Museu da Pessoa

Só de ter a família unida já é bom demais

autoria: Museu da Pessoa personagem: Sebastiana da Abadia Duarte Gomes

Projeto Centro de Memória das Comunidades Quilombolas de Paracatu
Entrevista de Sebastiana da Abadia Duarte Gomes
Entrevistado por Nataniel Torres (P/1) e Marina Rodrigues Teixeira (P/2)
Paracatu, 24/11/2021
Código PCSH_HV1173

P/1 - A senhora pode dizer o seu nome completo.

R - Sebastiana Abadia Duarte Gomes.

P/1 - Qual a sua data de nascimento?

R - Doze, do doze, de cinquenta e um.

P/1 - E a senhora nasceu aonde?

R - Foi Conceição, mas era município de Paracatu mesmo.

P/1 - A senhora me diz o nome dos seus pais?

R - É Maria Abadia Coelho Guimarães, não, Duarte. Maria Abadia Duarte Guimarães e meu pai, Jorge Duarte Ferreira.

P/1 - E o que que eles faziam, o que eles trabalhavam?

R - Meu pai era vaqueiro e minha mãe era caseira da fazenda, os dois trabalhavam no mesmo lugar.

P/1 - Seus pais estão vivos?

R - Quem dera.

P/1 - Como eles eram, como é que era a personalidade deles, como era seu pai, como era sua mãe?

R- Pra mim tudo era bom. Ele melhor ainda, que ele nunca bateu na gente. Agora minha mãe, mandava fazer chicote de três pernas e metia o coro.

P/1 - O que é chicote de três pernas?

R - Punha como diz, mata a vaca, que tira o coro, põe pra secar, aí manda vocês fazerem o chicote. Ela tinha 19 filhos, aí quando ficou viúva, 12, e aí não tinha emprego. Foi na época que eu saí da escola pra ajudar ela, eu fui trabalhar, ajudei a criar meus irmãos todos. As mais novas foi casando e nós mais velhas foram ficando. Então, como ela criou, foi lavando roupa pros outros, tirando ouro e boia-fria.

P/1 - E aí me conta,nessa época que você tava falando que você ajudava sua mãe depois que seu pai faleceu, vocês ficavam em casa, o lugar que vocês moravam era uma roça?

R- Não, era em Paracatu mesmo. Na cidade mesmo. Nós morávamos na Conceição. Da Conceição passou pra Lagoa, da Lagoa veio pra cidade e nós nunca mudamos da cidade.

P/1 - Do que seus irmãos trabalhavam na época?

R - Os mais velhos cortavam tijolo. Eu levantava duas horas da manhã pra fazer almoço pra eles. Toda a vida eu levantava de madrugada e arrumava pra eles. Tanto que quando eu fui pra Bahia, eu já tinha acostumado, que a gente ia pro ponto duas horas, né Marina? Duas horas, pra boia-fria.

P/1 - Aí você contou essa história que você foi pra escola um pouquinho e depois teve que largar pra ajudar em casa.

R - É, por que meu pai morreu, aí não tinha como minha mãe sustentar doze sozinha, e a única que parava em emprego era eu, eu tava na sua casa, se eu saísse, eu tinha que tá na casa dele, ela já falava: “Nossa, o que eu vou fazer meu Deus, onde que eu te paro no serviço”.

P/1 - E como é que era a escola nessa época, a escola era próxima, era longe, como que fazia pra ir pra escola nessa época antes de largar?

R - A escola era perto.

P/1 - E a senhora lembra como eram as aulas naquela época?

R - Antes e antigamente, as escolas eram melhores do que as de hoje, né Marina? A gente aprendia coisa que a minha filha mais velha, que já tava no segundo ano de colégio, não sabia o que era vizinho, aí ela: “Mãe, o que é vizinho?”, aí eu expliquei e eu só tinha o terceiro ano. Eu falei: “Mas a professora não ensinou a vocês?”, “Não, mãe”, eu dou entrevista na escola, tem muitos que gostam de me chamar, eu vou falar pra eles.

P/1 - E essa época que a senhora tava na escola, tem alguma professora que te marcou você lembra alguma história dessa época da escola?

R -Ah tem. Eu tive três professoras, uma chamava Clarice, e a outra era Lúcia, e a outra era Maria de não sei o que, eram três.

P/1 - E as crianças como que eram, elas obedeciam, elas brigavam muito?

R - De primeira elas batiam. Hoje eles não batem. Tinha as réguas, mandavam abrir a mão e metia o coro.

P/1 - E aconteceu alguma vez com a senhora isso aí?

R - Não. Eu tenho um irmão que ele tem um apelido, Macacão, ele chama Bené, aí eu e o meu irmão dentro da sala nossa, eu era uma santa, mas quando nós saíamos da sala, era cada tombo que a gente fazia (risos), e a mãe dos meninos chegavam lá , “É aquela ali”, aí as professoras “Ela? Ela não dá nem um pio, nem ele”.

P/2 - Quando a gente ia na escola, né dindinha? Ficava de castigo apanhava na escola, aí chegava em casa, apanhava também, ficava de joelho em cima do caroço de milho…

R - E falava que não era pra apanhar. Eu não, nunca apanhei, mas apanhava os outros que era pinta, apanhava na escola e chegava ainda apanhava e ia pro caroço de milho. Tinha vez que ainda punha um tijolo na cabeça.

P/2 - E quando ficava de braço aberto também, né dindinha?

R - E se ela batesse em um, e se Marina risse de mim, pegava os dois com a mão assim, batia nos dois e depois punha pra abraçar. Ia pra castigo. Desse jeito.

P/1 - Como era o bairro que a senhora falou que construiu a casa, já era de tijolo ou não, como era a casa quando construiu?

R - Não, é de tijolo, areia da praia que a gente coava, e era assim, até hoje é de um canto no outro. Por exemplo, era uma chácara, aí dividiu pra a família, os mais velhos dividiu pros filhos.

P/1 - E quem construiu a casa naquela época?

R - Uai, era os meus irmãos. Hoje a gente não fala pedreiro mais, fala mestre de obras, porque pedreiro é quem mexe com esses trens que não presta, aí todos meus irmãos, sobrinhos, tudo trabalha nessa área, vivem disso, graças a Deus. O meu irmão mais velho ensinou, ai vai crescendo tudo assim.

P/2 - Passa de geração em geração.

