que esse, porra! Vou mandar o Will Smith para aprender dar um tapa verdadeiro. Bom, enfim, isso é outro assunto.

P/1 - Como é que aparecia a censura, o censor na vida de vocês, em que momentos aparecia?

R - Todo um processo macabro. Então, por exemplo, no caso do teatro, as artes em geral, se você fazia alguma obra qualquer, artística, você tinha que mandar para o departamento de censura em Brasília, então o censor e um grupo iam ler a peça e resolver se proibia ou não, ou se havia uma possibilidade de negociação, corta aqui, corta ali. Geralmente o produtor era chamado até Brasília, não é ali na esquina, para negociar, aceitar os cortes, a peça ser liberada, ou perder tempo, não vai, tá proibida. Geralmente tem aqueles autores que já estão proibidos pelo nome, o Plínio teve alguns casos específicos, que fugiu um pouco essa regra, mas por outras razões. Mas aí o processo normal, então digamos que o censor lá, “vamos cortar essa cena, corta essa palavra, a gente libera”. Só que não bastava, para todas as peças, mesmo as que fossem liberadas, você tinha o ensaio para censura, aqui em São Paulo tinha duas mulheres que era a censura, e que marcavam, tipo 9 horas da manhã para ela ir ver o espetáculo, sabendo que a gente ensaiava até de madrugada, que é o horário que a gente tinha o palco livre, para poder ensaiar e ela sentava na primeira fila, não admitia ninguém, só as duas, e a gente tinha que passar espetáculo para essas duas. Digamos, uma comédia, as duas peças clássicas, tragédia, drama, ou as escritas por autores brasileiros, eram proibidas. Então às vezes você tinha que representar para as duas idiotas, lá sentadas, olhando a peça, no fim, levantava, vinha embora e você não sabia se era liberado ou não. E ainda demoravam para dar o carimbo, porque não tinha tempo, tinha muita peça, e a gente precisando do alvará, senão você não estreava, demorava, já demorou desde Brasília, porque o processo de fazer uma peça, você começa escolhendo texto, alugando um teatro, contratando os atores para fazer aquele espetáculo, vai ter 2 meses de ensaio, depois estreia dia tal. Só que antes de se iniciar o processo, você manda para Brasília, agora, se vem logo depois, você não tem mais o elenco na mão, porque cada um vai fazer uma coisa, você demorou muito. A mesma coisa, você aluga o teatro, você tem que pagar, se você não ocupa, você vai pagar o teatro. Então muitas peças que foram proibidas, deram prejuízo. Então é assim, aí essas duas proíbem, ou liberam, dá o carimbo da censura, e aí a gente pode fazer, muitas vezes com a peça mutilada pela censura, isso acontece assim, em todos os jornais, sabendo que tem um censor nomeado que ficava, e aí o Estadão publica receita de bolo em todas as matérias que foram proibidas. Que mais, eu tinha lembrado de uma outra coisa. Pergunta alguma coisa.

P/1 - Em Belo Horizonte havia um censor que tinha sido escalado para censurar o Chico Buarque, só que um tempo depois ele queria um autógrafo do Chico Buarque, o próprio censor, não sei se você já ouviu essa história. Vocês conheciam alguns censores?

R - Tinha um censor, Coelho qualquer coisa, não vou lembrar o nome inteiro, pesquisa. Tem um livro, explicando algumas coisas, era um cara inteligente, dava até para conversar com ele, tinha uma argumentação e principalmente conhecia, não era um idiota, teve um caso lá no nordeste, parece… a peça tinha sido proibida, um clássico grego, mas era assim. Esse Coelho, ele era uma pessoa com quem dava para conversar, mas ninguém queria conversar só para ver se trazia ele para o nosso lado, só queria que liberasse as peças, mais nada! Conversar a gente tinha gente melhor do que ele, mas ele de qualquer forma era um que circulava, tinha um interesse intelectual no assunto.

P/1 - Como é que foi os contatos para você entrar na televisão?

R - A época que eu comecei a fazer televisão, estava começando a carreira, mesmo em teatro, nem sabia direito como ia ser. Mas enfim, foi na Tupi, aqui em São Paulo na televisão Tupi, que era Globo da época, a Globo estava começando, não tinha nada, programação. O forte mesmo da audiência, de tudo, era a televisão Tupi,