P/1 - Esses irmãos todos estão lá no bairro, estão aqui próximo de vocês ou eles já estão morando em outro lugar?

R - Não, agora eu só tenho sete irmãos porque morreram. Nossos são cinco mulheres e dois homens.

P/1 - Vocês estão por aqui em Paracatu?

R - É, mora perto.

P/1 - Mas você tinha outros irmãos que tinham saído da cidade ou não, tava todo mundo morando aqui por Paracatu?

R - Todo mundo, só eu que casei e mudei para Brasília. Aí depois falei: “Não, vou procurar minha familia”, voltei.

P/2 - Tio ____ nunca morou fora? Que ele era taxista, só viajava, né?

R - Eu tinha um irmão taxista, ele viajava longe só com defunto e eu achava graça que ele falava: "Nossa, mas o defunto dava cada pum”, eu falei "Como, se ele tá morto?", mas disse que dava. E era assim - eu tomo uma cervejinha. Não é pra cair, mas todo dia, eu tomo uma latinha pra mim relaxar, pra dormir - eu tenho um genro que chegou pra mim e falou assim: “Dona Tiana, quando a senhora vai deixar de beber?”, eu falei: “Quando eu morrer”.

P/1 - Dona Sebastiana conta pra mim um pouco como foi essa época da boia-fria que até a Marina foi com você, como começou essa história na sua vida?

R - Essa boia-fria era muito sofrida, né Marina? Nós sofremos muito, passou muita fome, eu não comia, aí uma colega que falou assim: “Um dia você leva farofa, outro dia você leva um pão com carne”, assim que eu comecei. Mas um dia o homem, o dono da boia-fria, não tirou a licença que ele tinha que tirar, aí, nós com fome, ficou duas horas na barreira, não tinha água, nem café, nem comida e nós ficamos lá oh, até que liberou pra gente voltar pra comer.

P/1 - Nessa época era lavoura de que?

R - Tudo. Era soja, milho, feijão.

P/2 - Tomate, que a gente comeu muito tomate.

R - Tomate.

P/2 - Cebola.

R - Cenoura, tinha muito.

P/1 - E quem chamou vocês para trabalhar de boia-fria?

R - Uns iam passando pro outro e nós fomos. Era novo, velho, ia tudo.

P/2 - Tudo misturado, não era registrado nem nada.

R - O primeiro dia você vai no meio da bagunça, tem médico, tem dentista, tem é… que mata os outros. O primeiro dia você fica naquela turma, mas aí quando a gente descobre, chega no que chamou a gente pra trabalhar, o encarregado, e fala: “Eu não quero ficar nessa turma”, aí eles separavam a gente.

P/1 - Eles levavam vocês como, de carro?

R - De ônibus. Antes era de caminhão, a gente tinha que subir na escada. Depois que veio o ônibus, mas era duas horas da manhã que a gente tinha que levantar.

P/1 - Aí eles buscavam vocês de caminhão ou ônibus na cidade?

R - E deixavam nos pontos.

P/1 - E era muito longe os lugares que vocês iam?

R -

Tinha lugar mais perto, mais longe.

P/2 - Em outra cidade, e assim, por exemplo, passava um em Paracatuzinho, às duas horas da manhã, e ia girando a cidade. A gente ficava uma hora andando até recolher todos os trabalhadores, pra depois sair da cidade pra chegar ao destino.

P/1 - Juntava todo mundo lá no ônibus, no caminhão, chegava no destino, eles deixavam vocês lá e ficavam trabalhando o dia inteiro e aí vocês que levavam sua própria comida, que você tava contando.

R - Nós que levávamos. Ai, o que eu falei, todos dá dinheiro, mas o que dá mais dinheiro é café. Quando nós estávamos no tomate, aí eles vinham, que os tomates estavam maduros, eles falavam: “Pode sacudir”, nós sacudíamos até na hora do almoço, de meio dia pra tarde a gente enchia 50 caixas de.

P/2 - Era e nesse sacudir saia de tudo cobra, rato, escorpião.

P/1 - E aí, como que era quando acontecia isso, porque tava tudo longe?

P/2 - Quem não desmaiava, saia correndo ou matava.

R - E quando a gente tava colhendo cebola tinha uns baldes de por, aí muitos saiam correndo e deixava o balde de boca pra cima, aí quando a gente chegava só via aquela mulherada gritando, aquelas rodeira de cascavel dentro.

P/2 - E tinha as quebra de milho também, né dindinha? ______, cai dentro do buraco de tatu tinha gente que quebrava a perna.

P/1 - Mas aí quando acontecia alguma coisa assim, como que fazia, por que vocês estavam tudo longe de tudo?

P/2 -

Geralmente a fazenda, a boia-fria era na fazenda. Então, se a fazenda fica próxima, eles tinham um rádio, aí comunicava e trazia só aquela pessoa e nós ficávamos lá.

R - E eles eram assim:

jogava veneno e não avisava a gente. Quantas que morreram!

P/1 -

De inalar o veneno.

P/2 - Intoxicado.

R - Eles cortavam a banana, a banana está verde, encaixotava ela, jogava o veneno, no outro dia estava amarelinha.

P/1 - Nossa, mas aí assim, então você trabalhava o dia inteiro e como é que vocês sabiam que tinha acabado a hora, era hora de ir pra casa, eles iam buscar como é que fazia?

R - Eles buscavam lá.

P/1 - Mas tinha um horário certo pra isso?

R - Tinha horário certo para ir embora.

P/1 - E já aconteceu algum dia de eles atrasarem? E o que que acontecia quando dava isso?

R - Já. Ficava esperando ou então não ia.

P/2 - É ou se não, não ia.

P/1 - Mas aí vocês ficavam?

R - A gente perdia a madrugada.

P/1 - Vocês ficavam com fome, que você falou que levava comida. E depois vocês esperavam terminar o expediente pra voltar pra casa pra comer .

P/2 - E tinha gente que também não tinha, que não levava. E a gente dividia com quem não tinha, pra não ficar com fome. Ou levava e azedava a comida, perdia. E aí, a gente via. Quando era o tomate, a gente comia o tomate, agora quando era cebola, tem dia que era milho, aí não tinha como, a gente dividia.

P/1 - E aí você estava falando levava farinha, às vezes. O que mais levava, tomate, cebola?

P/2 -

O tomate era lá mesmo que a gente colhia.