daqui de São Paulo. Tanto aqui, como no Rio. As novelas em geral eram as mexicanas, traduzidas, a Glória Magadan, era uma coisa assim, aqui também ainda não tinha essa… a novidade do autor brasileiro. Até que o Cassiano Gabus Mendes pediu, encomendou para o Bráulio Pedroso, uma novela que o argumento era do Cassiano, era o Beto Rockfeller, e aí o Bráulio escreveu, falava do cotidiano daqui, não era mexicano, não tinha nada de ilusão, era uma coisa do cotidiano de um picareta Paulistano, e fez um puta sucesso, quebrou os paradigmas da televisão e foi um estourou. Contando isso, foi assim, porque quando começou, o Plínio ia fazer e fez, porque quem fazer o Beto Rockfeller era o Tatá, só lembro do Tatá, e o Plínio fazia o Vitória, que era o amigo do Beto, fazia um grande sucesso na época. E aí, como eu era um pouco a parte corriola da turma, acho que o Cassiano mesmo falou…a Ana Rosa fazia a namoradinha dele, o Vitório gostava da Ana Rosa… como toda mocinha, tem que ter uma amiga, tem que ter um cavalo, alguma coisa com quem conversar, entendeu? Porque se não a mocinha fica só sonhando, então eu entrei para fazer a amiga da Ana Rosa, com quem ela podia conversar, e também seria uma coisa provisória, porque depois, pelos planos da novela, que depois mudou tudo, o Vitório que era apaixonado dela, ela ia namorar, então ela ia ter com quem conversar, não precisar da amiga, certo? Eu comecei a gravar ela, eu me lembro que era 10 capítulos que eu tinha que fazer, era uma participação só, e pra mim tava ótimo, eu estava começando, eu realmente nunca tinha feito. Tinha feito umas pontas, figuração. Aí fiz e continuaram a chegar os capítulos com a minha personagem, e eu continuava fazendo, mas era cachê, não era um salário mensal, eu continuava recebendo por dia de gravação, só que eu entrava todos os dias, e eu comecei a ganhar muito bem, isso eu estou contando como fofoca. Aí ele já tinha começado o período em que a TV Tupi atrasava o salário, já estava naquele período de decadência da televisão e todo mundo com salário atrasado, todo mundo reclamando, e eu achando ótimo. Até que um dia, no intervalo da gravação, lembro que tava o Walter Forster, Irene Ravache e eu, e a Irene falando com Walter Forster, além de um grande ator, ele era um dos diretores , junto com Cassiano diretor-geral da Tupi. E a Irene começou a dizer, “não pode atrasar, a gente não recebe”, reclamando com ele. E eu falei: eu, graças a Deus recebo muito bem, recebo em dia, porque o meu cachê é pago na hora, você grava o negócio, vai no caixa e recebe, eu estou ganhando muito bem e recebo na hora. “Como?”. Aí eu expliquei, era para fazer 10 capítulos, mas eu já tenho mais de um mês, entrou no segundo mês e eu continuo aparecendo, o papel foi subindo, foi aumentando e eu continuo ganhando cachê, eu não quero mudar. “Não, não, não! Filho da puta”. Foi lá e mudou, me fez um contrato, eu tive que assinar, e aí passei a não receber o salário. Falei: porque que eu fui abrir a boca? Isso é um incidente. E foi aí, porque a novela fez um sucesso estrondoso, e realmente eu continuei o papel, continuou novela, porque a mocinha, os planos não foram aqueles, e a mocinha tinha que ter com quem conversar, que era eu, amiguinha dela. E depois… o Beto demorou até, mais de ano, depois eu continuei fazendo na Tupi algumas coisas também, fiz em seguida uma outra novela, depois fiz com a Yoná uma novela Argentina, Simplesmente Maria, é um dramalhão maravilhoso, adorava, um pé no circo que eu tenho. Eu me lembrei de um fato, durante o Beto, o Plínio foi preso em Santos, porque tinha todo um processo, tinha meio que o manual, se alguém é preso, imediatamente você tem que… lembre, não havia internet, só havia um precário telefone, então você imediatamente tinha que avisar todo mundo que Fulano foi preso, aí sempre tem um que tem um contato não sei com quem, o genro é amigo do filho do General não sei das quantas, alguém que não sei o quê, para você localizar, saber para onde levaram essa pessoa, porque se ninguém viu, e geralmente eles faziam na moita, quando interessava, e eles não diziam, sumiam com o cara, não diziam para onde ele foi levado. Então ele não foi preso, não está em lugar nenhum, e nessas alturas eles torturavam, matavam e jogaram no mar, e você não podia provar que o Fulano foi preso, por isso… imediatamente quem tá próximo de alguém que foi preso, começa a espalhar, telefona para um, para outro, para outro, até que a gente consiga localizar, ta ali… Nesse dia a gente localizou, não sei quem, o Cassiano mesmo, tinha contatos, o Cassiano jogou com a coisa, “é que a gente está fazendo uma novela, é só para saber se amanhã eu posso contar com ele ou se eu não posso”. Enfim, isso ele tinha feito em outro lugar, até descobrir onde ele estava, ele estava preso lá, o Plínio. E aí no dia seguinte, eu e o Walter Forster fomos lá no exército, e foi muito engraçado, porque em certas situações, eu tinha meio que combinado com o Plínio, se os dois ficam revolucionários, é perigo, nós tínhamos os filhos pequenos. Então eu vou para o sacrifício, eu sempre vou agir na retaguarda, e eu sou absolutamente burrinha, eu não sei de nada, “ditadura? Nunca ouvi falar.” E nesse dia foi muito engraçado, porque chegamos eu e Walter Forster, foram avisar o General não sei das quantas, só que o Sargento que recebeu a gente, avisou… porque no fundo tinha um pátio imenso, e tinha um pelotão lá fazendo Codi Unida, e lá no fundo tinha umas celas e em uma, estava o Plínio. De longe eu abanei a mão, e eu vi que ele respondeu… Aí diante do pelotão tudo, “Plínio, olha, as crianças estão bem, eu trouxe cigarro, viu amorzinho, logo, logo, você vai sair”. E o pelotão todo, quem é essa doida! Aí finalmente chamaram a gente lá para falar com general, e o Walter, “não, nós não estamos pressionando nada, se ele não puder amanhã estar lá, nós vamos dar um comunicado, dizendo que ele está aqui no quartel, se os fãs quiserem ele daqui pode falar, culpado, inocente”. A gente fez putaria com ele. Daí o general falou que ia resolver e soltou o Plínio, claro, no dia seguinte… Mas esse, tô dando um exemplo, eu acho que foi a primeira vez que ele foi preso. Estou fazendo um relato cômico, de uma situação que não era, porque como artistas, como o diretor geral da televisão Tupi, que na época tinha uma força como a Globo hoje, então se alguém da Globo é preso, que importa a Globo soltar, porque se não importar também foda-se, eles não estão nem aí. A Tupi era a mesma coisa, mas interessava para o Cassiano libertar o Plínio, porque o Beto Rockfeller nas alturas de audiência, e o Plínio um grande sucesso, o personagem dele. Enfim, ninguém é bonzinho nessa história. Eu estou contando de uma maneira cômica, porque a gente fez com que a coisa ficasse mais amena, mas as outras vezes não foi assim, mas sempre o princípio básico, onde ele está? Para onde ele foi levado? E quando ele foi preso em Santos, correu boato, que ele ia embarcar, porque ele fez aeronáutica, ele foi da Aeronáutica, jogava futebol, era considerado como um dos nossos, mas estavam dizendo que ia botar ele no avião e ele ia ser levado para o Rio de Janeiro, para ser preso lá, porque aqui em Santos todo mundo conhecia, seria facilitado, só que nessa travessia, podiam jogar ele no mar, porque ele foi preso onde? Quando? Então era a mesma coisa, você tinha que imediatamente informar e descobrir um general que a filha casada com o irmão de não sei quem, claro para soltar também, mas o fundamental é você saber onde está, do quê que ele é acusado? Quanto tempo ele vai ficar preso? Eles não têm obrigação de dar essa informação, na ditadura informa se quiserem, mas a gente quer saber, pelo menos alguma coisa escrita que comprove que ele está lá, isso que a gente fazia sempre. Uma vez que ele foi expulso, não sei se foi dessa vez, eu confundi um pouco uma vez com a outra, data, tudo isso fica uma mixórdia na minha cabeça, mas uma das vezes que ele foi preso, eu fiquei sabendo, e aí eu fui…..tem procurar alguém importante para tirá-lo da cadeia. Cássio não podia, estava viajando com uma peça. Aí eu fui na casa do Alberto D ́Aversa, é um dos Italianos, famosos, maravilhosos, diretores, que estavam fugindo do fascismo e que vieram aqui para o Brasil, ajudaram dar uma cara para o TBC, fizeram peças e espetáculos, D’Aversa era um deles e era muito amigo nosso, do Plínio, a gente saia juntos, era uma pessoa maravilhosa, intelectual. E aí eu fui lá, “quem a gente vai pegar para ir lá?” D´Aversa era um intelectual conhecido na classe, mas precisava de alguém para impressionar os milicos, aí achei Maria Della Costa, situação toda, e ela vamos lá, põe o perfume francês, loira linda, maravilhosa, e pessoa extraordinária, Iluminada mesmo, lindona. Falei com Abujamra, foi a Maria Della Costa e ou a Abujamra e fomos ali em Higienópolis, ali naquela região, tem um quartel. Aí muita conversa mole, muita puxação de saco, sabe vontade de pular no pescoço, até que ele admite-se que o Plínio estava lá, horas de encheção de saco, mas o objetivo era libertar ele, e conseguimos. Aí ele passa um sermão na Maria Della Costa, “a senhora vai ser responsável por esse menino, porque o que esse menino aprontar nós vamos procurar a senhora. Tá bom?”. A Maria, “imagina, ele é muito querido”, abraçou o Plínio, e a gente sai. Também é um recorte feliz de alguns acontecimentos, de uma pessoa que foi presa, e porque tem pessoas influentes por trás, que a gente puxava, a gente conseguiu livrar, mas não era assim que acontecia, eu estou falando só essa ressalva, porque muitos já eram espancados, torturados, quando não arrastavam com carro, enfim não se davam o trabalho. E a maioria foi assim, os dois casos de prisão que eu contei foram exceção, não era o corriqueiro da história. Eu me lembrei de um outro episódio também, porque eu acho que ajuda a dar um panorama da situação. Então o Plínio proibido, as coisas muito difíceis para nós, o Plínio começa a vender os livrinhos dele na rua para fazer algum dinheiro, e aí a gente resolve montar “Quando as Máquinas Param”. Não temos grana para ir a Brasília, alugar um teatro, são dois atores, eu ia fazer o papel da menina, a Nina, e precisa de um outro ator, que acaba sendo Antônio Ramos, que vai trabalhar pela primeira vez. Eu estava fazendo Simplesmente Maria, novela com ele. Bom, então vamos onde? Não achamos. O Sindicato dos Têxteis, no Brás, a diretoria inteira era comunista, e tavam para ser presos, então que dizer, a repressão já tinha preso, torturado e matado, a luta armada, sobrou pouco, então segunda etapa é pegar os Comunistas, que estavam lá quietinhos. Em princípio contra a luta armada, achando que não é o momento realmente de você lançar essa luta, o povo não está preparado para isso. E a diretoria toda comunista, aí eles oferecem lá um auditório maravilhoso para a gente montar lá, e a gente topa. E aí a gente estreia, e faz uma outra transgressão, Paulo Freire, desde aquela época, já era proibido, que nem agora os idiotas de plantão, agora, ouvem falar de Paulo Freire, não sabem nem do que se trata, também eles são pré-humanos, não acabou ainda de completar. Então a gente fazia, tinha algumas professoras, que