R - Aí, quando tava madurinho, mandavam sacudir. Eu sacudia de cedo até meio dia. Se tivesse o que comer, a gente comia, se não, ia encher as caixas. Aí enchia cinquenta caixas, enquanto nós mulheres fazia e homem nem a metade.

P/1 - E aí você ficou trabalhando com isso por quanto tempo?

R - Muitos anos

P/1 - Sempre de boia-fria e sem registro nenhum?

R - Não, às vezes eles registravam.

P/2 - Mas foi mais recente. Mais no fim. No início, não.

P/1 - Nessa época mais antiga aí não tinha registro nenhum, era tudo de boca?

P/2 -

De boca. Agora, a fiscalização não permite. Mas ainda tem boia-fria clandestino.

P/1 - Nessa época que era de boca eles pagavam mesmo ou tinha gente que dava um jeito de de não pagar?

R - Pagava.

P/2 -

Era onde a palavra valia, que hoje é só no papel. Mas antes da boia-fria vir, nós fazíamos outras coisas, as comidas, as roupas, vestido de casamento.

R -

Minha mãe ia trabalhar, ela tinha 12 filhos, todo ano ela tinha um menino. Então eu não ia. Às vezes ela falava: “Tiana, hoje eu vou levar você na feira”, e meu pai era um ciumento que só. Ela não foi e ele na fazenda trabalhando. Chegou lá, teve mutirão. Quando é mutirão, tem a festa de noite. E ele enciumava muito da minha mãe. Minha mãe pegou e falou que não, aí ele falou assim “uai, José, sua mulher não vem? Maria não vem?”, “Ela não quis vir”. E minha mãe já estava lá na sala dançando.

P/1 - Ela gostava de festa?

R - Gostava.

Foi atrás dele, ela de vestido escuro e ele dando cada gaitada. Quando chegou lá em casa ele falou: “Tiana, - Deus perdoe porque nem gosto desse nome - com quem essa “pelada” foi? Eu falei: “Foi com o senhor” (risos) Ele não viu. Ela foi, Ele andava assim como ali no pé de laranja e ela aqui, e tinha a entrada, ela entrou o forró tava bom e ela caiu no forró. Quando o dono da festa falou “Uai, Maria não vem, Zé?” “Não”. Mentira! Mãe já tava lá dançando.

P/1 - E vocês gostavam de ir nessas festas, todo mundo ia?

R - Claro. Todo mundo levava criança.

P/1 - O que tinha pra comer na época nessas festas?

R - A gente fazia biscoito. Igual a caretada, eu mais minha mãe fazíamos as roupas, enfeitava. Nós ficávamos a noite inteira acompanhando isso, e toda casa tinha o que comer e eu tenho o _______, não sei se vocês conhecem, um coisa assim. Aí, meu irmão, ele já morreu, enchia _______ de biscoito, e o pai de minhas meninas tem um apelido do Peru, aí ele saia de longe, lá de Cristalina e punha o _____. Aí falavam que ele veio dançar, não sei o quê, não sei o quê, na casa de seu Peru. Ah! Mas ele saía jogando pedra.

P/1 - Você fazia as roupas da caretada?

R - Eu e minha mãe.

P/1 - Como vocês organizavam pra fazer as roupas?

R - Às vezes, assim… que é homem e mulher, aí arrumava roupa xadrez ou então aquelas fitas que a gente comprava e fazia. Lá no museu tem roupa que eu mais minha mãe fez. Minha mãe já tem 21 anos que morreu e tem trabalho nosso lá no museu.

P/2 - Aí as outras também ajudavam Mariazinha, tia Benedita, mãe também ajudava nas roupas.

P/1 - Mas aí vocês se juntavam pra fazer ou cada uma fazia na sua casa e depois juntava no dia da caretada?

R - Não, a gente tinha que fazer antes.

P/1 - Então mas vocês se juntavam vocês ficavam todas juntas costurando e montava a roupa toda do pessoal que ia dançar a caretada.

R - Pra todo mundo.

P/1 - É aí como é que vocês faziam quando ia ser pro próximo ano, como é que vocês combinavam as coisas?

R - Às vezes, eles ficavam com as mesmas roupas. Nós viajávamos, ia pra pra Cristalina, dançar fora.

P/2 - Aí as roupas assim pro próximo ano que ele tá perguntando, soltava alguma fita, pregava denovo. No próximo ano, ia e colocava as que tavam faltando.

P/1 - Restituía.

R - É. Era só família. Aí a família vai crescendo e aí ia entrando mais e a gente tinha que fazer pra aquelas que entrou.

P/1 - E quando começou esse costume da caretada por que você tá falando que era só família, como é que começou o costume na sua família?

R - Era os mais velhos. A primeira, você foi lá ontem na casa de um deles que morreram, era o meu tio, eles tudo já morreu. Por fim, o que nós achamos ruim é que eles enterrou a bandeira, pôs na urna dele, daquela casa que vocês foram lá o marido da

_______.

P/1 - A bandeira de que santo, dona sebastiana?

R - Da caretagem, não podia.

P/2 - São João.

R - E não podia. Eles enterraram. A primeira casa era da minha mãe. Dançava, dava o que comer, e no outro dia, ia tudo lá pra casa dele almoçar, passava a noite inteira, né Marina? Mas cada casa que chegava, tinha o lanche pra isso. Todo mundo.

P/1 - É aí era todo esse trabalho: tinha que montar as roupas, os meninos ensaiavam, depois, no dia da festa, eles iam passar pela casa, tinha que deixar a comida toda preparada também?

R - É.

P/1 - E a senhora fazia tudo, as roupas e a comida pra receber todo mundo?

R - Todo mundo. Era muito bom, mas hoje acabou, né?

P/2 - Acabou. Conta pra ele do vestido de noiva que a senhora costurava mais vó, mãe…

R - Eu faço de tudo. Minha mãe não me ensinou nem a refogar um arroz, mas graça a Deus, eu sou forno e fogão, cozinho pra ganhar dinheiro: trezentos, quatrocentos reais. Na hora, eu ganho, mas agora eu não tô fazendo. Eu tenho as panelona, esses negócios. Aqui a gente tá ganhando dinheiro, eu faço tapete, faço um por dia.

P/1 – E o vestido de noiva que a Marina estava perguntando, você fazia isso também?

R – Fazia, nós fazíamos bolo de casamento, eu fazia bolo de aniversário, fazia tudo.

P/2 – Os vestidos eram feitos de lençol não era? Vocês compravam o pano, né?

R – É, aqueles americanos que de primeiro era mais pobre, aí comprava o que dava conta. Depois que foi vindo as roupas. A mais chique, foi eu.

P/1 – Mas você costurava na máquina ou costurava à mão?

R – Na máquina.

P/2 – E quando não tinha, fazia aqueles pontos invisíveis, que você vai costura e nem aparece, e o vestido ia passando pras irmãs, não era?

R – É, agora mesmo, já tem muito tempo, eu tinha o vestido, acho que era de Rosário, eu não sei, eu passei pra uma menina de Cristalina, de casamento.

P/2 – E assim, tinha toda a preparação, fazia o vestido, ai no dia do casamento, que antigamente era o noivo que ficava pela festa lá não, reunia tudo, fazia comida, os biscoitos, os sucos, era os baldes em cima da mesa, muita fartura.

R - A minha mãe era um “alqueiro” de polvilho que ela molhava.

P/1 – E essas roupas ainda têm em algum lugar, ainda tem algum vestido, não os da caretada esses vestidos de noiva?

R – O último, um amigo pediu lá em Cristalina, aí eu passei.

P/1 – E quando o corpo era muito diferente, como é que fazia, porque às vezes tem uma que é mais magrinha, outra que é mais gordinha, como é que fazia quando mudava muito?

R – Uai, pela medida. Igual quando a gente vai comprar e experimentar roupa, a gente tem que fazer as medidas delas.

P/2 – Mas aí quando passava roupa pra uma outra mulher, tinha o corpo muito diferente ela que ajustava? Sempre deixava um restinho assim

de tecido branco pra essas ocasiões.

P/1 – Quando acabou a época de boia-fria, o que a senhora foi fazer? Nessa época a senhora já tava casada?

R – Há muito tempo.

P/1 – Aí a senhora foi trabalhar com o que depois?

R – Depois disso, eu me aposentei. Não trabalhei mais.

P/1 – A senhora trabalhou uma época de doméstica que a senhora contou, né?

R - Trabalhei trinta e oito anos. Formei duas, de professora, as outras três, foi (trabalhando) de boia-fria.

P/1 – Quando a senhora trabalhava de doméstica era onde?

R – Eu trabalhava com uma mulher, Maria Marta. Ela era tão sacana. Todo mês eu assinava que ela ia me pagar, aí ela não descontou e de primeira, eu descobri que eu era patroa dela e ela é minha empregada.

P/1 – Como assim?

R – Eu fui no INSS pra mim dar entrada. Chegou lá, eles falaram “a senhora está devendo quatro anos”, “Mas como, todo ano eu pago, todo mês?”, “A senhora não está pagando, está devendo”, aí ela acertou comigo, eu falei “Vou mostrar a ela”. No mesmo lugar que ela foi acertar, eu fui lá e ela me roubou tanto que o dinheiro que ela me pagou, o marido, deu pra mim arrumar dois casamentos, fazer a minha festa de aniversário e depositar o dinheiro. Era um papel rosa, rosa não, amarelado, que que ela me deu, aí eu cheguei e falei: “Maria Marta”, fui lá na casa dela, “Oh, eu vim cá, fui lá no homem, do contador e você me passou pra trás”. Ela falou assim: “Uai, mas a senhora sabia que a senhora tinha, tem que ajudar a pagar”, falei: “Sei, mas só que eu não paguei nada”. O marido dela trabalhava em Brasília e ela ficava aqui. Quando eu estava tomando banho de manhã pra ir, bateu na porta, eu fui lá: “Vem cá, Dona Sebastiana, pra ver o que que está acontecendo que Maria Marta ‘coisou’, me dá os papéis”, aí ele foi com o papel e voltou com outro papel, eu falei “Uai, mas não é o mesmo”.Ele falou “Dona Sebastiana, porque a senhora estava como patroa e ela a minha empregada”.

P/1 - Depois eles pagaram tudo pra senhora?

R - Não precisou ajudar a pagar, ele me pagou tudinho.

P/1 - Foi o dinheiro que a senhora falou que fez o casamento, fez a festa de aniversário e ainda guardou um pouco?

R - Quando eu falei que era pra arrumar, que eu tirava férias junto com as minhas filhas da escola, aí eu falei “você arruma outra que eu não vou vir mais”. Mas como chegou o dia, eu fui lá “Ah, eu não arrumei outra”, eu falei “Então, vai ficar sozinha”, “Ah, mas a senhora tem três pra formar”, eu falei: “Não é só aqui que é serviço”. Eu fui pra boia-fria. Formei e casei as três de boia-fria.

P/2 - Aí conta pra ele, depois que a senhora saiu de Maria Marta, a senhora ajudava lá no Proman, ação social, o que a senhora fazia lá?

R – Fazia comida, essas coisas aí.

P/2 – Artesanato.

P/1 – Então como é que começou isso na sua vida, conta pra mim, aí a senhora saiu de lá e foi pro Proman, é isso?

R – É, depois eu saí. Eu só ia o dia que dava pra mim, eu chegava mais cedo, ia no Proman.

P/1 – Primeiro, o que que é o Proman?

R – Festa da terceira idade, reunião. Aí coloca quem quiser fazer isso aí (artesanato) ou bordado, qualquer coisa.

P/1 – Pra fazer curso?

P/2 – Isso. Era só pra jovens, adultos e idosos. Antigamente, tinha Datilografia, Corte e Costura. Eu mesmo aprendi os cortes e costuras lá, Datilografia. Aí ensinava os artesanatos.

R – E por esses Quilombolas também tinha muito curso que eu fiz.

P/1 – Mas os quilombolas de onde?

R – Daqui, de Paracatu.

P/2 – Todas as comunidades.

P/1 – A senhora aprendeu a fazer o que por exemplo, então você falou de tapete, o que mais?

R – Uai, eu fazia tapete, biscoito… a gente aprendeu muita coisa. Eu fazia, eu até falei, agora eles pararam, mas agora diz que vai voltar de novo.

P/2 – Vai. A senhora também ensinava a cozinhar, por que ela cozinha muito bem. Inclusive a filha dela, que antigamente tinha esse projetos, hoje a filha dela é uma empresária, tem um salão de cabeleireiro, aprendeu.

P/1 – Lá no Proman também.

P/2 – Aham, que hoje não existe mais Proman. Era o CRAS, é o que?