tinham alunos no método Paulo Freire, elas ensinavam clandestinamente, foram todas presas e torturadas. E a gente fazia esse espetáculo para essas moças que levavam esses alunos, então era uma coisa precária, até que um dia, justo nesse dia, na plateia estava o meu irmão, e uma tia freira que eu tenho e que veio me ver na peça, esse espetáculo terminava, era um casal, ela tava grávida, tinha uma briga entre eles, ele dava um murro na barriga dela, ela cai, blackout, acabou a peça, quando volta a luz, o público aplaude, a gente agradece, vamos embora. Só que um dia, blackout, acende a luz, eu tenho um revólver enfiado na minha cabeça, os companheiros da luta armada, sabiam exatamente quem nós éramos, e o que nós estávamos fazendo lá, e eles queriam denunciar que não era o momento de ter aquela situação, que nós estávamos criando, que o momento era de nós apoiamos a luta deles, a gente não concordava muito com isso, isso tudo acontece rapidíssimo, e geralmente o Plínio ficava no primeiro andar, controlando bilheteria, essas coisas, um cara do som que ficava lá na lateral e uma menina que ficava no fundo controlando a entrada. Bom, luz, o revólver na minha cabeça, e ele tremia, eu falei, ele vai me matar, porque ele treme tanto que ele não vai aguentar, aí eu empurrei ele, ele pegou o manifesto e ia começar a ler O Manifesto, falei, não, você não vai ler aqui O Manifesto, que nós não vamos deixar, “você fica quieta, se não vai ser pior.” Aí eu ainda gritei para menina que ficava no fundo, falei: chama o Plínio, fala para ele vir aqui. Aí o Plínio desceu correndo, nessas alturas ele tinha lido o Manifesto, tinha duas meninas com metralhadora controlando o pessoal da plateia e da luz e não sei o que lá, acabou de ler, saíram correndo, foram embora. E o que a gente vai fazer? Porque é o seguinte, se não denuncia um ataque terrorista, você está do lado deles, aí você vai ser preso, ao mesmo tempo, não só nós seremos presos, o Plínio e