R – Lá agora é funerária agora. Funerária São João.

P/2 – Aí tinha as festas. Todas as sextas-feiras, tinha forró, elas faziam comida, dançavam e durante o dia a gente ia pros cursos e a noite era, na sexta, tinha os eventos pra jovens, adultos, pra todas as idades.

P/1 – A senhora também chegou a ensinar a cozinhar.

R – É, ensinar a cozinhar no _______ eu fui dar aula, eu fiquei muitos anos dando aula de isso aí, de tapete no _______.

P/1 – A senhora aprendeu a fazer esse tapete no tear, deu aula disso, e também deu aula de culinária lá?

R – Uhum.

P/1 – O que a senhora ensinava a cozinhar lá, que você aprendeu?

P/2 – Biscoito, bolo.

R – O primeiro prato que eles pedem, quando eu vou cozinhar, é feijão tropeiro, o que dá mais trabalho.

P/2 - É o Mané Pelado, ela que vai fazer.

P/1 - Ah é, e conta essa história do Mané Pelada por que esse Mané Pelada já tá famoso em São Paulo, como que é esse Mané Pelada, conta pra mim por favor.

P/2 - Passa a receita.

P/1 - É, pelo menos como é que é, o que que vai no Mané Pelado, se você não quiser passar a receita, pelo menos como é que é, que a gente tá curioso em São Paulo, não tem, essa é uma comida típica daqui.

R - É mandioca, queijo, açúcar, manteiga. Por exemplo, quem quer pôr na folha de banana, põe, se não quiser, faz igual a gente, põe no coisa que…

P/2 - Põe leite de coco, se quiser.

P/1 - E aí ele vira um docinho?

P/2 - É um bolo.

P/1 - Mas assa também?

R - Assa também, na folha de banana. Se você quiser ele quente, pode congelar, e se você quiser ele quente é só por pra esquentar.

P/1 - E esse Mané Pelado a senhora aprendeu a fazer com quem, Dona Sebastiana?

R - A minha família toda sabia fazer.

P/1 - Ah, a mãe sabia fazer .

R - Minha vó.

P/2 - A bisa, a mãe, né Dindinha?

R - A bisa, todo mundo.

P/1 - E que coisa que a bisa, a vó sabia fazer que você faz até hoje ?

R - A minha bisa eu não conheci não, foi só a vó. Minha vó fazia festa.

P/2 - Fazia. Eu cheguei a conhecer minha bisa, que era vovó Inês.

R - Pois é, vovó fazia festa e eles tudo é farturento, pegava um alqueire de goma e fazia biscoito.

P/1 - E isso a senhora faz até hoje, isso que você aprendeu com a vó?

R - Uhum. E eu aprendi a cozinhar na casa dos outros, porque a minha mãe não me ensinou a fazer nem um arroz. Eu fui trabalhar de babá, chegava lá, via a menina fazendo a comida ou então biscoito, eu chegava na minha casa e falava: “Mãe, eu quero isso”, “Pra quê?” e eu: “Quero”, aí ela comprava e eu fazia. Assim que eu aprendi.

P/2 - A vó, que era minha bisa e vó dela, gostava muito de fazer as colchas de retalho, que eu ainda vou pegar pra mostrar.

R - Fuxiquinho, que fala. Pega o pano e costura assim, depois puxa e fica aquela petequinha.

P/1 - Ele vira uma florzinha?

R - É. Aí faz colcha, tapete, faz tudo.

P/2 - E vó usava, vocês usavam aqueles sacos de pôr… como que fala, aqueles sacos de marrom pra fazer artesanato também…

R - Saco de estopa.

P/2 - Vocês faziam o que, era artesanato, não era? Era almofada?

R - Fazia almofada, fazia tapete, fazia tudo.

P/1 - Como é que vocês conseguiam esse saco?

R - A gente comprava.

P/1 - Montava as roupas dos filhos, de nós. A maioria das roupas, vocês que faziam, né? Aí ia passando, os filhos quem tinha, menino usava, quem tinha menina ia passando e, até hoje, a gente ainda segue essa tradição da família, vai passando.

R - Pra quem servia, vai passando as roupas. Graças a Deus, a família da gente veio assim, não é rica, mas da graça de Deus, nós somos ricas.

P/1 - Na época que a senhora casou, foi morar onde?

R - Em Brasília. Eu fiquei um ano e meio. Aí ganhei a minha primeira menina. Ela tem quarenta anos. Ela não dava certo com o clima de lá. Deu uma bronquite, aí uma hora da manhã era cedo pra mim estar correndo com ela pro pronto socorro. Um dia falaram assim que se eu quisesse que ela melhorasse, tinha que mudar. Aí, vim pra Paracatu.

P/1 - O marido era de Brasília?

R - Não. Ele era daqui também, mas era empregado lá.

P/1 - O que ele fazia?

R - Ele era entregador de coisas, trabalhava em caminhão. Aí eu vim e ele ficou. Mas ele me traiu. Passei por muitas dificuldades, mas graças a Deus eu venci e criei as meninas. Ele bebia que nossa senhora! Depois que eu casei com ele, casei com vinte e nove anos, já velha, que antigamente com vinte e nove anos era titia. Eu nem sabia que diabo que era homem. Ele era mais velho do que eu onze anos.

P/1 - Depois ele veio pra Paracatu ou continuou lá em Brasília?

R - Aí ele vinha, trazia as roupas pra lavar, ia pras gandaias dele, e as mulheres pegavam as roupas e ele chegava: “Ah Tiana, eu quero minha roupa, não sei o que”, eu falei: Você levou a roupa”, “Não levei”, falei: ”Levou”, por que as mulheres pegam, vestem e eles nem… bêbado, ele ia ver, aí eu vim embora, ele ficou e logo ele veio pra cá de novo.

P/1 - Você tinha uma filha só ou já tinha mais de uma nessa época?

R - Só uma. Depois veio a segunda, aí diz que foi tentar pra vir homem, veio duas mulheres.

P/1 - E veio mais duas mulheres?

R - Três partos, quatro. Eu tenho cinco com a adotiva. Eu peguei, eu era moça, peguei ela com três dias de nascença. Ela tinha pai e mãe, o médico não quis entregar para os pais e me entregou.

P/1 - Mas por que o médico não quis entregar?

R - Não sei. Ela fez quarenta e oito anos agora no dia onze de setembro. É minha filha, mora em Uberlândia, Ela tem filho gêmeo também, a diferença é que ela tem um homem e eu só mulher. Ela é minha afilhada também.

P/1 - As outras quatro filhas nasceram tudo aqui em Paracatu e nessa época o marido tava aqui em Paracatu com a senhora, ele continuou trabalhando como entregador nessa época?

R - Não. Antes ele veio pra cá e continuou trabalhando na cerâmica, lá perto lá de casa. Depois ele foi trabalhar pela prefeitura. Ele é ignorante. Todo mundo falou: ”Não sai, espera pra aposentar”, não quis. Ele saiu, era pra ele ganhar o dobro, mas ele ganha o mesmo tanto que eu ganho, de ignorância.

P/1 - Ele tá vivo ainda né?

R - Tá.

R - Você perguntou se eu sou católica. Eu era serva da Eucaristia, aí o padre me deu licença, eu fiquei oito anos acompanhando ele em Uberlândia. Quando voltei, era Padre _____, eu falei: “Padre, eu já estou de volta, eu quero voltar”. Ele foi embora e veio outro padre, Padre Renato, eu falei pra ele, ele enrolou até foi embora, agora eu tenho que fazer outro curso de novo por que tem muitos anos, aí eu fiz Experiência de Oração agora pouco, o padre falou: “Dona Tiana tem poucos servos da Eucaristia”, eu falei: “Eu vou fazer”, mesmo que eu estou com a perna desse jeito quebrada, parafusada, eu estou bem. Eu vou fazer de novo Serva da Eucaristia, o curso, por que fazer.

P/1 - Mas aí enquanto isso a senhora continua frequentando a missa, continua frequentando a igreja?

R - Vou, eu sou Legionária Pastoral do Dízimo, Pastoral da Saúde.

P/1 - Aí a senhora vai visitar o pessoal da Pastoral?

R - Agora a gente não pode por causa dessa doença.

P/2 - E falando da pastoral, fala pra ele os saraus que a senhora fazia. A senhora falou de comida só de sal e os doces cristalizados que a senhora sabe fazer, os doces de figo? Conta do xarope, das ervas que a senhora usa, da Pastoral.

P/1 - Vamos falar das ervas então primeiro.

R - O xarope é, tem o Poejo, tem Hortelã Gordo, é, o outro pequeno é o, tem dois.

P/2 - Não é funcho?

R - Tem funcho, erva cidreira de folha, aí você põe pra ferver, as folhas sozinhas. Depois a hora que tá bem fervida, você tira e põe açúcar, faz o xarope.

P/1 - E ela serve pra que?

R - Pra gripe, eu mesma não vou em médico. Eu confio em medicação assim.

P/2 - E as coisas de casca de laranja que vocês fazem, casca de laranja, mãe mesmo fazia comprimido de babosa, tem mais as casca de laranja, que é aquele pózinho pra abrir apetite, não é?

R - Sinusite.

P/1 - Vai pegando as ervas onde?

R - No quintal da gente. Aí, a gente põe pra ferver, tira as folhas e põe no açúcar.

P/1 - E quando dava pra, pra visitar o povo lá pela Pastoral você levava as coisas pro povo da Pastoral?

P/2 - Pra vender. Aí vendia pro povo lá.

R - Vendia. Igual isso aí, eu vendo e dou. Por exemplo, se comprar quatro, eu dou um, que a gente não pode ser só dinheiro.

O dia que eu fui pra Experiência de Oração, eu tava trancando a porta aí chegou o menino, “Ah”_______ do idoso, “Oh, ela falou pra senhora ir cozinhar”, eu falei: “Não vou”, “Por que?”, eu falei: ”Eu vou pra igreja“, ”Que horas que a senhora volta?”, eu falei: ”Só a noite” “E amanhã?”, eu falei: ”Amanhã também”. O tanto que o encardido usa a gente, eu tinha trancado a porta pra mim ir fazer Experiência de Oração, falei: ”Não vou não” ________ não é mais do que dinheiro não e não fui, fui fazer Experiência de oração.

P/1 - A senhora falou que agora parou por causa da doença, mas antes a senhora ia visitar todo mundo, aí aproveitava fazia os xaropes, vendia uns, dava outros, fala, você falou e tinha benção, como é que é?

R - Tinha a missa no hospital. A gente ia no hospital, o padre ia celebrar, mas agora acabou tudo isso. Não vai. Os padres que às vezes vão visitar os doentes, a gente tem que ir com eles, porque eles não sabem aonde né.

P/1 - A senhora está indo na missa?

R - A semana inteirinha tem coisa na igreja, eu vou. De primeiro, não podia sentar, agora é assim junto, já liberou. Por exemplo, nós aqui é família, pode sentar todo mundo junto, mas antes era só três, quatro, em um banco lá longe.

P/2 - Conta pra ele do doce que vocês faziam muito lá no quintal de vó. Tinha um que nós amávamos comer, o doce da laranja da terra.

R - Eu fiquei num ódio, ainda era doce de casca de laranja que _______ Humberto deixou. Maria me deu, aí fui lá em Rosário, pus o doce no fogo, Mara vai e chama, “Mãe vem fazer a unha”, eu falei “Oh, vou fazer a unha” aí passou, depois eu fui. Menino, deixei a panela ligada no fogo. Ficou pretinho. Eu de uma porta, fui lá pra frente, o menino chegou lá e falou assim: ”Na casa da senhora tá saindo fumaça lá”, Dois homens não tiveram coragem de entrar lá e Mara entrou, o doce saiu inteiro da panela, ficou pretinho.

P/2 - Então quem te ensinou a fazer o doce foi vó?

R - Foi Humberto, mãe, porque lá em casa é assim: homem e mulher é a mesma coisa. Tem homem que arruma casa, não fala que é homem que arruma, nem todas as mulheres arruma?

P/2 - Também sabe cozinhar

R - Faz tudo, eu tinha um que era costureiro, ele casou, fez calcinha pra namorada mas não sabia que ia ser isso.

P/1 - Da mesma forma que os homens ajudavam a limpar a casa, cozinhar até costurar, as mulheres também iam pra roça, capinar, também ia trabalhar de boia-fria todo mundo fazia tudo?

P/2 - Trabalhava igual homem, de igual pra igual.

R - É o que a gente fala, não tô falando vocês, mas os homens hoje só gosta dessas atoa, só quer dinheiro, engravida, né?