todo mundo que tá ali, mas a diretoria inteira, porque eles estão ali assim, pendurados para serem presos. Então a gente ficou numa situação, que o Plínio falou assim: chama imediatamente a polícia, tem que chamar. Eles vieram, tiraram maior sarro de nós todos, “e aí, os amiguinhos vieram fazer uma visita, não sei o que”. E a gente quieto, Plínio fazendo piada, brincando com eles. E no dia seguinte, eu tive que ir ser interrogada pelo Fleury, sabe aquele assassino, que matou muita gente, não só matou, torturou, o que é pior, a tortura é degradante, quem se sujeita a isso, fazer uma tortura em outro ser humano, não considero nem gente, é sub-humano. Mas enfim, eu tive que ir lá falar, e ele pegou um álbum de fotos, “vê se você conhece alguém?” Ele foi passando assim, eram todos que estavam na noite anterior, no teatro, todos tinham sido mortos, ele falou, “esses daqui não precisa, porque já foram”, não é limpos, é uma outra palavra que ele usava na época, enfim, já morreram. Um vinha andando na rua com o pão debaixo do braço, a menina, era uma criança, todos que estavam ali, imagina se tem condição de fazer uma guerra, uma luta, todos eles estavam mortos. Eu pensava, “nossa, nunca vi, esse aqui parece meu vizinho. Não, não é”. Tá na cara que eu tô fingindo, se é teatro eu ganho deles, sou melhor. Agora, era uma coisa de arrepiar, parece que você está numa outra dimensão, numa coisa de terror, que não é normal, você reagir, bater no outro, matar acidentalmente, mas ali não, a frieza, a coisa cirúrgica que se faz, quando você prende alguém, vai torturar antes de matar, eu vi aquelas coisas, dá vontade de chorar, não podia ao mesmo tempo. “Então não reconheceu ninguém aí?”. “Não, realmente não foram as pessoas que foram lá no teatro ontem, deve ser outra turma”. Não, era aquela mesmo que tava toda morta. Então isso era ditadura, e era todo um panorama também, quando a coisa está chegando no fim, o pessoal da luta armada, mas não só, toda a esquerda, era mais forte que a esquerda, porque não era só a esquerda, todas as facções, facções é de bandido, eles não eram, não sei a palavra, estão divididos, estão perdendo força, perdendo argumentos, os milicos sabiam que a luta tinha acabado, agora eles iam continuar se divertindo, prendendo comunista, prendendo pessoas de esquerda, aceitando denúncias, a coisa mais nojenta que existe é o dedo duro, “vi uma reunião lá com eles, era tudo bandido, esquerda”. O pessoal do Mackenzie, que iam lá, aproveitar para torturar um pouquinho, para praticarem depois, quando fosse donos de indústrias, eles já tinham no round de como fazer. Então é isso, isso é ditadura, isso a gente tinha que ficar aqui dentro, porque não tem condições. Não é que nem o louco que manda fazer molotov, adianta a gente ter uma molotov ali, quando eles viessem no teatro? Não, pior foi a tadinha da minha tia freira, que não sabia que tinha acabado a peça, achava que aquilo ali… meu irmão sim, porque ele tinha visto na estreia, aquele dia ele estava acompanhando a tia freira, o meu irmão queria levantar para ir lá me salvar, proteger a menininha que estava com revólver na cabeça, eu olhei para ele, “ai meu Deus, que ele não se meta a besta de levantar”, acho que ele sacou, porque quando ele viu que tava todo mundo armado ali, ele sentou, mas ficou “como que eu vou tirar minha irmã daí?” E o Tony também apavorado, ele é uma pessoa consciente politicamente, na época, claro, ele não estava a favor da ditadura, mas não tinha uma vivência política de nada, era só uma pessoa generosa, é um ser humano maravilhoso, caprichado, ligada ao bem, eu adoro ele.