P/2 - Eles têm pouco estudo, igual o Ademar falou, que tem pouco estudo, mas é muito mais assim do que quem tem diploma. Meu pai ia jogar Biloca, nós ia contar a história de como nos conhecemos e, meu pai na conta, ele fala que não sabe ler, mas ele desembaraça melhor do que eu que sou estudada. Ele não lê, mas dinheiro, meu filho, se pegar uma prata, ele sabe. Chinelo, quando arrebentava, vocês não faziam?

R - Não, era tio Bendito.

P/2 - Meu tio fazia chinelo de paninho de coco.

R - É o marido daquela Mariazinha, pai daquele menino que tocou violão.

P/1 - O Junio e o Eliomar. Aí ele fazia o que, esse chinelo de couro de pneu e a senhora aprendeu a fazer também?

R - Não, eles que faziam.

P/1 - A Marina tava contando que vocês tem uma família que quando fazia uma coisa, era uma coisa pra todo mundo.

P/2 - Eu lembro na semana santa, né, Dindinha? Minha vó reunia todo mundo da família, fazia aquela caldeirada de peixe, vinha até os de Cristalina, de fora, era um dia sagrado. No dia da reza, que ela rezava no natal, reunia tudo, era muita fartura e eram eles mesmos que faziam. Meus tios iam pescar. Tem um que gosta de pescar até hoje.

P/1 - Eles pescavam e o que traziam vocês cozinhavam pra todo mundo?

R - Todo mundo.

P/2 - Não era só comida. Tinha o doce que ela sabe fazer muito bem, os biscoitos.

R - Só que agora vai fazer um ano que eu não faço salgado. Eu fiz o ano passado no dia do meu aniversário. No ano passado foi sábado e domingo, agora esse ano vai ser um dia só.

P/2 - Conta pra ele que o salgado do casamento de Marcelo foi a senhora que fez todinho, mais de doze mil, não foi?

P/1 - Tinha alguém te ajudando a fazer isso?

P/2 - Mãe ajudava, nós ajudávamos.

R - Minhas filhas, de um ano até elas casarem, eu fiz festa.

P/1 - Fazia você montar, você ajudava a montar a festa, a organizar a festa.

P/2 - Eu só vou lembrar aqui. Eu falei das filhas dela que aprenderam, tem o salão de beleza, no curso, e a outra filha dela é uma manicure excelente, tem salão também que aprendeu.

R - Eu me aposentei e demorou a sair o atrasado, o que que eu fiz? Quando eu saí, deu sessenta mil, aí eu peguei e dei cinco mil pra cada uma das filhas. Aí essa mais velha que ela tá falando, fez o salão, com o dinheiro que eu dei.

P/2 - A família de mamãe é muito unida, eu lembro que quando vendeu a casa da bisa, dividiu o dinheiro.

R - Deu até pra nós que é neto.

P/2 - Aí, minha mãe deu, do dela, pra cada um dos filhos.

R - E eu também dei as filhas e aos netos. A Lucilene ainda falou: “Mãe, pra que que tá dando aos netos?”, eu falei: ”Por que eu quero dar”.

P/1 - Deixa eu te perguntar: a senhora teve lá na criação do bairro, qual a diferença dele daquela época pra hoje que a senhora percebe?

R - Ah, hoje tem muita desunião, antes era mais unido.

P/2 - Mas é por que antes era só da família, né? Vai chegando outras pessoas...

P/1 - Esse pessoal que foi chegando, foi contribuindo também ou foi afastando a família?

R - É o que a gente fala, como diz o outro “os dedos das mãos não são iguais”, então, acho que vou fazer setenta anos e não tenho que reclamar muita coisa.

P/2 - Mas eles contribuíam, Dindinha, que quando vó ia fazer as coisas, eles ajudavam, na caretada?

P/1 - O pessoal não era da família, mas ainda era um povo próximo de vocês?

R - Tava próximo.

P/1 - Mas hoje cresceu muito. Eu fui lá e vi que o bairro tá enorme, com um monte de gente e veio muita gente de fora.

P/2 - Quando ela fala da desunião, tô entendendo que a senhora está falando que antigamente, quando a caretagem era mais e agora dispersou.

R - Agora afastou, é isso.

P/2 - Mas a união prevalece.

P/1 - Entendi, a família ainda é unida, é que o bairro cresceu e algumas coisas já não dão pra fazer mais. Hoje a senhora tá morando lá em Paracatuzinho, né? Mora com seu esposo, e é só a senhora e seu esposo em casa

R - Não, mora eu e Deus.

P/2 - Eu moro pertinho lá.

R - Por que eu desisti, eu falei: “Não, bolo tem hora que nem quando você põe ele no forno, ele não cresce”, muito bolo não presta, aí eu saí. Tem um ano e dois meses que moro eu e Deus. Agora não, tem um sobrinho meu que tá aí, mas é por enquanto. Eu moro sozinha.

P/1 - E na hora de cozinhar lá você tem aquele fogãozinho elétrico ou ainda usa o fogão daqueles das antigas?

R - Eu uso fogão a gás mesmo.

P/1 - Mas já cozinhou também no fogão antigo?

R - Já. Quando eu quero comida, como diz o outro, de fumaça, eu faço. Ou então, tenho uma churrasqueira. Acendo e ponho a panela e faço comida.

P/1 - A senhora acha que o povo mais novo tá seguindo os costumes, as tradições antigas?

R - Não. Antigamente, a gente puxava água e hoje não, se não tiver água na torneira, ”Ah, não tem

água” e antigamente não tinha nada disso.

A gente lavava a roupa na mão. E hoje não, tem tanque, tem máquina.

P/2 - Na mão, na praia.

P/1 - Vocês lavavam roupa na prainha, não é isso?

R - Na praia.

P/1 - Vocês iam lá lavar, você não chegou a trabalhar é, é, lavando roupa e cobrando pra lavar roupa ou também fez isso? A Dona Maria falou que ela lavava roupa e ganhava um dinheiro.

R - Eu lavava, minha mãe lavava, eu ganhei muito dinheiro.

P/1 - Também ia lá no centro pegava as roupas levava pra prainha lavava tudo

P/2 - Faz uma trouxa e punha na cabeça.

P/1 - Tia Maria falou que vocês, eram tudo roupas brancas, dava um trabalho que tinha que esfregar tudo.