P/1 - No meio artístico, você sabia quem estava do lado da ditadura e quem não estava? Como que era isso no dia a dia?

R - Olha, quem naquela época estava do lado da ditadura, não queria esconder, tinha o poder na mão, a não ser que fosse para dedar, um dedo-duro, que aí sim, embutido, isso tinha muito, quando a gente fazia assembleia da classe, a gente sabia que tinha os infiltrados, obviamente, alguns eram facilmente identificados, não tinha nenhuma dúvida. É como agora, quem ainda vai votar nesse idiota, não está escondendo, está falando claramente, “vou votar, porque ele vai consertar o Brasil, deixa o homem trabalhar, coitado”. Eu mereço! Quando começou essa merda toda, tudo bem Deus, uma vez eu aguentei, agora biz, tenha dó, porra! Já não chega uma vez, foi torturante, agora outra vez, de novo, que eu fiz para merecer isso?

P/1 - O que você pensa ou sente dessa fase atual que nós estamos? Do retorno desse fascismo depois de tudo que aconteceu?

R -

Primeiro que eu acho que comparar merda, não adianta, não pode você dizer antes era melhor ou pior, cada um tem a sua marca de maldade muito grande, assim colocada ali, não tem erro! Agora, veja, não é um fenômeno, só aqui no Brasil, isso é um fenômeno mundial, que já está começando a ser revertido, Chile já começou a dizer que a história é diferente, e eu acho que essa guerra da Rússia também muda o paradigma um pouco, eu acho que está começando uma revolução dessa história toda, porque foi mundialmente, não foi uma coisa que evoluiu, que veio se formando, a direita aparecendo, como está acontecendo na França, a França está ameaçando a segunda eleição e está ali, “olha que eu vou ganhar, olha que eu vou ganhar”. Aí tem que chamar todo mundo de repente, vai votar para ela não ganhar. Na França você tem essa ameaça de ter um governo de direita, ela está tentando amenizar o discurso, mas ela sempre foi de extrema-direita e não só de direita, agora ela está fingindo que é de direita só, mas enfim, a França está realmente com essa ameaça, então você sabe que é possível que se torne um governo de direita, de extrema-direita, enfim. Os exilados vão perder o lugar onde ficar. Agora isso, está acontecendo, é uma progressão, agora aqui não, aqui o que houve foi realmente uma revolução, revolução não chega a ser o termo, mas mudou de repente, porque de repente você tem um governo de extrema-direita, não houve tempo para você assimilar, porque no começo, eu pensei ele não vai durar seis meses, imagina, as pessoas, brasileiros inteligentes, vai derrubar essa merda logo, vai cair, ele foi ficando, foi ficando e de repente você percebeu os germes nascendo da terra, vindo à superfície, eu não imaginava que existisse tanta gente burra e com tanta maldade no coração como esses que estão aparecendo. Eu me lembro que logo no começo, acho que antes mesmo de ele se eleger, que houve um enterro, um velório, de uma pessoa do PT, não me lembro mais o nome, aquela coisa que eu esqueço mesmo, e que umas pessoas invadiram o velório para xingar e bater nos pais que estavam chorando, sofrendo, com a pessoa que morreu, como esse bando de idiotas que entrou no hospital, porque o idiota mor falava que era tudo mentira, que não estava morrendo ninguém, era tudo mentira, eu me lembro que tinha um caso assim, ficou uma piada, porque uma das mulheres que foi lá junto, passou mal e teve que ser socorrida por uma enfermeira, porque ela teve um desmaio. Como é que essa pessoa, não passa pela cabeça, que isso é um sofrimento, não tem a menor empatia, nada, nada, acho que esses foram realmente enviados de outro planeta, vão lá, destrói tudo, vão acabar com aquele povo, acho que é isso.

P/1 - E como é que foi, está sendo essa experiência de pandemia para você?

R - Olha, outra ilusão que eu tinha, eu achava que de alguma maneira, Deus está mandando uma praga gente, praga de gafanhoto, vê se desperta a consciência de alguém, para o meu desencanto total, tá voltando, não tenho novo normal, normal adiante piorado, porque agora vem com uma carga de “eu venci, tá vendo?”. Não precisava ter passado tudo isso, eu já ouvi isso, ninguém está dizendo que estamos assim vencendo a pandemia, porque houve vacina, todo mundo se vacinou, então não está acontecendo mais tantos casos, mas ainda está acontecendo muita coisa, não acabou totalmente, ninguém acredita nisso. Acha, isso é inventado, ou então acha que quem acabou com a pandemia foi o idiota e vão acreditar realmente, não, ele providenciou, quando ele viu que tava ruim, ele conseguiu a vacina para vacinar todo mundo. E ele não, “não vacino porque não acredito em vacina, vai virar jacaré”, sei lá que ele inventou agora. Enfim, a pandemia, esses dias eu fiquei pensando, nem Deus conseguiu mandar uma praga boa que acabasse com eles todos, ou que mudasse a cabeça, veio uma praga mundial, não foi só para o Brasil, que foi escolhido, para receber, sofrer, o mundo inteiro, e no mundo inteiro se você observar bem, estão piorando, ninguém está usando esse momento, de uma pandemia, de uma coisa que está matando gente ainda, matando menos, mas tá matando ainda. Ninguém está preocupado em melhorar uma condição de vida dos outros, todo mundo está passando fome, os mesmos de sempre estão passando fome, como sempre passaram e ninguém se importa. Está todo mundo voltando para o normal, eu fico olhando da minha janela, na época da pandemia mesmo, aqui não tinha um carro, um ou outro passava, era aquele sossego, agora a rua inteira fica parada, se você olhar agora lá, está lá, todos parados, os carros todos, aumenta inclusive, não sei da onde tira tanto carro. Sei, da fábrica, que vai fechar, e aí vai ficar todo mundo sem emprego, eu não aguento mais esse mundo. Para, eu quero descer, eu quero ir embora! Eu estou muito desencantada, principalmente com a situação, essa falta de empatia acho que é a coisa mais dura, porque eu estou tendo um desencanto em relação aos meus semelhantes, eu não posso ter a sensação de que eu sou boa, eu sou isso, e eles não, não pode ser, alguma coisa me contamina e eu não quero ser contaminada por esse mal, para isso eu tenho que lutar, continuar lutando para conseguir transformar a realidade que eu vivo, e eu não estou conseguindo mais nada, a fé também está acabando, a fé que é possível fazer alguma coisa. Tenho 81 anos, o que mais eu posso fazer? Eu dei anos da minha vida, de luta, de tudo, continuo com essa garra, essa vontade de participar de tudo, mas o desencanto é muito grande, no fim eu falo, será que eles conseguem, a pessoa que não se importa com a vida humana, vai se importar com o quê? Não sei, eu não vejo saída, digamos que a gente consiga um novo presidente que já provou que sabe fazer coisa melhor do que isso que tá aí, agora quanto tempo vai levar para ele consertar esse país? E enquanto ele está consertando, o que os inimigos vão fazer com ele? Não quero mais, é brincadeira, enjoei, mas ao mesmo tempo estou aqui, falando 10 horas.