P/2 - Lá na praia, eu lembro que tinha uma pedra que elas punham pra quarar. O pano de chão delas era dessa cor aqui.

R - Era branco.

P/2 - De muitas casas, elas pegavam punham pra quarar e batia, cozinhava, punha folha de mamão pra ficar clarinho.

P/1 - Ela contou que vocês iam, iam com as trouxas de roupas, aí dava tudo trabalho isso que a Marina tá contando agora, de bater a roupa e tudo e ficava o dia inteiro lavando roupa por que era uma, um mundaréu de roupa pra lavar.

R - Muita.

P/2 - E as crianças na praia brincando.

R - E a hora que chegava comida! Uma chegava primeiro, aí ia enfiando a mão na outra, era desse jeito, tudo unido.

P/2 - E minha vó, eu lembro, gostava de comer com a mão, ela não gostava de usar colher. Então, a gente aqui de vez em quando come com a mão.

R - E Dona Francisca goiana, nós coávamos areia, um dia o homem foi comprar areia, aí ele falou: ”Olha, me dá uma raiva dessas velhas, o peito tá lá na barriga”, que punha aqueles cordão de São Francisco, é o sutiã. Ela levantou a blusa “Olha aqui se eu tô com algum cordão de São Francisco”. Nós rimos. Já tem anos que ela morreu e eu não esqueço. E nós punha as roupas pra quarar lá na praia e era bom. Nós descíamos, vestíamos as roupas dela e ia lá pra baixão, ia nadar, quando eles chegavam lá, a roupa tava queimando. ”Cadê as éguas?”, chamavam nós de égua.

P/2 - Enquanto nós crianças, comendo quiabo pra aprender a nadar.

P/1 - Mas as lavadeiras, tinha umas horas que tomava banho também lá?

R - Tinha. Nossa!

P/2 - E antigamente não existia sabonete, como era muito pobre, elas faziam o sabão.

P/1 - Vocês faziam sabão também, de coada, não era?

R - De coada.

P/2 - Minha mãe faz o sabão até hoje, só que não é de coada. Mas mãe sabe fazer sabão de coada.

P/1 - O sabão que vocês usavam pra lavar roupa também eram vocês que faziam?

R - Até hoje a gente ainda faz, ainda lava roupa… eu quase não gosto de sabão em pó, eu gosto mais.

P/2 - Mas não é de coada, mas.

R - Não, agora não é de coada mais.

P/1 - Sim, hoje faz aquele sabão que você compra soda, não é? Você faz em casa.

R - Soda, Álcool.

P/1 - Naquela época fazia o sabão de coada e usava pra lavar tudo?

R - Até pra tomar banho. Hoje tudo é chique.

P/2 - Antigamente eu lembro que quando a gente machucava, era sal com açafrão, era fazer xixi e põe em cima que melhorava, porque a urina tinha sal, não era mãe?

P/1 - E era tudo costume que vocês tinham e eram coisas que vocês tinham aprendido dos antigos.

P/2 - E até hoje na minha casa quando a gente corta, a gente ainda lembra, vai lá e pega o sal e o açafrão e coloca.

P/1 - Em cima do corte, do machucado, pra cicatrizar machucado.

P/2 - E se machucou, que abriu pulso, mãe minha faz até hoje, faz moqueca. Pega as cinzas, pega mastruz e vai fazendo aquele trem e põe, esquenta. Quando era caxumba, punha aquelas laranja da terra com folha de guiné, esquentava, punha uma fralda na gente, a gente ia lindo pra escola.

P/1 - Ficava aquele negócio amarrado, pendurado no rosto?

P/2 - Agora, se a pessoa tem uma caxumba, você tem que ir no hospital, não existe você falar assim “vamos por laranja da terra”, que nem tem mais.

P/1 - E no meio do caminho você falou que coava areia, a coada da areia era pro garimpo, não é isso?

R - Não, a gente coava areia pra vender.

P/2 - Pra construir.

R - Antigamente não comprava essas areias.

P/2 - Pegava na praia mesmo.

R - Depois que veio esse negócio de construção, de material de construção.

P/1 - A senhora chegou a ver como era o garimpo na época, por que a gente tava conversando com o Ademar, e ele tava falando que o povo garimpava e depois não tinha mais, a senhora chegou a ver isso lá?

R - A RPM veio, suspendeu, mas nós tirávamos ouro. Eu tirava.

P/1 - A senhora chegou a ir lá tirar ouro?

R - Todo mundo tirou ouro. Tinha a draga, nós trabalhava em draga. Meus irmãos, teve uma vez que eles tavam com cinco dragas, e eu mais minha mãe era cozinheira, e eles bebiam pinga, aí eles escondiam. Um dia, eu mais minha mãe ficava olhando aonde eles iam e guardava, aí quando eles iam na ria lá eu mais minha mãe, “Mãe, vamos jogar a pinga fora?”.

P/2 - E as irmãs dela casaram com dois irmãos porque conheceu foi na draga.

R - Nós jogávamos a coisa fora, aí enchia d’água e deixava meio destampado, “Quem foi? Quem bebeu?”, “Pra você ver, deixou aberta, virou água”. Mentira, era eu mais mãe.

P/1 - Trabalhou com garimpo e depois chegou a RPM e acabou tudo?

R - Tirou, acabou.

P/1 - O que aconteceu depois disso?

R - A boia-fria.

P/1 - Sim, mas aí não podia garimpar mais lá?

R - Não. Tinha o tal do coisa que eles punha, como chama Comadre, os trens que eles punha no ouro?

P/2 - Mercúrio.

R - Mercúrio, aí não podia mexer.

P/1 - E não podia nem ir mais lá na prainha, porque estava cheia de mercúrio?

R - Nós tirávamos ouro lá no fundo da praia, da casa, era bom.

P/1 - Agora, a gente já vai terminar a entrevista, só vou fazer mais uma pergunta: o que a senhora achou de dar uma entrevista pra um Museu, pro Museu da Pessoa?

R - Bom. Que eu vou ser importante (risos).

P/2 - E tá tendo a oportunidade de falar da infância da senhora e sobre nossa descendência, origem, o que a senhora aprendeu.

R - Graças a Deus, falando assim “não foi maravilha”, mas pra nós, só de ter a família unida é bom demais, graças a Deus.

P/1 - Então eu e o Museu da Pessoa agradecemos que a senhora deu a entrevista pra gente, muito obrigado.

R - De nada.