P/1 - Acho que o projeto é isso, mostrar que a ditadura não é só a luta armada. E trazer um pouco essa dimensão, pode ajudar.

R - Eu acho assim, eu já disse isso, mas é bom repetir, o que vocês estão fazendo, todos estão fazendo para resgatar essa memória, eu acho fundamental. Em algum momento, vai haver alguém, que vai ouvir isso de uma outra maneira, vai abrir o coração para entender que não é por aí, a sensação que eu tenho é que a gente pegou um desvio na rota e não está conseguindo parar e voltar. A rota é outra, uma coisa que leva um lugar de maldade, eu não estou sabendo mais lidar com isso. Quando eu era jovem, era fácil, você acredita que você pode mudar o mundo, que você pode fazer as coisas, mesmo sendo preso, apanhando da polícia na rua, tudo bem, vai, mas agora é mais difícil, porque principalmente quando você ver acontecer uma coisa e agora você vê que começa a se encaminhar para o mesmo, se a gente não ficar esperto vai para o mesmo lugar, isso é inaceitável!

P/1 - Você acha que os jovens de hoje tem a força que vocês tiveram?

R - Essa é uma pergunta difícil, porque mesmo antes, quando eu era jovem, quando eu estava nas ruas gritando, não sei o quê, não era também todos os jovens que estavam lá, mesmo do Mackenzie, tinha os alunos do Bandeirantes, os ricos inteligentes, você precisa ter uma inteligência realmente, um QI altíssimo, ser bem sucedido nesse colégio, que é o colégio dos gênios, então onde eles estavam? Eles não estavam na rua. Outros colégios todos também a molecada não foi para rua. Então quem estava lá na Maria Antônia, era o pessoal da USP, continua sendo o pessoal que se envolve politicamente, pode estar morando lá no na Cidade Universitária e lutando também, é bom a gente não se enganar para não perder a perspectiva, o pessoal de direita que fez a revolução, saíram desses colégios, você vai ver o currículo… Eu moro perto da GV, aqui embaixo é a GV, o pessoal todo que armou um plano econômico para a direita, estudou aqui, eram jovens quando estudaram. E acontece a mesma coisa agora, não é que os jovens não estão, quais jovens não estão na rua? Alguns estão, continua sendo aqueles gatos-pingados da USP, quero ver se… será que o pessoal do Dante Alighieri aqui vai para rua? Eu nunca vi nenhum, nunca vi nenhum do Dante na rua. O Mackenzie mudou, porque depois da ditadura, houve uma limpeza lá, menos mal, o que foi o nosso Ministro Milton não sei das quantas, ele foi diretor do Mackenzie também, então que dizer, tirou o pessoal de direito e colocou os burros lá, os cafajestes. Mas eu acho ainda, mesmo eles recebendo uma educação desvirtuada, vamos dizer assim, eu chamo de fake News, educação fake, eles eu acho que ainda tem uma escuta melhor do que quem tem uma escuta viciada já, é mais fácil você não convencer, mas conversar, mostrar algumas coisas para esse jovem que é inteligente, que está estudando nos melhores colégios, só entra lá porque são inteligentes, senão não entra. A esperança continua sendo essa, vira uma campanha mesmo, de você falar para os jovens tirar o título de eleitor e votar, isso é uma tarefa mesmo, para você convencer inclusive o seu coleguinha para fazer isso, essa eu acho uma saída boa, porque não depende muito nem de violência, nenhuma, briga torcida que vai os dois para rua para brigar, é uma coisa bacana, e tem um exemplo de cidadania, é isso que tem que ser resgatado. Eu sou uma cidadã, e eu quero ajudar a construir esse país, porque como cidadão eu tenho direito e obrigação de fazer isso. Isso que a gente pode despertar no jovem, não perguntar em quem ele vai votar, mas vai votar, isso que é bom!

P/1 - Tem alguma coisa que eu não perguntei e você gostaria que eu tivesse perguntado?

R - No momento não me lembro, eu acho que a gente percorreu um bom caminho, acho que cobrimos tudo, as coisas mais importantes. Cada vez que a gente conta acho que é diferente, é sempre um ponto de vista diferente. Isso que é bacana, senão seria muito chato, eu brinco. Um dia eu comecei a fazer isso, com quem eu tava, um diretor, comecei a contar a história da minha vida diferente, aí depois eu mudei, falei que era uma brincadeira, mas a vontade que me deu… contei a mesma história tantas vezes, eu quero contar diferente, nasci rica… não, não quero, acho rico uma chatice, não não sirvo para isso. Mas o que você ia me perguntar mais?

P/1 - Como é que foi dessa vez contar a sua história?

R -

Tem sempre alguma coisa diferente, principalmente, porque eu estou falando com você quanto tempo, 2 horas? Sei lá! Então nem sempre eu tenho esse tempo para falar, sempre acaba acrescentando algumas coisas, porque eu me acomodei nessa coisa de não ter hora para acabar, então tudo bem, eu vou falando, na hora que tiver que parar, manda. Mas uma coisa que eu descobri, essa coisa em relação ao meu irmão, eu só falei isso outro dia, dei uma entrevista também, porque isso explica para mim mesmo, porque que eu sou assim, as diferenças que existem, meu irmão e a minha postura diante da vida. Eu sempre cobrei muito de mim mesma o fato de eu não fazer as coisas, não ser uma pessoa de ação, eu não sou produtora, produzi na minha carreira inteira um monólogo, os outros eu fiquei sócia de alguém que produziu, mas eu encabeçar uma produção, eu fico nervosa, fico suando, não consigo fazer isso, eu vejo que às vezes estou conversando com a minha filha que é produtora, “seria bom se a gente pegasse não sei o que”. Ela já pega o telefone, liga, resolve, eu ainda estou assim, “será que é bom”. Eu não fiz nada, mas eu entendi claramente uma coisa que eu criticava no meu irmão e que de repente eu falei, não, ele era assim, ele funciona assim, e eu não funciono assim, ninguém é culpado, não é que ele está certo, eu tô errada, não, ele é assim, e eu sou assim, é bom que a gente tenha os princípios, os valores muito claro, porque isso é a técnica, e como você chega a um objetivo, até o meu objetivo… Outro dia eu falei para uma amiga, “eu sou uma pessoa que sou capaz de ficar uma tarde inteira olhando para a parede e não fazer nada”. “Eu morro!” Eu não, eu morro se eu ficar fazendo mil coisas. Mas o que eu estou fazendo olhando para a parede? Eu tenho que ter um objetivo, não tenho não, eu não tenho, é melhor que eu tenha, não é obrigado, se eu quiser sem objetivo nenhum, beleza. Agora, você não pode e se desviar para o mal, a maldade você não pode aceitar, qualquer plano, qualquer objetivo que você tenha para sua vida, tem que incluir o coletivo, não pode você só pensar em você. Meu irmão empreendedor, foi Engenheiro, não sei o que, e depois no fim, foi fazer aquilo que ele teve oportunidade de fazer, trabalhar como voluntário, ajudar os outros, ajudou individualmente muita gente, eu sei que ele ajudou, mas coisa da caridade Cristã. Agora, como projeto, você no momento que pode sair e viajar com a sua mulher, porque ele tinha, inclusive dinheiro para fazer isso, ele foi trabalhar como voluntário, então não estou justificando, estou dizendo como as coisas são. Agora, é importante que você inclua sempre o outro, só você não vai dar certo. Eu estava lendo inclusive, o livro de um psicanalista indiano que era muito meu amigo, perdi agora, e foi uma perda danada de suportar, mas um artigo dizendo isso, o processo de individuação já é construído pensando no outro, você não pode pensar que só você vai se curar, que nem a merda do Djokovic, que não quis tomar a vacina, eu estou falando mal do tenista, primeiro do mundo que se recusou a tomar a vacina e nem pode disputar o Campeonato na Austrália. Ele é um idiota porque não entendeu que o ato de se vacinar, você está pensando no outro, você não está pensando só em você, não vou pegar a doença, eu não vou transmitir a doença, então eu estou me cuidando para eu não passar o vírus para o outro, agora o idiota, burro feito uma porta, pode jogar tênis muito bem, mas é burro, não tem empatia por ninguém. Então é importante que você pense sempre, quando você for fazer análise, ou se fizer, ou conversar com outra pessoa, fazendo um plano de vida, ou o que eu vou fazer da minha vida, é o outro, não é ajudar nesse sentido que eu falei, moral Cristã, é porque eu me beneficio, eu só vou ser plena completa, se eu incluir o outro, meu pensamento tem que ser coletivo sempre, o social tem que estar presente, senão não vai dar certo. Não vai dar certo que eu digo, o que que você quer na vida? Ser feliz, ter um mínimo de conforto, ter um amor, se apaixonar, coisas assim, que são bens eternos da humanidade. Agora se você pega o canal errado, ou se o teu objetivo da vida é diferente, sem ter um mínimo de empatia com outro ser humano, para você se identificar inclusive, se conhecer inclusive é uma merda, não dá certo, para mim tá dando.